educação pública, formação profissional e crise do capitalismo contemporâneo

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  • EDUC

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    CRISE

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    MO CO

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    ORN

    EO

    Autores:

    Araclia C. Farias, pedagoga e professora da educao bsica, [email protected].

    Betnia Moreira de Moraes, doutora em educao e professora da UECE, [email protected].

    Cleide Maria Quevedo Quixad Viana, doutora em educao e professora da UnB, [email protected] (Org.).

    Cristiane Porfi rio do Rio, doutora em educao e professora da UECE, [email protected].

    Deribaldo Santos, doutor em educao e professor da UECE, [email protected]. (Org.).

    Frederico Costa, doutor em educao e professor da UECE, [email protected].

    Edna Bertoldo, doutora em educao e professora da UFAL, [email protected].

    Edvaldo Albuquerque dos Santos, mestre em educao e tcnico da Secretaria de Educao e do Esporte do Estado de Alagoas, [email protected].

    Helena Freres, doutoranda em educao e professora da UECE, [email protected].

    Ilma Passos Alencastro Veiga, doutora em educao e professora da UnB, [email protected].

    Jackline Rabelo, doutora em educao e professora da UFC, [email protected] (Org.).

    Jorge Alberto Rodrigez, doutor em educao e professor da UECE, jorgearp@y ahoo.com.br.

    Maria Cleidiane Cavalcante Freitas, mestranda em educao na UECE, cleidia [email protected].

    Maria das Dores Mendes Segundo, doutora em educao e professora da UECE, [email protected].

    Osterne Maia, doutor em educao e professor da UECE, osterne_fi [email protected].

    Ruth de Paula, doutora em educao e professora da UECE, [email protected].

    Susana Jimenez, PhD. em educao e professora da UECE, [email protected] (Org.).

    Valdemarin Coelho Gomes, doutor em educao e professor da UFC, [email protected].

    9 788578 261504

  • EDUCAO PBLICA, FORMAO

    PROFISSIONAL E CRISE DO

    CAPITALISMO CONTEMPORNEO

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR

    ReitorJos Jackson Coelho Sampaio

    Vice-ReitorHidelbrando dos Santos Soares

    Editora da UECEErasmo Miessa Ruiz

    Conselho EditorialAntnio Luciano Pontes

    Eduardo Diatahy Bezerra de MenezesEmanuel ngelo da Rocha Fragoso Francisco Horcio da Silva Frota

    Francisco Josnio Camelo ParenteGisafran Nazareno Mota Juc

    Jos Ferreira NunesLiduina Farias Almeida da Costa

    Lucili Grangeiro CortezLuiz Cruz Lima

    Manfredo RamosMarcelo Gurgel Carlos da Silva

    Marcony Silva CunhaMaria do Socorro Ferreira Osterne

    Maria Salete Bessa JorgeSilvia Maria Nbrega-Th errien

    Conselho ConsultivoAntnio Torres Montenegro (UFPE)

    Eliane P. Zamith Brito (FGV)Homero Santiago (USP)Ieda Maria Alves (USP)

    Manuel Domingos Neto (UFF)Maria do Socorro Silva Arago (UFC)

    Maria Lrida Callou de Arajo e Mendona (UNIFOR)Pierre Salama (Universidade de Paris VIII)

    Romeu Gomes (FIOCRUZ)Tlio Batista Franco (UFF)

  • Deribaldo SantosSusana Jimenez

    Cleide Maria Quevedo Quixad VianaJackline Rabelo

    EDUCAO PBLICA, FORMAO

    PROFISSIONAL E CRISE DO

    CAPITALISMO CONTEMPORNEO

  • Ficha Catalogr ca

    Bibliotecrio Arnaldo Ricardo do Nascimento CRB-3/909

    E25 Educao pblica, formao pro ssional e crise do capitalismo contemporneo./

    Deribaldo Santos, Susana Jimenez, Cleide Maria Quevedo Quixad Viana, Jackline Rabelo

    (Organizadores). Fortaleza: EdUECE, 2013.

    313 p. ISBN: 1. Educao Pblica. 2. Formao Pro ssional. 3. Crise do Capitalismo

    Contemporneo. I. Santos, Deribaldo. II. Jimenez, Susana. III. Quixad Viana, Cleide Maria Quevedo. IV. Rabelo, Jackline. V. Ttulo

    CDD: 370.331335 Educao - Pblica Educao - Formao Pro ssional Educao - Crise do Capitalismo Contemporneo

    2013 Copyright by Deribaldo Santos, Susana Jimenez, Cleide Maria Quevedo Quixad Viana e Jackline Rabelo

    Impresso no Brasil / Printed in BrazilEfetuado depsito legal na Biblioteca Nacional

    TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

    Editora da Universidade Estadual do Cear EdUECEAv. Paranjana, 1700 Campus do Itaperi Reitoria Fortaleza Cear

    CEP: 60740-000 Tel: (085) 3101-9893. FAX: (85) 3101-9893Internet: www.uece.br E-mail: [email protected] / [email protected]

    Editora liada

    Coordenao Editorial

    Erasmo Miessa Ruiz

    DiagramaoNarclio Lopes

    CapaCristiano Rio

    Reviso de TextoHelena Freres

  • SUMRIOApresentao Deribaldo Santos ................................................................. 7

    PRIMEIRA PARTE:Pressupostos e problematizaes contextuais

    Marxismo, trabalho e ser socialFrederico Costa, Ruth de Paula, Betnia Moraes ...............19

    Concepes epistemolgicas e onto-histricas da tcnica e da tecnologia: um debate no legado de lvaro Vieira Pinto Deribaldo Santos ............................................................... 55

    Educao e desenvolvimentoJorge Alberto Rodriguez ....................................................73

    Indivduo e educao: notas sobre o processo de (des)humanizao do ser socialBetnia Moraes, Ruth de Paula, Frederico Costa ............... 89

    A chave do saber: um exame crtico do novo paradigma educacional concebido pela ONUOsterne Maia, Susana Jimenez ..........................................113

    A educao dos povos Ibero-americanos no contexto de crise estrutural do capitalJackline Rabelo, Maria das Dores Mendes Segundo, Helena Freres, Valdemarin Coelho Gomes ...................................... 135

  • SEGUNDA PARTE:

    Ensino bsico e formao pro ssional do trabalhador brasileiro em sintonia com os interesses da classe dominante

    Plano de Desenvolvimento e Acompanhamento do Projeto Poltico-Pedaggico junto aos sistemas de ensino integrados ao Programa Brasil Pro ssionalizadoCleide Maria Quevedo Quixad Viana, Ilma Passos Alencastro Veiga ....................................................................................157

    O ProJovem e a educao na sociedade contemporneaRuth de Paula, Betnia Moraes, Frederico Costa ............. 181

    As determinaes do capital na formao do trabalhador: o ensino mdio regular noturno em questoEdvaldo Albuquerque dos Santos, Edna Bertoldo ............195

    Baixos ndices de pro cincia no ensino bsico pblico cearense: primeiras aproximaesCristiane Porfrio do Rio ..............................................225

    Ensino mdio integrado no Estado do Cear: o Caminho de pedras do empreendedorismo para a escola pblicaAraclia C. Farias, Deribaldo Santos, Maria Cleidiane C. Freitas ............................................................................. 259

    Sorria! Voc est sendo educado para o trabalho: uma anlise crtica da expanso da graduao tecnolgica brasileira Deribaldo Santos, Susana Jimenez, Maria das Dores Mendes Segundo .......................................................................... 289

  • ApresentaoAs retrospectivas miditicas sobre o primeiro ano da segunda

    dcada do sculo XXI, lotaram os noticirios com relatos sobre as manifestaes populares por democracia no mundo rabe, sobre as reivindicaes colocadas no corao do imperialismo americano, pelo movimento Ocupe Wall Street, bem como sobre protestos diversos encabeados por jovens em toda a Europa Ocidental, dentre outros. As anlises acerca de tais eventos, contudo, com as costumeiras e bem vindas excees, no vo alm da habitual miopia necessria manuteno da ordem capitalista. No h nos diagnsticos apresentados, de maneira geral, o reconhecimento devidamente preciso quanto natureza e ao escopo da crise sem precedentes na histria da humanidade, que o capital passou a degustar a partir do nal da dcada de 1960, incio dos anos de 1970.

    Como indicado por Mszros em seu j clssico livro Para alm do Capital, a crise crnica que passou a afetar a sociedade contempornea no se restringe mais apenas aos pases da periferia do sistema; os Estados de capitalismo central passam a acumular altos nveis de desemprego, desesperadores ndices de violncia, desordenamento urbano, diversos e cruis ataques ao meio ambiente, entre tantos outros problemas vistos a olhos nus.

    A receita aviada pelos defensores da ordem para corrigir tais problemas recai, infalivelmente, na reordenao das relaes entre Estado e mercado. O Estado de Bem Estar Social passa a ser acusado de desatualizado; o binmio da produo industrial taylorista/fordista considerado dmod; Lord Keynes ultrapassado. A nova ordem globalizada, neoliberal e ps-moderna se levanta com pompa, anunciando deter a soluo para os problemas da humanidade, cuja frmula reza no restar mais lugar para polticas pblicas

  • universalistas, exigindo, ademais, que o Estado deixe agir o mercado desembaraadamente.

    A cegueira idealista burguesa da maioria dos analistas econmicos do mundo, uns por pura falta de compreenso da realidade e outros por duvidoso per l de carter (em grande parte das vezes, os dois casos), no consegue enxergar que o capital incorrigvel e incontrolvel. Por conseguinte, como muito bem nos aponta Mszros, conquanto as crises cclicas apenas serviram, em ltima instncia, para lhe proporcionar novas estratgias de sobrevivncia, a crise contempornea, de natureza estrutural, requer do capital que aprofunde de forma mpar, a explorao e a desigualdade, com vistas a garantir sua reproduo. Portanto, as reformas dos Estados perifricos, particularmente, dos pases da Amrica Latina e, mormente as educativas efetivadas a partir da dcada de 1990 no Brasil, servem, quando muito, para expor o prprio limite do sistema, conjugado impotncia de, por dentro da ordem, reverter-se a situao de barbrie com que a humanidade est a conviver.

    E, assim, passamos a presenciar uma ofensiva cada vez maior de ataque do imperialismo, desta feita, representado por seus guardies (as organizaes internacionais), sobre os histricos direitos sociais duramente conquistados pela classe trabalhadora.

    A educao, destacadamente a formao pro ssional efetivada pela escola pblica, objeto espec co deste livro, em meio a outros setores como sade e previdncia, passa a representar uma das presas prediletas da poltica de utilizao do Estado como forma de garantir a acumulao do lucro capitalista no quadro da crise estrutural.

    Nesse escopo, manifestaes de protesto se espalham por todo o mundo, despontando como expresses fenomnicas da crise, para

  • usarmos os termos de Ricardo Antunes. No oneroso lembrar os eventos de protesto ocorridos em Paris no ano de 2005. Nessa oportunidade, os dados divulgados pelo Observatrio Nacional de Zonas Urbanas Sensveis rgo o cial do governo francs a rmaram que o ndice de desemprego entre os jovens protagonistas dessas manifestaes girava em torno de 40%, enquanto a mdia nacional estava prxima de 11%. No havia dvida de que esses episdios, denominados pela mdia mundial, de distrbios franceses, espalhar-se-iam por toda a Europa. No tardamos a presenciar manifestaes de igual natureza, ocorrendo na Grcia, na Espanha, na Inglaterra, dentre outros pases.

    O cenrio de crise profunda por que passa o capitalismo contemporneo impossibilita a acumulao do capital sem o aprofundamento da explorao. Com efeito, essa agudizao ocorre com o aporte precioso e indispensvel do Estado. Isso acontece cotidianamente, mesmo acreditando os cegos do castelo, ser o Estado ine ciente, devendo, por esta razo, afastar-se da economia. Esse o pano de fundo que envolve a trama de mediaes que articulam, no atual estgio da experincia humana, os diferentes complexos sociais.

    a partir desse contexto, portanto, que o presente livro procura analisar a problemtica da escola pblica brasileira, particularizando a formao pro ssional, a qual se destina, por excelncia, classe trabalhadora.

    A coletnea Educao pblica, formao pro ssional e crise do capitalismo contemporneo sintetiza, primordialmente, parte das pesquisas que se desenvolvem no interior ou no entorno do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operrio da Universidade Estadual do Cear IMO/UECE. Esse Instituto foi o responsvel maior por articular diversos investigadores vinculados a grupos de pesquisa, programas de ps-graduao e laboratrios de pesquisa de quatro universidades distintas, que se dispuseram a apresentar suas exposies na presente publicao.

  • Registramos o importante suporte em forma de fomento nanceiro concedido pela Fundao Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Cient co e Tecnolgico FUNCAP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cient co e Tecnolgico CNPq, respectivamente atravs do aporte designado ao desenvolvimento dos projetos de pesquisa Entre o mercado de trabalho e a formao humana: examinando criticamente a proposta de Ensino Mdio Integrado do Estado do Cear, do Programa de bolsas de produtividade em pesquisa e estmulo interiorizao BPI (Edital N 02/2010); e Graduao tecnolgica no Cear: contrastes e perspectivas do Instituto CENTEC/CE, do Programa Universal (Edital MCT/CNPq N 014/2010), que garantiram a concretizao desta publicao.

    A coletnea divide-se em duas partes distintas e complementares. A primeira parte, intitulada Pressupostos e problematizaes contextuais, contm as comunicaes responsveis por explicitar o trabalho como o complexo fundante do ser social, para, sobre esse fundamento, trazer ao debate, o lugar onto-histrico da tcnica e da tecnologia; contemplando, sob diversos ngulos, as relaes entre os complexos do trabalho e da educao no quadro da crise da sociabilidade contempornea. J a segunda parte, Ensino bsico e formao pro ssional do trabalhador brasileiro em sintonia com os interesses da classe dominante, avana sobre a questo espec ca da educao pblica, direcionando seus exemplos para o ensino bsico e para a formao pro ssional para, por m, fechar suas re exes com o debate sobre o chamado Ensino Superior No Universitrio (ESNU). Como adiantado, todavia, esta parte da publicao complementa aquela, pois, a partir de exemplos empricos, expe os limites das polticas pblicas neoliberais, que, no liame de suas contradies, buscam, com efeito, por intermdio das reformulaes propostas pelos organismos transnacionais, extrair do complexo educativo, formas inovadoras de manuteno do status quo.

  • A riqueza da anlise sobre a importncia do trabalho no desenvolvimento do ser social e seu rigor conceitual-didtico, atribuiu ao artigo Marxismo, trabalho e ser social, de autoria de Frederico Costa, Ruth de Paula e Betnia Moraes, a desa adora tarefa de abrir a coletnea. Por intermdio desta exposio, extrada das investigaes do grupo desenvolvidas a partir das discusses fertilizadas no IMO, bem como no Programa de Ps-Graduao em Educao PPGE da UECE, e no Programa de Ps-Graduao em Educao Brasileira da Universidade Federal do Cear UFC, os autores aprofundam, de forma devidamente rigorosa, a relevncia da categoria trabalho para o correto entendimento do complexo educativo.

    A confuso categorial posta em prtica pela epistemologia burguesa-idealista que confere tcnica e seu locus, a tecnologia, dois papeis contrapostos: por um lado apresentando-a como a salvao da humanidade, e por outro, atribuindo-lhe a culpa maior pelos males veri cados nos pases perifricos, debatida de forma criticamente esclarecedora no artigo Concepes epistemolgicas e onto-histricas da tcnica e da tecnologia: um debate fundado no legado de lvaro Vieira Pinto. Deribaldo Santos, sintetiza, neste ensaio, parte do trabalho desenvolvido por Vieira Pinto em seu livro pstumo O conceito de tecnologia, onde este Filsofo, calcado em algumas das principais teses marxianas, deslinda o verdadeiro sentido da tcnica e da tecnologia para o mundo dos homens.

    Jorge Alberto Rodrigez, por sua vez, contribui com o debate ao expor em seu ensaio Educao e desenvolvimento o contexto que envolve a publicao do documento Educao e conhecimento: eixo da transformao produtiva com equidade. O autor dialoga com as teorias debatidas no seio da Comisso Econmica para Amrica Latina e o Caribe CEPAL, bem como no interior da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura UNESCO, para, com base em autores como Gaspar Weinnberg e German Rama, tecer

  • suas inferncias sobre o processo de desenvolvimento da educao na Amrica Latina.

    O artigo intitulado Indivduo e educao: notas sobre o processo de (des)humanizao do ser social de autoria de Betnia Moraes, Ruth de Paula e Frederico Costa, faz parte das pesquisas que seus autores desenvolvem na integrao entre os programas de ps-graduao em educao da UECE, bem como da UFC. O ensaio busca, inicialmente, problematizar a concepo naturalizada em nossas conscincias de que os indivduos so essencialmente egostas, competidores, ou seja, que o egosmo e o ato de competir so inerentes essncia humana; posteriormente, debate a atividade essencial da educao e o seu real papel na formao do indivduo; problematiza, por m, a concepo de atividade pedaggica como prtica redentora geral, isto , questiona a concepo de educao como a verdadeira tbua de salvao, capaz de sanar todas as formas de misria vigente em nossos dias. Os autores apontam nessa exposio para o papel efetivo da educao no processo de constituio do indivduo livre e de uma vida plena de sentido, qual seja: uma formao assente na luta pela superao da explorao do homem pelo homem.

    A chave do saber: um exame crtico do novo paradigma educacional concebido pela ONU, de Osterne Maia e Susana Jimenez, por seu turno, insere-se no debate educacional radicalmente crtico, destacando os princpios e diretrizes formuladas a partir da paradigmtica I Conferncia de Educao par a Todos, realizada em Jomtien, em 1990. Tratando-se, reconhecidamente, de um Manual de larga popularidade da vulgata pedagogista, o Relatrio, Educao, um tesouro a descobrir, elaborado, a partir de Jomtien, sob a coordenao de Jacques Dlors, submetido, aqui, a um rigoroso exame, o qual disseca, impiedosamente, cada um dos quatro pilares consagrados pela ONU para a conduo dos a airs educacionais no decantado novo milnio.

  • Demonstram os autores que o modelo ONU, por estes, referido, muito curiosmente, atravs do vocbulo CHAVE (C de conhecimento, H de habilidade, A de atitude, V de valores e E de existencial), pretende superar as supostas limitaes e parcialidades dos modelos pedaggicos anteriores, para, assim, atender s exigncias colocadas pelo mundo contemporneo, em toda sua linha de argumentao - ou misti cao - passando ao largo, como no poderia deixar de ser, do complexo de determinaes que, efetivamente respondem pelos problemas e desa os a que a educao chamada a responder na perspectiva da emancipao humana.

    Fecha a primeira parte desta publicao o artigo A educao dos povos ibero-americanos no contexto de crise estrutural do capital, fruto de re exes apreendidas pela pesquisa O Movimento de Educao para Todos e a Crtica Marxista, gestada no IMO e desenvolvida de forma integrada entre a UECE, atravs do PPGE, e a UFC, no mbito do Linha Marxismo, Educao e Luta de Classes E-Luta do Programa de Ps-Graduao em Educao Brasileira desta universidade. Assinada por Jackline Rabelo, Maria das Dores Mendes Segundo, Helena Freres e Valdemarin Coelho Gomes, a comunicao prope-se a examinar a funo social do complexo educativo nos discursos das conferncias promovidas pela Organizao dos Estados Ibero-americanos para a Educao, a Cincia e a Cultura (OEI), ocorridas entre os anos de 1985 e 2008.

    Para iniciar a segunda parte do livro, Cleide Maria Quevedo Quixad Viana e Ilma Passos Alencastro Veiga apresentam o artigo Plano de Desenvolvimento e Acompanhamento do Projeto Poltico-Pedaggico junto aos sistemas de ensino integrados ao Programa Brasil Pro ssionalizado, no qual, as autoras investigam, com base no Decreto n. 5.154/04, a estrutura da proposta de Plano de Desenvolvimento e Acompanhamento do Projeto Poltico-Pedaggico

  • para a integrao do ensino mdio com a educao pro ssionalizante. De forma su cientemente didtica, o artigo explica como funcionam os trs nveis em que se desenvolver a integrao: 1) macro; 2) meso ou intermedirio; e 3) micro ou de unidade escolar. O estudo faz parte das pesquisas desenvolvidas no mbito do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade de Braslia PPGE/FE/UnB, especi camente dentro do grupo de pesquisa Formao de Pro ssionais da Educao Lattes/CNPq.

    Ruth de Paula, Betnia Moraes, e Frederico Costa encontram-se novamente para debater, luz da ontologia marxiano-lukacsiana, os limites da proposta de formao educacional do ProJovem, que em oposio reproduo do gnero humano atende a reproduo do capital em tempos de crise estrutural. Tal discusso tratada com o devido rigor crtico no artigo O ProJovem e a educao na sociedade contempornea, que, por sua vez, teve origem no seio do IMO/UECE e decorre de uma pesquisa de Iniciao Cient ca. O artigo, com suporte terico nos estudos de Leontiev, Duarte, Tonet, Jimenez e Mendes Segundo, defende que o iderio das pedagogias do aprender a aprender, presente na proposta do ProJovem, prenhe de subjetivismo e imediatismo, pe em relevo a prtica em uma relao inadequada com a teoria, o que contribui para o esvaziamento do contedo, to caro apreenso do real em seu movimento. A exposio indica que, desse modo, educao de jovens provenientes da classe trabalhadora, defendida em programas o ciais, segue alargando o fosso entre espcie e gnero humano, atingindo frontalmente as subjetividades, rmando compromisso com a reproduo do capital.

    J a exposio As determinaes do capital na formao do trabalhador: o ensino mdio regular noturno em questo,

  • assinada por Edvaldo Albuquerque dos Santos e Edna Bertoldo, trabalha o contedo da dissertao Ensino mdio Regular Noturno: as determinaes do capital na formao do aluno trabalhador, de autoria do primeiro autor, defendida no Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Alagoas UFAL, sob a orientao da segunda autora e em articulao com o Grupo de Pesquisa Trabalho, Educao e Ontologia Marxiana da mesma Universidade. Os autores, alados com propriedade, excursionam por sobre a funo histrica do complexo educativo, o que lhes impede de nutrir expectativas favorveis sobre a possibilidade da recm reformulao operada sobre o ensino mdio. Com uma anlise muito bem aparelhada sobre o papel do Estado atravs das leis burguesas, a comunicao adianta, a ttulo de consideraes nais, que as modi caes cimentadas sobre o capital, a exemplo da Reforma do Ensino Mdio, no podem mais que perpetuar a histrica dualidade educativa, inerente educao capitalista.

    O artigo Baixos ndices de pro cincia no ensino bsico pblico cearense: primeiras aproximaes escrito por Cristiane Por rio do Rio, concentra as re exes iniciais da pesquisa em andamento, intitulada A escola pblica cearense contempornea: examinando os determinantes dos baixos ndices de pro cincia do ensino mdio, desenvolvida pela autora com o apoio do Laboratrio de Pesquisa sobre Polticas Sociais do Serto Central e do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educao, Esttica e Sociedade Lapps/GPTREES da Faculdade de Educao, Cincias e Letras do Serto Central FECLESC/UECE, que, por seu turno, so coligados ao IMO. A comunicao pretende expor de forma necessariamente sinttica, a problemtica dos baixos ndices de pro cincia apontados pelo Sistema Permanente de Avaliao da Educao Bsica do Cear (SPAECE). Para atender a esse objetivo, a exposio apoia-se na onto-metodologia marxiana para examinar os dados referentes avaliao da escola bsica cearense; dialoga com o

  • estado da arte sobre a histria da dicotomia educativa; e, como notas conclusivas, em carter preliminar, aponta algumas das principais re exes que urgem ser feitas sobre essa candente problemtica.

    A seguir, o leitor vai encontrar o artigo Ensino mdio integrado no Estado do Cear: o Caminho de pedras do empreendedorismo para a escola pblica, realizado por Araclia C. Farias, Deribaldo Santos e Maria Cleidiane C. Freitas. Este trabalho vincula-se, em larga medida, pesquisa monogr ca intitulada Educao pro ssional no contexto neoliberal: opo ou imposio?, defendida no Curso de Pedagogia da FECLESC, pela primeira autora, sob a orientao do segundo autor. Referida monogra a, por sua vez, foi gestada em integrao com o projeto de pesquisa Entre o mercado de trabalho e a formao humana: examinando criticamente a proposta de Ensino Mdio Integrado do Estado do Cear, cujo nanciamento fomentado pela FUNCAP, possibilitou a concesso de bolsa de iniciao cient ca para Maria Cleidiane C. Freitas e para Aracelia C. Farias. Essa articulao foi possvel graas integrao realizada no interior do Laboratrio de Pesquisa sobre Polticas Sociais do Serto Central, que, por sua vez, fruto do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educao, Esttica e Sociedade Lapps/GPTREES. A comunicao, advinda dessa integrao, discute, com base no discurso da empregabilidade que propala uma formao espec ca para o desempenho acrtico de um ofcio como garantia de um emprego, qual o papel que o ensino mdio pro ssionalizante tem prestado ao formar mo de obra especi camente para o mercado de trabalho. As concluses, mesmo que de carter preliminar, apontam que as propostas de integrao de conhecimentos gerais e espec cos como soluo para o problema da formao do trabalhador em um ambiente escolar permeados por princpios mercadolgicos, concretizam a coisi cao da educao, amarram a formao do trabalhador ao mercado, negam uma educao vinculada s dimenses fundamentais

  • da vida, como trabalho, cincia e cultura, alm de no potencializar a transformao radical da sociedade rumo emancipao plena do gnero humano.

    Sorria! Voc est sendo educado para o trabalho: uma anlise crtica da expanso da graduao tecnolgica brasileira o trabalho que tem a honra de fechar o livro. Criado por Deribaldo Santos, Susana Jimenez e Maria das Dores Mendes Segundo, exibe os resultados fundamentais da pesquisa de doutorado do primeiro autor, bem como os apontamentos inicias da pesquisa Graduao tecnolgica no Cear: contrastes e perspectivas do Instituto CENTEC/CE e debrua-se sobre o fenmeno afeto expanso de vagas no Ensino Superior No Universitrio (ESNU) no Brasil. Contando o pas com apenas 10% do contingente de jovens entre 18 e 24 anos frequentando o ensino superior, de acordo com dados de o ciais de 2007, o governo brasileiro, sob as diretrizes dos organismos internacionais, como a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura UNESCO e o Banco Mundial, vem tentando elevar tal ndice, em outros termos, democratizando o acesso a esse nvel de ensino, conforme apregoado. Com base nos tericos clssicos da educao, rea rma-se o carter dualista que marca historicamente a educao sob o capital, em geral e, no Brasil, em particular, delineando, a rigor, dois caminhos educativos: o ensino pro ssional para a classe trabalhadora e o ensino acadmico para a elite e extratos intermedirios da sociedade. Como se pode concluir, atravs do estudo em foco, este dualismo classista reeditado com particular veemncia, no seio da educao superior brasileira, cuja poltica opera uma fragmentao entre o ensino superior de carter propriamente universitrio; e o ensino superior no universitrio, destinado formao para o mercado. Nesse quadro, procurou-se, ademais, desvelar o papel estratgico desse subsistema no processo de reproduo do capitalismo perifrico brasileiro, identi cando o carter

  • ideolgico, economicista e pragmatista que fundamenta a atual poltica de ensino superior no Brasil, com particular destaque para a chamada graduao tecnolgica.

    Deribaldo SantosFortaleza, outubro de 2012

  • PRIMEIRA PARTE:PRESSUPOSTOS E PROBLEMATIZAES

    CONTEXTUAIS

    Marxismo, trabalho e ser social

    Frederico CostaRuth de Paula

    Betnia Moraes

    Introduo

    Qualquer debate nas cincias humanas contemporneas, em particular no mbito educacional, necessariamente dever levar em considerao o contexto da atual crise econmica. claro que da prpria natureza do capitalismo a existncia de crises. Pode-se a rmar que elas racionalizam as irracionalidades do sistema. No entanto, desde a dcada de 1970 as crises capitalistas apresentam-se cada vez destrutivas nos seus aspectos econmicos, nanceiros e ecolgicos. De fato, conforma-se uma crise de civilizao s comparvel historicamente decadncia do Imprio Romano. Felizmente, a crise internacional est entrando em uma nova fase, na qual os assuntos quase puramente econmicos e nanceiros, que ocuparam o primeiro plano durante os ltimos dois anos, comearam a combinar-se com um maior acirramento da luta de classes, ou seja, os explorados e dominados da resistncia fragmentria podem avanar para um projeto de superao do capitalismo e da sociabilidade.

    Pensamos que tal perspectiva deve quali car qualquer temtica educacional, porque a educao um dos momentos essenciais da

  • reproduo social, tanto da ordem vigente como das tendncias revolucionrias sua superao. Isso exige dos intelectuais engajados a retomada de estudos mais substantivos, isto , que envolvam a problemtica dos fundamentos, desenvolvimento, contradies e possibilidades do ser social. O conhecimento da materialidade social um pressuposto bsico para sua transformao.

    Por isso, neste trabalho coletivo que se debrua sobre a educao tcnica e ensino tecnolgico optamos por uma abordagem ontolgica sobre a categoria trabalho e suas conexes essenciais com a totalidade social, tendo como referencial terico Marx e Lukcs. Esse tipo de abordagem permite estabelecer coordenadas tericas que possibilitam alicerces slidos para um conjunto de temticas vinculadas ao assunto central deste livro como a diviso capitalista do trabalho, alienao, polticas pblicas, crises econmicas, precarizao entre outros.

    Atividade vital humana e trabalho

    O homem como um ser vivo necessita estar em constante metabolismo com a natureza. Sem essa interao perene com o meio natural o homem no conseguiria os elementos essenciais para sua sobrevivncia e reproduo como espcie. Por isso, Marx e Engels (1999, p. 27) a rmam na Ideologia Alem que:

    O primeiro pressuposto de toda histria humana naturalmente a existncia de indivduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar , pois, a organizao corporal destes indivduos e, por meio disto, sua relao dada com o resto da natureza.

    Tal tese conduz a certas questes. At que ponto o homem pode ser considerado um ser natural? Qual o estatuto do fundamento natural do homem? Quais os limites e potencialidades postos pelo aspecto natural do ser humano? Bem, de acordo com Marx (2004, p. 127, grifos nossos):

  • O homem imediatamente ser natural. Como ser natural, e como ser natural vivo, est, por um lado, munido de foras naturais, de foras vitais, um ser natural ativo; estas foras existem como possibilidades e capacidades (Anlagen und Fhigkeiten), como pulses; por outro, enquanto ser natural, corpreo, sensvel, objetivo, ele um ser que sofre, dependente e limitado, assim como o animal e a planta, isto , os objetos de suas pulses existem fora dele, como objetos independentes dele. Mas esses objetos so objetos de seu carecimento (Bedrfnis), objetos essenciais, indispensveis para a atuao e con rmao de suas foras essenciais. Que o homem um ser corpreo, dotado de foras naturais, vivo, efetivo, objetivo, sensvel signi ca que ele tem objetos efetivos, sensveis como objeto de seu ser, de sua manifestao de vida (Lebensusserung), ou que ele pode somente manifestar (ussern) em objetos sensveis efetivos (wirkliche sinnliche Gegenstnde).

    O que signi ca tudo isso? Em primeiro lugar, que o homem no um ser especial no sentido de se destacar da natureza por obra de uma fora transcendente nem muito menos, por razo de suas carncias e limitaes, que ele seja um ente que s encontraria realizao num absoluto sobrenatural. O homem , em primeiro lugar, um ser natural vivo, isto , corpreo, sensvel e objetivo que possui toda uma histria evolutiva anterior1, isto , uma base biolgica no eliminvel. Mas, no s isso, o homem compartilha com os animais e as plantas, a esfera orgnica do ser, a dependncia e a limitao de no ser auto-su ciente, pois os objetos de suas pulses existem fora dele: na natureza, os quais so indispensveis para a atuao e con rmao de suas foras essenciais. O homem, como os demais seres da esfera orgnica, vive da natureza por ser tambm parte dela: [...] a natureza seu corpo, com o qual ele tem de car num processo contnuo para no morrer. (MARX, 2004, p. 84).

    O homem, porm, no um simples ser natural que se adapta ao meio ambiente, segundo as leis da seleo natural. Municiado de suas prprias foras naturais como, por exemplo, o crebro grande

    1 Para mais detalhes atualizados sobre a evoluo humana veri car Roberts (2011) em seu fascinante e bem fundamentado Evolution: the human history.

  • e complexo2, a viso binocular3, o bipedismo4, a habilidade manual5 e a potencialidade da fala6 ele um ser natural ativo, no qual essas foras apresentam-se como capacidades e possibilidades.

    No entanto, do ponto de vista natural, a constituio fsica do homem inferior da maioria dos animais; no tem a pelagem necessria para manter o calor do corpo num ambiente frio; seu corpo no to e ciente para a fuga, defesa prpria ou caa; no possui uma velocidade excepcional, uma colorao protetora ou uma armadura 2 [...] o crebro grande e complexo, formando o centro de um extenso e delicado sistema nervoso. Este sistema permite uma grande variedade de movimentos controlados com preciso, ajustados exatamente aos impulsos recebidos pelos rgos delicados dos sentidos [...] o homem foi dotado pela natureza com um crebro bastante grande em comparao com seu corpo, mas esse dote a condio que lhe permite fazer a sua prpria cultura (CHILDE, 1975, p. 40-41). De todos os mamferos, os primatas so o grupo que tem os crebros maiores, e os humanos estenderam enormemente esta propriedade: o crebro humano trs vezes maior em tamanho do que o crebro de um macaco que tem um tamanho corporal equivalente (LEAKEY, 1995, p. 61).3 No homem e nos primatas superiores, a associao de imagens estereoscpicas com sensaes de fato e atividade muscular torna possvel o clculo perfeito das distncias e profundidades. Sem isso, a delicadeza das mos e dedos no bastaria para a confeco de instrumentos. a cooperao perfeitamente, mas subconsciente, da mo e olho, que permite ao homem fazer ferramentas desde o mais rudimentar elito at o mais sensvel sismgrafo (CHILDE, op. cit., p. 41-42).4 O advento do bipedismo no somente uma importante transformao biolgica mas tambm uma importante transformao adaptativa [...] a adoo do bipedismo era to carregada de potencial evolutivo permitindo aos membros superiores a liberdade de se tornarem um dia implementos manipulatrios [...] (LEAKEY, op.cit., p. 26). Os antroplogos tendem a ver a importncia do bipedismo na evoluo humana de duas maneiras: uma escola enfatiza a liberao dos membros dianteiros que possibilita o transporte de coisas; a outra enfatiza o fato de que o bipedismo um modo de locomoo mais e ciente do ponto de vista energtico, e v a habilidade de transportar coisas simplesmente como um derivado fortuito da postura ereta (Idem, p. 29).5 [...] grande a distncia entre a mo pouco desenvolvida do macaco antropide e a humana, altamente desenvolvida pelo trabalho, durante centena de milhares de anos. O nmero e a disposio dos ossos e msculos coincidem em ambos; mas a mo do mais primitivo dos selvagens pode realizar centenas de movimentos e atos que nenhuma mo simiesca poder imitar (ENGELS, 1985, p. 216).6 A fala possibilitada por [...] um controle delicado e preciso, pelos nervos motores, dos msculos da lngua e laringe, e uma correlao exata das sensaes musculares, devidas a movimentos desses rgos, com o sentido de audio [...] no Homo sapiens tais desenvolvimentos do crebro e do sistema nervoso seguem lado a lado com modi caes na disposio dos msculos da lngua, no encontradas em nenhum outro gnero ou espcie de homem, e tambm no nos macacos. Em consequncia, o homem capaz de proferir uma variedade de sons muito maior do que qualquer outro animal (CHILDE, 1975, p. 42).

  • corporal; falta-lhe acuidade visual ou fora muscular para lhe dar vantagem sobre sua presa ou defender-se. No obstante tudo isso, a espcie homo sapiens historicamente demonstrou a superior capacidade de ajustar-se ativamente a diversos ambientes do que qualquer ser biolgico, de multiplicar-se mais rpido do que qualquer mamfero superior e, o fundamental, foi capaz de, subordinando a natureza s suas necessidades, constituir uma nova estrutura da realidade a esfera social no presente na natureza. O que propiciou, de fato, tal salto da esfera biolgica para a esfera social?

    Segundo Marx, o segredo do desenvolvimento exponencial do gnero humano encontra-se no carter espec co de sua atividade vital.

    Pode-se entender a atividade vital de qualquer espcie animal como o conjunto de caractersticas capazes de garantir sua existncia e reproduo como espcie. De fato, o fundamento sobre o qual cada animal singular na atividade de reproduzir a si prprio reproduz tambm a prpria espcie, garantindo a continuidade desta. Por isso, diz Marx (2004, p. 84) que [...] no modo (Art) da atividade vital encontra-se o carter inteiro de uma species, seu carter genrico [...].

    Para Marx (op. cit., p. 84), o animal [...] imediatamente um com a sua atividade vital. No se distingue dela. ela. O que signi ca que, a atividade animal atende necessariamente s necessidades de sobrevivncia e reproduo, porm tal atividade est posta nos marcos puramente naturais, no sentido de estar determinada pela herana gentica, numa relao imediata entre o animal e seu ambiente, satisfazendo em formas geralmente xas isto , as que expressam a melhor adaptao ao meio , as necessidades estabelecidas biologicamente. Acrescenta-se tambm que para o animal todo objeto da realidade circundante inseparvel das suas necessidades instintivas, o que faz com que sua relao com o

  • objeto no exista enquanto tal, independentemente do objeto7, ou seja, o animal no se distingue de sua atividade vital.

    Porm, Marx (op. cit., p. 84) explica o seguinte:

    O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua conscincia. Ele tem a atividade vital consciente. Esta no uma determinidade (Bestimmtheit) com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, [e] s por isso, ele um ser genrico. Ou ele somente um ser consciente, isto , a sua prpria vida lhe objeto, precisamente porque um ser genrico. Eis por que a sua atividade atividade livre.

    Assim, na perspectiva marxiana a atividade vital consciente destaca o homem do restante da natureza, pois como sua atividade vital torna-se objeto da sua conscincia, o homem ao entrar em relao com qualquer coisa incluindo sua prpria atividade capaz de fazer a distino entre o objeto da sua relao e a prpria relao, pois a:

    [...] separao entre objetos que existem independentemente do sujeito, e sujeitos que podem re etir aqueles, por meio de atos da conscincia, com uma aproximao mais ou menos adequada, e que podem convert-los em uma posse intelectual prpria. Esta separao entre sujeito e objeto que se fez consciente, um produto necessrio do processo de trabalho e, ao mesmo tempo, o fundamento da forma de existncia especi camente humana (LUKCS, 2004, p. 82).

    7 [...] tambm os animais se encontram numa relao com o meio ambiente; relao que se torna cada vez mais complexa, e finalmente se encontra mediada por um tipo de conscincia. Porm, como esta se mantm no mbito biolgico, no pode se produzir uma separao e contraposio entre sujeito e objeto como a que tem lugar no homem (LUKCS, 2004, p. 82-83).

  • A partir disso, o re exo da realidade no se confunde com o que vivido. A atividade humana no uma com o prprio homem. O homem no tem uma relao imediata com sua atividade vital como os animais, mas mediada pela conscincia. Da a possibilidade da liberdade, pois ao apreender o re exo da realidade destacadas das relaes imediatas que existem entre a realidade e o homem, este consegue distinguir as propriedades estveis da prpria realidade e as utilizar para a satisfao de suas necessidades. Ele, mesmo de maneira rudimentar, pe sua atividade vital como objeto de projeo e re exo consciente.

    O homem ainda um ser genrico, pois ele no tem apenas conscincia de si mesmo como indivduo, mas de sua prpria atividade vital, isto , o homem possui uma vida interior e outra exterior. Isso porque o ser humano se destaca da pura naturalidade ao fazer dela objeto para sua conscincia, o que o torna um ente ativo que no se adapta simplesmente s condies naturais, mas que transforma conscientemente a realidade a sua volta. Da a importncia da sociabilidade e da linguagem na constituio da realidade humana. No entanto, a conscincia no algo abstrato ou vinculado a uma transcendncia espiritual, ou seja, destacada da mundaneidade. Marx (2004, p. 85) destaca a natureza sensvel e mundana da conscincia na atividade vital humana:

    O engendrar prtico de um mundo objetivo, a elaborao da natureza inorgnica a prova do homem enquanto um ser genrico consciente, isto , um ser que se relaciona com o gnero enquanto sua prpria essncia ou [se relaciona] consigo enquanto ser genrico. verdade que tambm o animal produz. Constri para si um ninho, habitaes, como a abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz apenas aquilo de que necessita imediatamente para si ou sua cria, produz unilateral[mente], enquanto o homem produz universal[mente]; o animal produz apenas sob o domnio da carncia fsica imediata, enquanto o homem produz

  • mesmo livre da carncia fsica, e s produz, primeira e verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relao] a ela; o animal s produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza; [no animal,] o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo fsico, enquanto o homem se defronta livre[mente] com o seu produto. O animal forma apenas segundo a medida e a carncia da species qual pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda parte, a medida inerente ao objeto; o homem tambm forma, por isso, segundo as leis da beleza. Precisamente por isso, na elaborao do mundo objetivo [ que] o homem se con rma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genrico. Esta produo a sua vida genrica operativa. Atravs dela a natureza aparece como a sua obra e a sua efetividade (Wirklichkeit). O objeto do trabalho portanto a objetivao da vida genrica do homem: quando o homem se duplica no apenas na conscincia, intelectual[mente], mas operativamente, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele. (grifos nossos).

    At aqui nota-se que a caracterstica essencial da atividade vital humana ser ela consciente e, portanto, algo espec co e distintivo do homem em relao ao restante da natureza. Ela no algo derivado imediatamente de sua estrutura biolgica, embora tenha como condio esta, pois sem crebro no h possibilidade de pensamento. Foi no marco das condies sociais mais primitivas que surgiram os primeiros lampejos de conscincia. Isso conduz ao carter essencialmente genrico da atividade humana, por meio dele o homem se auto constitui de maneira diversa da histria natural. do engendramento prtico de um mundo objetivo um mundo que no existia naturalmente na transformao da natureza inorgnica que o homem se consubstancia em ser genrico, consciente. Atravs de sua atividade vital o homem se relaciona com o gnero enquanto sua prpria essncia e ao mesmo tempo consigo mesmo enquanto ser genrico. O que signi ca que a essncia genrica humana no possui uma natureza mstica ou incognoscvel,

  • mas que objetiva e materialmente identi cvel na atividade prpria do homem: o conjunto das relaes sociais.

    por meio de sua atividade vital consciente, ou seja, o trabalho8, que se expressa o elemento ontolgico primaz da realidade humana, pois na elaborao do mundo objetivo isto , a criao contnua pelo trabalho do mundo humano, imanentemente social que o homem se con rma efetivamente como ser genrico. Isso porque o gnero para o homem no algo abstrato e independente dos homens reais e concretos, mas est posto no trabalho, o ncleo de sua vida genrica operativa, que garante no apenas a sobrevivncia dos indivduos e sua reproduo biolgica, mas tambm reproduz garantindo a continuidade e desenvolvimento as caractersticas do gnero humano, o qual no se reduz mera soma dos indivduos, mas se constitui pela totalidade das relaes sociais, das mais simples s mais complexas. Esse novo mundo que surge a partir da vida produtiva humana, no qual a natureza transformada aparece como sua obra e sua efetividade, tambm objetivao da vida genrica do homem, em que o homem se duplica no apenas intelectualmente, mas operativamente por meio de seus projetos que se efetivam materialmente, da a possibilidade de contemplar-se a si mesmo num mundo criado por ele. Portanto, o trabalho que alicera a dimenso genrica do ser social, pois ele s possvel como atividade coletiva, isto , s realizvel atravs da relao com outros homens.

    Em sntese, possvel observar, a partir de Marx, que o trabalho/ atividade vital humana, algo ontologicamente diverso da atividade vital dos animais. Por meio de um processo que envolveu um largo espao temporal, o trabalho estruturou-se e desenvolveu-se numa srie

    8 Para Marx (2004, p. 114), a atividade vital consciente sinnimo de trabalho: [...] toda assim denominada histria mundial nada mais do que o engendramento do homem mediante o trabalho humano, enquanto o vir a ser da natureza para o homem [...].

  • de determinaes que acabaram por superar o rgido padro natural dos animais. Essas determinaes no so encontradas no ser biolgico. Elas de fato expressam um salto ontolgico9 em relao natureza. O trabalho um novo tipo de atividade vital espec co de uma nica espcie, a humana. E os homens pelo trabalho destacam-se da natureza e afastam cada vez mais as barreiras naturais.

    Trabalho e ser social

    O interessante na perspectiva marxiana a identi cao de dois momentos indissoluvelmente ligados do processo de antropognese, ou seja, de constituio do ser social como uma esfera espec ca regida por uma legalidade diferenciada da natureza: de um lado o trabalho revela o vnculo impossvel de ser eliminado entre o homem e a natureza, e por outro lado expressa o carter diferencial da atividade humana em relao ao processo de reproduo meramente biolgico.

    A especi cidade do mundo dos homens reside no fato de no seu ato fundante, o trabalho, revelar-se uma ruptura com os mecanismos reprodutivos encontrados na esfera biolgica. Lukcs (2004) exempli ca tal ruptura ao destacar a radical diferena ontolgica existente sob as aparentes semelhanas entre a forma de organizao de determinadas espcies na natureza e a diviso do trabalho prpria da sociabilidade humana:

    [...] as chamadas sociedades animais (e tambm a diviso do trabalho em geral dentro do reino animal) so diferenciaes biologicamente

    9 [...] cada salto signi ca uma transformao qualitativa e estrutural no ser, na qual a fase inicial contm dentro de si determinadas condies e possibilidades das fases posteriores e superiores, mas estas no podem se desenvolver a partir da fase inicial segundo uma continuidade simples e retilnea. Esta ruptura com a continuidade normal da evoluo o que constitui a essncia do salto, e no o surgimento, temporalmente sbito ou paulatino da nova forma de ser (LUKCS, 2004, p. 60-61).

  • xadas, tal como se pode observar da melhor maneira no Estado das abelhas. Quer dizer, assinalamos, que a margem de como pode ter se constitudo, uma organizao semelhante, essa j no possui uma possibilidade de evoluo imanente a partir de si mesma; no mais que uma forma particular de adaptao de um animal a seu ambiente; e quanto mais perfeitamente funcione a diviso do trabalho assim constituda, quanto mais rmemente se faz fundamentada no biolgico. A diviso do trabalho na sociedade humana produzida pelo trabalho cria, ao contrrio [...] suas prprias condies de reproduo, e, por certo, de tal maneira que a reproduo simples do existente em cada caso conforma s o caso limite da tpica reproduo ampliada. Isto no exclui, naturalmente, a apario de becos sem sada na evoluo; suas causas, no obstante, se encontram sempre determinadas pela estrutura da respectiva sociedade, e no pela constituio biolgica de seus membros (p. 61).

    Do exposto at aqui, e em particular, da citao acima, possvel situar o equvoco metodolgico, muito comum nas cincias humanas estabelecidas, em utilizar conceitos comuns tanto esfera biolgica quanto esfera do ser social. O que signi ca a atribuio de determinaes prprias da atividade natural atividade humana. Tal crtica parte do pressuposto bsico de que a atividade vital dos animais sua ancoragem biolgica, ou seja, sua atividade sustentar-se-ia em determinaes genticas e relaes biolgicas com o meio ambiente que levariam a uma estabilidade s perturbada por mudanas ambientais, mutaes aleatrias ou presses da seleo natural. Por isso, o pensador magiar ilustra suas teses ontolgicas levantando o exemplo do Estado das abelhas, cujas funes realizadas pelos membros que compem a colmeia esto regidas pela necessidade biolgica, limitando as possibilidades de desenvolvimento ulterior que leve ruptura com o padro reprodutivo de sua existncia.

    J a atividade humana manifesta-se pela constante expanso de possibilidades do modo de reproduo de sua prpria existncia

  • possibilidades estas no mais unilateralmente determinadas pela naturalidade do seu organismo, mas mediadas cada vez mais socialmente. Noutras palavras, a reproduo no ser social, que tem como motor o trabalho, se realiza em condies diferentes do modo de reproduo prprio ao ser biolgico. Portanto, no ser social as condies de reproduo so postas socialmente pela atividade consciente humana de transformao material da natureza, que tem como ncleo a objetivao de um projeto previamente idealizado por mais tosco ou inconsciente que seja. O aspecto radicalmente novo do ser social est na forma da transformao material da realidade, que nele determinada pelo pr consciente de uma nalidade.

    Assim, podemos concluir que a antropognese, a qual coincide com a sociognese, representa um salto em relao esfera biolgica. Isso porque a atividade originria do ser social funda as determinaes essenciais da especi cidade do gnero humano. O trabalho, como objetivao primria, no apenas resultante da hominizao, ele, ao mesmo tempo, a causa e resultado dessa hominizao; no apenas produto tpico do ser do homem, o fundamento da prpria condio de ser homem. O homem, sustentado em sua naturalidade, vai alm dela porque em sua essncia que no o imutvel imposto pela natureza ou por qualquer espcie de transcendncia espiritualista um ser que se institui a si mesmo por meio de sua atividade vital consciente. O segredo da antropognese-sociognese o trabalho. O que impe a qualquer estudo sobre um complexo determinado do ser social identi car, mesmo tangencialmente, alguns elementos bsicos da categoria trabalho.

  • Determinaes do trabalho

    Como foi visto no tpico precedente, pelo trabalho que a espcie humana se conforma como um novo tipo de ser, at ento inexistente na natureza, e cuja essncia no est imposta pela herana gentica ou por condies biolgicas predeterminadas. De fato, surge um tipo de ser que at onde conhecemos sui generis. O ser social se caracteriza por uma complexidade que inexplicvel em termos de categorias naturais. A categoria trabalho alm de revelar a essncia do ser humano em sua caracterstica imanente de viver em comunidade e de ter uma existncia genrica, o fundamento da prpria comunidade humana, porque ao manipular de maneira orientada a natureza, ela produz relaes tipicamente humanas, relaes produtivas, sociais, lingusticas, axiolgicas e culturais. Se existe a possibilidade posta de uma espcie evoluir para um padro mais complexo de sociabilidade, foi o trabalho que impulsionou o salto dessa espcie geneticamente predisposta para a esfera do ser social.

    Isso leva necessidade de uma maior explicitao de algumas determinaes do trabalho, que Marx (1987, p. 2002), de maneira mais detida, em sua obra de maturidade O Capital: crtica da economia poltica, de ne da seguinte maneira:

    Antes de tudo, o trabalho um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua prpria ao, impulsiona, regula e controla seu intercmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas foras. Pe em movimento as foras naturais de seu corpo, braos e pernas, cabea e mos, a m de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma til vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modi cando-a, ao mesmo tempo modi ca sua prpria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domnio o jogo das foras naturais. [...] Uma aranha executa operaes semelhantes s do tecelo, e a abelha supera mais de um arquiteto ao

  • construir sua colmia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha que ele gura na mente sua construo antes de transform-la em realidade. No m do processo do trabalho aparece um resultado que j existia antes idealmente na imaginao do trabalhador. Ele no transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade.

    Partindo dessa conceituao marxiana de trabalho, possvel destacar algumas concluses. Primeira, o ser social no pode existir sem a natureza, mas diferente dos animais, o homem, por meio do trabalho, impulsiona, regula e controla seu intercmbio com a natureza, pois como ser que tem como fundamento a natureza, utiliza-a como uma de suas foras. Assim, aproveitando as possibilidades do seu corpo, naturalmente posto, apropria-se dos recursos naturais imprimindo-lhes forma til vida humana10. O que signi ca, de um lado, que no h nada de sobrenatural na atividade humana, nem uma centelha divina ou qualquer elemento transcendental que oriente atividade humana em relao natureza como uma alma ou esprito; por outro lado, pelo e no trabalho que os elementos naturais, inorgnicos e orgnicos, tornam-se teis vida humana. Dessa maneira, por meio do trabalho inicialmente a satisfao material das necessidades humanas so atendidas no intercmbio com a natureza.

    Segunda, quando o homem transforma a natureza, produzindo objetos para atender s suas necessidades, ele tambm se transforma. Inicialmente porque desenvolve novas habilidades necessrias, superando o que h de instintivo ou espontneo sob o domnio da 10 Pode-se distinguir os homens dos animais pela conscincia, pela religio ou por tudo que se queira. Mas eles prprios comeam a se diferenciar dos animais to logo comeam a produzir seus meios de vida, passo este que condicionado por sua organizao corporal. Produzindo seus meios de vida, os homens, os homens produzem, indiretamente, sua prpria material (MARX; ENGELS, 1999, p. 27).

  • conscincia que pe ns, para adequar a materialidade natural s suas exigncias. E concomitantemente com isso, para superar a resistncia que o ser natural expressa sua adequao s necessidades humanas, de fundamental importncia o conhecimento da legalidade natural11 do setor espec co da natureza que objeto da interveno humana. Por isso, ao modi car a natureza externa o homem desencadeia um processo em que desenvolve suas potencialidades adormecidas, submetendo ao seu domnio o jogo das foras naturais, por meio do aparecimento de novas habilidades, novos conhecimentos e, consequentemente, novas possibilidades de intercmbio com a natureza e de socializao, isto , comea a fazer histria.

    Terceira, em termos gerais, atravs da capacidade de gurar na mente um projeto, antes de efetiv-lo, que a transformao da natureza regulada e controlada pelo homem, pois o homem no se limita apenas ao natural sobre o qual opera; o homem vai alm, e reside a sua especi cidade. No processo de trabalho o homem imprime ao material um projeto que tinha conscientemente em mira seja um machado de pedra ou uma indstria. O objeto resultante do trabalho algo inexistente na natureza, embora seja uma combinao de elementos naturais, como um primitivo machado de pedra. algo, em termos naturais, indito no horizonte da natureza, porque uma homogeneizao de elementos heterogneos: a nalidade previamente construda na conscincia e os elementos naturais que obedecem a uma legalidade prpria. Assim, o trabalho revela-se como o elemento fundante e predominante no desenvolvimento do ser social, pois nele que primordialmente se produz o novo que impulsiona a humanidade para patamares cada vez mais complexos de sociabilidade. 11 [...] uma das condies objetivas do trabalho, de acordo com o ser, que s um re exo correto da realidade tal como existe, independentemente da conscincia, pode consumar a realizao de causalidades naturais indiferentes e heterogneas em relao a posio do m; pode consumar a transformao de ditas causalidades em causalidades postas e subordinadas posio teleolgicas (LUKCS, 2004, p. 98-99).

  • Nesse processo, importante destacar, que a capacidade de projetar antecipadamente a lei determinante do modo de operar da atividade humana de produzir objetos teis satisfao de suas necessidades. Nesse sentido, Lukcs (2004, p. 62) destaca que:

    [...] atravs do trabalho, se realiza uma posio teleolgica dentro do ser material enquanto surgimento de uma nova objetividade. Assim que o trabalho se converte, por um lado, em modelo de toda prxis social na medida em que nesta ainda quando atravs de mediaes muito diversi cadas se realizam sempre posies teleolgicas, em ltima instncia, de ordem material.

    O que signi ca que a partir do trabalho12 que o ser social revela suas determinaes estruturais, pois s no ato singular de trabalho o homem capaz de agir teleologicamente, propor nalidades, antecipar metas. Assim, so criados artefatos, representaes e smbolos que expressam uma nova forma de objetividade s encontrada no ser social. Antes de ser uma concesso ao idealismo, essa compreenso marxiana da teleologia alm de ser uma radical ruptura com qualquer forma de idealismo e de religiosidade, tambm representa uma superao do materialismo pr-marxiano.

    Equvocos da fi nalidade como categoria cosmolgica e funo da teleologia no trabalho e no ser social

    De acordo com Lukcs (2004), um grande problema ontolgico surge quando a posio teleolgica no ca circunscrita ao trabalho. Grandes lsofos, como Aristteles e Hegel, elevaram a teleologia a uma categoria cosmolgica universal, o que tem como resultado uma oposio insolvel entre causalidade e teleologia. Dessa maneira:

    12 [...] o trabalho pode servir de modelo para a compreenso das outras posies teleolgicas sociais, j que o trabalho, de acordo com seu ser, a forma originria [Urform] destas posies (LUKCS, 2004, p. 62).

  • Toda loso a de orientao teleolgica devia declarar a superioridade da teleologia por sobre a causalidade, a m de harmonizar intelectualmente seu Deus com o cosmos, com o mundo do homem; inclusive quando Deus s d corda ao relgio do universo e, com ele, pe em marcha o sistema da causalidade, resultando inevitvel uma hierarquia semelhante de criador e criatura e, com isso, a prioridade da posio teleolgica. Por outro lado, todo materialismo pr-marxista que negava a constituio transcendente do mundo, tambm questionava a possibilidade de uma teleologia realmente efetiva (LUKCS, 2004, p. 68).

    evidente que as correntes los cas de carter teleolgico possuem, consciente ou inconscientemente, um fundamento religioso, o qual uma expresso misti cada e misti cadora de problemas reais. As religies sustentam-se, em ltima instncia, na constituio da teleologia como uma categoria objetiva. De certa forma, essa teleologia objetiva con rma e justi ca, de maneira distorcida, a racionalidade da histria como um todo a origem e sentido do universo, o caos das aes individuais, o con ito entre classes e naes, a contradio entre o humano e desumano, a nalidade da existncia.

    Enquanto a causalidade um princpio do movimento autnomo, baseado em si mesmo [...] a teleologia , de acordo com sua essncia, uma categoria posta: todo processo teleolgico implica a possibilidade de um m e, com ele, uma conscincia que pe ns (LUKCS, 2004, p. 63).

    Se a teleologia aceita como uma categoria objetiva signi ca que a racionalidade da histria, tanto natural como social, manifestao de uma nalidade posta por uma inteno superior. Assim, no caso do mundo dos homens, suas aes no so por si mesmas dotadas de sentido e de razo; elas recebem um sentido e adquirem uma racionalidade a partir de algo exterior ao ser social, pois:

  • A concepo teleolgica da natureza e da histria no signi ca, pois, meramente que ambos possuem uma nalidade, que estejam orientados a um m, seno tambm que sua existncia, seu movimento tanto como processo total como no plano do detalhe devem ter um autor consciente (Idem, p. 63).

    Portanto, a concepo teleolgica da natureza e da histria, oriunda do carter cosmolgico da teleologia, provoca uma inverso ao acrescentar um sujeito, misterioso, inatingvel e arbitrrio deuses, absoluto, razo superior, ideia absoluta a por ns no universo. A natureza, que possui como caracterstica essencial a causalidade, o automovimento baseado na essncia dinmica do prprio ser natural, ganha um sentido e nalidade, enquanto o mundo dos homens que possui como ncleo o trabalho que tem como lei interna a teleologia , torna-se simples instrumento de um pr metafsico, fazendo com que a liberdade, categoria prpria do ser social, seja em ltima instncia, apenas suposta, e tornando a unidade dialtica entre liberdade e necessidade ctcia. A possibilidade de escolha entre alternativas, prpria da atividade humana, revela-se aparente, pois a histria dos homens est ordenada por um sujeito metafsico que coloca nalidades, na qual os indivduos, no nal das contas, so executores conscientes ou inconscientes de uma necessidade predeterminada. O resultado que os homens podem agir na histria, mas s aparentemente a fazem efetivamente, o destino do gnero humano j est infalivelmente estabelecido por uma fora transcendente. No limite, tal postura terica leva a uma desconstituio da especi cidade do ser social:

    Pois se as diversas teorias idealistas ou religiosas sobre o domnio universal da teleologia forem corretas [...] Cada pedra, cada mosca seria, pois, uma realizao do trabalho de deus, do esprito universal, etc. [...] Com isso, deveria desvanecer-se, consequentemente, a diferena ontolgica decisiva entre sociedade e natureza (LUKCS, 2004, p. 78).

  • Ao contrrio das teorias idealistas e das concepes religiosas, de acordo com Lukcs, Marx nega a existncia de toda teleologia fora do trabalho ou da prxis humana. A perspectiva terica inaugurada por Marx radicalmente humanista e ateia. A suposta existncia de um sujeito transcendental ao impor ns ao cosmos, em ltima instncia, signi ca que a histria humana no seria mais fruto exclusivo do agir humano13. Por isso, de acordo com Lukcs (2004, p. 67): [...] para Marx, o trabalho no uma das mltiplas formas de apario da teleologia em geral, seno o nico ponto em que pode demonstrar-se ontologicamente uma posio teleolgica enquanto fator real da realidade material.

    A teleologia, despida de qualquer misticismo, revela toda sua potencialidade, porque:

    Quando Marx, delimitando exata e estritamente o mbito da teleologia, circunscreve esta ao trabalho ( prxis social), eliminando-a de todos os outros modos de ser, no faz que a teleologia perca importncia; pelo contrrio, ela aumenta, j que preciso entender que o nvel do ser mais alto conhecido por ns o ser social s chega a constituir-se como um nvel espec co graas ao efeito real que nele exerce o teleolgico; s graas ao dito efeito se eleva o social por cima do nvel em que se baseava sua existncia o da vida orgnica e se converte num novo modo de ser independente. S podemos falar racionalmente sobre o ser social sem concebermos que sua gnese, sua diferenciao em relao a sua base, sua autonomizao, se baseia no trabalho, quer dizer na realizao continua de posies teleolgicas (Idem, p. 67-68).

    13 Para Lessa (2002, p. 71), [...] toda teleologizao do real signi ca abrir mo, em alguma medida, do radical carter social do mundo dos homens. Teleologiamente orientada, a histria humana no seria mais fruto exclusivo do agir dos homens em sociedade.

  • Aqui surge, numa clareza meridiana, o que identi ca a atividade humana frente aos processos tpicos da natureza. A in exo que d identidade condio humana frente ao ser natural a realizao contnua de posies teleolgicas. Portanto, a teleologia, prpria do ato de trabalho, o elemento nuclear que provoca a descontinuidade entre o mundo dos homens e o ser biolgico, pois,

    [...] em comparao com as formas anteriores do ser inorgnico e orgnico, surgiu com o trabalho uma categoria qualitativamente nova dentro da ontologia do ser social. Uma novidade tal a realizao da posio teleolgica como um produto adequado, pensado e desejado. Na natureza h s realidades e uma transformao ininterrupta de suas respectivas formas concretas, um contnuo ser-diferente [Anderssein] (LUKCS, 2004, p. 78).

    Isto , na atividade vital humana h algo de inusitado diante da natureza. Um processo transformativo orientado por uma conscincia por mais primitiva que seja. Assim surge algo novo, fruto da realizao da posio teleolgica, algo que no poderia ter surgido por processos naturais, mas um produto adequado pensado e desejado. O homem, ele mesmo um ser com razes naturais, para satisfazer suas carncias, entra num metabolismo consciente e necessrio com a natureza, e tendo ela como pressuposto produz o ser social14. O que traz uma diferena essencial em relao ao restante dos animais, pois, enquanto

    [...] a conscincia dos animais, principalmente dos mais evoludos, parece ser uma faticidade inegvel, porm um fator parcial de carter dbil e auxiliar se seu processo de reproduo, o qual biologicamente fundado e se desenvolve de acordo com as leis da biologia (Idem, p. 79).

    14 Para Lukcs (2004, p. 79) [...] a atividade do ser natural homem permite que surja, sobre a base do ser inorgnico e orgnico [...] um nvel de ser particularmente novo. Mais complexo e mais complicado, quer dizer, o ser social.

  • No mundo dos homens, ao contrrio, A realizao como categoria da nova forma do ser mostra [...] uma consequncia importante: a conscincia do homem cessa, com o trabalho, de ser um epifenmeno no sentido ontolgico. (LUKCS, 2004, p. 79). Isso porque:

    S no trabalho, na posio do m e de seus meios, consegue a conscincia, atravs de um ato conduzido por ela mesma, mediante a posio teleolgica, ir mais alm da mera adaptao ao ambiente na que incluem tambm aquelas atividades dos animais que transformam a natureza objetivamente, de maneira involuntria , e consumar na prpria natureza mudanas que para ela resultam impossveis e inclusive impensveis. Na medida, pois, em que a realizao se converte em um princpio transformador, inovador da natureza, a conscincia (que ocasionou o impulso e a orientao para isso) pode ser, no plano ontolgico, algo mais que um epifenmeno (Idem, p. 80-81).

    O trabalho, a categoria dinmico-complexa do ser social, tem como ncleo a posio teleolgica. no ato de trabalho que inicialmente se efetiva o carter no epifenomnico da conscincia, necessariamente ativo. J que todo processo de transformao orientada da realidade natural, para a satisfao de necessidades socialmente postas, essencialmente determinada pela posio do m15, pois a efetivao da posio de uma nalidade posta pela conscincia exige de imediato que o sujeito busque realiz-la objetivamente por meio de sua atividade sensvel. O que coloca a necessidade de encontrar na malha da causalidade natural os meios capazes de plasmar objetivamente sua nalidade. Dito de outra maneira, a busca de meios, condio imposta para objetivao, signi ca o impulso para a apreenso por mais elementar e inconsciente que seja de aspectos da legalidade natural, isto , de propriedades e caractersticas presentes no real que

    15 Para Lessa (2002, p. 86), [...] toda ao humana tem sua gnese e seu momento predominante na posio do m.

  • possibilitam a realizao da nalidade. Tal dialtica entre ns e meios, presente no interior da teleologia do ato de trabalho, algo que faz com que a atividade humana v alm da mera adaptao ao ambiente. Assim, a realizao de posies teleolgicas implica um princpio inovador e transformador da natureza, totalmente impulsionado pela conscincia, o que evidncia um salto em relao conscincia encontrada nos animais superiores, pois pela primeira vez:

    [...] um projeto intelectual se converte em realizao material; em que a postulao pensada de um m transforma a realidade material; introduz na realidade algo material que representa, frente natureza, algo qualitativa e radicalmente novo (LUKCS, 2004, p. 69).

    Ento, a teleologia tanto na posio dos ns quanto na dos meios surge como uma in exo frente causalidade natural. O que faz do trabalho, modelo de toda prxis, algo essencialmente consciente. Para satisfazer suas necessidades e carncias, o homem por meio da posio teleolgica, aproveita a prpria atividade espontnea da natureza fazendo com que ela se torne uma atividade posta, isto , a servio dos interesses humanos. O que no signi ca uma subverso das propriedades da natureza, seus fundamentos ontolgico-naturais, pois h um aspecto ontologicamente decisivo na funo da causalidade natural no processo de trabalho:

    [...] sem encontrar-se submetido a uma transformao intrnseca, surge, a partir dos objetos naturais, a partir das foras naturais, algo totalmente distinto; o homem que trabalho pode introduzir as propriedades da natureza, as leis do seu movimento, em combinaes perfeitamente novas conceder-lhes funes e formas de ao perfeitamente novas. Tendo em vista que isso, no entanto, s pode consumar-se dentro da ndole ontologicamente insupervel das leis naturais, a nica transformao das categorias naturais s pode consistir em que estas num sentido ontolgico sejam postas; seu ser-posto a mediao de sua subordinao sob a posio ontolgica determinante, atravs da qual, ao mesmo tempo,

  • a partir de um entrelaamento de causalidade e teleologia, surge um objeto, um processo, etc. unitariamente homogneo (Idem, p. 71).

    Portanto, o homem, a partir da objetividade natural, produz algo totalmente distinto da natureza: da madeira e da pedra surge, por exemplo, um machado. Subordinando posio teleolgica, os elementos e a legalidade naturais so reordenados para a produo de um objeto ou processo, que em ltima instncia, uma sntese de causalidade e teleologia. Surge dessa maneira uma causalidade posta como resultado da transformao da causalidade espontnea da natureza, a partir de uma objetivao, em outra causalidade, ou em outro mundo objetivo, que corresponde ao mundo dos homens, ou seja, tudo aquilo que foi produzido pela atividade humana e que no existia de forma espontnea na natureza. A causalidade posta continua a ser causalidade, no sentido de que ela contm os elementos naturais que continuam portadores das qualidades naturais e esto sujeitos s determinaes naturais, mesmo sob o imprio da realizao do m previsto16.

    A realizao do trabalho s ocorre quando a nalidade se objetiva, ou seja, quando a matria e as conexes naturais, pela atividade material do sujeito, so plasmadas em um objeto novo. H no trabalho a unidade de dois momentos que so ontologicamente distintos: a teleologia e a causalidade, ou noutros termos, subjetividade e objetividade. A realizao do trabalho constitui uma objetivao de uma prvia ideao do sujeito, que o efetua. O que no signi ca alguma forma de identidade entre sujeito e objeto, pois a objetivao a mediao necessria que entrelaa a teleologia com a produo de um novo ente objetivo, ontologicamente distinto da conscincia que

    16 O sentido da causalidade posta consiste [...] em que as cadeias causais, etc., so eleitas, postos em movimento, abandonados em seu prprio movimento, etc., a m de favorecer a realizao do m decidido em um comeo. (LUKCS, 2004, p. 121).

  • o concebeu como nalidade, e que apresenta uma histria prpria e diferenciada da histria de seu produtor. Portanto, as objetivaes que so produzidas pelo trabalho, tendo como pressuposto a natureza, enquanto objetividades, no se confundem com o sujeito, ambos tm existncia autnoma em relao um ao outro. Portanto, no trabalho emerge pela primeira vez a distino entre sujeito e objeto.

    A posio teleolgica impe ao sujeito que trabalha exigncias novas, jamais encontradas na esfera natural. Primeiro, o homem no processo de trabalho deve necessariamente realizar escolhas entre alternativas concretas17 que se colocam acima de qualquer reao instintiva A escolha das materiais naturais mais compatveis com a realizao um m posto pela conscincia de fato uma opo entre vrios tipos de elementos do qual se destacam aqueles que mais se aproximam, por suas caractersticas, ao objetivo desejado, o que do ponto de vista da conscincia, algo complexo e cheio de contradies18. A partir da, escolhidos os materiais mais adequados e colocados os procedimentos de consecuo da nalidade, a sequncia de atos que transforma a prvia ideao em um produto objetivo orientado por um novo conjunto de decises alternativas. Na verdade, a nalidade, a escolha dos meios e a efetivao da prvia ideao, vinculam-se atravs de inmeras decises alternativas. E isso, vai alm do processo de constituio do objeto, este devido prpria legalidade natural, necessita de manuteno, o que inicia outra corrente de decises

    17 Quando o homem primitivo escolhe, dentre uma massa de pedras, uma que lhe aparece apropriada para seus ns, e abandona as restantes, claro que aqui se apresenta uma escolha, uma alternativa (LUKCS, 2004, p. 89). 18 A pedra escolhida como instrumento eleita [...] atravs de um ato de conscincia que j no possui carter biolgico. preciso reconhecer determinadas propriedades da pedra atravs da observao e da experincia; quer dizer, atravs do re exo e sua elaborao de acordo com a conscincia -, que a tornam apropriada ou inapropriada para a nalidade planejada. O ato que, visto de fora, extremamente simples e unitrio a escolha de uma pedra -, de acordo com sua estrutura externa, sumamente complexo e est cheio de contradies (LUKCS, 2004, p. 89)

  • alternativas que, com o desenvolvimento do ser social, tornam-se mais complexas e diversi cadas. Isso evidencia a imanncia do carter social do trabalho, pois o indivduo defronta-se cada vez mais com causalidades postas, produzidas por outros indivduos. O que signi ca que as novas decises tomadas tm como foco no mais a utilidade imediata de uma objetivao a ser efetivada, implicando uma ampliao e complexidade maior do conjunto das decises alternativas. Para Lukcs (2004, p. 92), O desenvolvimento do trabalho contribui [...] para basear cada vez mais em decises alternativas o carter alternativo da prxis humana, do comportamento do homem frente ao ambiente e a ele mesmo.

    Essas escolhas, manifestadas no processo de trabalho, representam, tambm, a gnese ontolgica da liberdade: categoria essencial para o gnero humano, a qual no objeto de nossa pesquisa, e est sustentada em valoraes inicialmente como til-intil, bom-mau, vinculada ao resultado do ato de trabalho. O que con rma que, a partir do trabalho, no seu sentido estrito, ou seja, em sua forma originria, como rgo do metabolismo entre homem e natureza, que [...] possvel mostrar aquelas categorias que, de maneira ontologicamente necessria, se derivam dessa forma originria; categorias que [...] fazem do trabalho um modelo para a prxis humana em geral (LUKCS, 2004, p. 97). Inclusive naquelas formas mais evoludas de prxis social que o objeto sobre qual atua a posio teleolgica no algo puramente natural, seno a prpria conscincia de um grupo humano; quando a posio do m no tem por objetivo transformar uma realidade da natureza, mas provocar mudanas na atividade de outros homens.

    Trabalho e economia: a dialtica infraestrutura-superestrutura

    A compreenso do trabalho como fundamento da sociabilidade humana possibilita o enfrentamento de uma questo extremamente controversa na tradio marxista e objeto dos crticos do marxismo:

  • a relao entre infraestrutura e superestrutura. Essa questo gira em torno do estatuto do momento ideal, ou seja, da subjetividade no contexto geral da sociabilidade humana, e oscila na tradio marxista entre o voluntarismo como no grande salto para frente na China maosta ou no foquismo guevarista e o mais grotesco determinismo como na eliminao do sujeito pelo althusserianismo. Tal tenso levou, por exemplo, Anderson (1984, p. 39), numa obra clssica do debate contemporneo (A Crise da Crise do Marxismo) a a rmar a insolubilidade da questo nos termos postos pelo marxismo clssico:

    [...] a natureza das relaes entre estrutura e sujeito na histria e sociedade humanas [...] sempre constituiu um dos problemas mais centrais e fundamentais do materialismo como explicao do desenvolvimento da civilizao humana. Podemos ver isso imediatamente ao re etirmos sobre a permanente oscilao, a potencial disjuno nos prprios textos de Marx entre sua atribuio do papel de motor primrio da transformao histrica contradio entre as foras produtivas e as relaes de produo, de um lado pensemos na famosa Introduo de 1859 Contribuio Crtica da Economia Poltica , de outro luta de classes pense-se no Manifesto Comunista. A primeira refere-se essencialmente a uma realidade estrutural, ou mais propriamente interestrutural: a ordem daquilo que a sociologia contempornea chamaria de integrao sistmica (ou, para Marx, desintegrao latente). A segunda refere-se s foras subjetivas em con ito e confronto pelo domnio das formas sociais e processos histricos: o mbito daquilo que a sociologia contempornea chamaria de integrao social (que igualmente desintegrao ou reintegrao). Como se articulam na teoria do materialismo histrico estes dois diferentes tipos de causalidade, ou princpios explicativos? A isso, o marxismo clssico, mesmo no auge de suas foras, no forneceu nenhuma resposta coerente.

    No entanto, o ltimo Lukcs, que realizou uma verdadeira refundao da loso a marxista a partir do prprio Marx, encontra-se na contramo da perspectiva proposta por Anderson (1984). Isso

  • porque o Lukcs de Por uma Ontologia do Ser Social (1981), est convencido de que o cerne da re exo marxiana centra-se na concepo de que no ser social consubstancia-se uma articulao, s separvel pela abstrao, entre causalidade e teleologia, isto , as atividades humanas so condicionadas por determinaes postas e impostas aos indivduos singulares e, simultaneamente, a totalidade social tem por fundamento a sntese das aes teleologicamente orientadas dos indivduos. Assim, as categorias de determinismo e liberdade, objetividade e subjetividade, necessidade e contingncia, quando no so entendidas aprioristicamente como imanentemente antagnicas, revelam-se no movimento social como categorias re exivas constituintes da prpria racionalidade do ser social. Por isso, partindo da categoria trabalho, Lukcs (1981, p. 335) situa o lugar do momento ideal no complexo nuclear do ser social ao dizer que, [...] o fato mais fundamental, mais material da economia (o trabalho) tem o carter de uma posio teleolgica.

    Isso signi ca uma ruptura com toda uma tradio marxista o marxismo da Segunda Internacional e o stalinismo que negava qualquer elemento de subjetividade na economia, identi cada como a infraestrutura material da sociedade e contraposta superestrutura, esta sim, o locus privilegiado da conscincia. Dessa forma, a infraestrutura econmica foi reduzida para garantir seu suposto carter materialista a uma esfera cuja legalidade seria semelhante s leis da natureza19, enquanto a conscincia, derivada mecanicamente daquela, se manifestava sob a forma de superestrutura. O seguinte texto de Stlin (1985, p. 3) sobre a natureza da economia e de suas leis, evidencia isso:

    Aqui, da mesma forma que nas Cincias Naturais, as leis do desenvolvimento econmico so leis objetivas, que re etem os processos

    19 Pois, [...] a dinmica do ser natural determinada pela causalidade sem a teleologia (LUKCS, 2004, p. 345).

  • do desenvolvimento econmico, que se realizam independentemente da vontade dos homens. Os homens podem descobrir essas leis, conhec-las, e, baseando-se nelas, utiliz-las no interesse da sociedade, dar outro rumo ao destrutiva de algumas leis, limitar sua esfera de ao, dar livre curso a outras leis que abrem caminho para diante; mas no podem destru-las ou criar novas leis econmicas. Uma das peculiaridades da Economia Poltica consiste no fato de que suas leis, diferentemente das leis das Cincias Naturais, no so duradouras. Pelo menos a maioria delas atua no decorrer de um determinado perodo histrico, depois do qual cede lugar a novas leis. Mas essas leis no so destrudas, perdem sim sua validade, em conseqncia de novas condies econmicas, e saem de cena para dar lugar a novas leis que no se criam pela vontade dos homens mas surgem base de novas condies econmicas.

    Nessa perspectiva, a esfera econmica no um produto da atividade humana, sendo as mudanas das leis econmicas determinadas por novas condies econmicas de origem indeterminada. Porm, Lukcs (1981) partindo de Marx e, portanto, no se identi cando com nenhuma perspectiva idealista de tornar independentes os momentos de objetividade e subjetividade esclarece:

    [...] tem predominado um certo dualismo metdico, no qual o campo da economia foi apresentado como subordinado a uma legalidade, necessidade, etc., interpretada em termos mais ou menos mecanicistas, enquanto que aquele da superestrutura, da ideologia, resultava o nico setor no qual apareciam as foras motrizes ideais, muito frequentemente vistas em termos psicolgicos (p. 336).

    Da Lukcs (op. cit.) identi car trs vertentes bsicas que oscilam entre uma tica mecanicista e os germes de certa dialtica. A primeira liga-se a Kautsky, patriarca da Segunda Internacional, principalmente em sua fase tardia, e devido a no soluo no seu pensamento da tenso entre o darwinismo e a herana marxiana, acaba por reconduzir a esfera

  • social categoria de substncia biolgica20. A segunda posta por Max Adler, um dos tericos do austro-marxismo que tentou combinar o pensamento marxiano com o kantismo, que dissolve de maneira idealista cada momento material da realidade social, e tambm as relaes econmicas, em relaes espirituais, assim, [...] a totalidade da sociedade dos homens transforma-se em um produto kantianamente entendido da conscincia (LUKCS, 1981, p. 337). E por ltimo:

    [...] a economia poltica e a teoria da sociedade stalinista operam, em parte, com categorias idealstico-subjetivas, voluntaristas, nas quais a objetividade social apresenta-se de nitivamente como um resultado das resolues do partido; e em parte, quando a presso dos fatos obriga o reconhecimento de alguma maneira da validade objetiva da teoria do valor, opera-se com o dualismo da necessidade mecnico-materialista e a das decises voluntaristas (Idem, p. 337).

    Portanto, a viso de mundo gerada pelo stalinismo se sustentava em dois elementos excludentes: a concepo stalinista exposta anteriormente, e que indica que a histria, fundada nas leis econmicas, apenas o desdobramento automtico da legalidade infraestrutural, e o apelo constante ao dos indivduos ou para a derrubada do capitalismo ou para a construo do socialismo como cumpridores de um destino j pr-estabelecido, no produzido por atos humanos. O interessante que o extremado voluntarismo stalinista orientado pelas decises partidrias, tidas como expresses da objetividade social, e tendo como fundamento categorias idealstico-subjetivas, como a f na vitria do socialismo e a crena na infalibilidade do partido e de seus dirigentes , tem como pressuposto uma concepo no

    20 Este desconhecimento da constituio real da prxis econmica e social o leva a tomar acriticamente, dos manuais acadmicos, a mais super cial concepo da relao entre teleologia e causalidade, onde a primeira, considerada uma forma do pensamento dos estgios primitivos, com o progresso do conhecimento, acaba por fazer desaparecer a vantagem da causalidade. (LUKCS, 1981, p. 337).

  • explcita de um indivduo at certo ponto passivo diante da histria21, o que correspondia, em ltima instncia ao domnio poltico-social da burocracia sobre as massas trabalhadoras.

    Porm, o elemento comum s trs posies, com destaque para a stalinista devido sua in uncia no movimento operrio do sculo XX e em diversas vertentes da tradio marxista, que [...] todas estas teorias no souberam explicar nem a unidade dinmico- estrutural e a peculiaridade do ser social, nem as diferenas e contradies que se veri cam em tal esfera (LUKCS, 1981, p. 337). Noutras palavras, por seus limites tericos internos e por injunes histrico-polticas, elas no atentaram para o fato de que:

    A objetividade e a legalidade espec cas da realidade econmica tm como sua base indispensvel o fato de ser e Marx sublinha muitas vezes um processo histrico, que criado pelos prprios homens que esto interessados e constituem a sua histria, realizada por eles mesmos [...] a teoria marxiana do ser social, discutindo precisamente a problemtica do seu fundamento material, a economia, pe a luz interdependncia dialtica, referncia recproca, indissolubilidade ontolgica na economia entre as atividades humanas preparadas de forma ideal e a legalidade econmico-material desenvolvida a partir delas. Analisando a ontologia do trabalho, Marx demonstrou que insustentvel a tradicional contraposio entre teleologia e causalidade (Idem, p. 345).

    Nesses termos e na perspectiva inaugurada por Marx, a economia que essencial para compreenso da totalidade e dos grandes complexos parciais do ser social no reduzida a uma objetividade quase natural, seu elemento nuclear (o trabalho) tem o carter de uma posio

    21 Se o socialismo considerado uma decorrncia inevitvel do desdobramento objetivo das leis do desenvolvimento do capital, seria desnecessria a atividade dos revolucionrios para que a histria o atingisse. Ao negar o papel ativo dos indivduos na histria atividade esta plena de mediaes, entre elas a luta de classes , o stalinismo chegou a um passo de justi car a completa passividade do indivduo frente aos destinos da humanidade (LESSA, 1995, p. 44).

  • teleolgica que se realiza materialmente, ou seja, uma sntese de subjetividade e objetividade. Portanto:

    [...] as leis econmicas objetivas, independentemente da deciso individual, alis, independente tambm da somatria social, de nitivamente so na sua estrutura e dinmica reconduzveis a esses elementos, s caractersticas das posies, sua dialtica de ideal e real (LUKCS, 1981, p. 344).

    O que signi ca que a infraestrutura econmica no se constitui como a esfera absoluta da objetividade, nem os complexos componentes da superestrutura so os lugares prprios da pura subjetividade. Dito de outro modo, tanto infraestrutura como superestrutura, dependendo da especi cidade de cada esfera, tm como fundamento a atividade humana a qual possui como princpio e modelo o trabalho , e, portanto, se expressam como uma sntese entre momento ideal e transformao do real. Tal sntese prpria da especi cidade ontolgica do ser social e pode ser encontrada tanto em seu momento basilar, a transformao da natureza visando produo de valores de uso, como nas atividades sociais mais complexas arte, poltica, educao, cincia, moral, entre outras formas de prxis. Nessa perspectiva, a diferena entre o trabalho e outras formas de prxis sociais que

    [...] as posies prticas, frequentemente mediatizadas de maneira fortemente complexa, que a diviso do trabalho produz, trazem um carter teleolgico-causal, com uma nica diferena, importantssima, com relao ao trabalho a que as nalidades que so suscitadas e que ao se realizarem, no visam diretamente a um caso concreto da troca orgnica da sociedade com a natureza, mas, ao contrrio, tendem a in uir sobre outros homens, de modo que eles cumpram por si s os atos de trabalho desejados pela posio do sujeito [...] a cada momento, a posio teleolgica volte a direcionar a conscincia de um outro homem (ou mais homens) em uma determinada direo, querendo induzi-lo a cumprir a posio teleolgica desejada [...] seu material no absolutamente homogneo como no prprio

  • trabalho, no qual s existe a alternativa objetiva, se a conscincia captou a realidade objetiva corretamente ou no. Aqui, o material da posio do m o homem, que deve ser induzido a tomar uma deciso alternativa (LUKCS, 1981, p.