elomar cantador do sertão

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO BRASILEIRO NOVEMBRO DE 2015 – SALVADOR / BAHIA PROFESSORA: NÚBIA BENTO ESTUDANTE: RUY AUGUSTO FAGUNDES DE AZEVEDO ENTRE TROVAS E MARTELOS ELOMAR: O CANTADOR DO SERTÃO BAHIANO “já passei pur tantas prova/ inda tem prova a infrentá vô cantando mias trova/ qui ajuntei no camiá” cantiga do estradar Elomar Esse trabalho se propõe a fazer uma análise do imaginário do sertanejo a partir do referencial teórico, de Euclides da Cunha, primeiro entre os pensadores do século XIX que se debruçavam sobre o tema da identidade nacional, baseando-se no sertanejo, e na sua formação racial, natural e cultural.

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debate sobre o sertão

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Page 1: Elomar cantador do sertão

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO BRASILEIRO

NOVEMBRO DE 2015 – SALVADOR / BAHIA

PROFESSORA: NÚBIA BENTO

ESTUDANTE: RUY AUGUSTO FAGUNDES DE AZEVEDO

ENTRE TROVAS E MARTELOS

ELOMAR: O CANTADOR DO SERTÃO BAHIANO

“já passei pur tantas prova/ inda tem prova a infrentá

vô cantando mias trova/ qui ajuntei no camiá”

cantiga do estradar

Elomar

Esse trabalho se propõe a fazer uma análise do imaginário do sertanejo a partir

do referencial teórico, de Euclides da Cunha, primeiro entre os pensadores do

século XIX que se debruçavam sobre o tema da identidade nacional,

baseando-se no sertanejo, e na sua formação racial, natural e cultural. O

trabalho dessa forma se debruçará a Obra do cantor e compositor Elomar

Figueira de Melo, como um representante dessa cultura sertaneja, e que busca

um retorno tanto físico quanto espiritual, para esse sertão, como o verdadeiro

berço dos valores e da identidade nacional. Tal debate será travado

dialogando-se com a literatura a respeito do tema, buscando-se assim chegar a

Page 2: Elomar cantador do sertão

uma síntese inicial sobre tal discussão. Esse é um trabalho inicial a cerca

dessa discussão, tanto que não foi encontrado nenhum outro artigo que

discutisse a obra desse artista sobre esse viés, então o nosso texto tentará

muito mais construir um panorama da discussão a respeito da obra do artista e

da identidade sertaneja, dando um foco prioritário na análise do trabalho de

Elomar como um possível interprete desse Sertão, se é que essa categoria

existe e pode ser utilizada.

O pensamento acadêmico brasileiro foi centralmente construído durante o

processo de colonização, buscando como no ideal iluminista as luzes do

conhecimento na Europa colonizadora. Assim, sempre se enxergou o Brasil,

como um país dos Brancos portugueses que vieram trazer a civilização para os

“puros” nativos que aqui viviam, e os negros Africanos foram trazidos, para

trabalharem, por uma série de fatores que não se mostra necessário

aprofundar aqui os Africanos que foram escravizados, enquanto os nativos

indígenas, foram, massacrados ou assimilados, à cultura e a “civilização”. De

forma que durante o período imperial, as teorias de afirmação da identidade

nacional priorizavam o português, e o indígena como os elementos

construtores da nação deixando os Africanos invisibilizados.

No período seguinte, o pensamento cientificista e racialista, estavam em seu

pleno desenvolvimento na Europa, o que inspirou fortemente os autores locais

a buscarem a formação da identidade nacional, e o que garantiria a nossa

unidade a partir daí. Tivemos assim de um Lado, Nina Rodrigues Seguindo o

pensamento de Gobineu, defendendo a pureza racial, em detrimento da

mestiçagem. Silvio Romerio, defendendo a miscigenação, cultural, para

propiciar, um embranquecimento da população. E a terceira visão, finalmente é

a que pretendemos aprofundar um pouco: Euclides da Cunha (1866-1909),

estudante da escola de engenharia do exército, e jornalista, participou da

guerra de Canudos como primeiro repórter nacional a participar de um conflito

em nome de um jornal, para trazer sua leitura dos fatos. É nesse processo de

Page 3: Elomar cantador do sertão

ida ao Sertão, e retorno que Euclides constrói a obra prima do seu

pensamento.

A sua principal obra: “Os Sertões”, que parte de uma linha argumentativa

fortemente positivista e naturalista, trás a visão de que o homem é mero

produto do meio, e secundariamente produto da sua história, ou seja:

primeiramente fundamental, seria o determinismo geográfico, na qual uma

sociedade em uma época, nada mais seria, do que uma expressão do homem

com a terra, e que isso criaria hierarquias de locais mais propícios e adaptados

ao progresso da civilização, e outros menos; Sendo um fator secundário,

porém ainda de muita importância o Darwinismo social, que partia de uma

visão geneticista, em que cada população seria uma expressão da sua “raça”,

havendo assim, raças que carregariam características mais positivas ou

negativas que outras, justificando assim as hierarquias sociais. Desse modo,

como os outros principais pensadores da época, Euclides legitimava com o seu

pensamento, uma visão de superioridade do branco Europeu, como a melhor

raça para o progresso, e a região Centro-Sul do país como a vanguarda que

nos traria a civilização. Como podemos exemplificar no trecho de ORTIZ:

“São, portanto, prioritariamente estas noções de clima e raça que vão dar

singularidade ao país e explicar o seu atraso e a sua lenta mobilidade, o calor dos

trópicos foi visto como um fator dificultador para adaptação do elemento europeu na

terra, aliado a isso se apresentava uma evidente mistura de raças. Aparece deste

modo, um quadro pessimista sobre a construção da nacionalidade e

consequentemente o progresso e a modernização do país. Se o mestiço (indolente) é

um dado concreto, o que é apontado como ideal para o progresso do país é a

possibilidade de um branqueamento da sociedade brasileira, numa tentativa de

processualmente ir minando as características negativas do nosso povo, para

finalmente construir um Estado Nacional. Neste sentido, a idéia de Nação aparece

muito mais como uma meta a ser alcançada do que como uma realidade (Ortiz,

1994).”

Entretanto na sua viagem a Canudos, Euclides se depara com algo novo, Os

Sertões, levando-o a ressignificar alguns pontos na sua teoria. Ao complexificar

a observação empírica e o cruzamento de dados, Euclides chega a apontar

como nos mostra Vasconcelos: “A exemplo disso via-se o negro do litoral

Page 4: Elomar cantador do sertão

sendo mais malevolente, o homem do sertão mais sisudo e ríspido, a mulata

sensual...”, pois, para ele, o branco mais puro e tradicional, ficou mais

concentrado nos sertões do país, de onde os índios fugiram, foram mortos, ou

se “embranqueceram” mais, em contraste com as regiões mais ricas do país,

próximas ao litoral, com uma concentração maior de negros, que se misturaram

com os brancos degenerando-os com seus costumes e malemolência, como

nos disse a autora supracitada. Desse modo após sua experiência no sertão,

ele acaba por inverter o argumento apontando que o sertanejo sim seria o

verdadeiro portador da identidade nacional, que deveria ser valorizada, o

verdadeiro herói que o Brasil precisava valorizar, e que este apenas não se

desenvolvia pelas dificuldades bravamente enfrentadas no meio. Em contraste

ao litorâneo, um povo mais fraco e corrompido, e inclusive, mal acostumado

pelas condições geográficas favoráveis que o tornariam um preguiçoso.

Exemplificado com o trecho:

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços

neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista,

revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura

corretíssima das organizações atléticas.” (CUNHA, 1984).

“Assim, a paisagem desoladora e desértica é a mesma paradisíaca, uma terra que vai

Da extrema aridez à exuberância extrema , e o seu habitante, o sertanejo, apesar de

ser o homem permanentemente fatigado , cambaleante e sem prumo, de um só

assalto pode se transformar em um titã acobreado e potente ágil e forte.” (CUNHA,

1984).

Assim, acabamos concluindo que levado ao limite o seu pensamento, Cunha

parece criticar o massacre dos sertanejos de canudos e a dominação cultural

que o litoral corrompido exercia sobre os sertões. De forma que a solução para

o país seria inverter essa lógica, valorizando o sertão, e que a sua cultura mais

pura e tradicional, fosse mantida, e utilizada como a cultura oficial brasileira. E

a nível mais físico, que os sertanejos, pudessem exercer seu potencial, indo

para regiões melhores geograficamente como o Centro-Sul, e assim tornar o

Brasil, uma nação mais sólida e firme. Irônico ou trágico, isso é o que acabou

por acontecer na nossa história com a ida dos imigrantes nordestinos a São

Paulo e Rio de Janeiro, especialmente nos seus períodos mais prósperos

consolidando assim o processo de industrialização e modernização do Brasil.

Page 5: Elomar cantador do sertão

Percebe-se então a construção de um ideal de que o nordestino seria o

portador da verdadeira “brasilidade”, como a raça mais adequada, e que

guardaria melhor a nossa tradição portuguesa, sendo a verdadeira fonte a ser

valorizada para encontrar a essência nacional. Em oposição ao litorâneo,

acostumado, à produção para a exportação, para o mero lucro, e sempre em

contato e encantado com os estrangeiros, acabariam por serem as bases de

um Brasil, sem personalidade que acabaria sempre por copiar o que viria de

fora e não construindo uma verdadeira cultura local. O que pode ser observado

no seguinte trecho do historiador Albuquerque, que debate a invenção do

nordeste:

“O tipo nordestino vai se definindo como um tipo tradicional, voltado para a

preservação de um passado regional que estaria desaparecendo... se situa

na contramão do mundo moderno, rejeita as suas superficialidades, sua vida

delicada e histérica. Um homem de costumes conservadores, rústicos,

ásperos, masculinos; um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em

crise; um ser viril, capaz de retirar a sua região da situação de passividade e

subserviência em que se encontrava.” (ALBUQUERQUE 2003,).

E podemos confirmar com esse trecho do próprio Cunha:

É assim que o Brasil de cima se apresenta, forte, viril, duro e ríspido, influenciado

pelo meio ao desenvolver uma capacidade de enfrentar tudo e a todos para

sobreviver, sobreviver aqui no sentido de resistir, tanto a seca, que assola grande

parte da região, quanto no sentido de manter a pureza da brasilidade, se

resguardando, pela distância, das destruidoras influências

modernizantes/estrangeiras, a que o Sudeste estava sujeito. O abandono em que

jazeram os rudes patrícios dos sertões do Norte teve função benéfica. Libertou-os da

adaptação penosíssima a um estágio social superior, e, simultaneamente, evitou que

descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados. (CUNHA, 198)

Page 6: Elomar cantador do sertão

De maneira quase que complementar, porém em uma linguagem artística, e

mais de cinquenta anos depois, produzido pelo próprio sertão, encontramos a

icônica presença do “cantador” Elomar Figueira de Melo. Baiano sertanejo,

nascido em Vitória da conquista e 1937, que após viver um tempo na capital do

estado, onde estudou arquitetura, e de forma autônoma música, ele retorna

para a sua terra natal, onde recluso em seu sítio, compõe suas peças, e livros,

uma verdadeira representação da tradição nordestina dessa região chamada

Sertão, ou a “sertaneza”. Possuindo assim um estilo bem característico da

tradição cultural a qual se propõe a ser porta voz fortes características como

aponta Guerreiro: “a criação artística de Elomar é composta de forma intuitiva e

original, e traz complexidade na poética e no delineamento dos acordes do

violão, aproximando, assim, linguagem poética, linguagem musical e

oralidade.”. Assim, a música de Elomar também carrega uma linguagem

popular vinculada à oralidade tradicional do sertão, sendo tanto cantados com

tais rimas, sotaques e vícios de linguagem próprios, quanto estão estes

mesmos presentes no encarte dos discos, da forma como são pronunciadas as

expressões, o que leva a um auto reconhecimento dentre aqueles que

compartilham tal cultura. Em relação à ambientação trazemos a visão de Canal

a respeito “Sua paisagem é povoada por andarilhos, ciganos, pessoas

humildes e deserdadas em condições de vida e sociedade de estruturas ainda

arcaicas. Há algo de surrealista nessa região, aludindo às estruturas e

condições de vida medievais”. Utilizando-se dessa forma do imaginário típico

dessa região do nordeste, fortemente atrelada à cultura tradicional portuguesa

medieval, próxima às histórias da cavalaria, como em vários cordéis as

representam. E ainda segundo Canal: “’O elemento medieval é trazido, por

exemplo, na figura do retirante, tratado como guerreiro em terras estranhas’. A

orquestração suscita um imaginário “épico” que se atrela à jornada sertaneja

através do trabalho artístico.”. O que podemos fortemente perceber pela

narrativa épica, de contos que para a história oficial, seriam insignificantes,

como histórias cotidianas de tropeiros, ou vaqueiros, mas que são

representados, como algo grandioso, até pelo formato musical, em óperas, ou

músicas de grande complexidade composicional. Finalmente é importante para

fechar essa avaliação da técnica de composição e construção da música e do

texto de Elomar levar em conta o seguinte trecho:

Page 7: Elomar cantador do sertão

O compositor transita, assim, por um entre-lugar no qual prosaico e poético não são

categorias opostas, mas fluxos que se permeiam e se completam, desfazendo sua

própria delimitação. Os arranjos sofisticados são atrelados à “linguagem dialetal

sertaneza”, tornando-se um parte integrante e fundamental do outro, ambos

contraditórios e ao mesmo tempo inseparáveis dentro de cada composição. Em suas

apresentações, o autor afirma uma figura de vaqueiro cantador e menestrel. Ao trazer

a ideia de cancioneiro, deseja relacionar o sentido de cancioneiro à antiga poesia

lírica galego-portuguesa. Alia à performance teatral uma voz de timbre solene e

grave, responsável pela dramaticidade que imprime às execuções. (GUERREIRO,

2007).

Podemos assim perceber, que a sua música e musicalidade, se apresentam,

como uma totalidade complexa, que busca trazer-nos ao ambiente sertanejo,

em uma totalidade. Não baseada numa construção realista apenas como

muitos compositores modernos intentam trazer, mas sim num mágico sertão

espiritual, de estado de alma, de ideais, sonhos, e valores de forma gerais

vinculados a uma tradição ancestral medieval, de uma sociedade justa e

heroica. Podemos assim claramente observar essa perspectiva na própria fala

de Elomar concedida em entrevista realizada em campo por Guerreiro:

Nesse sentido, dinamiza um saber sobre pátria, arte, sertão e identidade, assumindo

lugar autoral próprio da modernidade: “Desde então compreendi a necessidade da

pátria sustentar a riquíssima música popular de que já é possuidora e mais ainda de

criar e produzir uma música orquestral coral e lírica que já vem sendo proposta a

partir de Carlos Gomes e até Villa Lobos e outros raros contemporâneos, para que

um dia, assim documentada com esta identidade, possa se apresentar e ser

respeitada pelas nações ricas do setentrião, as quais sempre nos viram como aldeia

de autóctones cuja maior expressão estética se dá nos remexeres de cadeiras e

bárbaros dançares” (GUERREIRO, 2007)

Buscando melhor exemplificar o estilo trazemos aqui um trecho de uma

música:

O Violeiro - Elomar

“(...) Cantado di trovas i martelo

Di gabinete, lijêra i moirão

Ai cantado já curri o mundo intero

Já inté cantei nas portas di um castelo

Dum rei qui si chamava di Juão

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Pode acriditá meu companhero

Dispois di tê cantado o dia intero

O rei mi disse fica, eu disse não

Apois pro cantadô i violero

Só há treis coisa nesse mundo vão

Amô, furria, viola, nunca dinhero

Viola, furria, amo, dinhero não (...)”.

Seguindo a partir de uma temática central na musica anterior, Elomar se

considerava um cantador, fazendo assim uma referencia à tradição dos

menestréis, ou bardos medievais que viviam a cantar pelas localidades por

onde passavam, levando as histórias e tradições aprendidas em cada lugar,

sendo assim elementos centrais na coesão cultural das antigas sociedades, e

que desempenhou um papel importante para essa sociedade sertaneja cantada

por Elomar, sejam como Cantadores individuais ou que seguiam em grupos

juntamente com os tropeiros e vaqueiros, viajando por longas localidades,

difundindo notícias e as tradições. Tal tema e bastante discutido por KUEHN em

seu artigo: Elomar: o cantador nordestino, o qual reproduziremos uma parte:

Geralmente, o cantador é encarnado por uma pessoa do povo, simples e sem

formação específica. Sua tarefa é transmitir as mais diversas histórias, notícias e

poesias que falam da vida e da cultura de um determinado lugar ou região, seja em

linguagem poética livre, improvisada, seja de forma mais elaborada. De qualquer

maneira, a sua linguagem é direta e de fácil pelas pessoas que ali vivem.

Considerando-se que o dialeto catingueiro é deveras difícil de ser entendido por um

forasteiro, para a população local este representa o modo mais natural e acessível de

comunicação. Principalmente em razão da função de mediação sociocultural

importante que exerce até hoje naquela região, o cantador mantém viva a tradição

dos trovadores antigos, com os quais tem muito em comum. Por tudo isso, o cantador

é um dos poucos indivíduos que goza do privilégio de transitar por praticamente todas

as camadas da sociedade. Levando a sua história tanto aos "feudos" quanto aos

“casebres de barro”, as circunstâncias sociais e geográficas formaram uma espécie

de “fermento”, do qual o violeiro e o cantador puderam emergir como figuras centrais

da memória cultural e do pensamento coletivo. (KUEHN, 1996)

O que aponta para a sua expressão como discutida anteriormente como

representante dessa cultura ancestral e tradicional sertaneja, especialmente

pelas suas técnicas, de cantoria com a viola, que utiliza um sistema de rimas

que se parece com o Côco-Repente, um estilo comum no sertão, que evoca, à

Page 9: Elomar cantador do sertão

música que trás fortemente essa tradição de umas histórias cantadas nas

feiras, ou locais de aglomeração pública, utilizando uma linguagem popular,

assim como temas que dialogavam com a realidade da população local. O que

no caso de Elomar, se da fortemente com temáticas que muito preocupavam a

população da época, objetivamente como a seca, e a necessidade de migrar

para o Sudeste do país, de forma mais espiritual, como a salvação, ou

temáticas religiosas. Tendo assim, o cantador a possibilidade de ser um

elemento permeável nessa estrutura social, que era capaz de transitar-nos

mais diversos meios sociais conseguindo assim portar uma série de histórias, e

contos, que despertavam o interesse de ambas as classes sociais. Para nos

aproximar ainda mais do artista sob essa temática, podemos trazer um trecho

de uma entrevista concedida pelo musico:

“Existe uma coisa que é o Estado do Sertão, que é enorme, um dos maiores estados

do mundo. Obviamente que há especificidades regionais dentro desse Estado do

Sertão, mas há mais semelhanças que dessemelhanças. A realidade que o sertanejo

vive não tem paralelo em nenhum outro lugar do mundo. Só o deserto se parece com

o sertão, eles são primos. Dentro dessa realidade o que se vê é um povo corajoso,

que luta com as maiores adversidades e não desanima, não abandona a luta.”

A partir do trecho, podemos seguir na discussão sobre a visão do autor a

respeito do que é o Sertão. Pensemos inicialmente que o termo “sertão” é um

derivado aumentativo de “deserto”. O que por um lado lembra o que foi

apontado por Cunha de tratar o sertão como uma terra ríspida e que inviabiliza

a vida sem titânicos esforços contra a natureza, o que torna a própria vida um

símbolo da força e da resistência desse povo. Isso o leva a compará-lo

compara-lo à terra santa (Israel, terra prometida por Jeová), como um local,

onde a eterna luta para a sobrevivência e as fortes relações tradicionais levam

o homem à redenção espiritual. Como podemos perceber neste trecho da

música “Pátria Veia do Sertão”:

Patra véa do sertão/ Terra donde eu nasci/ Teus campo de sequidão/ Me alembra

ôtro sertão/ Qui a Sagrada Letra canta/ Bem muito lonjo daqui/ Pl’as banda da Terra

Santa/ Nos campo de Abraão/ No sertão do Rei Davi” (MELLO: 1993, FAIXA 03 –

pátria veia do sertão)

Page 10: Elomar cantador do sertão

Tanto pela entrevista transcrita acima, percebemos que o compositor, busca se

referenciar no sertão como uma unidade, que é muito além de espaços físicos,

e geográficos, determinados politicamente por interesses, mas tanto uma

cultura compartilhada pelos interiores do Brasil, com fortes semelhanças,

históricas, sociais, culturais, e políticas (Sertão como cultura, como estado de

espírito, cabendo assim inclusive definir a “Terra Santa” como sertão). De

forma que como mencionou em entrevista no disco Tramas do Sagrado o

compositor afirma que “Salvador fazia uma política bairrista em relação ao

resto do estado. A capital baiana para ele se tornou um gueto segregacionista

e o sertão ficou como uma coisa de província”; Apontando assim que haveriam

duas Bahias com grandes culturais e geográficas. Em suas palavras, “minha

cultura é a cultura de pés descalços, da precata salga bunda, chapéu de couro,

do vaqueiro, canônica mesmo é minha cultura”. Além disso, para ele a

formação cultural do interior (sertão) pautou-se mais por uma formação cristã.

Enquanto no litoral a formação foi mais heterogênea com grande influência de

religiões africanas. O que aponta para o seu íntimo diálogo com a tese de

Cunha, a qual haveriam dois espaços básicos para a compreensão da

formação brasileira, o Sertão e o Litoral, havendo uma dominadora do Litoral,

“corrompido” pela miscigenação para Euclides da Cunha. Enquanto Elomar, faz

uma critica que se baseia principalmente no Sertão, como um local, de

preservação das tradições, de uma vida, sem ambições, em contraste à

moderna vida Litorânea, que deturparia ao entrar fortemente em contato com o

estrangeiro, e os fortes interesses comerciais.

Nesse debate sobre a definição do sertão, trazemos para o debate mais atual

sobre essa formação do sertão, trazida por Canal a respeito da visão de Darcy

Ribeiro, ao dizia que:

“Essa região interiorana, a princípio, caracterizava-se como um local de criação de

gado para fornecê-lo aos engenhos de açúcar do litoral”. A penetração para o interior

fez-se seguindo os cursos dos rios. A população ia penetrando pelo interior do Brasil

à medida que o gado ia para o mesmo sentido. Com a grande distância dos centros

consumidores e população escassa, as relações com os proprietários das terras e do

gado tendiam a assumir “uma ordenação menos desigualitária que a do engenho,

embora rigidamente hierarquizada (RIBEIRO, 2009)”. (CANAL, 2013).

Page 11: Elomar cantador do sertão

Seguindo nessa análise uma linha bem próxima a de Euclides da Cunha, no

sentido de apontar para a existência de uma unidade sertaneja que perpassa

por vários estados, entretanto diferencia-se desse último, pela perspectiva

sócio histórica da formação do sertão, a partir da sua ocupação territorial, e dos

trabalhos e relações humanas decorrentes destas que tenderiam a surgirem.

Apontando, para essa sociedade mais tradicional, cantada por Elomar,

povoada, de Vaqueiros e tropeiros, onde a relação com uma tradição

portuguesa medieval era íntima, como referido por Gilberto Freyre, que faz

alusão das propriedades rurais sertanejas, como os Feudos medievos.

Ainda nesse debate a cerca de diferentes visões sobre a formação do sertão,

podemos trazer a perspectiva do folclorista Câmara Cascudo. “Na atividade

pastoril, o vaqueiro que se destacava pelo brio e pela coragem, era exaltado

pelos companheiros, tornando-se lenda nas bocas populares” (CASCUDO:

1984). Assim, o papel do vaqueiro, como um elemento tradicional, dos Sertões,

que se expressava em todas as regiões, que compartilhavam dessa formação

sócia histórica, foi de certa forma desenvolvendo essa admiração pelos feitos

desses valentes guerreiros, que viviam da sua habilidade. “A labuta do dia-a-

dia para recuperar e apartar o gado nos campos dos sertões fazia-se, muitas

vezes, com a cooperação entre os sertanejos, mesmo com as grandes

distâncias entre estes. Nesses momentos os vaqueiros mostravam suas

habilidades, o que acabou por transformar-se em festas regionais. Os cultos

aos santos padroeiros e as festividades advindos do trabalho proporcionavam

às famílias um convívio social que resultava em festas, bailes e casamentos

(RIBEIRO: 2009,)”. Podemos assim perceber, a centralidade desse elemento

na unidade cultural, e na socialização dessa tradição local, na qual “O vaqueiro,

além de trabalhar no manejo do gado, tinha um papel importante na

transmissão de informação. Ao levar o gado para os entrepostos comerciais no

litoral, ficava sabendo de notícias que eram espalhado-transmitidas pelas

paradas das suas viagens.” (CANAL, 2013). Podemos visualizar claramente a

importância da cultura dos vaqueiros a partir desse trecho, dessa musica que é

dedicada ao heroísmo dessas míticas figuras:

Page 12: Elomar cantador do sertão

História de Vaqueiros

Elomar Figueira Melo

Mais foi tanto dos vaquero

qui rênô no meu sertão

qui cantano um dia intêro

num menajo todos não.

João Silva do Ri-das-Conta

Antenoro do Gavião

Bragadá lá das Treis Ponta

Tiquiano do Rumão

ranca tôco ribadêro

matadô de lubião

turuna qui laça frechêro

nos iscuro pelas mão

mermo cantano um dia intêro

num menajo todos não

certa feita vô contá

só um feito desse vaquêro

foi chamado pra pegá

um levantado marruêro

Finalmente a principal ponte encontrada entre A representação que Elomar e

Cunha fazem do Sertão, apresenta-se na leitura, sobre a defesa da tradição

nordestina, esse povo, como um retrógrado, como disse Cunha, entretanto,

não num sentido pejorativo, ou negativo, e sim ambos buscam nessa tradição

conservada no sertão uma chave para identidade nacional, se afirmar,

encontrando assim o país, um rumo a ser seguido, não mais caindo nas

influencias estrangeiras, ou problemas da urbanização e/ou modernidade, tão

nocivas para a nossa cultura, segundo Elomar nessa entrevista a Miguel

Anunciação datada de 1998: “Na economia, ela [a globalização] é inevitável,

mas na cultura tem que haver fronteirização, manter as identidades, não a

força do dólar arrebentando com tudo. Eu não me globalizo... Eu vim ao mundo

pra marchar contra a multidão.” Assumindo assim, um papel de paladino antimoderno,

Elomar, grava os seus discos numa gravadora própria, vive em sua fazenda em Vitória

da conquista, onde mantem uma organização não governamental (ONG), Casa dos

Carneiros, que se preocupa em registar e conservar a tradição popular sertaneja.

Exemplificando tal crítica à modernidade podemos trazer a música:

Chula No Terreiro Elomar Figueira Melo

Page 13: Elomar cantador do sertão

Mais cadê meus cumpanhêro

Qui cantava aqui mais eu, cadê

Na calçada no terrêro, cadê

Cadê os cumpanhêro meus cadê

Cairo na lapa do mundo, cadê

Lapa do mundão de Deus, cadê

Mais tinha um qui dexô o qui era seu

Pra i corrê o trêcho no chão de Son Palo

Num durô um ano o cumpanhêro se perdeu

Cabô se atrapaiano com a lua no céu

Num certo dia num fim de labuta

Pelas Ave-Maria chegô o fim da luga

Foi cuano ia atravessano a rua

Parou iscupiu no chão pois se espantô com

a lua

Ficô dibaixo das roda dos carro

Purriba dos iscarro oiano prá lua, ai sôdade

Finalizamos então essa breve discussão, apontado para fortes semelhanças

nas leituras, sobre O sertão, entre Elomar Filgueira de Mello e Euclides da

Cunha, ao tratarem do sertão como um local mais puro, e distante da

corrupção e das influencias negativas da cidade e da modernidade,

caracterizadas pela cultura do Litoral, como a região mais miscigenada do

Brasil, e sob mais influencias estrangeiras e da modernidade. Em contraste

com o Sertão como a fonte da cultura tradicional brasileira, onde estariam os

berços dos valores e costumes que o país necessitaria, para encontrar sua

identidade e firmeza para se tornar uma grande nação. Não podemos ficar a

críticos a essa visão, que carga em si, racismo beirando uma visão eugenista

por parte de Euclides da Cunha, enquanto que a visão de Elomar acaba,

caminhando para uma interpretação eurocêntrica da história, hipervalorizando

um passado medieval português, em detrimento da nossa formação completa,

miscigenada, e com forte contribuições indígenas e africanas que ficam de

certa forma invisibilizadas. Esse trabalho acabou sendo predominantemente

panorâmico, a respeito do debate, o que dificulta a afirmação categórica dos

resultados encontrados, nos dando mais pistas para uma próxima investigação

mais focal a respeito do tema num futuro.

Page 14: Elomar cantador do sertão

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