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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder
Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008
Elis Regina, uma hélice cortante
Aline Maria Kukolj (UFPR) ST 55 – Título do Simpósio Temático: Música popular brasileira & relações de gênero
“No Brasil, embora exista uma consistente produção acadêmica nos estudos feministas/de mulheres/de gênero em algumas áreas, por outro lado, nas artes, talvez exceto na literatura, as reflexões são incipientes.” (Além de uma
tela só para si.).
O feminismo nasce na América Latina e no Brasil nos anos 70 em Regimes militares e
falsas democracias autoritárias e repressivas, o movimento vem em oposição à repressão ditatorial
sendo conseqüência da resistência das mulheres à ditadura militar, impactado pelo movimento
feminista internacional e pelo processo de modernização que incorporou as mulheres no mercado de
trabalho e ampliou o sistema educacional (Ana Alice Alcântara Costa).
Segundo Cynthia A. Sarti, havia duas tendências principais dentro da corrente feminista do
movimento de mulheres nos anos 70. A primeira, mais voltada para a atuação pública das mulheres
e a outra preocupada sobretudo com o terreno fluido da subjetividade, com as relações interpessoais,
tendo no mundo privado seu campo privilegiado. Manifestou-se principalmente através de grupos
de estudos, de reflexão e de convivência. Neste grupos ressoava a idéia de que o “pessoal é
político”.
É neste campo – pessoal-político – que rompem os limites do conceito de político, fechado
em uma esfera pública e suas relações sociais, para vir a tona questões até então tratadas e vistas
como específicas do privado. A força desta corrente feminista se distigue “por defender os
interesses de gênero das mulheres, por questionar os sistemas culturais e políticos construídos a
partir dos papéis de gênero historicamente atribuídos às mulheres, pela definição da sua autonomia
em relação a outros movimentos, organizações e o Estado e pelo princípio organizativo da
horizontalidade, isto é, da não existência de esferas de decisões hierarquizadas ( Alvarez,1990:23)”.
Elis nasceu em 1945 e tinha 7 anos quando enfrentou pela primeira vez o microfone, foi no
auditório da rádio farroupilha em Porto Alegre, no programa infantil chamado Clube do Guri. Elis
emudeceu, roeu as unhas e voltou pra casa calada ouvindo broncas da mãe. 5 anos depois ela volta
ao Clube do Guri pra cantar e desta vez desbanca a favorita e a partir daí vira a sensação do
programa.
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Em 59 assina seu primeiro contrato profissional, com a rádio Gaúcha. Foi nessa época que
Elis sofreu preconceito pela “maldita profissão de artista”, ela cursava o ginásio no Instituto de
Educação Flores da Cunha, em Porto Alegre e uma professora do Instituto “disse que ela não tinha
suficiente dignidade para envergar o glorioso uniforme da escola. Motivo? Ela era uma cantora de
rádio e, portanto, uma puta. E mais: se a mãe dela a deixava cantar no rádio era uma puta também”
(Kiechaloski, 1984).
Em 1961 Elis se transferiu para o curso normal na Escola Diogo de Souza, que abandonou
no segundo ano. Nos anos seguintes Elis gravou compactos e seu primeiro LP, o Viva a
Brotolândia, ela foi idealizada para ser a nova Cely Campelo, a preferida dos jovens de então, mas
não quis, rompeu com a gravadora, se mudou para o Rio de janeiro – 1964 – logo estava fazendo
apresentações no Beco das garrafas (famoso por abrigar uma sucessão de boates com todo tipo de
freqüentadores cujos moradores da região tentavam espantar jogando garrafas vazias ou não).
“Aos 19 anos, diante do Brasil de 64, Elis não podia se dar ao luxo de se manter quieta e
tímida...Enfrentou o Brasil e o Rio de Janeiro de 1964, agressiva e desconfiada” (Echeverria, 2007).
No cenário dos anos 60 e 70, a intérprete sensível, intensa e polêmica não foi somente um
talento na MPB, mas uma mulher que queria ser mais e melhor. Nessa busca, foi se erguendo o mito
e surgindo, no cenário cultural brasileiro, não só uma cantora que apontou conceitos e influenciou
mudanças, mas uma mulher agressiva, “doce pimentinha”, de riso solto e, repentinamente, triste.
Engajada, popular e refinada, permitia-se ser humana, errar e mudar, errar de novo e reconhecer.
Elis era, sobretudo, intensa, uma dose mais forte de humanidade.
Segundo Marta Góes (Jornal O Estado de São Paulo 27/01/1990), “o que torna fascinantes
os ídolos é justamente o fato de, além de talentos excepcionais, eles serem figuras humanas, em
tudo o que isso implica de grande e de mesquinho. O público quer conhecê-los e manifestar sua
paixão, e é assim, afinal, que eles se tornam ídolos.” Assim, o Furacão Elis foi conhecido como a
mulher devastadora, baixinha e estrábica que não dizia meias-verdades. Assim crescia o mito em
torno de uma das maiores intérpretes da Música Popular Brasileira. E foi ela uma das principais
intérpretes que, com muitas de suas músicas, marcou a história do Brasil e as tendências no cenário
musical, como aquela que foi considerada Hino da Anistia, “ O Bêbado e a equilibrista” e seu disco
considerado um anúncio do movimento da MPB, “Samba eu canto assim”.
O período que Marcos Napolitano (2005) chama de “3º período histórico (1958-1969) – o
corte sociológico e epistemológico na música popular e a invenção da MPB” foi o período em que
eclodiu a Bossa Nova com um novo conceito musical que prezava a sutileza interpretativa, novas
harmonias, funcionalidade e adensamento dos elementos estruturais da canção (harmonia-ritmo-
melodia), a partir de então o que era identificado como exagero musical seria desqualificado.
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Foi por volta de 1965 que surgiu um novo estilo de canção moderna que estava entre a
tradição “folclorizada” do morro e do sertão e as conquistas cosmopolitas da Bossa Nova (
Napolitano 2005), a sigla MPB irá neste momento fazer uma tentativa de reorientar a busca por um
“nacional moderno” sem folclorização e nacionalizando a Bossa Nova se colocando em uma
posição diferente diante do dilema tradição-ruptura, e, posteriormente se consolidando em um
complexo cultural bem mais amplo do que um gênero musical específico.
Foi neste contexto que Elis Regina surgiu, e nessa consolidação do conceito de MPB um
de seus trabalhos foi destaque e é considerado como um dos anúncios do movimento da MPB (Lp
de Elis Regina pela Philips – Samba eu canto assim, 1965).
O outro período histórico o que Napolitano chama de 4ª período histórico : a MPB como o
centro da história musical brasileira – tradição, mainstream e pop (1972-1979).
Após o AI-5 o cenário musical brasileiro se modifica, havia censura e repressão impostas
pela ditadura militar e que recaíam sobre tropicalistas e emepebistas – antes rivais e que agora
formavam um nova “frente ampla” musical como resistência cultural à ditadura (Napolitano 2005).
Este inimigo em comum fez com que as tensões musicais se amainacem, havia pouco espaço para
experimentalismo e muita ausência, a dos artistas exilados. E nesse silenciar imposto pelo Regime,
no contexto musical brasileiro, a tropicália passou a fazer parte do amplo conceito de MPB, assim
como novas tendências mineira e nordestina; a MPB neste momento toma para si as ousadias
estéticas tropicalistas de 68.
O início dos anos 70 marca em Elis uma mudança de comportamento notável, uma visão
mais politizada, uma inquietação e uma busca por maior prestígio para sua carreira, ansiava fazer os
circuitos de shows mais politizados como o circuito universitário. Em 1974 gravou com Tom Jobim
em comemoração aos 10 anos da gravadora Philips, Tom era o criador musical da Bossa Nova e da
música de raízes cultas, um dos poucos músicos que Elis admirava, o álbum Elis e Tom foi gravado
em Los Angeles e é considerado um dos melhores discos da discografia brasileira. Foi nesta mesma
época que fez seu primeiro show de teatro, no Teatro Maria Della Costa, foi ao ar com um especial
da Tv Bandeirantes e um show no teatro Bandeirantes com Tom e orquestra além de uma
apresentação na Globo para em seguida iniciar o circuito universitário. Inicia seu romance com
César Camargo Mariano que lhe presenteia com seus melhores arranjos, em seus nove anos de
casamento e carreira compartilhados foi sem dúvida o parceiro musical que melhor a compreendeu
e representou isso em seus arranjos com muita beleza e sensibilidade.
Durante este período , em 1971, Elis que sempre lutou pela dignidade e liberdade do ser
humano, é obrigada – assim como foi 1969 – a se apresentar nas cerimônias de comemoração ao
sesquicentenário da Independência, anos depois ela declarou sobre o ocorrido: “Eu não fui, me
foram. Eu andava morrendo de medo. Me disseram ou vai ou a gente não sabe o que pode te
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acontecer...Eu tinha exemplos ao meu redor” ( Zeca Kiechaloski, 1984), uma tentativa violenta do
Regime em intimidar e “mostrar quem mandava”. Foi entre o Fino da Bossa e Falso Brilhante, o
que podemos chamar de segunda fase de sua carreira, que Elis fez estrondoso sucesso e consolidou
sua carreira, ficou famosa na Europa, representou o Brasil no festival de Midem na França, cantou
no Olympia de Paris e foi também nesta época que foi considerada uma cantora fria e técnica
demais, que brigou com a tropicália, Roberto Carlos e a Jovem Guarda, e, contraditória, bateu todos
os recordes de público no Teatro da Praia, no show Elis e Miéle.
O espetáculo Falso Brilhante marca o início da terceira e última fase de sua carreira, um
espetáculo muito cênico, dirigido por Miriam Muniz e com cenário de Naum Alves de Souza.
Nesse show Elis canta e interpreta de tango a samba e ária de ópera com roteiro, arranjos e
figurinos impecáveis que contavam a história de uma cantora brasileira e encerrava com ela de
porta-bandeira cantando o Mestre sala dos mares (João Bosco/ Aldir Blanc). Elis se desenvolve no
palco com grande desenvoltura e volta a ter a aproximação calorosa com seu público. O
espetáculo permaneceu em cartaz no Teatro Bandeirantes, SP, por um ano e quatro meses, um
sucesso estrondoso.
A partir de então cada novo trabalho significava um novo desafio. No álbum Essa mulher
(1979) , em seu repertório estavam sambas de Cartola e Baden Powell e já nele a idéia embrionária
de um show que “contaria a trajetória de nosso povo”, o Saudade do Brasil .
Sobre Saudade do Brasil Elis declarou: “ o Brasil é feito de pessoas feias, mal-vestidas e
mal-alimentadas. Se o cara vai ao show e se assusta é porque está se vendo no espelho. Este é um
anti-show por excelência. Os bailarinos e os músicos não são profissionais. Todos são filhos de
operários do ABC, gente que nunca teve a oportunidade de subir ao palco”. Um show ousado e
crítico.
Trem Azul, seu último show antes de morrer, demonstra bastante ironia, novas críticas a
Caetano Veloso e uma postura musical bastante parecida com a do Rock, com agudos mais fortes,
prolongados, experimentações vocais, perfeição técnica aliada a emoção.
Elis Regina iniciou sua carreira muito cedo a também cedo teve que enfrentar as
dificuldades de se engajar na vida cultural brasileira, determinada a não calar sua voz e construir
seu próprio caminho. Nos idos anos 50, os “anos dourados”, a “boa moça” era aquela que tinha a
vocação para a maternidade e a vida doméstica que seriam marcas de feminilidade, enquanto a
iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a
masculinidade (Bassanezzi, 1997). Nos anos 60 e 70 a repressão e a ditadura militar foram a grande
cicatriz e o movimento de mulheres em oposição ao Regime deu origem ao início do movimento
feminista. “O pessoal é político”, afirmava uma das correntes, e dentro deste pensamento Elis
Regina foi -para se pensar na mulher crítica, inconformada com a condição feminina e engajada-
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uma transgressora. Demonstrou suas rupturas e seu pensamento crítico, social e político em sua
obra, bem como na maneira franca e direta de falar sobre sexo, repressão, liberdade, política,
filosofia ou sobre qualquer coisa.
A menina estrábica e tímida deu lugar à mulher com força e coragem de contar através da
música os desejos de ruptura de toda uma geração. Assim cantou bossa nova com uma voz potente
em Ponteio, contestou a condição miserável do brasileiro em Transversal do tempo, inovou e
surpreendeu em Falso Brilhante, cantou Essa mulher, essa senhora...a condição feminina, foi a voz
da anistia em O bêbado e o equilibrista, brigou, ironizou, fez o anti-show em Saudade do Brasil,
cantou o amor, o ódio, o futebol, o carnaval, o preconceito e a mulher, assim, tão doce pimentinha.
Rompeu com os costumes da época com seus cortes de cabelo, seu jeito agressivo e nada
“feminino”, sua intensidade em tudo que fazia e até no sorriso solto e na tristeza repentina.
Na natação de seus braços, nesse tão “anti-estético” (será?) e incômodo colocar-se no
palco e na vida, Elis girava seus braços como hélices que cortaram tanto e a tantos e ainda nos
“corta”, assustando quando de sopetão percebe-se um suspiro a mais no seu cantar, no olhar...
então esbarramos de novo e a toda hora nesse seu “espelho casual, com tanta sombra e tanta luz”
(Essa mulher, de Joice e Ana Terra).
Referências
ECHERVERRIA, Regina. Furacão Elis. Ed. Ediouro, SP, 2007. ARASHIRO, Osny (org.). Elis Regina por ela mesma. Ed. Martin Claret, 2004. KIECHALOSKI, Zeca. Elis Regina. Ed. Tchê! RBS, 1984. NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias – a questão da tradição na música popular brasileira, editora Fundação Perseu Abramo, 2007. NAPOLITANO, Marcos. História & Música – história cultural da música popular. Ed. Auntêntica, 2005. NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção – engajamento político e indústria cultural na MPB
(1959-1969), Annablume editora, 2001. WISNIK, Jose Miguel. O Som e o Sentido - Uma Outra História da Música. Ed. Cia das letras, 1989. Dvd Elis Falso Brilhante. EMI, 2006. Dvd Elis Regina Carvalho Costa. Globo marcas, Trama e Som Livre. 2005. Dvd Elis Regina – MPB especial 1973, Ensaio. Trama, Cultura ( Fundação Padre Anchieta). 2004. Discografia de Elis Regina em cd e Lp.
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SARTI, Cynthia A. O início do feminismo sob a ditadura no Brasil: o que ficou escondido. Trabalho apresentado no XXI Congresso Internacional da LASA, Chicago, 24-26 de setembro de 1998. COSTA, Ana Alice Alcântara. O movimento feminista no Brasil: dinâmicas de uma intervenção
política. Labrys estudos feministas, 2005. DE MARCO, Edina; SCHMIDT, Simone Pereira. Além de uma tela só para si. . Rev. Estud. Fem. vol.11 no.1 Florianópolis, 2003.
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