eliane debus

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XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interações, Convergências 13 a 17 de julho de 2008 USP São Paulo, Brasil A cultura africana e afro-brasileira na literatura de Joel Rufino dos Santos, Júlio Emílio Braz e Rogério Andrade Barbosa: interações possíveis Profa. Dra. Eliane Santana Dias Debus (UNISUL, Tubarão, SC) Resumo: Esta comunicação tem como foco de análise os títulos de literatura infantil de Rogério Andrade Barbosa, Joel Rufino dos Santos e Júlio Emílio Braz, autores que (re)contam narrativas da litera- tura oral africana e afro-brasileiras, com a tentativa de destacar as contribuições que os títulos desses autores oferecem à formação literária do leitor, tanto pelos aspectos estéticos quanto pelos culturais. Ao apresentar às crianças brasileiras histórias de diferentes povos, neste caso a tradição oral africana e dos nossos negros, entende-se que haverá melhor compreensão da diversidade e pluralidade cultural que nos cerca. Palavras-chave: literatura infantil e juvenil, diversidade, literatura oral africana, afro-brasileira. Introdução: onde se apresentam as tintas da tela textual Em documento produzido no início da década de 1990, a pesquisadora Nadia Glotlib (Apud Hollanda, 1994) avaliava os principais grupos emergentes nos estudos teóricos na área de Letras: a literatura feita por mulheres, a literatura africana, a literatura popular (oral e de cordel) e a literatura infanto-juvenil. A partir desses dados, Heloísa Buarque de Hollanda (1994) aponta os traços co- muns dessas narrativas e sua emergência como resultado de novos paradigmas: São aquelas que até pouco tempo foram identificadas como áreas marginais, não consideradas, ou quase não consideradas, legítimas pela historiografia canônica e cujos produtos foram tradicionalmente definidos como gêneros “menores” na me- dida em que se apoiavam em literaturas orais, correspondência, narrativas popula- res, cuja “qualidade” era sistematicamente posta em questão pela crítica literária (HOLLANDA, 1994, p.453). Quase que regras implícitas nos trabalhos de caráter teórico sobre a literatura de recepção in- fantil eram/são a justificativa do estudo e os méritos do gênero, como se fosse necessário marcar terreno e deixar claro que este era/é um discurso válido para os estudos literários. Literatura infantil não é um gênero menor! Este questionamento sobre a validade de um discurso afirmativo também foi discutido em plenária em dois eventos recentes: Congresso Internacional de Leitura e Literatura Infantil e Juvenil (PUCRS - 11 a 13 de junho de 2008) e no V Encontro de Literatura Infantil e Ju- venil (UFRJ – 8 a 10 de junho de 2008). Ao trazer para análise os títulos de Joel Rufino dos Santos (Gosto de África: histórias de lá e daqui); Júlio Emílio Braz (Lendas Negras e Sikulume e outros contos africanos) e Rogério Andrade Barbosa (Contos ao redor da fogueira), em que a especificidade do gênero, juntamente com a tema- tização das narrativas (cultura africana e afro-brasileira) e a oralidade que emergem delas, adentra- mos num terreno em que o diálogo com os discursos emergentes se anuncia de forma evidente, já que a literatura infantil, literatura africana e literatura popular se entrelaçam e ganham espaço num único discurso.

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  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    A cultura africana e afro-brasileira na literatura de Joel Rufino

    dos Santos, Jlio Emlio Braz e Rogrio Andrade Barbosa: interaes possveis

    Profa. Dra. Eliane Santana Dias Debus (UNISUL, Tubaro, SC)

    Resumo:

    Esta comunicao tem como foco de anlise os ttulos de literatura infantil de Rogrio Andrade Barbosa, Joel Rufino dos Santos e Jlio Emlio Braz, autores que (re)contam narrativas da litera-tura oral africana e afro-brasileiras, com a tentativa de destacar as contribuies que os ttulos desses autores oferecem formao literria do leitor, tanto pelos aspectos estticos quanto pelos culturais. Ao apresentar s crianas brasileiras histrias de diferentes povos, neste caso a tradio oral africana e dos nossos negros, entende-se que haver melhor compreenso da diversidade e pluralidade cultural que nos cerca.

    Palavras-chave: literatura infantil e juvenil, diversidade, literatura oral africana, afro-brasileira. Introduo: onde se apresentam as tintas da tela textual

    Em documento produzido no incio da dcada de 1990, a pesquisadora Nadia Glotlib (Apud Hollanda, 1994) avaliava os principais grupos emergentes nos estudos tericos na rea de Letras: a literatura feita por mulheres, a literatura africana, a literatura popular (oral e de cordel) e a literatura infanto-juvenil. A partir desses dados, Helosa Buarque de Hollanda (1994) aponta os traos co-muns dessas narrativas e sua emergncia como resultado de novos paradigmas:

    So aquelas que at pouco tempo foram identificadas como reas marginais, no consideradas, ou quase no consideradas, legtimas pela historiografia cannica e cujos produtos foram tradicionalmente definidos como gneros menores na me-dida em que se apoiavam em literaturas orais, correspondncia, narrativas popula-res, cuja qualidade era sistematicamente posta em questo pela crtica literria (HOLLANDA, 1994, p.453).

    Quase que regras implcitas nos trabalhos de carter terico sobre a literatura de recepo in-fantil eram/so a justificativa do estudo e os mritos do gnero, como se fosse necessrio marcar terreno e deixar claro que este era/ um discurso vlido para os estudos literrios. Literatura infantil no um gnero menor! Este questionamento sobre a validade de um discurso afirmativo tambm foi discutido em plenria em dois eventos recentes: Congresso Internacional de Leitura e Literatura Infantil e Juvenil (PUCRS - 11 a 13 de junho de 2008) e no V Encontro de Literatura Infantil e Ju-venil (UFRJ 8 a 10 de junho de 2008).

    Ao trazer para anlise os ttulos de Joel Rufino dos Santos (Gosto de frica: histrias de l e daqui); Jlio Emlio Braz (Lendas Negras e Sikulume e outros contos africanos) e Rogrio Andrade Barbosa (Contos ao redor da fogueira), em que a especificidade do gnero, juntamente com a tema-tizao das narrativas (cultura africana e afro-brasileira) e a oralidade que emergem delas, adentra-mos num terreno em que o dilogo com os discursos emergentes se anuncia de forma evidente, j que a literatura infantil, literatura africana e literatura popular se entrelaam e ganham espao num nico discurso.

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    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    As mudanas gradativas nos estudos literrios so resultados de novos paradigmas constru-

    dos socialmente. Refletir sobre um produto cultural destinado infncia exigir qualidade no que produzido, validar o papel esttico da palavra e a sua contribuio para uma sensibilidade leitora. No que diz respeito representao da cultura africana, e aqui no caso especfico dos recontos afri-canos pelas mos desses escritores, as exigncias legais e a procura mercadolgica reacendem a sua existncia.

    1 As leis, as diretrizes curriculares e o mercado editorial: uma pincelada

    As polticas afirmativas, entre elas a Lei n 10.639//031,-MEC e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira-julho/2004, inserem a literatura, juntamente com o ensino de Histria e Artes, como pro-tagonistas dessa temtica no currculo escolar.

    Atualmente, estudos significativos vm sendo produzidos por pesquisadores de diversos cam-pos do conhecimento, em especial de Letras e Educao, na tentativa de (re)significar o olhar para as narrativas que tematizam a questo tnico-racial. Entre esses trabalhos, pode-se destacar o artigo de cunho historiogrfico de Maria Cristina Gouva (2000), que analisa as representaes sociais sobre o negro na literatura de recepo infantil no Brasil, nas trs primeiras dcadas do sculo XX. Travestida em uma suposta integrao racial, essa produo marcada por uma viso etnocntrica, na qual as personagens so identificadas pelo desejo de embranquecimento. Outrossim, os estudos de Andria Sousa (2003; 2005) focalizam os ttulos produzidos a partir da metade da dcada de 1980, j com marcas afirmativas de uma identidade negra.

    Teramos, no Brasil, uma produo literria de recepo infantil que contribua para a noo de pertencimento das crianas negras?

    Para responder a essa questo, mapeamos, em pesquisa anterior2, a produo literria contem-pornea a partir de sete catlogos editoriais (tica, Companhia das Letrinhas, DCL, FTD, Paulinas, Salamandra e Scipione), referentes aos anos de 2005/2006, verificando-se que a representao de personagens negras na literatura infantil, mesmo tendo ganhado, nos ltimos anos, mais espao nas editoras, ainda ocupa um lugar muito pequeno. Do total de 1.785 ttulos levantados, 79 trazem personagens negras, e, das editoras levantadas, as que mais tm se dedicado temtica so a DCL e a Paulinas. Os escritores Rogrio Andrade Barbosa, Joel Rufino dos Santos, Jlio Emlio Brs e as escritoras Georgina Martins e Heloisa Prieto so os que tm mais ttulos dedicados ao tema, por isso a opo pelas narrativas dos trs escritores aqui apresentados.

    Poderamos, num primeiro momento, acreditar que o aumento de narrativas que apresentam personagens negras seja uma estratgia poltica de dominao, concedida pela cultura dominante e a ela atrelada, por isso neg-la deveria ser uma prerrogativa. No entanto, esse eco das vozes das margens, nesse caso especfico na literatura para crianas, resultado do que Stuart Hall (2003) nomeia de polticas culturais da diferena, de lutas em torno da diferena, da produo de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenrio poltico e cultural (p.320). Desse mo-do, caberia a ns pesquisadores estudar essa emergncia e no abandon-la.

    1 necessrio lembrar que, em 10 de maro de 2008, foi promulgada a Lei n. 11.645, que altera a Lei n. 10.639/2003, que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional, para incluir, no currculo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira e Indgena. 2 As pesquisas A representao do negro na literatura brasileira para crianas e jovens: negao ou construo de uma identidade? (PUIP-2006) e As histrias de l para leitores daqui: os (re)contos africanos para crianas pelas mos de escritores brasileiros (PUIP, 2007), foram realizadas atravs do Programa Unisul de incentivo Pesquisa.

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    1 Gosto de frica: histrias de l e daqui, de Joel Rufino dos Santos

    Um outro fator de influncia foi minha av, analfabeta, mas que era como a V Totonha, de Jos Lins do rego. Vocs conhecem a personagem, que ia de fazenda em fazenda, contando histrias pros meninos? Ela era da casta dos contadores de histrias. Isso vem da frica, da frica ocidental. Minha av era uma Griot, contava histrias, muitas histrias.

    Joel Rufino dos Santos

    Joel Rufino dos Santos nasceu em 1941 na cidade do Rio de Janeiro, e inicia seu exerccio de escrita para crianas e jovens nas pginas da revista Recreio, na dcada de 1970. Professor e pesqui-sador das razes histricas brasileiras, apresenta de forma constante, na sua produo literria, a temtica dos povos excludos. A representao indgena, por exemplo, est presente em O curumim que virou gigante (1980) e Ipurupirara (1986). Dos muitos de seus ttulos que trazem a temtica negra, podemos citar Dudu, Calunga (1986), O presente de Osanha (2003) e Gosto de frica: his-trias de l e daqui (Global, 2005), em que o respeito religio africana, os usos e costumes africa-nos como o vocabulrio, a vestimenta, a alimentao e a medicina natural so referncias centrais, bem como a caracterstica afro-brasileira de nosso povo.

    O livro Gosto de frica: histrias de l e daqui, publicado pela primeira vez em formato de livro em 1998, composto de 7 contos, sendo que trs situam-se no continente Africano, narrando mitos, lendas e tradies negras de l; e quatro se situam em terras brasileiras, trazendo, alm de casos populares daqui, a representao de personagens da Histria do Brasil esquecidos pela hist-ria oficial, como Lusa Mahin e seu filho Lus Gama.

    Vejamos as trs narrativas de l. As prolas de Cadija narra a histria de uma menina do Senegal, negra e mulumana, que,

    com a perda da me, criada por uma madrasta. Como nas narrativas populares, de onde beberam os narradores dos contos de fadas, a madrasta exige da enteada todos os tipos de sacrifcios carrega-dos de maldade. Ao cumprir a tarefa absurda de caminhar cinco dias e cinco noites, por caminhos tortuosos, at a cidade de Dakar para lavar com a gua salgada do mar uma colher, tendo s costas o seu irmo caula, a menina se depara com as mais ardilosas armadilhas de criaturas como o Qui-bungo e o Abutre mortal, conhecido como Arranca-Coraes.

    Para cumprir sua empreitada a menina auxiliada por um mendigo, que, ao receber ateno e auxlio da menina, profetiza: Espere anoitecer. S lave a colher quando aparecer a lua. Voc vai ver (SANTOS, 2005, p.6). Superar os obstculos e ser premiada a paga de Cadija que, ao chegar ao mar e inserir a colher na gua, recolhe prolas e mais prolas com as quais encheu sua canga. Estava rica a menina.

    A viso maniquesta das narrativas fericas desponta no texto: o bem premiado, a maldade castigada. A madrasta, perseguindo o mesmo destino de riqueza, percorre o caminho de Cadija em busca das prolas, mas no retorna. Em casa, a irm postia de Cadija encontra, dentro do Cuscuz, o corao, ainda batendo, de sua me.

    A narrativa de A sagrada famlia situada no Egito (Rio Nilo), h dez mil anos e apresenta a histria de Osris, um deus que tinha o corpo de homem e tinha como esposa sis. Acreditando que os egpcios j tinham realizado todas as proezas, ele deixou o comando do reino sob o encargo de sis e foi civilizar outras terras.

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    A temporalidade da narrativa mtica descrita pela passagem de um tempo que no transfor-

    ma e/ou envelhece os deuses, centenas de anos se passaram sem nenhum envelhecer, quando se tem notcias do retorno de Osris, que, numa emboscada, preso em um atade e jogado no rio, para, no entanto, o maravilhoso ser anunciado quando sis sonha que seu companheiro est enterra-do sob uma rvore:

    sis passara a infncia na Nbia, centro da frica. Segundo a tradio, aps o dil-vio, No teve um filho negro de nome Cam. Cam se mudou para a frica e teve dois filhos: Misr, que deu origem aos egpcios, e Caxe, que deu origem aos nbios (nbios ou cuxitas so a mesma coisa). Pois bem: Na Nbia, sis aprendera como se penteiam as rainhas e como se ressuscitam os mortos. Para se aproximar da ta-margueira, sob a qual Osris estava enterrado, ela se transformou num gavio. (SANTOS, 2005, p.19).

    O conto O leo do Mali traz a histria de Sundiata Mari Djata, filho de Sogolon e Nar Ma-ghan, o qual, mesmo sem ter andado at os sete anos de idade, cumpre a tradio de ser rei dos mandigas ao cumprir a profecia: dobrara a vara cumprida e muito antiga de ferro que virou arco. Com ela Sundiata fez a guerra contra os inimigos dos mandingas e fundou o Mali. Nasce da a lenda do Leo do Mali, como ficou conhecido Sundiata.

    Os contos so escritos em linguagem concisa e clara, sem rebuscamento das palavras, lidas a galope. Nas trs narrativas o elemento mgico da metamorfose marca presena.

    2 Os recontos africanos nos livros Lendas Negras e Sikulume e outros contos afri-canos, de Jlio Emlio Braz

    Sempre me ressenti como afro-descendente da inexistncia de livros que fa-lassem sobre a frica ou que contassem suas histrias. Sem procurar muito, at hoje bem mais fcil encontrar livros com lendas europias, vikings, russas, japonesas.

    Jlio Emlio Braz

    Nascido em Minas Gerais, Jlio Emlio Braz (1959) muda-se ainda criana, aos cinco anos de

    idade, para o Rio de Janeiro. Aos 21 anos assume o ofcio de escritor, produzindo roteiros de hist-rias em quadrinhos e, mais tarde, livros de bolso do gnero western (412 ttulos no total, utilizando 39 pseudnimos diferentes). Sua produo para o pblico juvenil tem incio em 1988, com o livro Saguairu que focaliza o embate entre um ndio e um lobo-guar. Seus ttulos, em sua maioria, dire-cionam-se ao pblico adolescente e a temtica tnico-racial aparece em um nmero expressivo de-les.

    Negro, o escritor diz ter se reconhecido como tal somente aos vinte e poucos anos de idade, meus sentimentos em relao a minha cor ou a minha etnia eram simplesmente embranquecidos (BRAZ, 1997). No prefcio de Pretinha, eu?, o escritor declara no ser este um livro autobiogrfi-co, mas que, certamente, tem um pouco da sua cara.

    Lendas Negras e Sikulume e outros contos africanos apresentam estruturas prximas: reunio de contos que relatam histrias de diferentes povos africanos, apresentando a multiplicidade cultural desse continente plural.

    Lendas Negras composto de oito contos que tm sua origem nas narrativas populares de di-ferentes pases da frica (Botsuana, Angola, Mali, Tanznia, frica do Sul, Nigria e Qunia). As

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    informaes sobre a origem de cada conto e a sua amplitude no universo oral africano so apresen-tadas num paratexto ao final do livro. J, o livro Sikulume e outros contos africanos, composto de sete narrativas, diferentemente do outro livro, no nos localiza territorialmente, mas permite que a cada leitura perceba-se um espao diferenciado, embora marcado pela atemporalidade do Era uma vez, H muitos e muitos tempos etc.

    A oralidade a marca dessas narrativas construdas e perpetuadas por geraes e geraes de narradores.

    A seguir apresenta-se uma sntese para o reconhecimento do que elas tm em comum.

    Em ambos os livros a construo narrativa se d em forma de lendas (do latim legenda, legere ler), narrativas de carter marcadamente oral que vo sendo transmitidas de boca em boca, per-dendo fios aqui, ganhando outros ali, e, por meio de encontros geracionais, vo ganhando vida sem-pre renovada. Ao transportar estas narrativas do mundo oral para o mundo da escrita, Jlio Emlio Braz exercita seu ofcio de escritor, o mais prximo do narrador tradicional, no caso o griot - o con-tador de histrias da tradio oral africana, aquele que tem guardada na memria a memria da sua gente.

    A explicao fictcia e sobrenatural para acontecimentos verdadeiros, inexplicveis cientifi-camente, envolve esses relatos de cunho fantstico, onde o inventivo prepondera. No entanto, esse fantstico no tem carter de puro entretenimento, acompanhado da finalidade de educar, ditando regras de convivncia no universo social. Walter Benjamin (1994) destaca a dimenso utilitria e o carter de aconselhamento da verdadeira narrativa, conselho este que tecido na substncia viva da existncia tem um nome: sabedoria (p. 200).

    Na lenda Quem perde o corpo a lngua (BRAZ, 2001), por exemplo, um caador conta vantagens a seu povo por falar com a morte, uma caveira que reiteradamente e cheia de mistrios afirma quem perde o corpo a lngua. Realmente, a lngua leva o caador morte, pois este se d mal por contar vantagem de sua ligao e poder comunicativo com a inusitada amiga.

    O castigo e a punio despontam como caractersticas dessa narrativa. E a morte, por sua vez, travestida na imagem da caveira no assusta, algo natural - este conto oral tambm foi recolhido por Loureno do Rosrio, em Contos africanos (2001).

    A metamorfose, componente freqente nas narrativas de recepo infantil sapos que viram prncipes, ratos que ao toque de uma varinha de condo ganham ares de cocheiros, prncipes que enfeitiados tornam-se pssaros -, se faz presente nas narrativas lidas. Em Tsuigoab ou a batalha contra a morte (BRAZ, 2001), temos as aventuras de um aldeo do povo Ki, deserto do sul da frica, que ao lutar contra a Gaunab (a morte), vence, mas perde vida, tornando-se Tsuigoab, um deus da chuva que vem acalentar a sede e a fome do seu povo, depois de uma eterna seca. Ou o ho-mem-leo que protege uma aldeia dos seus prprios ataques (BRAZ, 2001). A morte pode ser puni-o, mas tambm redeno. Ela no encarada como algo temeroso, assustador, mas algo natural.

    Em trs contos de Sikulume (2005), o canibalismo matria prima para a narrativa: o grande chefe dos animais que devora tudo e todos, ou a me canibal que sacia a fome, devorando seus fi-lhos, juntamente com todo o povo da aldeia. Em ambos, as personagens tm a barriga estripada e fantasticamente todos aqueles que eram alimentos saem so e salvos.

    3. Os (re)contos africanos de Rogrio Andrade Barbosa, palheta multicor Raro o sonho que comea e acaba na mesma noite. A verdade no est num s, mas em muitos sonhos.

    Provrbio africano

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    O escritor carioca Rogrio Andrade Barbosa, ao retornar na dcada de 1980 da Guin-

    Bissau, onde ficou por dois anos como professor voluntrio da Organizao das Naes Unidas (ONU), traz, na bagagem, diversos contos africanos que consegue recontar sem perder o fio imemo-rial da oralidade que enreda essas narrativas. O respeito ancestralidade e o valor dos griots, conta-dores de histrias, esto presentes em sua produo literria de forma singular.

    Contos ao redor da fogueira (1990) composto de duas narrativas Kumbu, o menino da Floresta Sagrada e Buanga, a noiva da chuva , nas quais esto presentes crenas, tradies e tabus de povos africanos. Ao contrrio dos livros posteriores do escritor, estes no mapeiam a regi-o de origem da histria. A primeira narrativa traz o relato de um tabu, em alguns povos africanos, em torno do nascimento de gmeos, o que, diferentemente de outras culturas, visto com mau pres-sgio e, por isso, as crianas so abandonadas na floresta. Kumbu, um dos gmeos, supera seu triste destino do abandono na floresta: ele ganha o colo de Koya e poderes mgicos, passa por infortnios e, com maestria, dribla a morte tambm na juventude. J, a segunda narrativa baseada numa tradi-o que teve seu ltimo registro na frica Oriental em 1923, que consiste na seleo de jovens vir-gens para servirem de sacerdotisas para os deuses da chuva. Escolhida para ser a mulher do esprito da chuva, Buanga afastada dos seus na infncia e vive em recluso, mas raptada de seu destino por Demba, seu amigo de infncia, agora um belo jovem.

    O livro Duula, a mulher canibal um conto africano (2000) recria o relato mtico da tradi-o oral africana, em especial do povo somali, que tem as mulheres-canibais como protagonistas. A metamorfose da jovem e bonita pastora Duula em horripilante mulher canibal descrita de forma magistral, e os leitores, aos poucos, vem crescendo diante de si aquela figura de estranhos poderes (corre mais rpido que leopardo, tem viso aguada, dentes afiados, incrvel audio), que come carne crua e ri ossos de seres humanos. No entanto, a transformao promovida por elementos sociais e no mgicos: a fome, a misria e a seca acabaram com seus familiares e a deixaram aban-donada na solido do deserto.

    Como o prprio autor observa em suas notas, que introduzem a narrativa, o dilogo com ou-tros contos populares fica visvel nessa narrativa. Assim, difcil o leitor no aproximar as aventu-ras do casal de irmos gmeos Askar e Mayran daquelas de Joo e Maria; no perceber nas adver-tncias da mulher canibal o mesmo discurso do temvel Barba Azul; assim como impossvel deter-se no dilogo de apresentao entre os irmos e Duula sem reviver na memria a narrativa de Cha-peuzinho vermelho:

    Po... po... por... que a senhora tem os olhos vermelhos desse jeito, tia? gaguejou Mayran. E esses dentes que parecem de lobo? perguntou Askar.

    A narrativa bblica da travessia do Mar Vermelho surge para salvar os irmos e destruir Duula. Entre as tempestades de areia do deserto e o cheiro de carne humana apodrecida e ossos a-condicionados em vasos de barro, esse livro encanta e amedronta; espanta e acalanta.

    O filho do vento (2001) reconta uma lenda dos bosqumanos, povo nmade que habita o de-serto do Kalahari. Enquanto o vento zune l fora, a me narra aos seus dois filhos, Dab e Kauru, a lenda de seu povo sobre o filho do vento: um solitrio menino, o filho do vento, encontra Nakati, menino de sua idade, e com ele joga bola, sem, no entanto, revelar a sua identidade. Alertado pela me, Nakati descobre o segredo do seu companheiro de brincadeiras e o perigo de pronunciar o seu nome Fuuuuuuu Shuiiiii. Terminada a narrao da lenda, a me que a contou alerta os dois filhos para jamais pronunciarem o nome do filho do vento, pois perigos na certa surgiriam. A dimenso utilitria do narrado e o tom de conselho da narradora nos remetem ao que Walter Benjamim (1994, p. 200) descreveu como partes integrantes da natureza da verdadeira narrativa.

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    Em Como as histrias se espalharam pelo mundo (2002)3, o escritor narra a lenda do povo

    ekoi, da Nigria. A narrativa uma viagem aos quatro cantos da frica, conduzida por um curioso e inteligente ratinho. Esse personagem como que reacende a imagem de um griot a colecionar hist-rias, desvendando os aspectos culturais dos povos africanos: no cotidiano das savanas, mulheres que, com os filhos amarrados s costas, fazem suas atividades domsticas; ferreiros que, nos fornos de barro, do vida aos metais; tecels que tecem com fios coloridos as suas roupas; crianas que espantam os corvos dos milharais. Na escurido da Floresta de Ituri, a dana dos pigmeus; na cidade de If, os rituais em homenagem aos orixs. O silncio dos mosteiros na Etipia; a magnitude das pirmides do Egito; as canes entoadas nas mesquitas; as vozes alteradas nos bazares de Marrocos; os barcos repousando suas velas no porto do rio Nger... Ao final de sua incurso mgica, o rato tece as histrias em cordes mgicos que so soltos pelo vento e se espraiam a outros espaos.

    Os trs ltimos ttulos foram ilustrados por Graa Lima, devendo este aspecto ter seu mere-cido destaque, pois a ilustradora comunga uma feliz parceria com o escritor em relao ao respeito diferena, marcando seu traado por uma apurada pesquisa dos elementos plsticos africanos: o colorido das roupas em oposio ao ocre da terra, a estilizao dos cenrios, resultando, enfim, num trabalho de esmero e afetividade.

    Outro dado significativo que colabora para o comprometimento dessas narrativas com o res-peito ao outro, antecipando as suas singularidades, que, em Duula, a mulher canibal e Como as histrias se espalharam pelo mundo, um mapa do continente africano antecipa as histrias, locali-zando o leitor sobre a origem da lenda a ser narrada naquelas pginas. As informaes geogrficas sobre a frica, explcitas num paratexto, abrem caminhos para a compreenso dos diversos tipos de organizaes sociais e econmicas dos seus povos.

    Concluso

    Os trs escritores possuem caractersticas nas suas trajetrias literrias que os aproximam, so escritores que produzem sobre a temtica africana ou afro-brasileira h um bom tempo: Joel Rufino dos Santos o que est h mais tempo no mercado, dcada de 1970, enquanto os outros dois iniciaram na dcada de 1980.

    Aqui poderamos afirmar que esse trio no confecciona suas narrativas movido somente por uma necessidade imediata do mercado editorial. Todos buscam o dilogo com a tradio oral para recontar suas histrias, em que ora seus narradores personagens so griots, como o caso das narra-tivas de Rogrio Andrade Barbosa, ora o prprio escritor cumpre esta funo, no caso de Jlio Em-lio Braz e Joel Rufino dos Santos.

    Como j destacado em texto anterior (DEBUS; SILVA; AZEVEDO, 2005), no qual se ana-lisavam narrativas de carter intercultural, constatou-se que elas permitem ao leitor uma reflexo sobre a diversidade e multiplicidade cultural que o rodeia, contribuindo para uma formao em que a pluralidade cultural edificada pela singularidade de cada indivduo.

    No caso especfico das narrativas analisadas, que trazem para a tela a polissemia de cores do continente africano, a suas leituras possibilitam que a criana brasileira conhea pela tinta dos seus escritores um Pas mltiplo em sua singularidade, um pas do qual vieram muitos dos nossos ances-trais.

    3 O livro traz um suplemento de trabalho elaborado pela professora de Lngua Portuguesa e Literatura Magda Frediani Martins, que orienta a professora e o professor para um trabalho interdisciplinar com o livro. Trata-se de uma leitura atenta e reflexiva sobre os elementos da cultura africana que aparecem implcitos na narrativa e na ilustrao.

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    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    Referncias Bibliogrficas [1] BARBOSA, Rogrio Andrade. Contos ao redor da fogueira. Rio de Janeiro: Agir, 1990. [2] ______. DUULA, a mulher canibal. So Paulo: DCL, 2000. [3] ______. O filho do vento. So Paulo: DCL, 2001.______. Como as histrias se espalharam pelo mundo. So Paulo: DCL, 2002.

    [4] BRASIL. Ministrio da Educao. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Braslia, jul. 2004a. [5] _______. Ministrio da Educao. Conselho Nacional de Educao. Parecer CNE/CP3/2004. Braslia, 2004b. [6] BRAZ, Jlio Emlio. Lendas negras. Il. Salmo Dansa. So Paulo: FTD, 2001. [7] _____. Sikulume e outros contos africanos. Il. Luciana Justiniani. Rio de Janeiro: Pallas, 2005. [8] _____. Pretinha, Eu? So Paulo: Scipione, 1997.

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    [14] ______. A representao da personagem feminina negra na literatura infanto-juvenil brasileira. In: BRASIL. Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade. Educao anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal n. 10.639/03. Braslia: MEC, 2005.

    Autora 1 Eliane Santana Dias Debus, Profa. Dra. Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL, Tubaro, Santa Catarina Programa de Ps-Graduao em Cincias da Linguagem [email protected]