educação infantil

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Não ha’urn conteúdo “educativo”na creche descolado dos gestos de cuidar. Não há um “ensino”, seja um conhecimento ou um hábito, que use via diferente da atenção afetuosa, alegre, disponível e prornotora da progressiva autonomia da criança NÃO HÁ EDUCAÇÃO SEM CUIDADO Vital Didonet A educação recebeu um impulso muito grande com o estabelecimento, pe Constituição Brasileira, pelo direito à educação a partir do nascimento. Gostaríamos de falar de educação a partir da concepção, pois a vida intrauterina já é uma fase importante da formação do ser humano, especialmente do seu psiquismo. Porém o sistema educacional brasileiro ainda não incorporou esse período nas suas preocupações, nem mesmo sob a forma de orientação à familia de educação dos jovens futuros pais ou de apoio à educação familiar. Sobre o direito à educação a partir do nascimento, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação nacional construiu nova concepção de educação infantil, precisando sua finalidade: “ O desenvolvimento integral da criança até os seis anos de idade, em seus aspectos físicos, psicológico, intelectual, social, em complementação à ação

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Não ha’urn conteúdo “educativo”na creche descolado dos gestos de cuidar. Não há um “ensino”, seja um conhecimento ou um hábito, que use via diferente da atenção afetuosa, alegre, disponível e prornotora da progressiva autonomia da criança

NÃO HÁ EDUCAÇÃO SEM CUIDADOVital Didonet

A educação recebeu um impulso muito grande com o estabelecimento, pe Constituição Brasileira, pelo direito à educação a partir do nascimento. Gostaríamos de falar de educação a partir da concepção, pois a vida intrauterina já é uma fase importante da formação do ser humano, especialmente do seu psiquismo. Porém o sistema educacional brasileiro ainda não incorporou esse período nas suas preocupações, nem mesmo sob a forma de orientação à familia de educação dos jovens futuros pais ou de apoio à educação familiar.

Sobre o direito à educação a partir do nascimento, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação nacional construiu nova concepção de educação infantil, precisando sua finalidade: “ O desenvolvimento integral da criança até os seis anos de idade, em seus aspectos físicos, psicológico, intelectual, social, em complementação à ação da família e da comunidade. Daí se pode deduzir o conteudo e a forma da educação nessa primeira fase da vida.

Definida como a primeira etapa da educação básica” a educação infantil passou a ser parte intrinseca do processo

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educacional e, consequentemente, do sistema de ensino, sendo daqui para frente inconcebível o descaso ou a insuficiente atenção à primeira estapa daquela que deve ser a base da educação do indivíduo. Não se quer dizer com isso que a educação pre escolar tenha começado naquela epóca. No Brasil, ela tem mais de 100m anos. Seu maior crescimento ocorreu na decada de 80, mantendo-se o ritmo de expansão em toda a decada de 90. A novidade, com a Constituição de 1988 e a LDB, está na sua maturidade, como parte intriseca da educação básica e, portanto, essencial para toda pessoa. Isso não significa que deva ser realizada necessariamente em instituições governamentais. A educação recebida na família pode ser, ao menos,nos dois primeiros anos, suficiente e adequada para dar conta das necessidades da criança.

Sem essa primeira etapa, o processo educacional seria como um prédio sem fundações, uma ponte sobre colunas que partem do ar. O conceito de “ensino fundamental” teria de rever sua terminologia, deslocando para a educação infantil o conceito de fundamentos que, até o seculo passado, seria possível atribuir à educação que se iniciava aos 7 anos.

No entanto, a LDB manteve as instituições históricas, creche e pré escola, embora já com duas modificações: introduziu o termo “instituições equivalentes” e omitiu a expressão “jardim de infância”. As expressões “creche” e “pré escola” constam na Constituição Federal (ao. 7”, XXV, e art. 208, VL). A distinção entre elas baseia-se exclusivamente na idade das crianças que as freqüentam. Assim, segundo a LDB, essas duas instituições não se distinguem quanto à finalidade ou aos objetivos e, por conseguinte, também não quanto ao conteúdo dos serviços prestados às crianças. já a Emenda Constitucional n’ 14, de setembro de 1996, adotou em seu art 211 a expressão “educação infantil” na tentativa de superar a dicotomia entre creche e pré-escola.

O Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei nº 10.1 72, de 9 de janeiro de 2001 tem um capítulo específico para a educação infantil e propõe metas para a faixa de O a 6 anos, sem separá-las por idade ou por tipo de instituição, a não ser quando se referem às metas de atendimento por faixa etária e à inclusão da creche no sistema de estatísticas educacionais, A idéia explicitada é de que a educação infantil, do nascimento da criança ao seu ingresso no ensino fundamental, seja organizada segundo o processo contínuo e global de desenvolvimento e aprendizagem da criança, e não de acordo com modelos históricos reducionistas ou viciados por demanda parcializadas por condições econômicas e sociais excludentes.

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Esse avanço legal já tem quase 7 anos (a EC n’ 14 é de setembro de 1996 e a L DB foi sancionada em dezembro de 1996), mas a política educacional deu apenas alguns passos nesse longo caminho que vai da realidade ao desejo dos educadores e das famílias: o atendimento integral das crianças de O a 6 anos. Para a faixa de 4 a 6 anos, tem havido grandes progressos, tanto nas matrrícu las quanto em outros setores, como qualificação dos professores, elaboração de propostac pedagógicas, diversificação de métodos e formas de trabalho com as crianças. É possível que as metas do Plano Nacional de Educação relativas à porcentagem de matrícuias nessa faixa etária sejam alcançadas antes dos prazos nele fixados. O Plano Nacional de Educação estabelece a meta de atendimento de 60% das crianças de 4 a 6 anos (ou 4 e 5, caso os sistemas de ensino incluam as crianças de 6 anos no ensino fundamental) nos 5 primeiros anos e 80% até o final da década do Plano. Para a faixa etária de o a 3 anos, as metas são de 30 e 50%, respectivamente.

Entretanto, para as crianças de 0 a 3 anos, os progressos não tem sido tão significativos, apesar de este ser o período em que os pais trabalhadores mais necessitem de instiruições que se encarreguem do cuidado e da educação de seus filhos pequenos e de ser o período mais crítico no desenvolvimento, segundo as recentes pesquisas da neurociência, O que se quer é um atendimento completo para todas as crianças conforme suas necessidades, desde os primeiros meses até seu ingresso no ensino fundamental. Esse atendimento inclui o cuidar e o educar.

A LDB, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e o PIano Nacional de Educação (que também tem força legal, originário da Lei n” 10.172, que o aprovou) repisam a necessária junção e complementação do cuidar e do educar no atendimento das crianças de O a 6 anos. Mas por que essa insistência? Porque existe uma dicotom ia profunda entre esses dois componentes na alenção que se dá à criança no Brasil. Dito de forma bem simples, “a creche cuida; a pré-escola educa”. Contudo, o fenômeno é mais complexo, Não se trata apenas de duas instituições com cárater distinto e formas de atuar diferentes cuja origem e cujos condicionamentos históricos (socioeconômicos) determinaram.

Trata-se também de uma concepção errônea do que significam o desenvolvimento e a aprendizagem da criança. Essa concepção vem de longe, de um passado em que se pensava que a criança pequena era uma tábula rasa na qual a família e a sociedade inscreviam os conhecimentos, os hábitos, os comportamentos. Ou da idéia inatista de que tudo

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estava adormecido como germe ou potencialidade que aguardava o amadurecimento físico para vir à tona; bastava esperar que isso acontecesse. Nessa perpectiva, era suficiente cuidar da criança para que sobrevivesse às intempéries físicas, psicológicas e sociais, O adulto desenvolvido seria uma conseqüência natural de tal processo.

Por mais que as ciências do desenvolvimento humano, sobretudo a psicologia genética, tenham demonstrado que a criança torna—se inteligente, forma a personalidade, constrói o conhecimento, aprende pela atividade que realiza com iniciativa na interação com os outros — e isso desde os primeiros momentos de vida —, muita gente ainda desconhece tal realidade, ou age como se a ignorasse.

Essa regra, no entanto, não se aplica a todas as instituições. Muitas creches sempre tiveram, ou momeçaram a ter ha algum tempo, um programa de atendimento completo incluindo objetivos educacionais, integrados ou não aos cuidados de saúde, alimentaçao, proteção e apoio ao desenvolvimento físico das crianças. Da mesma forma, muitos jardins-de-infância ou pré-escola, desde a sua criação, desenvolvem as ações de cuidado, também inseridas ou não no conteúdo tipicamente de apredizagem e desenvolvimento cognitivo e social.

A opção da LDB para superar a dicotimia entre creche e pré-escola , cuidado e educação, assistência e desenvolvimento/aprendizagem inclui duas decisões; 1. Encarregar a creche da faixa etaria dos O a 3 anos e a pré-escoa da faixa etária de 4 a 6, atribuindo a ambas o mesmo objetivo de desenvolvimento integral de todas as áreas da personalidade humana nesses períodos. Evidentemente, há diferenças no que tange aos cuidados de uma criança de 3 meses de outra de 4 anos, assim como a educação de um bebê tem conteúdos e formas de relacionamento adulto-criança daqueles entre um adulto e uma criança de 3 ou 5 anos, O que essa dupla finalidade — cuidar e educar — quer exprimir é que tanto na creche quanto na pré-escola a criança tem necessidade e direito de ser cuidada e educada. 2. Inserir a creche no sistema de ensino. Com isso, a LDB explicitou que a creche é uma instituição educacional e que o cuidado da criança é parte de sua educação. Em outras palavras, não pode haver educação de crianças pequenas sem o cuidado de seu corpo, sua alimentação, sua saude, sua higiene, seu crescimento e seu desenvolvimento motor e físico.

Na prática, essa opção tem alguns desdobramentos

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• tanto a creche quanto a pré-escola podem ser de tempo integral ou de tempo parcial;

. a proposta pedagógica pode ser única para a faixa de O a 6 anos;

. o sistema de ensino deve estabelecer diretrizes relativas ao cuidar e ao educar a serem realizadas nas instituições que estão sob sua responsabilidacle.

Poderiam ainda ser adotadas outras formas de oferecer o atendimento integral às crianças, por exemplo; • a creche passaria para a administração do setor Educação, enquanto a Assistência Social continuaria responsável pelo componente cuidado. Um plano conjunto, uma administração compartilhada, uma co—gestão se encarregaria da política para a infância no município. • a creche continuaria sob a responsabilidade administrativa e financeira da Assistência Social e a pré-escola, da Educação. Ambas as instituições deveriam oferecer os componentes de cuidado e educação para todas as crianças, independentemente do motivo pelo qual os pais as tivessem colocado em uma ou outra instituição; • a creche permaneceria no âmbito da Assistência Social e a pré-escola, da Educação, mas o sistema de ensino se encarregaria de subsidiar e orientar a eduação na creche (treinamento de professores, apoio na elaboração e na aplicação da proposta pedagógica, participação na definição da programação das atividades, na avaliação, etc .). Por sua vez, a Assistêncta Social daria apoio ao sistema de ensino no componente cuidado (alimentação, assistência e orientação às famílias, etc.) e o setor Saúde de se encrregaria do acompanhamento das crianças em todos os aspectos relativos à saúde, Cada setor preveria em seu orçamento os recursos para as atividades que lhes competiria desenvolver. O ideal, nesse caso, seria chamar todas as instituições de atendimento a criança de centros infantis, com administração partilhada entre duas ou três secretarias de governo.

Um dos motivos pelos quais na Europa a área da Assistência Social (Bem-Estar) é a encarregada do atendiniento das crianças menores — e, no caso da Noruega, é mais evidente ainda, com o Ministério da Família e da Criança — é o trabalho que esse atendimento envolve de relação com a família, de apoio familiar à educação e de cuidado das crianças, com o que o setor educação tem menos tradição, familiaridade ou disposição de fazer.

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Em francês e português, o termo “educação”, pelo menos no período pré-escolar contém indissociaveiniente as ações com objetivo de educar e cuidar. Já no ingles, o termo “educaçao” é restrito e, por isso, os países de língua inglesa agregam o termo cuidar ao educar: Early Childhood Education and Care (ECEC) ou Early Childhood Care and Educador (ECCE). A Africa do Sul cunhou a expressão educare (que começa a ser adotada por alguns países europeus e que engloba a idéia de educação mais cuidado), que mostra a união intrínseca dos dois aspectos da mesma realidade para a criança que cresce, aprende e desenvolve-se. A língua portuguesa não nos oferece possibilidade semelhante por isso continuamos com os dois termos.

Para alcançar o que a legisIaço determina e o que se entende por atendimento integral e i ntegrado, temos que fazer grandes progressos nos aspectos administrativos e na prática pedagógica.

Em relação às questões administrativas,, é preciso vencer resistências do setor da Assistência Social em “entregar’’ as creches para a educação. Vários fatores entram em cena, mas um dos mais poderosos é a sensaço de vazio que a perda da creche significaria para a área da Assistência Social. É algo como a síndrome pós-parto, em que a criança que foi acalentada durante meses no seio materno sai para o seu próprio mundo, deixando a mãe esvaziada física e psicologicamente.

Em relação as questões educacionais, está havendo um progressivo entendimento por parte dos profissionais da creche de que qualquer atividade para a criança e com a criança tem um sentido educativo: o olhar estabelece uma troca de sentimentos de confiança (ou desconfiança), manifesta carinho e compreensão (ou indiferença e raiva), desperta entusiasmo e alegria (ou inibe e amedronta); o toque da mão de um adulto pode transmitir segurança ou não, entrega ou retraimento; a forma de dar de mamar na mamadeira comunica as emoções do adulto e desperta emoções na criança: ‘Ela bebe a angústia com o leite” (Dolto, 1 999); o ato de dar banho, trocar a fralda, vestir e pentear o cabelo são gestos de comunicação humana entre o adulto e o bebê nos quais há uma troca profunda de sentimentos e, portanto, de organização mental, de estruturação interior, de formação da auto-imagem, do desenvolvimento do “eu” da criança: o modo como se encara as manifestações de birra, de desagrado, de curiosidade das crianças, como se busca a superação de comportamentos de “agressão’’ e como se promove a interação social determina o tipo de educação que

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se está dando a elas: a fala do adulto inicia a criança na linguagem, pois vai dizendo o que ela faz, o que as outras estão fazendo, o que sentem e, assim, vai mediando os atos por meio da linguagem.

Não há um conteúdo “educativo” na creche desvinculado dos gestos de cuidar. No há um “ensino”, seja um conhecimento ou um hábito, que utilize uma via diferente da atenção afetuosa, alegre, disponível e promotora da progressiva autonomia da criança. Os conteúdos educativos da proposta pedagógica, por sua vez, não são objetos abstratos de conhecimento, desvinculados de situações de vida, nem são elaborados, pela criança pela via da transmissão oral, do ensino formal. Em vez disso, são interiorizados como construção da criança em um processo interativo com os outros em que entram em jogo a iniciativa, a ação e a reação, a pergunta e a dúvida , a busca de entendimento. Conforme Vygotslsy, ao referir-se a ação, primeiro esta é interindividual e depois intra-individual. Antes existe a relação, depois o “eu”; primeiro, o gesto de acolhimento e carinho, depois o sentimento de segurança e confiança; antes, a palavra, depois o pensamento:. primeiro, a mediação e, em seguida, o novo patamar de entendimento e açao.

Referência Bibliográfica DOLTO, F. As etapas decisivas da infância. Saão Paulo. Martins Fontes. 1999

PÁTIO EDUCAÇÃO INFANTIL

ANO I Nº 1. ABRIL/JUNHO 2003 pag. 6 a 9

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A NECESSÁRIA ASSOCIAÇÃO ENTRE EDUCAR E CUIDARMaria Clotilde Rosseti-Ferreira

A injusta estrutura social brasileira espelha-se sobremaneira nas instituições educacionais, onde as atividades de cuidado são empurradas para os de menor salário e status, dado que a elas é atribuído um menor valor que àquelas denominadas educativas.

Admiràvel capacidade humana essa de aprender com os outros da mesma espécie e de se adiantar aos mais variados ambienles e situações. Estranho pensar que ela se funda em nossa extrema imaturidade motara ao nascer, que nos faz depender de outros por longos anos. Em contraposição, nossa rica expressividade ao nascer favorece nossa comunicação com os outros. Aqueles que nos cuidam medeiam nossas relações com o mundo. Nas condições materiais e sociais em que vivem e de acordo com sua cultura, seus costumes e suas crenças, organizam o ambiente em que vivemos, possibilitando-nos agir nele e sobre ele. Possibilitam, assim, que as coisas desse mundo façam sentido para nós e ao mesmo tempo, apresentam -nos aos outros, atribuindo-nos, ao interagir conosco, certas posições e sentidos. Essa realidade humana está bem expressa no ditado xhosa, língua materna de Nelson Mandola: pessoas são pessoas através de outras pessoas

Tal ditado contrapõe-se fortemente à dissociação entre cuidar e educar, tão freqüente em nossas escolas, pré-escolas e creches. Esquecemos que, ao cuidar ou descuidar do outro, estamos colocando-o em certa posição, dando-lhe certos sentidos, os quais contribuem para constitui-lo como pessoa. Certas experiências vivenciadas por mim em tantas creches e pré-escolas podem ajudar a evidenciar isso. As situações de

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higiene são as mais típicas. Recordo-me da rotina de banho de uma creche que lembrava as linhas de montagem das fábricas, ironizadas por Charles Chaplin no filme Tempos Modernos.

Duas educadoras compunham a situação, com um grupo de 15 crianças de 2 a 3 anos. O ritmo de umas e de outras era bem diferenciado. Enquanto as educadoras, automática e rapidamente, desempenhavam as tarefas de despir, lavar, secar e vestir uma criança após a outra, as crianças eram submetidas a um contínuo e longo tempo de espera. De inicio permaneciam em penicos encostadas à parede. Quando chegava sua vez, eram pegas, esfregadas, enxaguadas e deixadas, ainda pingando, no estrado para esperar a vez de serem vestidas e penteadas pela outra educadora. Terminada essa rotina, as crianças ficavam à espera da rotina seguinte, sendo repreendidas se não ficassem quietas e silenciosas. Pouca ou nenhuma oportundade era propiciada a elas de ter alguma autonomia ra situação, desfrutar o prazer da água no corpo interagindo e brincando umas com as outras. A organização dessa situação de cuidado estava claramente educando as crianças a serem submissas e passivas, sem iniciativa e autonomia.

Essa mesma rotina do banho pode ser trabalhada de forma completamente diversa. O ambiente e a rotina podem ser organizados de maneira a oportunizar às crianças o desenvolvimento autônomo de uma série de habilidades como despir, lavar, enxugar, vestir e calçar a si próprias e às outras. Podem ter ocasião de experimentar a textura e outras qualidades da água, do sabão e das esponjas. Podem ajudaros outros ou cuidar deles, ou serem cuidadas por eles... Com isso, estaremos exercendo um cuidado/uma educação que as coloca em urna posiço mais ativa, de alguém competente para interagir, aprender e exercer uma série de funções.

A injusta estrutura social basileira espelha-se sobremaneira nas instituições educacionais, onde as atividades de cuidado são empurradas para os de menor salário e status, dado que a elas é atribuído um menor valor que aquelas denominadas educativas. Nas creches, rola-se uma freqüente discriminação entre “as professoras”, entendidas como responsáveis pela parte mais nobre da educação e “as auxiliares, atendentes, serventes ou pajens”, responsáveis pela parte menos nobre. de cuidado das crianças e do ambiente. Supostamente, as primeiras formam a mente da criança, responsabilizando-se pelas atividades ditas de aprendizagem cognitiva, já as outras cuidam da alimentação, da higiene, da limpeza, do descanso e da recreação, atividades que, teoricamente, requerem menor

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qualificação. Como a dscriminação é grande, quem educa não se propõe a cuidar e quem cuida não se considera apto para educar, como se essa cisão fosse possivel.

Em um estudo sobre inclusão/exclusão de crianças com paralisia cerebral na pré-escola (Yazzle, Amorini e Rossetti—Ferreira, em produção), pudemos observar os efeitos perversos dessa dissociação - A pessoa portadora de necessidades especiais usualmente requer maior cuidado, seja no sentido de apoio ambiental (rampas, cadeiras adequadas), seja no sentido de um auxílio mais direto e efetivo em atividades nas quais não tem autonomia, como ir ao banheiro, por exemplo. As professoras da pré- escola mostraram-se despreparadas e atônitas nessa situaço. Para elas, esse tipo de função não lhes cabia, e sim às serventes, que não estavam disponíveis em vários momentos.

Nossa investigaço pôs em evidência o fato de que todas as crianças precisam, em momentos diversos, de algum cuidado especial, adequado a suas necesssidades individuais. As professoras, porém, não estavam preparadas para isso. pois consideram que sua função é apenas ensinar saberes especificados no curriculo escolar. E, quando obrigadas a exercer atividades de cuidado, geralmente o fazem a despeito das crianças. No entanto, o processo de cuidado e de ensino- aprendizagem é muito mais efetivo e prazeroso quando há uma real sintonia entre quem cuida e quem é cuidado, entre quem ensina e quem aprende, em que o professor educador é capaz de perceber o momento da criança, de proporcionar condições que a acolham e motivem envolvendo-a e compatilhando com ela atividades variadas, as quais podem ter partido da iniciativa da criança ou do adulto. Ao colocá-la em uma posição mais ativa de parceria e co-autoria do que ocorre e de seu próprio processo de cuidado e aprendizagem, ele estará dando oportunidades para as crianças construírem uma identidade positiva a respeito de si mesmas, de pessoa capaz de se cuidar e ser cuidada, de interagir com outros e dominar diferentes habilidades e conteúdos.

A identidade da criança também está sendo formada durante atividades de vida diária,como a alimentação, por exemplo. Muito da cultura e dos saberes de um povo é transmitido nessa prática social. Que o digam italianos, árabes, franceses e brasileiros de norte a sul! O preparo da comida e o momento da refeição constituem

ocasiões extremamenle ricas para a aprendizagem e desenvolvimento de hábitos e costumes individuais e culturais, No entanto, essa situação tem sido tratada como

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uma rotina cansativa, da qual os adultos desejam desvencilhar-se o mais rapidamente possível.

As atividades de cuidado/educação de crianças cujos direitos são reconhecidos e respeitados pela instituição e por seus educadores devem envolver o cultivo da identidade familiar, do gênero e da raça. Nesse sentido, podem ser programadas situações para as crianças explorarem sua história individual e familiar, descobrirem e serem acolhidas em sua individualidade, aprendendo a reconhecer e respeitar as diferenças próprias e alheias. Propiciar oportunidades para as crianças aprenderem a gostar de si próprias, desenvolvendo um autoconceito positivo e aprendendo a reconhecer e respeitar as características pessoais de cada um, constitui uma tarefa educativa das mais importantes.

A indissociabilidade entre cuidado e educação precisa permear todo o projeto pedagógico de uma creche, pré-escola ou escola. Trata-se, de certa forma, de uma filosofia de atuação que prevalece — ou não - em todo o planejamento. As famílias não procuram a instituição apenas para que proporcione a seus filhos os aprendizados definidos no currículo escolar. Elas buscam compartilhar com os professores educadores o cuidado e a educação de seus filhos. Esperam que estes sejam acolhidos em sua individua lidade, que comporta necessidades variadas.

Para finalizar, gostaria de propor uma reflexão interessante. Na época em que vivemos, em que a maior ou menor oportunidade de acesso ao conhecimento define muitas vezes o futuro de uma pessoa, as atividades de cuidado assumem cada vez mais uma posição de destaque. As máquinas e os robôs puderam substituir o ser humano em várias tarefas, mas não nas de cuidado! O setor no qual mais crescem as oportunidaoes de emprego é o de serviços. E a competência neles exigida envolve também delicadeza e cuidado no trato. Outros setores que apresentam acentuado crescimento dizem respeito diretamente ao cuidado das pesoas e do ambiente ecológico. Cabe, então a pergunta: será que estaremos preparando um futuro melhor para nossas crianças se deixarmos o cuidado de fora das tarefas educativas em nossasc reches e pré-escolas?

Referência 8ibliográfica YAZLLE, C.H. , MORIM, K.S.; ROSSETTI-FERREIRA, MC. A Redsig como recurso metodológico na investigação do processo de inclusão de crianças portadoras de paralisia cerebral na pré-escola

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ROSSETTI-FERREIRA, MC. et al, (Orgs.). Rede de significações: uma perspctiva teórico-metologica. Porto Alegre: Artmed, em produção.

Maria Clotilde Rossetti-Ferreira é professora titular da Falculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) - U5P

Pátio Educaç5o Infantil Ano I Nº 1 Abril/julho 2003

CUIDAR E EDUCAR NO BERÇÁRIO - A superação de um paradoxo na educação infantil

Ana Isabel Lima Ramos Alberto da Mótta Porto Alegre

O título deste artigo refere-se a uma discussão que se faz necessária: cuidar e educar são procedimentos que o educador infantil pode realizar simultânea e prazerosamente, desde que possua conhecimentos e desenvolva ações integradas suficientes para sustentar sua prática. Nossa intenço, apesar de ser bastante pretensiosa, baseia-se no que Paulo Freire coloca quando afirma que o educador humiIde percebe que educa e deixa— se educar pelo educando e sua realidade. Nossas convicções vêm daquilo que nos permitimos aprender com nossos pequenos alunos, que têm em torno de 14 meses de viea, porém já são bastante competentes para mostrar até onde pode ir a abrangência de uma prática educativa.

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Quando começamos a trabalhar com bebês, já acreditávamos que tudo o que fazfamos com eles era importante; O cuidar e o educar estavam unidos pelas ações das crianças e dos educadores. Quando trocavam as fraldas, tocavam—se, choravam, cantavam, brincavam coro os pés. Quando se alimentavam, tocavam nos alimentos, juntavam pequenos grãos de arroz com os dedinhos em forma de pinça e observavam o movimento dos líquidos na mamadeira. Ao dormir. emitiam sons ou se aninhavam nos seus “cheirinhos” .

Saber que essas ações contêm em si mesmas aspectos do cuidado e da educação é tarefa fundamental dos formadores em educação, dos educadores, dos coordenadores pedagógicos, dos diretores. As escolas de formação de educadores infantis precisam começar a trabalhar com as questões pontuais dessa idéia: o cuidar e o educar são elementos de uma mesma vertente —- com a qual compactuamos - de que o trabalho com os bebês precisa ser encarado como ação efetiva de intervenção pedagógica impregnada de conhecimentos básicos que permitam ao educador estabelecer junto às crianças práticas educativas que colaborem com seu pleno desenvolvimento.

As práticas que serão relatadas neste texto abrangem o trabalho que realizamos em uma escola pública municipaI na periferia de Porto Alegre, a qual atende crianças de 0 a 6 anos em regime de turno integral. O trabalho desenvolvido junto às crianças acontece no tempo e no espaço. Desse modo, a sala de aula de um berçário precisa estar organizadas de acordo com as ações a serem reaIizadas: os deslocamentos, o brincar ,a higienização, o sono, a alimentação. Em nosso ponto de vista, a alimentação deve ser realizada de preferência exclusivamente em ambiente distinto das demais atividades por razões de higiene e aprendzagem.

AIimenlação Os momentos de alimentação são realizados no refeitório, onde os bebês são colocados em cadeirões até 9 ou 10 meses e, após, em cadeirinhas com encosto para que se sentem nas mesinhas apropriadas e vejam os alimentos que vão ingerir. Cada criança vai sendo alimentada por um adulto.

Um mesmo adulto poderá alimentar até quatro crianças ao mesmo tempo, pois umas vão mastigando enquanto outra

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recebe alimento. Gealmente em torno de 1 ano, as crianças iniciam o processo de aprendizagem de segurar a colher e tentar colocar o alimento, levando-a até próximo da boca. Esses movimentos são acompanhados de perto pelas educadoras, que deverão auxiliar as criança a ter sucesso nessas tentativas.

As frutas e os legumes são oferecidos na mão ou com colher. As mamadeiras são dadas no colo até 6 meses. Depois, as crianças começam a ser ensinadas a segurar sozinhas a mamadeira, aos poucos e progressivamente, conforme sua evolução. Assim, elas podem ser ensinadas desde cedo que para comer existem posturas, utensílios e açõer particulares que são diferentes do brincar. Por isso, quanto mais diferenciado o ambiente, mais oportunidades de aprendizagem. O sono deve ser oportunizado em ambiente adequado e, de preferência, as crianças não devem ser colocadas em berços individuais, como tradicionalmenle se faz. Nossas crianças dormem em pequenos colchões com lençóis que ficam no chão, próximos uns dos outros, o que permite que adormeçam perto tanto dos adultos como dos demais colegas. O sono ocorre sempre que a criança apresenta sonolência ou necessidade expressa pelo choro. Após o almoço ou as atividades de deslocamentos e movimentação corporal também é oferecida a oportunidade de descanso. Para adormecer, procuramos colocar a criança na posição mais adequada, que conhecernos a partir da observação no dia-a-dia e das informações das entrevistas realizadas no inicio do ano.

Higiene

A higiene das crianças é um aspecto muito importante. Elas precisam estar satisfeitas em suas necessidades, por isso as trocas de fraldas não podem ser feitas em determinado momento, apenas com hora marcaoa, de maneira rígida. O que se deve fazer é um controle efetivo, que se realiza pela troca de cada criança após sua chegada, em torno de uma hora após ter ingressado na sala, para que nos certifiquemos de que está seca ou necessita ser trocada. Depois, ao longo do dia, a criança será tocada sempre e tantas vezes quanto necessario. Para facilitar esse controle nossa equipe construiu uma tabela na qual se registra o número de vezes que a criança foi trocada no dia e o tipo de troca (cocó, xixi . diarréia, sequinha). Com isso, garante-se que cada criança seja atendida de acordo com o seu ritmo de funcionamento. Ao trocá-las, as educadoras conversam com elas, explicam o que vão fazer e por quê. Apesar de parecer mais trabalhoso, tal procedimento produz um resultado bastante satisfatório, pois se as riança estão bem atendidas em sua necessidades

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fisiolágicas tornam—se mais calmas e alegres, dispostas a interagir nas demais atividades do dia.

Brincar

O brincar é um aspecto do desenvolvimento que é básico para as crianças de O a 3 anos, motivo pelo qual merece uma atenção especial. Quando e como os bebês devem brincar? Ao chegar à sala de aula, após ter casacos, chupeta e sacola organizados nos devidos lugares o bebê já inicia alguma atividade nos diversos espaços da sala que estão organizados a partir de diferentes critérios: brinquedos de deslocamento (carrinhos, bolas, pneus pequenos, bobinas de papel, carretel), brinquedos afetivos (bonecos de pelúcia, pano e borracha, almofadas, colchonetes), livros, brinquedos de encaixe, (cubos, copos, bonecos, quebra-cabeças), materiais plásticos e gráficos (tintas, canetas, lápis grossos e massas), instrumentos musicais (convencionais e de sucata, brinquedo de pátio, balanços, mesinhas e cadeirinhas, panelinhas e utensílios de cozinha, casinha de papelão.

No inicio do ano, oportunizamos aos bebês um ou dois materiais de cada vez. Ao longo do ano, os bebês vão descobrindo os duferentes materiais eue estão organizados em caixas, prateleiras ou nichos e, então, eles mesmos começam a solicitá-los, mesmo que ainda não falem. Fazem isso aproximando-se do local em que estão os brinquedos e fazendo gestos e sons que comunicam seus desejos. As educadoras procuram oferecer a cada um aquilo pelo qual se interessa; com isso, o clima de trabalho torna-se tranqüilo e quase não se ouvem choros, porque os bebês estão envolvidos em atividades interessantes para eles.

Um espaço organizado permite que as crianças descentrem—se da figura do adulto. Por exemplo, enquanto a educadora manuseia massinha de modelar com alguns, outros observam pedrinhas em um móbile e outros ainda deslocam bolas de borracha com bastões de madeira. Esse movimento é constante e só é interrompido para os momentos de alimentaç3o e higiene. Nesse caso, as educadoras solicitam que o bebês participem de alguma forma da organização da sala e dos brinquedos: cantando, alcançando objetos, observando ou entregando os brinquedos após serem solicitados, Desse modo, o ambiente é organizado para marcar a diferença entre uma atividade e outra, oferecendo maior segurança as crianças.

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Deslocamento.

Os deslocamentos das crianças também são de suma importância, os bebês precisam deslocar-se dentro e fora da sala, pois essa atividade é necessária do ponto de vista das aquisições motoras que estão em pleno desenvolvimento nessa faixa etária. Por isso, são elaborados cronogramas de uso dos espaços da escola a fim de que as crianças passem durante o dia por diversos locais, não permanecendo sempre dentro da sala de aula, e desloquem-se caminhando, engatinhando, sendo carregadas no colo, nos carrinhos ou sendo apoiadas pelos educadores para que fiquem um pouco de pé. Os espaços utilizados são os três tipos de pátio ;com areia e balanços, com escadarias, com grama), a brinquedoteca (espaço que fica no soIo da escola e que tem três lances de escadas (que são utilizados pelas crianças para exercícios de subir de pé ou engatinhando), a biblioteca, o playground (com brinquedos de casinha e escorregador de plástico duro), o refeitório, o corredor e a sala de aula. Em cada um desses espaços, as educadoras permitem sempre a exploração inicial livre e depois propõem atividades com diferentes materiais.

Cuidar, portanto, inclui educar a criança por meio de atividades parceiras da proteção e da integridade física. Todas as atividades que realizamos com as crianças são registradas em tabelas semanais a fim de que as educadoras possam visualizar o trabalho, podendo resgatá-lo nas reuniões de equipe e nos momentos de avaliação das crianças. Temos consciência de que o cuidar e o educar são indissociáveis e de que essa díade só atingirá plenitude na mente das pessoas quando culturaImente for assimilado que a c riança não e um ser que deva ser preparado para ser adulto, mas um ser que deve e pode vivenciar a sua infância com as suas peculiaridades de criança, e não conforme a “modelagem” do adulto.

Como sociedade organizada, engatinhamos na forma de educar nossas crianças. As mudanças são lentas, as pessoas custam a acreditar no novo, principalmente porque nós, profissionais ligados à educação, no estamos tendo competência para envolver nossos parceiros através de exemplos e de estudos mais aprofundados. Não podemos esperar que as escolas “melhorem” sozinhas. Nós, educadores, é que podemos fazer esse “acontecer”. Façamos com que nossas crianças possam usufruir o mundo das coisas e das pessoas, aprendendo a viver, crescendo e sendo felizes.

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Ana Isabel Lima Ramos é educadora municipal em Porto .4legre.

Alberto da Motta

É estudante de pedagogia _ UFRGS

PÁTIO EDUCAÇÃO INFANTIL

ANO I Nº 1 ABRIL/JULHO 2003