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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007. EDITORIAL S eguimos nosso trabalho,nossas vidas. Mas há momentos em que somos afetados de forma particular e intensa, é importante referi-los. Mesmo que o que se possa dizer sobre eles não tenha como dar conta do acontecido. Não podemos simplesmente seguir sem registrar o abalo, acusar o golpe. O acidente de avião ocorrido recentemente (vôo Porto Alegre – São Paulo), com todas as suas mortes, nos afeta hoje profunda- mente. Encontro com algo do horror que saiu do muito familiar, vôo de nossa cidade, praticamente de nossas casas, todos temos laços que hoje encon- tram um luto. Temos falado recentemente também, no duro lugar que é aquele do testemunho. Somos neste momento, testemunhas. Testemunhar frente ao horror faz lembrar Primo Levi e seu sonho. Ele escreve “É isto um homem?”, relato de anos vividos no campo de Auschwitz, onde sonha: neste sonho ele estava reunido com a família, narrando o coti- diano do campo de concentração. Do horror. E o que ocorria na medida em que ele falava, no sonho, era que um a um de seus parentes ia deixando de prestar atenção, se ocupando com outras coisas, até, por fim, ir embora por último, até mesmo sua irmã. Resulta uma dor desolada. Ainda no campo de prisioneiros, ele comenta, com um amigo, desse sonho. O amigo responde que talvez mais de um sonhasse assim, e que esse poderia ser mesmo o sonho, o temor de todos ali. A insuportabilidade do lado do ouvinte, de quem se constituía em testemunha. Testemunhar implica, no sentido forte, isso que não é nada simples e que Gagnebin formulou de forma tão direta em seu “Lembrar escrever esque- cer” : suportar não ir embora. Responsabilizar-se, implicar-se. O que Paul Celan registrou, com outras palavras – testemunhar como “agüentar a soli- dão de uma responsabilidade, e a responsabilidade desta solidão”. Um a um e no laço social. As tricoteiras, mulheres aposentadas que estavam neste avião, levavam uma trama inusitada: um cachecol de 200 metros, representando sua insistên- cia em ocupar um lugar de cidadania. Suas colegas vão substituir o cachecol perdido por uma faixa de luto e seguir sua reivindicação por justiça. Suportar não ir embora e ocupar seu lugar de responsabilidade concerne a todos nós.

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.

EDITORIAL

Seguimos nosso trabalho,nossas vidas. Mas há momentos em quesomos afetados de forma particular e intensa, é importante referi-los.Mesmo que o que se possa dizer sobre eles não tenha como dar

conta do acontecido. Não podemos simplesmente seguir sem registrar oabalo, acusar o golpe. O acidente de avião ocorrido recentemente (vôo PortoAlegre – São Paulo), com todas as suas mortes, nos afeta hoje profunda-mente. Encontro com algo do horror que saiu do muito familiar, vôo de nossacidade, praticamente de nossas casas, todos temos laços que hoje encon-tram um luto.

Temos falado recentemente também, no duro lugar que é aquele dotestemunho. Somos neste momento, testemunhas.

Testemunhar frente ao horror faz lembrar Primo Levi e seu sonho. Eleescreve “É isto um homem?”, relato de anos vividos no campo de Auschwitz,onde sonha: neste sonho ele estava reunido com a família, narrando o coti-diano do campo de concentração. Do horror. E o que ocorria na medida emque ele falava, no sonho, era que um a um de seus parentes ia deixando deprestar atenção, se ocupando com outras coisas, até, por fim, ir embora porúltimo, até mesmo sua irmã. Resulta uma dor desolada. Ainda no campo deprisioneiros, ele comenta, com um amigo, desse sonho. O amigo respondeque talvez mais de um sonhasse assim, e que esse poderia ser mesmo osonho, o temor de todos ali. A insuportabilidade do lado do ouvinte, de quemse constituía em testemunha.

Testemunhar implica, no sentido forte, isso que não é nada simples eque Gagnebin formulou de forma tão direta em seu “Lembrar escrever esque-cer” : suportar não ir embora. Responsabilizar-se, implicar-se. O que PaulCelan registrou, com outras palavras – testemunhar como “agüentar a soli-dão de uma responsabilidade, e a responsabilidade desta solidão”. Um a ume no laço social.

As tricoteiras, mulheres aposentadas que estavam neste avião, levavamuma trama inusitada: um cachecol de 200 metros, representando sua insistên-cia em ocupar um lugar de cidadania. Suas colegas vão substituir o cachecolperdido por uma faixa de luto e seguir sua reivindicação por justiça. Suportarnão ir embora e ocupar seu lugar de responsabilidade concerne a todos nós.

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2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.

NOTÍCIAS

JORNADA: A ANGÚSTIA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA

A psicanálise produziu um estatuto singular para a angústia, ao situá-la no centro da condução dos tratamentos, fazendo do seu manejo e dosseus desdobramentos um dos eixos principais do trabalho psicanalítico.

Discutir “o único afeto que não engana” é cada vez mais importante eatual, pois interroga tanto as neuroses de angústia clássicas (fobias, obses-sões), quanto as psicoses, e mesmo as chamadas “síndromes” e “déficits”dos mais variados matizes.

Este afeto, fundamental e constitutivo, é tema primordial do nossocotidiano, pois, como falantes, somos todos afetados pela linguagem.

Inscrições: Categorias Antecipadas até 08/10/2007 Após ou no localAssociados R$90,00 R$120,00Estudantes R$100,00 R$130,00Profissional R$120,00 R$150,00

Datas: 20 e 21 outubro 2007Início: 9h30min.Local: Centro de Eventos Plaza São RafaelEndereço: Av. Alberto Bins, 514 - Porto Alegre/RSInscrições abertas na Secretaria da APPOA

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3C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.

NOTÍCIAS

PRINCIPAIS EVENTOS EM 2008

JORNADA DE ABERTURAData: 29 de março.Horário: 10h.Local: Centro de Eventos da AMRIGS - Porto Alegre, RS.

RELENDO FREUDDatas: 30 e 31 de maio e 01 de junho.Local: Hotel Laje de Pedra - Canela, RS.

Encontro do CONGRESSO DA CONVERGÊNCIA LACANIANADatas: 15,16 e 17 de agosto.Local: Sede da APPOA e Santander Cultural - Porto Alegre, RS.

CONGRESSO da APPOA21, 22 e 23 de novembro.Local: Centro de Eventos da AMRIGS - Porto Alegre, RS.

SEMINÁRIO “LÓGICA PARA COLORIR” SEMINÁRIOS COM LIGIA VÍCTORA

Três Seminários sobre a lógica básica de Jacques Lacan, para princi-

piantes.– Em tudo há uma lógica... O sistema a b g d ;– Cuidado com o fantasma! A lógica da fantasia;– Você usa a lógica quântica todos os dias e não sabe! A lógica, de

Aristóteles a Lacan.

Datas: sextas-feiras 10, 17 e 24 de agostoHorário: das 18h15min às 20h15minInscrições abertas na Secretaria

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4 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.

SEÇÃO TEMÁTICA

Atopologia, que surgiu no final do século XIX, buscava o rigor da “estru-tura”, sem levar em conta a forma, o tamanho, as cores ou outrascaracterísticas superficiais dos objetos. Ela influenciou não somente

as matemáticas do século XX, como também as ciências humanas – a filo-sofia, com o estruturalismo; a lógica moderna e a ciência da computação; alingüística e as teorias da comunicação; a psicologia (desde Freud e seu“Projeto para uma psicologia científica”) e não poderia deixar de influenciarsua contemporânea – a psicanálise.

Assim, a classificação freudiana das doenças mentais conforme es-truturas – neuroses, psicoses e perversões – nos leva a trabalhar continua-mente. Seriam as estruturas estáveis? Haveria passagem possível entre elas?Será que podemos pensar uma “lógica” das estruturas? Ou, mais ainda,haveria uma “topológica” para cada uma delas? Movido por estas dúvidas,este ano o Seminário de Topologia da APPOA está discutindo textos funda-dores e casos clínicos sobre o tema.

Quando observamos a passagem que Lacan fez pelos diferentesreferenciais teóricos (geometria plana, grafos, geometria projetiva, topologiadas superfícies, teoria dos nós), vemos que, mais que uma questão topológica,há uma lógica em desenvolvimento, que corresponde à dialética das estrutu-ras clínicas.

Agradecemos a todos os que participam deste número do Correio –discutindo, no Seminário de Topologia, escrevendo, traduzindo os artigos denossos colegas estrangeiros, ou, como você, lendo nossos trabalhos.

Ligia Gomes Víctora

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Garrafa de Klein

VÍCTORA, L. G. Apresentação.

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6 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 160, ago. 2007.

SEÇÃO TEMÁTICA

EPISTEMOLOGIA E TOPOLOGIA LACANIANA:TEMPO DE COMPREENDER

Almerindo A. Boff1

Em artigo anterior (Boff, 2006), indaguei a respeito das possíveis rela-ções entre a topologia lacaniana, a epistemologia e a clínica psica-nalítica contemporânea. Retomo esta discussão agora. Apresento,

inicialmente, os pontos principais levantados naquele momento. A seguir,teço considerações a respeito de alguns problemas presentes na clínicaatual, bem como de questões epistemológicas que se apresentam para apsicanálise como ciência do século XXI. Finalmente, apresento algumas re-flexões a respeito do papel da topologia na teoria e na prática da psicanálise.

A CLÍNICA DO SÉCULO XXI: UMA CLÍNICA PÓS-MODERNA?No artigo acima referido, acompanhamos o percurso inicial de Lacan

pelo estruturalismo de Saussure e Lévi-Strauss, levando-o à proposição doinconsciente estruturado como uma linguagem. Apontamos nesse movimentoo ato em que Lacan filia a psicanálise aos fundamentos epistemológicospropostos por Lévi-Strauss para a antropologia, rompendo assim com a fun-damentação epistemológica positivista das ciências naturais do século XIX,sobre a qual Freud fundara a psicanálise. À medida que o movimento estru-turalista entra em crise na Paris dos anos 60, Lacan se desloca cada vezmais para os modelos topológicos em seu ensino, o que o leva ao fascíniopelos nós borromeanos como via de progresso para sua teorização da psica-nálise. Nesse movimento, podemos ver um deslocamento da fundamenta-ção epistemológica da psicanálise, tomando, progressivamente, a matemá-tica, o lugar inicialmente ocupado pelo estruturalismo de Saussure e Lévi-

1 Psiquiatra e Psicanalista. Mestre em Psicologia (UFRGS). Membro Pleno e Presidente doNúcleo de Estudos Sigmund Freud.

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Strauss. Ao mesmo tempo, a força do que viremos a chamar filosofia pós-moderna ataca, em Paris, todas as antigas verdades, principalmente a pre-tensão da formulação de qualquer enunciado de validade universal, o que porsua vez ataca, ao mesmo tempo, todas sustentações epistemológicas dapsicanálise apresentadas até então.

A partir deste percurso, concluímos aquele escrito (Idem: 22-3) comuma formulação pretensamente provocativa: “Ainda podemos tomar inspira-ção no sincretismo religioso do brasileiro, no seu cotidiano recurso simultâ-neo a crenças religiosas racionalmente incompatíveis entre si, ou na tendên-cia estética pós-moderna na arquitetura e nas artes plásticas, onde diferen-tes estilos e padrões estéticos convivem na mesma obra, para imaginar uma‘clínica pós-moderna’ na qual não há contradição a priori entre o empregosimultâneo, por alguém em busca de alívio do seu mal-estar, de medicaçãode acordo com os preceitos da psiquiatria baseada em evidências, de umaterapia familiar de orientação sistêmica, de uma terapia cognitivo-comportamental individual e de uma psicanálise lacaniana. Para sustentarindignação racional perante esta proposta deveríamos poder articular umaresposta consistente, a partir da filosofia pós-moderna, à antiga indagaçãoingênua: – ‘E por que não?”

No presente trabalho, retomo a discussão nesse ponto. Como psica-nalista, não me habilito a responder àquela indagação “a partir da filosofiapós-moderna”. Ao mesmo tempo, como psicanalista, todos os dias, na clíni-ca, sou obrigado, como todos, a me posicionar perante esta questão. Propo-nho, a seguir, uma forma de pensá-la.

Apesar da filosofia pós-moderna não homologar qualquer pretensãode hierarquização entre os saberes contemporâneos, a escuta psicanalíticaidentifica o viés do nosso ponto de observação. É apenas através dele quenos constituímos como psicanalistas. Daí que a escuta da transferênciaassume a centralidade que lhe é atribuída no método. Podemos considerar,portanto, esta escuta da transferência como a única bússola disponível paraa tentativa de verificar o lugar que ocupamos na cena transferencial vivida poraquele a quem escutamos.

BOFF, A. A. Epsitemologia e topologia...

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SEÇÃO TEMÁTICA

Ao mesmo tempo, sabemos que o que permite a alguém telefonarpara marcar uma consulta é a transferência que fez sobre nós antes dessadecisão crucial. Portanto, essa decisão se fez a partir do bombardeio depropostas terapêuticas a que estamos assujeitados. Obviamente, se fomoseleitos, num primeiro momento, no endereçamento do pedido de ajuda, énecessário que possamos sustentar este lugar privilegiado e, ao mesmotempo, constantemente ameaçado.

Serão as decepções e frustações ao longo do percurso que trarão àcena a figura dos terapeutas rivais, investidos, simbólica ou imaginariamen-te, de maiores poderes curativos. É neste cenário que se dá a prática psica-nalítica contemporânea, exigindo, ao mesmo tempo, conhecimentos técni-cos e habilidades de escuta e intervenção suficientes para levar adiante oprocesso analítico em meio às novas formas resistenciais oportunizadas nasociedade atual.

Neste contexto, torna-se pertinente indagar a respeito do estatutoepistemológico da psicanálise: trata-se de uma disciplina que ocupa umterritório delimitado entre os demais campos da investigação científica? Tra-ta-se de um saber de outra ordem, cuja abrangência coincide apenas parci-almente com o campo da investigação científica?

Os psicanalistas se dividem ao tomar posição em relação a esta ques-tão. Alguns preferem mesmo não discuti-la. Para o presente artigo, interes-sa avaliar as possíveis fundamentações epistemológicas da pretensão dedefesa da psicanálise como uma disciplina pertencente ao campo da ciên-cia. A razão disto, no contexto da discussão proposta, é que se posicionarteoricamente de outra maneira implica sustentar que a prática da psicanáli-se não tem o amparo de uma investigação conduzida dentro do campo daciência. O que implica abandonar o campo da discussão epistemológica e oescopo do presente trabalho.

POR QUE A PSICANÁLISE É UMA CIÊNCIA?Quando se trata de responder à questão da cientificidade da psicaná-

lise, a forma como se sustenta a resposta é mais importante do que a pró-

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pria resposta. Ao longo desta apresentação, a sustentação da respostapositiva à indagação foi dada por Freud a partir dos achados empíricosde sua investigação e por Lacan a partir da possibilidade de representa-ção matemática da lógica da operação do inconsciente. Este movimentoestá presente desde os momentos inaugurais da reflexão epistemológica.Dyson lembra que, no começo do século XVII, Francis Bacon, na Ingla-terra, e René Descartes, na França, proclamaram o nascimento da ciên-cia moderna. Apesar da contemporaneidade, no entanto, suas visões arespeito do que esta seria eram muito distintas. Para Bacon, esta serealizaria observando-se atentamente “os fatos da natureza”: a partir doacúmulo destas observações, os cientistas induziriam as Leis que a Naturezaobedece. Para Descartes, partindo do seu cogito, as Leis da Naturezapoderiam ser deduzidas corretamente segundo as regras da lógica. Nosquatro séculos seguintes, os cientistas ingleses tenderam a ser baconianose os cientistas franceses tenderam a ser cartesianos. (Odifreddi, 2000: xi-xii)

Na primeira metade do século XX, vemos a cientificidade da psicaná-lise ser questionada a partir do verificacionismo defendido pelo neopositivismodo Círculo de Viena, que considerava seus enunciados teóricos como im-possíveis de ser empiricamente comprovados ou refutados. Esta crítica le-vou diversos grupos de psicanalistas à tentativa de refutá-la através do refi-namento dos procedimentos de pesquisa empírica baseada na teoria psica-nalítica, empreendimento que está em andamento no momento. (Person,2005) Enquanto este grupo de psicanalistas alinhou seu trabalho à tradiçãocientífica inglesa, o desenvolvimento teórico de Lacan apostou nos progres-sos da lógica como o caminho mais promissor, o que resultou na valoriza-ção crescente da topologia nas suas teorizações.

A partir destas observações, percebe-se que a pesquisa psicana-lítica atual é concebida de acordo com a fundamentação oferecida à defesada cientificidade da psicanálise, em consonância com as diferentes tradi-ções da pesquisa científica impulsionadas a partir do pensamento damodernidade.

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SEÇÃO TEMÁTICA

PESQUISA PSICANALÍTICA NO SÉCULO XXI:MOMENTO DE CONFLUIR?

O alvorecer de um novo século é momento tentador para previsõesespeculativas. Especulações sobre os rumos da pesquisa psicanalítica noséculo XXI podem ser feitas a partir da indagação a respeito da possibilidadede uma futura confluência entre estas duas tradições. Esta confluência entrea utilização conjunta de modelos matemáticos e de observações empíricaslevou, no século que se encerrou, a progressos notáveis do conhecimento,como, por exemplo, no campo da física de partículas, da cosmologia, oumesmo da meteorologia a partir dos modelos matemáticos da teoria do caos.O desenvolvimento de modelos matemáticos de fenômenos humanos com-plexos, como o desenvolvimento emocional (Lewis & Granick, 2000), fenô-menos sociais (Miller & Page, 2007) ou mesmo a consciência humana(Tuszynski, 2006), tornam o encontro fecundo entre estes dois mundos ou-trora distantes, como o mundo da pura lógica e o mundo dos fenômenossensíveis, uma possibilidade de probabilidade crescente também no campoda investigação da subjetividade.

Talvez o século XXI venha a se mostrar um produtivo momento doconfluir destas duas tradições da investigação, vindo a superar-se a históricabarreira de separação entre o formal e o empírico na condução da pesquisacientífica no campo da psicanálise.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBOFF, AA. Epistemologia e topologia lacaniana. In Correio da APPOA, Porto Ale-

gre, n 149, agosto 2006. pp 17-24.LEWIS, MD & GRANIC, I. Emotion, development and self-organization: dynamic

systems approaches to emotional development. Cambridge: CambridgeUniversity Press; 2000.

MILLER, JH & PAGE, SE Complex adaptive systems : an introduction tocomputational models of social life. Princeton and Oxford: Princeton UniversityPress; 2007.

ODIFREDDI, P. (2000) The mathematical century. Princeton and Oxford: PrincetonUniversity Press; 2004.

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PERSON, ES; COOPER, AM; GABBARD, GO. (2005) Compêndio de psicanálise.Porto Alegre: Artmed; 2007.

TUSZYNSKI, JA. (Ed) The emerging physics of consciousness. Berlin / Heidelberg:Springer-Verlag; 2006.

BOFF, A. A. Epsitemologia e topologia...

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SEÇÃO TEMÁTICA

A TOPOLOGIA DAS ESTRUTURAS CLINICAS

Ligia Gomes Victora

Diálogo da secretária “gatona” com seu chefe: Ela, com voz melosa – “Chefinho, será que eu posso te pedir uma

coisa?”Ele, imediatamente: – “Quanto mais difícil melhor!”Este fragmento foi me relatado por um paciente, intrigado com por que

teria respondido desta forma impulsiva e curiosa. Associou que nunca con-seguira nada fácil em sua vida, que nada dera certo da primeira vez, “nemcomprar um fogão”.

O que o fragmento de conversa deixa transparecer é uma sutil diferen-ça entre os modos de organização, por um lado, de uma possível histeria, epor outro, de uma neurose obsessiva, diferença esta manifesta na maneirade dispor os significantes em forma de fala. Revela também o que estaria portrás, impulsionando a fala – a relação com o Outro no que tange ao Seudesejo na histeria (“será que o Outro me deseja tanto que posso lhe pedirqualquer coisa?”) ou à Sua demanda, na neurose obsessiva (“o que o Outroordenar eu cumpro!”).

No diálogo epigrafado, se ele fosse também um histérico, provavel-mente responderia assim: – “Bah, gata! Nem sabe. Ia mesmo te pedir umfavor. Adivinha o que me aconteceu?...”.

Falar em topologia das estruturas clínicas pode parecer redundância,pois a topologia pressupõe a existência de uma estrutura. Sabemos que ossignificantes se organizam em forma de rede. Mas, se os radiografarmos uma um veremos que eles têm estrutura mœbiana. Como na cinta de Mœbius,localmente, pode-se destacar direito do avesso, mas, no conjunto, é só ume mesmo tecido. Consciente e inconsciente deslizando sobre os dois apa-rentes lados de uma só face. Finalmente, podemos encontrar a estruturaque Lacan, e, antes dele, Frege, De Saussure e Freud buscavam para sen-tido e significação (sinn e bedeutung) de cada palavra.

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EXISTEM TOPOLOGIAS DIFERENTESPARA NEUROSE E PSICOSE?

Lacan fez, ao longo de seus seminários, algumas observações sobrediferenças topológicas entre a neurose obsessiva e a histeria, ambas dentrodo mesmo quadro composto por “falasseres” que tiveram acesso à castra-ção simbólica.

Quanto às diferenças entre neurose e psicose, seriam ainda maisradicais. Podemos acompanhar este raciocínio em inúmeros textos de Freude Lacan. A neurose se organiza a partir da lógica da alienação, forjada (no‘bom’ sentido) por Lacan em sua releitura de Freud (Wo es war soll Ichwerden) e de Descartes (Cogito ergo sum), entre outros. Para o neurótico, aconstrução do Outro seria primordial, e viria a partir do recalque original,quando a pulsão incestuosa e o Significante ligado a ela ficariam recalcados,e, a partir desta falta, todos os outros significantes se organizariam em ca-deia. O Significante Mestre (S1) na base, mesmo recalcado, ou justamentepor isso, permitiria o acesso a níveis mais complexos de simbolização, edaria suporte à castração simbólica.

Porém, na gênese das psicoses, considera-se que haja um “defeito”nesta construção: falta esse recalque inicial, e o S1 fica foracluído parasempre. Sem o corte da privação original, os outros significantes não seorganizam em séries ordenadas. Por isso, quando procuramos uma topologiapara a psicose, vamos buscá-la em estruturas fechadas, biláteras, que man-tenham separados consciente e inconsciente, na maior parte do tempo.

No seminário “A identificação”1, Lacan apresentou o toro como estru-tura do sujeito pré-castração simbólica. O toro tem o formato de uma bóia,furada no meio e no interior. Pode-se pensar nele como uma superfície derevolução, formada por uma bobina infinita de demandas girando em torno deuma linha imaginária de desejo. O desejo, inconsciente, ficaria escondido nocentro, enquanto que as demandas formariam o tecido da bóia. Esta estrutu-

1 Lacan, J. Seminário A identificação, lição de 07/03/1962.

VÍCTORA, L. G. A topologia das estruturas...

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SEÇÃO TEMÁTICA

ra é útil para compreender a psicose: não ocorrendo o corte, operado peloOutro, o toro continua fechado.

Já na neurose, os significantes do Outro vão operar cortes nesta bóia,que, assim, se transformará, de bilátera (dois lados, um interno, outro exter-no) em unilátera (um só lado). Lembrando que são sempre os cortes queengendram as superfícies, o corte capaz de produzir esta transformaçãoradical não é simples, e também não é operado de uma vez só. Ele tem aforma de um oito-interior. Primeiro ele abre a superfície do toro em uma cintaretorcida. Depois as bordas desta devem ser coladas, formando então umacinta de Mœbius. Este corte em dupla volta representa a castração simbóli-ca. Ele assegura a estrutura mœbiana do eu (consciente e inconsciente,agora juntos) e a possibilidade da construção do fantasma ($<>a), a relaçãoimaginária do sujeito com seu desejo inconsciente.

Então, para uma topologia da neurose vamos sempre necessitar deuma estrutura unilátera, mœbiana.

Considera-se a neurose como uma defesa contra a castração simbó-lica. Pode-se pensar que a psicose seja uma defesa contra a privação realdo corpo da mãe? Privado da privação, o psicótico ficaria “completo”, inca-paz de desejar, pois foi-lhe negado sentir falta...

EXISTE UMA TOPOLOGIA PRÓPRIA A CADA NEUROSE?No mesmo seminário de 1961/622, tratando das relações do neurótico

com o Outro, Lacan apontou diferenças quanto à precocidade da separaçãoda mãe, o que resultaria na encruzilhada da definição das neuroses, diga-mos assim. Também chamou a atenção para a ênfase que o sujeito daria oraà demanda, ora ao desejo, em sua interpelação ao Outro. À demanda doOutro, tomada como objeto do seu desejo, na neurose obsessiva. Ao dese-jo, na histeria, tomado como suporte de suas demandas. Sabemos o papelque o desejo tem para a histeria, desde Freud – que já demonstrara comoele só se mantém por ser insatisfeito.

2 Idem, lição de 30/05/1962.

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Freud também apontara algumas nuanças diferentes não só na forma-ção sintomática como na gênese das duas neuroses. Uma intimidade dema-siada com o corpo da mãe na neurose obsessiva levaria a ter prazer demais,e futuramente gozo de menos, enquanto que na histeria uma frustração pre-coce faria com que tivesse prazer de menos, e, futuramente, gozo demais(nem que fosse com o sofrimento...).

Ainda na mesma lição citada acima3, Lacan sublinhava as diferençasentre a Histeria e a Neurose obsessiva no que tange à angústia, que Freud –em “Análise finita e infinita” – definira como angústia de castração no ho-mem, e penisneid na mulher.

Lacan, assim como Freud, se referia nesta época a “o obsessivo” nomasculino, e “à histérica”, no feminino4. Ele disse mesmo que “a histérica”não teria necessidade de assistir ao seu seminário para saber que o desejodo homem é o desejo do Outro, e que ela, histérica, poderia perfeitamentesupri-lo! Faço estas observações sobre o sexo das neuroses porque sabe-mos como anos depois, no seminário “Mais ainda”5, Lacan vai desvincular ogênero, da escolha da neurose, separando, então, os sujeitos neuróticosconforme a ‘sexuação’, independentemente de serem histéricos ou obsessi-vos, o que lhe permitiria articular a suposição de um gozo próprio a cadasexo.

A relação sexual pode não existir, mas a diferença sexual... continuaa mesma!

UMA TOPOLOGIA PARA A HISTERIAA garrafa de Klein foi proposta por Lacan inicialmente para representar

a estrutura da fala e do significante6. Partindo da virada que fez Descartes noseu raciocínio cogito ergo sum, Lacan a compara com um ponto de capiton,

3 Ibidem.4 Mesmo que l’hystérique, pode se referir ao masculino ou ao feminino, na seqüência elecostumava dizer l’hystérique, elle: “a histérica, ela”.5 Lacan, J. Seminário Ainda, lição de 13/03/1973.6 Idem, Seminário Problemas cruciais..., lição de 16/12/1964 e seg.

VÍCTORA, L. G. A topologia das estruturas...

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SEÇÃO TEMÁTICA

uma sutura entre duas dimensões, que pressupõe um corte. Abre um bura-co, ao mesmo tempo que o preenche.

Descrita pela primeira vez em 1882, na Alemanha, pelo matemáticoFelix Klein (1849-1925), a chamada “garrafa de Klein” é uma superfície uniláterafechada, não-orientável. Com característica de Euler = zero, ela não separainterior e exterior. (Fig.1)

Ela aparentemente possui uma boca, mas esta boca não é como asoutras, porque não perfaz uma borda, ela é “fofa”. Então não é uma garrafanormal, porque não tem dentro e fora.

Seu esquema topológico seria assim (Fig.2), como uma cinta deMœbius que tivesse sua borda única costurada, de forma que virasse umcilindro autotrespassado.

A garrafa de Klein não pode ser construída no espaço Euclideano,pois não é possível fazer esta operação de autoatravessamento em superfíci-es tridimensionais sem descontinuidade. Porém, pode-se tentar construí-laem um espaço não-Euclideano, esticando o pescoço de uma garrafa e ointroduzindo através do corpo da garrafa. Se fizermos uma tomografia longi-tudinal dela, veremos que a garrafa de Klein é a união de duas cintas deMœbius, uma destra e outra esquerda, postas em continuidade, isto é, cola-das sem emendas. (Fig 3)

No seminário “Um discurso que não seria semblante”7, Lacan propôsa garrafa de Klein como estrutura própria da histeria, formalizando, assim, ahisteria, a partir somente de termos da estrutura disposta pela linguagem.

Um ano antes, no seminário “O avesso da Psicanálise” – tambémconhecido como o seminário dos quatro discursos – Lacan apresentara umanova dimensão da linguagem. Distinguindo “fala” de “discurso”, ele abordou ahisteria como forma discursiva, não só como estrutura neurótica ou conjuntode sintomas.

Esta lógica dos discursos tem uma estrutura de grupo, que põe emjogo quatro termos e quatro lugares, para formar quatro discursos: o do Mes-

7 Idem, Seminário Um discurso..., lição de 09/06/1971.

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tre, o Histérico, o Universitário e o Analítico. Os quatro termos são: 1) osujeito barrado ($); 2) a causa do desejo (a); 3) o significante mestre (S

1) –

representando o Phallus; e 4) o saber (S2) – como meio de alcançar o gozo

(o S2 pode ser lido também como corpo, no sentido de que é a “in-corpo-ração” da cadeia de significantes que faz – daquilo que era somente umorganismo – um corpo)8. E os quatro lugares são: 1) do agente; 2) do outro;3) da verdade; e 4) da produção. A cada um quarto de volta, as relações entreesses termos e lugares vão se alternando, o que nos permite observar comoos mesmos elementos estão em jogo, tanto na constituição do sujeito, comonos laços sociais.

O discurso histérico seria como uma reação ao discurso do Mestre.“S1”, que neste último era o agente, não está mais em posição de comando,mas no lugar do Outro. Então pode ser interpelado, provocado, para provarseu saber (o professor ou o psicanalista, por exemplo, serão questionados).O sujeito/barrado é quem está agora no lugar do agente. Ele se manifestacom queixas de sofrimento corporal, insatisfação, objeções, e questiona,sempre em posição transferencial em relação ao Pai. “S2”, no discurso his-térico, pode ser lido como o corpo, já que é a in/corporação da cadeia dossignificantes. Sob a barra, “S2” (o corpo) escapa da autoridade de “S1” (leia-se: o Significante Phallus).9

Qual a relação entre a garrafa de Klein, a histeria e o discurso ditohistérico? Neste momento, em que está organizando os quatro discursos,Lacan falava da significação do falo (die Bedeutung des Phallus) para “ahistérica”: ela conjugaria a verdade de seu gozo ao saber implacável que elatem, de que o Outro próprio para causar desejo é o falo, ou ao menos, umsubstituto do falo.10

8 Vemos na clínica sempre exemplos de pacientes que, repentinamente, parecem “adquirir”corpo, às vezes penosamente, pegando todo tipo de doenças às quais antes passavamimunes.9 Cf. Melman 2007, notas de curso.

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SEÇÃO TEMÁTICA

O que impressionava Lacan foi o que ele chamou de “ponto dereviramento” (point de rebroussement), da garrafa de Klein. Este conceito derebroussement em matemática é usado no estudo das curvas, e correspondeao ponto em que a curva faz a volta, para mudar sua trajetória. Mas pareceque Lacan não se referia à curva em si, mas ao momento em que o pescoçoda garrafa atravessa seu corpo em direção a seu interior, ou seja, à introdu-ção do gargalo na garrafa, o que seria um momento de reflexão, em todos ossentidos. Uma amarração que faz buraco, ele disse então. É o mesmo quese pode pensar da função do discurso histérico.

Conforme Charles Melman11, o que Freud chamava de “complacênciasomática”, é a recusa de seguir ao significante mestre – à norma fálica. Osintoma seria como um outro Phallus, feminino, do qual o corpo seria asede. Buscar um mestre que possa dominar o saber é o intuito da histéricaque, por sua vez, recalca a falta e provoca a fala no corpo. Contudo, o efeitodeste discurso é provocar, pois ele desafia a autoridade, propondo insisten-temente a dúvida sobre o saber do Outro.

Abordando a histeria como um discurso em que o sujeito/barrado erao agente, Lacan compreendeu que toda cura passava por esta estrutura. Ouseja: todo analisante fala, durante sua análise, através do discurso histérico.O discurso histérico conjuga desejo e verdade, produzindo um saber. Então,para que se produza “S2” (um saber inconsciente sobre o corpo) é precisofalar histericamente! Como se pode acompanhar na seguinte passagem: –“Quem não compreenderia a decepção de Freud ao entender que o “sem-cura” 12 ao qual ele chegou com a histérica não tinha nada demais, a não serpara lhe fazer reclamar o dito semblante, frequentemente vindo de vertentesreais, por ter reunido neste ponto de reviramento, que, para ser encontrado

10 Lacan, J. Seminário Um discurso..., lição de 09/06/1971.11 Melman, Novos estudos...12 No original: pas-de-guérison – que em espanhol foi traduzido como “passo de cura”.

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sobre o corpo (ou, por não ser não-encontrável) – é evidente, é uma figuraçãotopologicamente totalmente incorreta do gozo em uma mulher.”13

Freud já dissera que o funcionamento do corpo da histérica era pertur-bado por significantes (ou representantes de representações, como ele di-zia) recalcados, que o tornavam como que um “corpo estranho”. Qual era osentido dos seus sintomas? Qual seu significado? Como curá-los? Comocurar Dora de seu sintoma – “ser mulher”? Esse corpo “sem-cura” da histeriame fez pensar na dor crônica de que muitas pacientes (só vi isso em mulhe-res) se queixam. Algumas chegam ao consultório dando o próprio diagnósti-co, como uma senhora de sessenta anos: – “Descobri que eu tenhofibromialgia”. Pergunto: – “Onde te dói?” – “Tudo. Não tem um ponto. Setocas aqui, dói. Aqui, dói. Aqui, dói...” (vai mostrando no corpo). Parecemesmo a imagem do corpo revirado, os nervos à flor da pele: tudo dói. “Omais profundo é a pele”, disse certa vez o poeta Paul Valéry.

Esta topologia de uso familiar, como Lacan se referia à garrafa deKlein, foi-lhe útil para falar das representações recalcadas, que emergem nocorpo, pois ela é literalmente revirada do avesso.

Haveria um erro na inscrição dos significantes – um que falta, umdesencontro, um escorregão, um encontrão entre eles... E eles pulam parafora, revestem a pele, inconciliáveis e irreconciliáveis com os ideais do eu. Oque foi mal dito torna-se literalmente maldito.

Assim como trabalhei uma vez a adição ao jogo como uma operaçãomatemática (de “adição”), pode-se pensar aqui na operação de “subtração”de significantes. O significante que falta, em um lugar esburacado no Outro“S (A)” cria um campo de diferença com seus vizinhos. A subtração designificantes (ao -1) faz a “diferença”, embora permita uma unidade imaginá-ria ao corpo histérico, porém com aquele “reviramento” que os torna traumá-ticos, ou melhor, “traumatemáticos”.

13 Lacan, J. Seminário Um discurso..., lição de 09/06/1971. Tradução da autora.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Lacan 14 vai insistir neste ponto de reviramento, como sendo um pontoque, mesmo não sendo impossível de ser encontrado no corpo, tem, contu-do uma figuração “topologicamente incorreta”. Embora ele exista, “ao menosum”. E ele brinca com esta palavra: homenosum (hommoinsun), objeto a –união de – menos um (aUmenosum), entre outros trocadilhos. Mas, tam-bém: “não mais que um” é necessário!

Talvez o encontro marcado com a histérica seja, por isso, sempre umencontro faltado. Como na garrafa de Klein, pode-se até colocar água dentro,mas, como tirá-la de lá?

BIBLIOGRAFIA:FREUD, S. Sobre los tipos de contracción de neurosis (1912). Ed. Em CD Rom

das Obras completas de Sigmund Freud. Vol.12.LACAN, J.-M. Seminário 1969-70. L’envers de la Psychanalyse. Ed. Association

Freudienne Internationale._____. Seminário 1970-71. D’un discours qui ne serait pas du semblant. Idem._____. Seminário 1972-73. Encore. Idem.MELMAN, C. Novos estudos sobre a histeria. Ed. Artes Médicas. Porto Alegre,

1985._____. Como alguém se torna paranóico? Notas sobre seminário – São

Leopoldo, maio 2007.VÍCTORA, Ligia G. O gozo do jogo. In: Revista da APPOA, Tóxicos e manias, no 26.

Porto Alegre: APPOA, 2004.

14 Ibidem.

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SEÇÃO TEMÁTICA

ENSAIO SOBRE A TOPOLOGIADA NEUROSE OBSESSIVA1

Bernard Vandermersch2

Tradução: Denise Gick 3

I. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARESSOBRE A UTILIZAÇÃO DA TOPOLOGIA NA CLÍNICA:

1 - A constatação de que nossas operações mentais, no esforço deteorização ou mesmo na nossa prática, recobrem uma topologia implícita,sem dúvida não nos leva muito longe. Contudo, notemos que, já em Freud,existe uma freqüente inadequação entre uma prática ingênua da língua, queem decorrência disso é guiada pela topologia desconhecida que escondeuma teorização do aparelho psíquico, que se desdobra sem sabê-lo, numespaço modelado sobre o espaço sensível: plano da folha de papel onde seprojeta uma cartografia de limites, de inclusão e de exclusão, volume docorpo imaginário engendrando as categorias sensíveis de profundidade, pe-netração, incorporação, etc... Essas representações parecem operar comeficácia até o ponto para além do qual os paradoxos da clínica se embaralhammais do que são explicados. É então seguidamente o fator quantitativo, qual-quer que seja a forma empregada, que é solicitado a mascarar de algumamaneira as falhas persistentes.

2 - Mas, qual topologia? O mais pertinente na utilização da topologiana psicanálise subsume-se sob duas rubricas:

a) explicar os elementos de topologia matemática utilizados por Lacan,mostrar as linhas mestras, as correspondências, etc...

b) utilizar os objetos topológicos escolhidos por Lacan e continuar a

1 Texto publicado originalmente em Le Trimestre Psychanalytique 2/1992, La topologie enclinique. Publication de l’Association Freudienne.2 Psicanalista; Membro da Association Lacanienne Internationale.3 Psicanalista, fonoaudióloga, participante do Seminário de Topologia da APPOA.

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fazê-los funcionar na nossa clínica. É a disciplina à qual alguns estimam terque se aplicar, particularmente, à Associação Freudiana, com o motivo de-clarado de um ganho heurístico.

3 - Mas trabalhar essa topologia nos preocupa, uma vez que não rece-bemos de Lacan outro modo de empregá-la, além daquele de “usá-la boba-mente”. Essa ”bobagem”, própria do significante, seria um remédio contra a“debilidade” do mental, dada a incapacidade de nosso imaginário em esca-par aos engodos do campo escópico, mas também contra a nossa esperan-ça de uma utilidade lógico-matemática, “sábia”, purificada de subjetividade.

4 - Ressaltemos:– que a escolha de Lacan recai quase sempre, sobre os mais simples

objetos topológicos.– que seu avanço nunca ocorre pelos desenvolvimentos sucessivos

de um postulado, nem pela exploração sistemática de um achado, mas,sobretudo expondo o mesmo conceito em objetos topológicos diferentes outrabalhando um mesmo objeto com conceitos diferentes, interditando assim,toda a constituição de um sistema com pretensão não contraditória.

Esses objetos, já bem desgastados, constituem para nós os “prêts-à-porter” (conforme a fórmula do objeto a) na espera do caso, do fenômeno, dosintoma, do momento clínico em que poderá ser elucidado. Poderíamos com-parar o objeto topológico ao ovo de madeira que escorrega para dentro dameia, permitindo ao discurso mostrar sua estrutura em toda a sua extensão,ficando assim mais visível o destino do objeto que está na seqüência, sendo,momentaneamente ou definitivamente, descartado.

5 - Ora, esses objetos parecem muito mais induzir ao fascinado res-peito, à prudente evitação, verdadeira irritação reprimida e mais seguidamen-te, coisa estranha para os intelectuais, à declaração sem complexo de umaincapacidade de compreender o que quer que seja.

De fato, são objetos e são convocados em um lugar muito particular:lá onde não é mais possível dizer, já que seria um dizer sobre o dizer, maisprecisamente, sobre a causa da enunciação ela mesma, ou seja, para umneurótico, da castração.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Uma inquietação, apontada por P. Ségaud, a de ser “tomado por bobo”,que assim encontraria sua causa: na inevitável ruptura da articulação lógicado pensamento e em toda a exposição teórica que seria mascarada pela“Topologia”. Aí, onde a cadeia significante deixa perfurar a falha, ele – otopólogo – vislumbra o objeto: operação fetichista. Entretanto, esse esforçode mostração não é forçosamente um escamoteio maior do que o discursoanalítico, de colocar o objeto a na posição de agente, contudo sem se con-fundir com a perversão. Mas, ao forçar-se esse ponto, esse dizer impossível,nesse momento é que surge o acting-out: o que não pode fazer-se ouvirmostra-se, daí o efeito de obscenidade aos quais alguns podem ser sensí-veis. Em todo caso, esse efeito jamais aparece no trabalho de Lacan, por-que, sem dúvida, cada um de seus achados abre todo um “campo de possi-bilidades” até então nunca supostas. Em suma, sua pretensão é, ao mesmotempo, enorme e bem modesta. Enorme: seu nó borromeano, que pretendeapresentar o real e não somente dar um modelo. Bem modesta, visto quedesse real, somente, pequenos fragmentos levantam questões.

Nesse modo de abordagem do real, não nos encorajamos na via dasgrandes sínteses, mas muito mais nas elucidações sempre parciais.

6 - Qualquer que seja o impacto de uma mostração, nossa topologianão pode prescindir de definições e convenções. O objeto escolhido para onosso ensaio sobre a neurose obsessiva é uma superfície: o cross-cap, de-finido aqui conforme a utilização lacaniana, uma das imersões, a mais sim-ples, do plano projetivo no espaço em três dimensões (R³).

Ainda que Lacan tenha empregado muito tempo para apresentar esseobjeto, não é de todo inútil relembrar algumas de suas propriedades.

Algumas são intrínsecas, próprias dessa superfície:– ela não possui borda, i. é, fechada.– ela é não orientável, i. é, por exemplo: o desenho de uma mão

esquerda pode se transformar no desenho de uma mão direita sem “forçar”nada (o que é impossível sobre um plano ou uma esfera).

Outras propriedades são secundárias à imersão dessa superfície numespaço. No espaço em três dimensões:

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– embora fechada, ela não divide esse espaço em um dentro e umfora.

– ela só tem uma face.– ela só pode ser apresentada de maneira imperfeita. Não se pode

evitar que ela se recorte a si mesma (cross-cap) em uma linha de intersecção,ao qual cada ponto corresponde desse modo a dois pontos diferentes e nãovizinhos.

– essa linha de auto-intersecção pode ser reduzida no máximo a “um”ponto umbilical4 singular parecendo concentrar sobre esta apresentação im-perfeita, mas não intrinsecamente, a propriedade mœbiana.

É essa apresentação “boba” que é utilizada por Lacan. Conforme ocaso ele considera que, respectivamente, consciente e inconsciente; simbó-lico e imaginário; desejo e realidade se designam como o avesso e o direitoem um ponto dado da superfície, apesar de sua continuidade real. O pontosingular, irredutível, dito ponto phi, representa o phallus simbólico.

Sobretudo essa superfície permite inscrever um corte cujo traçado em“oito interior” descreve uma dupla volta em torno desse ponto phi, antes dese enlaçar. De fato, é por esse corte que Lacan define “o ato fundador dosujeito”: “O um contável [...] não pode ser o um que, ao se repetir ao menosuma vez e, se fechando sobre si mesmo instaurar na origem a falta da qualele se trata [...] de instituir o sujeito”. (Lacan, “A lógica do fantasma”, lição de16.11.1966).

Na realidade, esse corte produz uma perda, um disco centrado sobreo ponto phi, representando o objeto a, e introduz uma borda sobre a parterestante que se torna uma banda de Mœbius.

Notemos que Lacan não teme em dar suporte às propriedades deespecularidade do eu (moi) pelas “imperfeições” desta representação.

4 N.T. Ponto umbilical – cf. Dicionário Aurélio, Geom. Dif. Numa superfície, ponto em que acurvatura normal é a mesma em qualquer direção.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Retenhamos aqui o essencial: a aptidão dessa superfície para inscre-ver a repetição, a segunda volta necessária para instaurar a falta fundadorado sujeito, ou seja, a castração. De fato é de uma singularidade, de uma“malformação” deste corte fundador que podemos fazer derivar os efeitospróprios da neurose obsessiva.

II. TOPOLOGIA DA NEUROSE OBSESSIVA1 - Charles Melman propôs (lição de 13 de outubro de 1988) que esse

corte teria sido mais conveniente inscrito sobre o cross-cap, mas pela se-qüência da recusa pelo obsessivo da primazia da ordem genital, de seuapetite em desqualificar o pênis ao estatuto do objeto parcial, a propriedademœbiana do cross-cap era defeituosa.

De qualquer maneira, de um modo figurado, o objeto anal que o ob-sessivo se recusa a ceder viria enlaçar o ponto phi que parece concentrartoda a propriedade mœbiana. Desse fato o corte não recorta mais um “cha-péu de bispo cruzado”, mas uma simples “touca de dormir”, tendo comoconseqüência que os pensamentos inconscientes virão, a partir daí, ao su-jeito sob a forma de imperativos vindos diretamente do Outro, enunciados nasegunda pessoa: “tu deves reembolsar...” etc...

A elegância desta solução amparada pela clínica e, teoricamentemotivada, não me pareceu, então, dever reduzir totalmente sua característi-ca um pouco “forçada” (topologicamente falando). De fato, uma propriedadeestrutural, real, poderia então encontrar-se anulada por um artifício “aposto”:o objeto a; cuja função de tapa-buraco é, forçosamente, inadequada e imper-feita, mesmo que esse objeto fosse o objeto anal. O fato é que pensei numasolução que me parecia mais homogênea à topologia, que tentava deduzirde um corte específico os traços paradoxais desta clínica à qual a castraçãoparecia a cada vez inscrita e, entretanto, ineficaz tanto para fundar a origem,como para se concluir em ato.

Essa solução apresentada no seminário de Charles Melman, no dia20 de outubro de 1988, estabeleceu-se em vários tempos. Trabalhando oseminário sobre a identificação e a utilização que Lacan fazia do cross-cap

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para inscrever o corte subjetivo, me pareceu que se era possível inscrever umcorte com uma volta e outro diferente, com duas voltas, não era possívelinscrever cortes com três voltas ou mais. Eles não conseguindo mais sefechar tornam-se infinitos. Na ocasião de um trabalho sobre a neurose ob-sessiva e o homem dos lobos, foi que me veio à idéia de associar este corteao “infinito”.

2 - Para ilustrar que esta topologia deve dar conta, apresentarei breve-mente um caso de neurose obsessiva, cujo interesse me pareceu residir nacoexistência das manifestações sintomáticas de natureza e idades diferen-tes.

De um lado, as manifestações apresentadas desde a infância,comunicadas no período das entrevistas preliminares, com orgulho, pelosentimento de satisfação que davam a esse sujeito ter se tornado um ho-mem adulto e casado. Trata-se de processos de pensamento ritualizadosque podem ser considerados como vestígios piedosamente mantidos no estadode uma neurose infantil. Eles testemunham uma preocupação em controlara causalidade fundando-a sobre a coerência lógica dos processos do pensa-mento e não sobre o objeto causa do desejo. Entre outros, um rito paraconjurar o acaso, de que nada aconteça de penoso a si próprio ou a seuspróximos: a partir do dito “jamais dois sem três” ele convirá fazer pela ma-nhã, três sinais da cruz. Mas para evitar, em caso de esquecimento ou dedúvida se os três sinais da cruz foram efetuados e, a fim de evitar que “onúmero dois não apareça numa soma cujo outro termo seria três ou múltiplode três”, ele elaborou um sistema que lhe permitiria evitar esses númerosnefastos.

Outro exemplo: para controlar a preocupação com o futuro e se umasituação ou uma questão possui somente duas respostas, sim ou não, en-tão uma regra de probabilidade de 50% deve ser aplicada (com a exclusãode toda a preferência subjetiva).

Outros ritos conjuratórios parecem ter uma implicação do olhar comfins de neutralização: virar a cabeça para trás ao sair, colocar o nariz numplano elevado (nariz empinado), etc...

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Outras manifestações apareceram recentemente. Trata-se denosofobias que vão se suceder durante o tratamento. Elas parecem teste-munhar o fato que, quando o paciente se engaja na via de seu dever fálico oobjeto trai sua presença obediente no corpo, como se o apelo para se susten-tar de um corte efetivo, longe de separar o objeto, o mantém no lugar. A primei-ra, no início das consultas, é o terror de ter um câncer no testículo esquerdo.Essa idéia obcecada verifica, na análise, a identificação do lado masculino.De fato, aparece no dia do aniversário da morte de seu pai, ela retoma um“traço” comum de um antigo e estimado patrão e do irmão de sua mulher, osdois portadores de um câncer no testículo, operados e curados, esse sinto-ma desaparecerá com a análise de uma recordação da infância.

A trégua é de pouca duração e o temor de uma esclerose em placas,com dificuldades na marcha, aparece quando sua mulher lhe dá sua “aquies-cência” para ter um bebê.

Entretanto a posição do sujeito aparece ambígua em relação à identi-ficação sexuada e como dizia C. Melman “há aí uma tendência no obsessivoem procurar uma identificação, que não o impeça de renunciar ao outro sexo.Mas com a diferença da histeria masculina, esta identificação tentaria seconstituir do lado masculino (S1) muito mais que do Outro, mas reprimindo olado imperativo, tirânico. Ele se esforçaria assim para introduzir no lugar domestre uma nova moral, os atributos femininos, o objeto a que ele repugnaretirar para servir o gozo do Outro” (notas do curso).

Essa figura ambígua do controle encontra-se explicitamente em umsonho: ”Fui recebido no Barclay Bank onde aceitam somente clientes quepossuem certo nível de remuneração. Uma brochura (dentro do banco) falado prêmio dado a certa Shirley MacKeen por ter sabido recusar os clientesindesejáveis com a maior elegância e segurança... isso me faz pensar emKaren Queensland, essa jovem mulher mantida por tanto tempo numasobrevida artificial”. Vemos aí a aliança do S1 (a segurança) e o objeto a (aelegância), o “mac queen”, verdadeiramente, um corpo suspenso, com aameaça do desligamento. Em um outro sonho se vê esse objeto ineliminável:“Cacos de vidro: jamais chegava ao final dos pedaços de vidro, embora sem-

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pre o procurasse; no espremedor de frutas que quebraria o sistema”. Aqui oobjeto a aparece particularmente “substancial”.

Outro sonho mostra a castração negada por uma operação de presti-digitação assim como a desqualificação do phallus em relação ao objetoanal. “Um pequeno camundongo ‘muito limpo’, com uma bela pelagem, comoum gato. Minha prima estava fixada no animalzinho. Eu pensei que fosse umrato. Ele tinha uma cauda horrível, sem pêlos, escondida sob a pelagem...muito mais curta (!). Eu toquei na cauda, ela caiu. Minha prima: – não temproblema, é só colocá-la de volta. Eu a recoloquei pela fenda, ela ficou. Eraum camundongo totalmente imóvel, morto”.

Esse sonho foi produzido durante uma sessão solicitada pelo pacien-te com urgência, pelo terror incontrolável de estar acometido pela escleroseem placas, justamente quando sua mulher estava grávida.

A propósito dos pensamentos sacrílegos do homem dos ratos (au-sentes neste paciente), C. Melman assinalava que eles foram proferidos apartir do objeto que deveria ser abandonado ao Outro e, que o obsessivoretinha para seu gozo: “seguramente o objeto seria cortado e mantido nolugar, de maneira que abre uma interrogação sobre a pertinência do corte, jáque ele, finalmente, não seria renunciado... [...] de onde o convite ao últimoato (cortar-se a garganta) [...]: tudo se passa como se, à falta de um ato queseria fundador, o certo, alguma coisa vinha sem cessar de se apresentar aoespírito do obsessivo, a recordação de uma dívida no que concerne ao atocamuflado, encoberto... aparência de ato”. (notas do curso)

Em outros momentos, o paciente apresentava outras manifestaçõesorgânicas no âmbito do olho: miopia severa com risco de descolamento daretina e eczema nos supercílios que foram tratados durante o tratamento, demaneira totalmente independente,

Em resumo, o corte singular do sujeito na neurose obsessiva:– identifica o sujeito do lado masculino, apóia-se, portanto sobre a

metáfora paterna, mas elude a castração,– substitui uma causalidade objetal por uma causalidade fundada na

sucessão lógica do pensamento,

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SEÇÃO TEMÁTICA

– instaura um sistema de querelas, de isolamento contra a contami-nação pelo objeto não cedido,

– deixa o sentimento de uma falta do ato original,– no total, divide sem cortar.Se o sujeito se origina de um ato fundador representado no cross-cap

pela laçada dupla, é de uma falha desse enlaçamento, ao seu insucesso,que deve se referir a neurose obsessiva.

Após uma primeira volta operada em torno do phallus que imprimeefetivamente sua gravitação, o corte não se enlaça num segundo tempo.Este aqui faltante, o corte perseguirá seu trajeto em espiral, indefinidamente,sem poder se encontrar.

Não existe uma 3ª ou 4ª volta que possa se fechar no cross-cap.Fig. 1. Trajeto do corte obsessivo (infinito).Fig. 2 Trajeto do corte fundador do sujeito (laçada dupla).Para uma melhor visualização podemos cortar o cross-cap e o esten-

der sobre o plano da folha, indicando a correspondência dos bordos a seremsuturados para reconstruí-lo (respeitando o sentido das flechas).

Fig. 3 Esquema da laçada dupla.Fig. 4 Esquema do corte obsessivo.Fig. 5 O limite centrípeto.Fig. 6 O limite centrífugo.Partindo do ponto a, o corte faz uma primeira travessia até a sutura do

ponto b. Partindo daí, em vez de unir o ponto a e se enlaçar num segundotempo, ele o deixa e vem no ponto c, onde ele segue seu curso até o pontod, etc... sem nunca poder encontrar o ponto a (a não ser que de se recortara si mesmo) (Fig 4).

A outra extremidade pode correr no sentido inverso, para x depoispara y etc., encerrando o ponto phi, cada vez mais próximo, mas sem oalcançar (Fig.5). Assim, o corte avança em espiral pelas suas duas extremi-dades, explorando todo o campo da realidade psíquica. Se considerarmosque o objeto é a parte do campo centrado pelo phallus vê-se que ele toma aforma dessa lâmina caminhante nos intervalos do corte. Ele jamais cedeu,

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mas encontra-se, ao contrário, tão distante para que seja cortado e, guiadopor ele, faz um caminho na parte mœbiana, que é aquela do sujeito.

Reencontramos aqui uma representação que evoca a proposição for-mulada por Charles Melman, segundo a qual o real na neurose obsessivanão seria suportado no nó borromeano, em um círculo distinto, e se encon-traria em referência às extremidades do simbólico apresentado sob a formade uma reta infinita.

Do mesmo modo esse tipo de corte explica o funcionamento mentaldo obsessivo que parece estruturado pelos números reais e não pelos núme-ros naturais. Estes últimos, engendrados em um ato fundador pelo qual o 0(zero), o não idêntico a si, simbolizado pela laçada dupla, sendo contadocomo um, a partir disso o dois, o três etc., são possíveis como sucessores.Da mesma forma que há na observação do homem dos ratos uma incidênciamarcante do um e meio, há no nosso paciente um evitamento do dois, quecompreendemos como o eco da recusa desse ato fundador.

Entretanto, por ser infinito, esse corte se inscreve entre dois limites.– O ponto phi de um lado, indefinidamente aproximado, no sentido da

“gravitação fálica”.– O outro, no sentido centrífugo, constituiu com uma linha m – m’ que

corta o cross-cap como uma laçada simples, com uma volta (Fig.6). Nasjornadas de psicossomáticas (“O trimestre psicanalítico”, Nº5), propus que alaçada simples presentifica o corte na obra da patologia psicossomática,sempre ameaçando o paciente. Resta-nos salientar que a ameaça ocularjamais serviu de suporte para sua angústia.

Se for pertinente, isso nos levará a considerar a patologia psicossomá-tica como podendo, nessa estrutura, resultar de uma tentativa de fechamen-to que recusaria, entretanto, a castração, o forçamento de um ato sem oconsentimento à perda do objeto.

Enfim, a dissimetria aparente dos dois infinitos desse corte, não o ésem relembrar a “diplopia” própria no desejo feminino tensionado de um ladopara o phallus e de outra para S ( A )4. Existem alguns paradoxos que espe-

5 Significante do Outro barrado, ou de uma falta no campo do Outro.

VANDERMERSCH, B. Ensaio sobre a topologia...

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SEÇÃO TEMÁTICA

cificam a neurose “masculina” por excelência de um corte topológico aparen-temente feminilizante. Talvez haja aqui uma pista a explorar?

No total, os resultados heurísticos de nosso caminho parecerão redu-zidos. Vemos com que finura o real da topologia se separa da analogia ima-ginária (que se impõe mais, é verdade, com as superfícies do que com osnós). Com a topologia, há um retorno do recurso ao imaginário, só que umimaginário mais cru, menos preso ao sentido. Do mesmo modo, ele arriscaaparecer mais achatado e somente colocado à prova se verificará a pertinênciae principalmente pela crítica que o leitor poderá fazer.

Figuras:

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A QUESTÃO DA TRANSFERÊNCIA NAS PARANÓIAS1

Louis Sciara2

Tradução: Patrícia Ramos e Ana Maria Gageiro

Há muitos anos atrás, analista ainda principiante, recebo no consultó-rio uma mulher – com sintomas de aparência neurótica – que meformula um pedido de análise. Após algumas entrevistas prelimina-

res, aceito analisá-la, julgando estarem reunidas as condições de sua de-manda. Ao final de algumas sessões, desencadeia-se um delírio de vertentedupla erotomaníaca e persecutória no momento em que alude a uma opera-ção de apendicite na adolescência.

A ablação, isto é, a subtração do apêndice é evocada como umamanipulação sexual e uma privação real por parte do cirurgião. O tratamentono divã, nas mãos do psicanalista, à sua mercê, revela, em sua subjetivação,uma nova manipulação e uma embromação sexual sobre o corpo real, jáque, desvelando-se pela palavra, ela se desnuda em uma nova operação...agora analítica.

Em outras palavras, essa paciente não resistiu à transferência: amesma constelação significante (estar nas mãos de um operador em umasituação “terapêutica”) desperta o que foi percebido pela paciente como umaprivação real do falo (apêndice) e desencadeia no plano imaginário uma ativi-dade delirante, exatamente onde, na simbólica, o referente (falo simbólico)não pode operar como falta na cadeia significante, não havendo castração.

Essa vinheta clínica introduz meu propósito: o clínico nunca sabe deinício com quem está lidando, ao que está aceitando dar ouvidos, o que podedesencadear. O porquê da importância das entrevistas preliminares e danecessidade de ser “conhecedor” daquilo que nos reúne hoje, a clínica dasparanóias e, de modo mais amplo, a das psicoses.

1 Título original: La question du transfert dans les paranoïas.2 Psicanalista, Psiquiatra, membro da Association Lacanienne Internationale.

SCIARA, L. A questão da transferência...

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SEÇÃO TEMÁTICA

O clínico aprende muito com as surpresas e com os fracassos, inclu-sive com estes últimos, quando não comete nenhum erro técnico. Sempre éa estrutura do paciente que guia.

Portanto, o psicanalista lida com o Real em seu ato.Cabe a ele determinar suas manifestações (sintomas diversos da an-

gústia, fenômenos psicossomáticos, acting out e/ou atuações e, especifica-mente nos casos de psicoses, fenômenos elementares), fazer delas umaleitura, o mais clara possível, no seio do dispositivo transferencial no qual eleestá envolvido e interessado. Convém lembrar que a clínica psicanalítica éuma clínica da transferência, da relação com o Outro.

Na proposta de 09/10/1967 endereçada aos psicanalistas de sua es-cola, J. Lacan estabelece como exigência ética que ao psicanalista nãobasta se autorizar a saber que não sabe nada, “pois, escreve ele, trata-se doque ele deve saber”. E acrescento, saber o particular das diferenças estrutu-rais, e caso por caso, o que poderia singularizar o falasser que se dirige a ele.

Trabalhando há algum tempo sobre a “transferência psicótica”, Jean-Luc Ferretto e eu fizemos questão de intervir em dupla, apoiando-nos nosrevezes e, ao mesmo tempo, também no que, por vezes, é “praticável” comfalasseres psicóticos.

À luz de nossas experiências clínicas, como restituir o trabalho clínicocom eles? O que pode ser específico a essa transferência, cujas coordena-das são radicalmente distintas daquelas da transferência com neuróticos?

Pode o termo transferência ser questionado?Vamos dar algumas opiniões sobre essas questões a partir de nossa

práxis com “sujeitos” no campo da paranóia, que nos reúne hoje.Aproveito para relembrar alguns dados essenciais:A exemplo de Freud que, para estabelecer uma clínica analítica das

psicoses, se baseara no caso Schreber e nos trabalhos de psiquiatras comos quais discutia, Lacan contribuiu para aperfeiçoar a clínica da paranóiadurante toda sua elaboração, fazendo dela, fiel a Freud, a pedra angular daclínica psicanalítica das psicoses. Ao longo de sua trajetória (desde suatese, o estádio do espelho, “as estruturas freudianas das psicoses” e “a

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questão preliminar”, até os seminários “Os não tolos erram”, “RSI” e o “Osinthoma”), ele buscou suporte nos trabalhos de psiquiatras clássicos, taiscomo Kraepelin, Séglas, De Clérambault, Cotard, etc. Lembrem-se de que,no seminário sobre as psicoses, ele se apóia e, num mesmo movimento,desmonta a definição princeps de Kraepelin: aquela de um paranóico coe-rente, implacável, lógico, espírito frio e esclarecido, maléfico em respostaao que outros o fariam passar. Lacan dele desvela, antes, os efeitos de umaestrutura que tem, é verdade, uma certa coesão, mas que não deve nosenganar: é a própria estrutura de uma automaticidade de linguagem infernalque mais submete o paranóico do que ele dispõe dela, como se supuseraaté então.

Acerca de Schreber, Freud escrevia que lhe parecia “mais essencialconservar a paranóia como entidade clínica independente, apesar do fato deque seu quadro clínico se complica tão freqüentemente com traçosesquizofrênicos”.

Na mesma perspectiva, Lacan propunha, na Lição 1 das “Estruturasfreudianas das psicoses”, atribuir “a maior extensão, a maior flexibilidade aotermo paranóia”..., reconhecer “o caráter exemplar e significativo deste cam-po particular das psicoses” e “refazer a classificação da paranóia a partir debases totalmente novas”.

Assim, o campo analítico e mais particularmente lacaniano da para-nóia, sem se diluir numa extensão infinita, repousa sobre uma acepção mui-to mais ampla do que, por exemplo, aquela mais clássica dos psiquiatrasfranceses do final do século XIX e do início do XX. Lacan enfatiza a estrutura,a co-variância dos fenômenos, a pluralidade das paranóias dentro de ummesmo campo. Ele não se limita ao mecanismo descritivo e que seria espe-cífico do tipo de psicose crônica (aqui, falo sobretudo da interpretação deli-rante), nem à sua temática.

Há algo maior em jogo em tudo isso: a paranóia sempre permitiu umaelaboração analítica das psicoses; além disso, não se deve esquecer que,na evolução contemporânea da psiquiatria, privilegia-se a esquizofrenia, re-duzindo a paranóia a casos de delírio, para os quais somente importa o uso

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de psicotrópicos e a vigilância contra o risco de atuação. O rótulo “paranói-co”, sem ser ingênuo sobre sua periculosidade potencial, é freqüentementesinônimo de pacientes irrecuperáveis, dos quais é desaconselhado se apro-ximar demais, ao passo que Freud e Lacan não falaram de trabalho analítico“possível” senão com paranóicos (Schreber, parafrênico ou paranóico?).

Lembremos simplesmente que poderíamos englobar no campo daparanóia todo falasser psicótico que desenvolva uma atividade delirante. Ofato de se tornar sistematizada, de produzir “cristalização”, como escreviaSéglas, pode assegurar assim uma subjetivação que dá alguma estabilidadeno plano clínico, que se acompanha na maioria das vezes de outros fenôme-nos elementares (alucinações, distúrbios lingüísticos no mínimo...). No me-lhor dos casos, a constituição de uma metáfora delirante é provavelmente oindício mais concludente do que é “trabalhável” com um paranóico. Conformeo tipo de paranóias, há uma grande disparidade apesar de tudo. O postuladofundamental do psicótico passional permanece imutável, não oferecendonenhuma possibilidade dialética, ao passo que a sensitividade de Kretschmerse presta a um certo dialetizável nos momentos desencadeadores de de-pressão.

De um ponto de vista analítico, há outros elementos mais importantesque incluem falasseres no campo das paranóias:

O primeiro deles concerne à questão do eu, a da imagem especular.Em seu seminário II (“O eu na teoria de Freud...”), Lacan esclarecia que,diferentemente da esquizofrenia, a paranóia está sempre em relação com aalienação imaginária do eu. As paranóias são psicoses egóicas.

Desde sua tese (“Da psicose paranóica em suas relações com a per-sonalidade”, 1932) até o seminário “Sinthoma” (1975), Lacan evidenciou apersonalidade do paranóico, isto é, sua base egóica, afirmando afinal que apersonalidade e a paranóia são uma única e mesma coisa. Assim, o campoparanóico é aquele de uma certa consistência da personalidade.

Houve um impacto inegável do estádio do espelho, que não se encon-tra no campo das psicoses não-egóicas (as esquizofrenias, os delírios deimaginação e, mais amplamente, as parafrenias).

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O fato de a constituição de um sujeito passar pela instauração daimagem especular permite compreender que o que Lacan chamava de eixoimaginário – eixo a-a’, isto é, a maneira como um sujeito pode se representarpor seu eu apoiando-se na imagem do outro, se instaura nas paranóias. Ofracasso da dimensão simbólica que aí se articula, aquela do Outro, daAlteridade, via malogro da castração na linguagem, na cadeia significante,não permite, no entanto, fazer dos paranóicos, neuróticos.

Charles Melman contribuiu muito para a reflexão sobre a proximidadeda paranóia psicótica com a paranóia comum própria aos neuróticos, vistoque o eu do neurótico tem sempre uma dimensão paranóica. O estádio doespelho constitutivo do sujeito repousa, via outro, no ciúme, na rivalidade, noamor, na agressividade. Melman afirma, por exemplo, que a questão do ciú-me ordinário permite compreender melhor o que se passa nos delírios deciúme. Remeto a seu seminário sobre “as paranóias”. Lembremos que aimagem especular é globalmente estabelecida mesmo que o estatuto daimagem não seja realmente do mesmo registro que para o neurótico. Reme-to aos trabalhos de Stéphane Thibierge sobre a síndrome de Frégoli ou ailusão dos sósias (disjunção da imagem e do objeto em i(a), que é a escritada imagem especular do neurótico), que também tangem às paranóias. Épreciso ter em mente, sobretudo que a relação com o Outro não foi correta-mente simbolizada, o que tem repercussão sobre a imagem especular, pois,ao contrário do neurótico, não há falta (não o buraco do objeto a) nestaimagem estrutural própria à paranóia, o que lhe confere um estatuto diferen-ciado de imagem ou de representação em relação àquele do falasser neuró-tico. Fundamentalmente, se há prevalência do eixo imaginário, e como oparanóico tem um bom uso da língua, isso indica que há, sim, um lugar doOutro, mas, como todo psicótico, o paranóico se encontra em um dispositivoestrutural que exclui esse lugar do Outro.

O registro simbólico, o do significante, foi primeiramente prevalenteem Lacan, que distinguiu uma base comum a toda psicose a partir de umareleitura de Schreber e de um retorno a Freud no seminário consagrado àspsicoses (1955-56). Esse mecanismo é o da forclusão do Nome-do-Pai. Lacan

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nunca o contradisse, mesmo tendo atenuado sua localização e, sobretudosua leitura em seus seminários dos anos 70 sobre a topologia dos nós.Dando menos substância a esse significante do Nome-do-Pai, o da funçãopaterna, ele valorizou os nomes do Pai, ou seja, sua pluralidade, laicizandode fato essa função mítica do Pai, e privilegiando-a no sentido do Pai comonome, como nomeante, atribuindo a essa função de nomeação o estatuto deum quarto círculo que enlaça borromeanamente os três círculos do real, dosimbólico e do imaginário.

Em “RSI”, Lacan designa esse quarto círculo como o do Édipo, massobretudo do sintoma, isto é, o que é a marca individual do sujeito neurótico.

Nas psicoses, não há nem sintoma no sentido freudiano, nem essanomeação do Pai como NOMEANTE, o que não enlaça os três registros.Assim, a forclusão do pai como nomeante caracteriza a estruturação psicótica.Mas, se nas psicoses não-egóicas é sobretudo um desenlaçamento (àsvezes, é uma separação total dos registros como nas esquizofrenias), Lacanesclarece que, na paranóia, trata-se de um nó de trevo: real, simbólico eimaginário estão em continuidade e têm uma mesma consistência. A esserespeito, Melman reconhece nesse nó de trevo uma paranóia “curada”, afir-mando que “a organização paranóica pode constituir o modo de cura de umapsicose”. Essa paranóia “bem-sucedida” seria aquela em que o paranóicoconsegue constituir um sujeito Uno, aquela que seria intolerável para osoutros no laço social, já que ele os trataria como verdadeiros objetos a, istoé, como dejetos.

Lacan introduzirá então o “sinthoma” enquanto suplência como moda-lidade “de desdobramento do simbólico” em ação em muitas psicoses, es-pécie de quarto círculo que evita o desenlaçamento dos três registros e quepresentificaria uma forma de estrutura paranóica que fica.

Assim, com essa ampliação de sua concepção da forclusão do Nome-do-Pai, Lacan nos deixa entrever a grande variedade fenomenológica daspsicoses, que obedecem a modalidades transferenciais diversas. QuandoLacan evocava a extensão dos efeitos da forclusão do Nome-do-Pai, tratava-se não de uma parcialização desse mecanismo (que obedece, antes, ao

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tudo ou ao nada), mas mais especificamente de uma maneira de dar contade formas não borromeanas do enlaçamento dos registros, com ou semsinthoma. Que importância atribuir então à existência de uma metáfora deli-rante (isto, é, de uma atividade no registro imaginário)? Como considerá-la?Como uma modalidade do imaginário, onde o círculo do imaginário se enlaçanão borromeanamente com os outros dois registros do simbólico e do real?Ou como uma suplência, que vem duplicar o círculo do imaginário?

No seminário “As Paranóias” (1999-2001), Melman levanta outroquestionamento e faz outra leitura do conceito de forclusão do Nome-do-Paicomo específico a todas as psicoses. Ele propõe separar bem dois tipos depsicoses (última lição, p. 371): de um lado, a paranóia, em que “a instânciafálica aparece um pouco demais no real” (essa instância normalmenteoperante, mas indeterminável e faltante no real); do outro, aquelas em que “asignificação fálica se encontra evacuada”, expondo o infeliz sujeito “aononsense do Outro”, salvo que “esse lugar do Outro permanece habitado portoda uma série de fórmulas, de frases... de injunções... e que não deixam decircular” (alusão manifesta aos fenômenos elementares). Nestas últimas,seria o objeto a do real que estaria diretamente no comando (abundância dosobjetos – voz e olhar – tão tirânicos clinicamente); na paranóia, seriaprioritariamente o falo. A paranóia seria uma psicose de mais-de-gozar dofalo (em sua prevalência imaginária), e não do objeto a.

Compartilho esses elementos com vocês para enriquecer o debateque, à leitura do seminário de Melman, se tornou bem mais complexo paramim.

O ponto que permanece mais vivo e mais pertinente clinicamente équando Melman lembra o quanto o paranóico vem encarnar a instância fálicana realidade, visto que é objeto, como ele exprime, por meio de suas inter-pretações delirantes ou de suas alucinações vozeadas, de todas as aten-ções e malversações. O paranóico se coloca no lugar mesmo da instânciafálica (B. Vandermersch diz que ele ocupa, antes, o lugar do significante nafalta de falo simbólico), forcluído de toda Alteridade, ou vindo encarnar essaAlteridade, enquanto Todo fálico. Ao menos um sobre o qual conflui o conjun-

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to das significações (esta famosa “significação pessoal” dos fenômenos ele-mentares). Por exemplo, um paciente observava para mim que, desde pe-queno, estava convicto de que os meios de comunicação falavam dele, deque o mundo fora criado em sua intenção, para ele. Podemos reconhecernesse nível a interpretação delirante de Sérieux e Capgras e o passional deexceção do ciumento delirante ou do reivindicador. Ao passo que o erotômanovem se apoiar em seu dito-objeto de amor que não é senão um igual parafazer Um com o Outro, Um total, completo e Real. No sensitivo, o aspectofálico em questão está presente, mas ao mesmo tempo muito mais nuançado.

Após esse reconhecimento estrutural preliminar, vou abordar sob aforma de precisões, observações e questões, o que concerne à transferêncianas psicoses. Por que a paranóia, mais exatamente o campo das paranóias,seria mais acessível à transferência que as outras psicoses (parto de umenquadramento amplo e, portanto, esquemático)? Por diversas razões:

A consistência egóica está instalada e permite sustentar “uma perso-nalidade”, uma “subjetivação” com elaborações, mais ou menos tênues emfunção das capacidades de criação próprias ao “sujeito” (não é Schreberquem quer), o conjunto sustentado por um amparo simbólico na linguagemestruturado com um uso possível do significante, mesmo que a psicose nãopermita reconhecer a falha no significante (de S1 a S2 não há interstício,buraco, devido à defecção da queda do objeto a). Não impede que uma apti-dão à verbalização seja muito mais clara do que nas psicoses não-egóicas.

O tecido delirante é uma base imaginária que pode tamponar, enlaçar,até mesmo ligar Simbólico e Real (ao passo que, nas esquizofrenias, “todo osimbólico se torna Real”, dizia Lacan), em particular quando uma “cristaliza-ção” vem fixar e apaziguar o paranóico.

Os fenômenos elementares como manifestações do Real do objeto ae que se impõem ao paranóico se articulam e fazem corpo com o delírio,vindo alimentá-lo, ou se imiscuindo como preliminar a esse delírio. O campoda paranóia não se restringe apenas às interpretações delirantes.

Além disso, Lacan e outros psicanalistas receberam, nos últimos cin-qüenta anos, psicóticos paranóicos em seus divãs, transmitindo-nos, atra-

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vés de sua experiência, elaborações sobre a transferência psicótica (cito ostrabalhos de Perrier, Maleval, Melman, Czermak, Landman, Pommier, Izcovichrecentemente, etc.). O amódio 3 de Schreber pelo professor Flechsig nosensinou muito sobre o caráter delicado do “manejo” da transferência, sobreseu caráter irresistível (“os psicóticos não resistem à transferência”, M.Czermak).

M. Czermak evoca a “decomposição espectral” da transferênciapsicótica para salientar que, com um falasser psicótico, o que faz laço ho-mogêneo para o neurótico entre ideal do eu, eu, falo, objeto, Outro, outro,revela-se em toda sua crueza e sua fragmentação nas diversas manifesta-ções clínicas e, portanto, transferenciais. Não se deve nunca subestimar oimpacto da automaticidade da linguagem em todos os casos.

Entretanto, se a transferência psicótica pede, portanto, a prudência, éverdade que os paranóicos em tratamento, no divã, permanecem raros. Émelhor pensar duas vezes antes de deitá-los no divã e aceitar a demanda. Omomento em que sobrevém a demanda é evidentemente capital, isso exclui,é claro, qualquer veleidade analítica numa fase aguda da patologia. As sur-presas mais comuns são as do desencadeamento de uma paranóia, na situ-ação em que se previa, supunha a análise de um neurótico, como no casoque relatei no início. Acrescento que um duplo acompanhamento analítico epsiquiátrico é relativamente freqüente em minha experiência; não se deveesquecer a sedação de gozo que o uso de psicotrópicos bem ajustado podetrazer. Por outro lado, não é impossível que certos falasseres paranóicosconsigam, pelo trabalho de um tratamento, uma estabilização de seu delírio.

Para Freud, em “Introdução à psicanálise”, era explícito: “os pacien-tes que sofrem de neurose narcísica não têm a faculdade da transferência...eles permanecem o que são... não podemos mudar nada disso”. Quanto aLacan, as referências à transferência psicótica não se encontram nem noseminário “A transferência”, nem em “O ato psicanalítico”. Sua “questão pre-

3 Em francês, hainamoration. Lê-se “enamoracion” = ódio (haine) + “enamoração”.

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liminar” dos “Escritos” (1957-8) constituiu uma abertura inegável para a trans-ferência psicótica, mas ele não propôs uma escrita dela, como a da transfe-rência neurótica na “Proposição de 1967”. Em um artigo da revista Lacélibataire (no 4), Claude Landman retoma este matema, que deve ser com-preendido como uma determinação de Lacan quando ele trabalha a lógica.Ele escrevia então:

Onde s é o lugar do sujeito que se põe a enunciar os significantes deseu saber inconsciente (S1, S2, Sn). É também o lugar do analista. A barraé a do recalcamento. Desse saber, há algo que se diz independentementedo sujeito que fala; s é representado por S, o significante da transferência deum sujeito, “nomeável por um nome próprio, para um Sq, um significantequalquer”.

A seta indica a dinâmica do tratamento, onde se mobilizam e se pro-duzem os significantes primordiais do sujeito, em uma certa ordem. O fim dotratamento se traduz pela redução do nome próprio a um significante qual-quer, o que dá conta da precariedade de um sujeito dividido, que não é senãolevado por um significante para um outro significante. À medida que a psica-nálise avança, o sujeito suposto saber de que o analista era o suporte édestituído. O fim da partida ilustra o que o discurso analítico instala, ou seja,o analista vem ocupar este lugar de objeto a, de semblante, e de agente nodesenrolar do tratamento.

Na transferência psicótica, essa escrita não é possível. O que resultadisso?

Não há sujeito suposto saber, “o pivô de onde se articula tudo o quetange à transferência” (inscrito como SsS e já evocado em “A transferência”no artigo “O engano do sujeito suposto saber”, em Scilicet).

Isso quer dizer que o próprio conceito de transferência é inadaptadoou obsoleto nas psicoses? Acredito que se deve manter o termo porque ele

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é ditado pelo real da clínica das psicoses e porque não se trata de fossilizá-la enquanto conceito universitário aplicado e determinado por uma leiturasomente neurótica da clínica. O importante é conhecer justamente suascoordenadas, diferentes daquelas da transferência neurótica quanto aos es-tatutos do sujeito, do objeto, da relação com o Outro e do pequeno outro.

O psicótico lida não com uma suposição do que o psicanalista sabe-ria, poderia saber, mas com uma certeza de que ele sabe que o Outro sabe.O outro seria detentor de um saber absoluto que lhe possibilitaria tomar asrédeas, até mesmo manipulá-lo, obrigá-lo a produzir com toda transparênciaum saber a serviço de seu gozo. E eis nosso psicótico às voltas com umOutro onisciente que o psicanalista poderia vir encarnar.

Não há recalcamento – barra – portanto, não há saber inconsciente,isto é, saber vazado. O saber do falasser psicótico é automático, sem bura-co, constituído de uma disposição de puros significantes que não têm valorde significantes, já que não remetem a outros significantes, mas se reduzema signos que se entrelaçam em um tecido imaginário, que poderia se focali-zar em torno de uma metáfora delirante.

Tanto nas paranóias quanto em toda psicose, e mesmo que o falo seerija como componente egóico ostensivo, sob a forma de uma megalomania,é também uma transferência sob comando direto do objeto a, real. Diretoporque sem a mediação de uma fantasia ($¸a) como na neurose, o que fazcom que o psicótico tenha uma relação de contigüidade mais clara com oobjeto, que permanece sempre velado na neurose.

Enfim, o sujeito paranóico se toma por seu eu, o que é diferente dosujeito dividido, sempre evanescente. Ele é falado, ainda que clinicamentehaja nuanças, sem equívoco significante, sem jogo entre significante e signi-ficado (os quais são disjuntos ou colabados em uma concreção significante(neologismo, holófrase).

Em suma, desde o início, quando um paranóico se dirige a um analis-ta ou a um clínico em geral, não há endereçamento a um sujeito supostosaber, mas uma demanda tomada em uma Automaticidade do Outro, isto é,de um Outro real constituído de puros significantes que desfilam. Mas, como

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o que caracteriza o campo da paranóia é a existência de um tecido significantedelirante, o analista vai se encontrar ao mesmo tempo como o detentor deum Saber Todo, mas também como aquele que poderia contribuir para umapacificação desse delírio, nele introduzindo algo de um saber dizer, que po-deria fazer buraco na certeza. Seria assim o “praticável” da transferênciapsicótica: abrandar a convicção paranóica.

Mas, então, como o paranóico poderia ficar sem o analista a longoprazo, o qual serviria de sinthoma nesta figuração?

Em todos os casos, o ponto de fixação delirante será mantido, masuma parte de dialética será inserida. Com o tempo, os remanejos são sem-pre possíveis, e o analista sempre terá surpresas.

M. Czermak insiste, sobretudo na injunção imperativa do objeto acomo verdadeira dificuldade na transferência psicótica, pois o objeto éintratável; toma principalmente o exemplo da psicose maníaco-depressiva,em que o objeto está em primeiro plano. Talvez haja um tratamento possívelmais amplo com o campo das paranóias se for menos a Automaticidade doobjeto do que a irrupção do falo real que se salienta e prevalece, comoindica Melman.

Nas paranóias, não é a disparidade (em face de um sujeito supostosaber, é verdade, em todas as psicoses), mas a paridade que está em pri-meiro plano, já que o eixo imaginário se impõe. Seria necessário identificarmelhor o estatuto da imagem, isto é, a relação com o outro, com a aparência(ou semblante), com a marionete, ou com a “imagem fascinante, aspirante epersecutória” (C. Landman – “Lacan et le traitement psychanalytique de lapsychose”, La célibataire, nº 4). Em suma, de que alter ego se trataria? Emtodo caso, essa disposição imaginária do paranóico provavelmente facilita arelação transferencial, se o psicanalista souber de que se trata e puder seprestar a isso.

Resta que, se o falo emerge do Real na realidade e vem se encarnarpelo falasser mesmo, este não somente se torna o ponto de convergência detudo o que pode cercá-lo, mas ocupa um estatuto de exceção, de Ao-me-nos-um, o que não torna muito fácil o manejo da transferência.

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O problema é flagrante com as psicoses passionais em que a forclusãodo lugar do Outro faz com que o “sujeito” paranóico venha ocupar um lugarde Outro Real, representando por si só uma alteridade real: o ao-menos-umque seria o justo dos justos no reivindicador, o ao-menos- um que faria Umcom o outro reduzido a seu objeto real mesmo para o erotômano, o ao-menos-um ciumento, paradigma daquele que seria expulso da confraria dosgozos. São quase nulas as possibilidades de tratamento para passionaisem que o trabalho de remanejo do delírio é praticamente impossível e emque o postulado fundamental se instalou de início.

Quanto às paranóias sensitivas, elas ocupam um lugar à parte nocampo das paranóias, já que se desenvolvem quase sistematicamente apartir de conflitos éticos (sexuais ou profissionais), exatamente onde a ques-tão do falo é sempre maior. Elas são, de certo modo, uma referência para asparanóias, tal como Melman as evoca, ou seja, nesta “emergência do falo noreal”. Devido à sua fineza de elaboração e a uma capacidade dialética incon-testável, os sensitivos manifestam muito particularmente uma interrogaçãode um estatuto do eu questionador. Provavelmente, o manejo da transferên-cia é mais simples do que em outras paranóias, na medida em que o analis-ta se encontra mais facilmente como alter ego, o que poderia permitir traba-lhar “melhor” com o paciente seu material significante, esperando negociarmelhor com ele, o que gira em torno do prejuízo sofrido. A humilhaçãofreqüentemente evidenciada poderia ser assim atenuada.

Terminarei minha comunicação por minha experiência com interpre-tativos típicos Sérieux e Capgras, que apresentam particularidades transfe-renciais.

O delírio de interpretação se desenvolve em rede, e se há uma certaestabilização dos puros significantes desse delírio, provavelmente se possa,se o interpretativo consentir nisso, se afastar da certeza que está ligada aisso, mesmo que o núcleo significante da metáfora delirante permaneçaintacto.

De uma inércia dialética, é possível que um deslocamento possa seoperar para uma menor convicção. Por isso, fiquei surpreso ao constatar que

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4 No original em francês normativer (que constitui uma norma).5 Em francês, analysants “normés” e “psychose normée”, isto é, dentro da norma.

“o amor ao conhecimento” e à verdade, tão cara aos paranóicos, com esseesforço (mesmo na automaticidade) de lógica e de coerência que os carac-teriza, pode ser um excelente suporte. Em particular, com o formalismo deum saber ‘autenticado psicanálise’ que uma distância possa se criar à forçade ‘injeção’, pelo próprio paciente, de significantes psicanalíticos, pode con-tribuir a acrescentar imaginário, mesmo normativar4, entre simbólico e real,separando-os. Um saber de conhecimento, seja qual for, que alimente esseamor à verdade pode contribuir para isso.

Os paranóicos podem, assim, tornar-se analisantes “normatizados”(M. Czermak emprega a expressão psicose normatizada5) em que o gozoatinente a seu delírio pode dar lugar, em parte, a uma nova forma de gozoapoiada em um saber que se constrói no tratamento (assim como a ficçãoedipiana, enquanto teoria psicanalítica, é freqüentemente objeto de raciona-lizações, o que atenua o buraco de significação ligado aos fracassos dametáfora paterna), e que não será nunca, no entanto, um saber vazado comoo do neurótico.

Essa conjuntura de neoalienação (neoortopedia egóica?) levanta, ain-da assim, o delicado problema de um tratamento sem fim, a necessidade deuma presença real do psicanalista correndo o risco de se eternizar. Ele fazsinthoma, prótese significante que se articula à elaboração significante doparanóico, participando de seu remanejo? Como o analista poderia então selibertar dele, e o paranóico acabar por se virar sozinho?

O tratamento de analisantes paranóicos (interpretativos e provavel-mente mais ainda sensitivos) obedece em todos os casos a uma dupla exi-gência que pode torná-lo praticável:

De um lado, se o analista encarna o Outro real que goza, ele se tornaperseguidor, ou aquele com o qual o paranóico goza, e é a erotomaniamortificante com o amódio radical que a subentende. Essa ocorrência não

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dá mais então lugar, espaço ao “sujeito paranóico” integrado no espaço doOutro real e que poderia vir se equivaler ao objeto até se cotardizar em umamorte de sujeito reiterada. Poderíamos dizer que o “fenômeno da parededivisória” (C. Melman) permite ao paranóico ficar na sua posição, protegerseu espaço de sujeito e não afundar se encontrando sem lugar, atribuindo aoOutro, reduzido a um pequeno outro ameaçador, o maléfico, do outro lado daparede, mas estando em contrapartida seguro de se posicionar em um espa-ço que o protege, e o faz existir como “sujeito”, a exemplo dos fenômenosvozeados. Trata-se, pois, de evitar esse lugar Outro, mas isso é tão simplesna automaticidade da transferência? A posição do analista em relação aosaber desempenha certamente um papel importante (seu estilo, seu savoir-faire e saber-dizer), mesmo que isso não baste. B. Vandermersch expressaisso muito bem (in: “As Paranóias”, C. Melman, p. 214): “por que não elabo-rar com ele, se ele estiver aberto a isso, o que poderia esclarecê-lo sobresua posição especial, apoiando-nos no que sabemos de seu lugar na estru-tura?”. E acrescenta: “não podendo duvidar, pelo menos o paranóico podeapreciar que se saiba não saber demais”. Introdução de uma dimensão desujeito suposto saber onde ela não existia, onde o analista estava em lugarOutro de um Todo saber?

Por outro lado, a única posição sustentável para o analista é tentar sesituar em posição de pequeno outro. Por exemplo, em uma espécie decompartilhamento do questionamento do paciente, não somente sobre seucaso, mas em nome de um conhecimento, inclusive psicanalítico.

Resta em suspenso uma última pergunta que não é somente minha,ou seja: o que se dá com o desejo do psicanalista na transferência comparanóicos?

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DOM QUIXOTE (O AVESSO DOAVESSO DA LOUCURA II)

Sueli Souza dos Santos1

No Correio sobre “O ato psicanalítico”, de agosto de 2006, busqueitrabalhar algumas questões concernentes aos paradoxos no sujeitoentre a fala e a linguagem na psicose, tendo como suporte literário,

D.Quixote, criado por Cervantes em 1604, quando publica o que seria suaobra universal, “O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha”. Cavaleiroandante, perdido em um mundo particular, seu mundo, cria personagens quevão se movimentar entre o sonho e a realidade onde se confunde delírio comverdade.

O herói, também conhecido por Cavaleiro da Triste Figura, em seusdelírios lutava por um mundo mais justo, defendendo os fracos. Buscavasempre conquistar alguém para sua causa. Assim, se dirige a Dom Lorenzo:

“Sabe Deus quanto quisera levar comigo o senhor Dom Lorenzo, paraensinar-lhe como se deve perdoar os humilhados e oprimir e rebaixar ossoberbos, virtudes inerentes à profissão que exerço ...” (1991, v.2, p.135)

Tomava a cavalaria como uma “ciência” que acreditava encerrar em sitodas ou quase todas as ciências do mundo, pois um cavaleiro deveria serum jurisperito, um teólogo, um médico, um herbolário, um astrólogo enfim,ser preparado para enfrentar toda e qualquer adversidade para proteger edefender os desventurados. Havia um sentido no sem-sentido de sua lógica.Havia uma razão na desrazão. Quem sabe essa é a lógica do avesso doavesso da loucura? Onde tudo que pode ser, pode não ser. Não por umsentido antitético, mas por ausência de enlace, tecido num plano fluído.

1 Sueli Souza dos Santos é Psicanalista; Membro do Centro de Estudos Psicanalíticos dePorto Alegre (CEP de PA); Mestre em Psicologia Social UFRGS; Doutoranda em EducaçãoUFRGS.

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Pensando na topologia da psicose, posto que o avesso do avessorompe qualquer possibilidade de borda, me parece que o toro virado do aves-so, conforme Lacan trabalhou no seminário “Momento de concluir”, lições de14 e 21 de março de 1978, seria uma boa estrutura. Este toro revirado terácomo “alma” o antigo eixo, ou seja, o que antes ficava aprisionado no seuinterior agora estará em contato com o exterior, e poderá então ameaçá-locom seus demônios mais escondidos. Nele, no toro, encontra-se a mesmaausência de uma borda onde possa construir um laço, uma amarração, umponto. Seria a psicose a paixão pelo abismo onde o eu (moi) se precipita?

A alienação na psicose, se pensarmos em nosso herói, dá seu teste-munho de que algo lhe fala, fala nele e por ele, desde o inconsciente. Háambigüidade na própria significação do delírio – essa é mais uma marca dapsicose – mas não só. Pensar e falar uma mesma linguagem, com persona-gens ou qualquer um com que lidamos, não garante que nos comunique-mos. Há um muro da linguagem que imaginariamente atravessa qualquerpossibilidade de comunicação linear. O limite da linguagem se encontra noponto em que ela é sempre isso e outra coisa. O sistema da linguagem nãose reduz a um ponto direto da realidade, pois toda a realidade é que estáabrangida pelo conjunto da rede significante da linguagem.

Tomemos aqui o Esquema I, onde Lacan (1998; p.578) trabalha ocaso Schreber, como auxilio para pensar as distorções no “juízo” de nossoherói:

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Há distorções em relação ao esquema inicial (R) que aqui se mos-tram simplificadas entre as funções de identificação, evidenciando o desliza-mento de duas curvas em hipérboles relativas a uma das retas diretrizes desua assíntota, o que cria condições para que o “eu” delirante, em D.Quixotese revele em convergência com o ideal do herói das histórias de cavalaria.Lacan vai dizer que: “Toda a espessura da criatura real, ao contrário, inter-põe-se para o sujeito entre o gozo narcísico de sua imagem e a alienação dafala em que o Ideal do eu assumiu o lugar do Outro”.

Um recorte discursivo de D.Quixote nos amplia o entendimento destaafirmação. Ele diz: “Aqueles que ali vês, com grandes braços – respondeu-lhe o amo – alguns há que os têm de quase duas léguas. – Saiba vossaMercê – observou Sancho – que aqueles que assim se parecem não sãogigantes, mas moinhos de vento; e o que neles parecem braços são as asasque, impelidas pelo vento, fazem girar a pedra do moinho. Bem se percebe –respondeu Dom Quixote – que não és versado nesse assunto de aventuras;aqueles ali são gigantes; se tens medo, afasta-te e põe-te a orar, enquanto medefronto com eles em fera e desigual batalha.” (Cervantes: 1991/1605; v.1, p.72)

A batalha a ser travada abriga uma rivalidade com os gigantesfantasmáticos, mas ainda com Sancho que, enquanto interlocutor, insisteem apontar a alteridade, contradizendo a percepção de seu amo, o que sem-pre lhe coloca em apuros tendo que cuidar das feridas do mesmo e porvezes, ao defendê-lo, enfrentar-se também com as conseqüências do delíriocompartilhado.

Existe um pacto pela palavra. Embora seja apontada ou detectada adificuldade do cavaleiro com relação a sua percepção da realidade, há umentendimento entre os dois, evidenciando as marcas do jogo da concorrên-cia primitiva entre os dois personagens, no eterno retorno constitutivo dodiscurso entre o pequeno outro, o Outro e o objeto. O delírio se faz presenteno interjogo entre o Outro que é desconhecido e o outro enquanto eu (aminúsculo).

De qualquer sorte, a dialética dual está para além de um personagemcom o outro; a dialética dual é que, tanto Dom Quixote quanto Sancho Pan-

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ça, falam cada um com o Outro de alguma coisa que lhes falou desde outracena, outro lugar, tomando forma de palavra falada, com todas as ambigüida-des das palavras, posto que nenhum dos dois desiste das aventuras.

O delírio mostra essa marca discordante com a linguagem comum,apresentando-se em forma de neologismo ou como no caso de nosso perso-nagem Dom Quixote, em que as forças anímicas das coisas ou elementospassam a contracenar com o herói. Há sempre uma repetição na forma designificação, em uma insistência estereotipada, o que, por outro lado, reme-te a um vazio de significação.

Lacan (1985; p.44) diz: “Essas duas formas, a mais plena e a maisvazia, param a significação, é uma espécie de chumbo na malha, na rede dodiscurso do sujeito. Característica estrutural a que, já na abordagem clínica,reconhecemos a assinatura do delírio”.

A palavra no delírio revela a imersão do sujeito em sua própria constru-ção, ali o sujeito é falado, onde a significação não remete mais a nada,repetindo de forma insistente num ir e vir, sem deslizamento. Frente a essetipo de linguagem, quer nos analisantes, ou nos personagens que nos inspi-ram nesse trabalho, podemos pensar que falam a mesma língua que nós, oupelo menos, não são de todo estranhos a nós, por isso podemos escutá-los.Mas é através das relações do sentido com a significação, onde não háespaço para deslizamento de sentidos que podemos perceber a diferença naeconomia do discurso, o que remete ao delírio.

Importante ressaltar que a fala não é a linguagem. A fala está dirigidaa um Outro. Falamos para outros, de onde recebemos uma mensagem soba forma invertida; ou seja, o que o sujeito me diz está fundamentado desdeoutro lugar, tentando me convencer de suas razões. Isso supõe dirigir-se aum Outro, na tentativa de até mesmo dizer a verdade, o que remete a umafala verdadeira e, ao mesmo tempo, que pretende que se creia ao contrário,uma fala enganadora enquanto tal. Talvez fique mais claro pensar sobre issose recordarmos Freud (1905) quando conta a história dos dois amigos emque um diz: “Eu vou a Cracóvia”. Ao que o outro responde: “Você me diz issopara me fazer crer que você vai alhures”.

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A ambigüidade é constitutiva de nossa condição neurótica porquedesejamos, ou seja, o objeto de interesse do humano é o desejo do outro.Em princípio, o sujeito está fundido no outro enquanto objeto a, numamultiplicidade de desejos; aliena-se no outro que lhe oferece a ilusão de umaunidade. A fala evidencia que é na alteridade que se pode descobrir um eu eum não eu; ao mesmo tempo é fonte de inclusão no objeto e rivalidade como objeto. Falar então é falar com quem? Quando se fala, de que será que sefala?

No jogo de espelhos que se estabelece entre Dom Quixote e SanchoPança, cria-se a anamorfose em que os dois personagens se envolvem, háuma cumplicidade. Por vezes o limite entre o funcionamento de um e outro émuito tênue, mas ambos devem ser pensados como referenciados à funçãopaterna. No entanto, o saber psicótico é outro do que o saber neurótico.

Como seria na psicose? Se na neurose o sujeito recebe sua mensa-gem do Outro, de forma invertida [Ele me deseja <=> eu O desejo], nopsicótico, em vez disso, esta mensagem viria de forma direta, mortal, amea-çadora [eu O quero <=> Ele me devora]. A função paterna falta. Como foiforacluída, força o sujeito psicótico a se referir ao que ele não dispõe. Pode-mos pensar que por essa razão, o delírio apresenta um furo na medida emque tenta organizar um saber aos moldes de um saber neurótico, entorno deum pólo ou idéia central que se mantém no real, não simbolizado. Quemsabe por isso, para Dom Quixote, os moinhos são gigantes, há sempre umainjustiça a reparar, uma donzela a libertar?

No entanto, o personagem criado pelo nobre, nomeando-se a si mes-mo Dom Quixote, está construindo sua história, onde encontramos ossignificantes de sua história edípica. Isso porque o que é foracluído não é osignificante relativo ao pai. O que devemos entender é que, na psicose, o queesta foracluído é a função organizadora do nome do pai. O psicótico podefalar de seu pai, de sua família, mas o que lhe falta é uma amarragem, comono neurótico, o ponto de capiton.

Tomando o ponto de vista da neurose, em Sancho, seu saber consti-tuído a partir da função paterna que é reprimida, podemos pensar que há em

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seu saber alguma coisa simbolizada como um buraco, uma ausência, masnão está foracluída a função paterna. Sancho não abandona seu senhor,mas percebe suas fraquezas, confusões e tenta com seus argumentosrecolocar os limites que a realidade impõe. Tenta oferecer-se como agentedo princípio de realidade, embora não tenha muito êxito. Mas está semprepresente, tentando junto ao fidalgo refazer ligações entre os efeitos do realsobre a realidade.

Como parece faltar ao fidalgo essa amarragem central da função pa-terna, o sujeito interroga seu saber, pois nada pode responder essa interro-gação, tendo como única possibilidade que alguma coisa vai falar no real.

Como falar no real? Produzindo significantes paternos que se apre-sentam sob forma de alucinação auditiva, como função paterna. Nas produ-ções delirantes, Dom Quixote ouve todo tipo de falas, impropérios, acusa-ções e ameaças que vem de seus inimigos potenciais, superegóicos. ParaCalligaris (1989; p. 44): “O que não é simbolizado é a função central dessessignificantes. É porque esta função central vai ser imposta pela injunção,que esses significantes vão voltar para o sujeito no Real. É muito importantepensar que o que está voltando no Real é alguma coisa da história, do saberdo sujeito”.

Quem sabe se possa dizer que as construções de Dom Quixote, porsua cultura e criatividade, lhe dão uma possibilidade de saída do sofrimentopsíquico, através de seu jeito diferente buscando essa volta no real do pai.Dizendo de outra forma, na psicose o que volta no real é a função, em suaforma de lidar com os significantes que estão em seu saber particular, singu-lar.

Como um jogo entre o real e o imaginário, denegando ou foracluindo arealidade, o fidalgo de Cervantes, prisioneiro no mundo das novelas de cava-laria, mas não só, busca um reencontro com o real do pai que pode estarreferindo antigos valores que não têm mais eco num mundo em transforma-ção.

Pela escuta de Sancho Pança, aos poucos vai se abrindo uma possi-bilidade de articulação entre o mundo do delírio e a realidade dos dois perso-

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nagens. Essa escuta oportuniza pensar que os delírios de Dom Quixote seconstituem na tentativa de integrar o que vem no real e que representa algodele mesmo, algo que não pôde simbolizar, e ao poder participar seusdelírios aponta que no interior de seu mundo, nem toda comunicação foirompida, por isso fala. Isso fala.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:CERVANTES, M. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Belo Horizon-

te. Villa Rica Editoras Reunidas Limitada, 1991.CALLIGARIS, C. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre:

Artes Médicas, 1989.FREUD, S. (1905) Os Chistes e sua relação com o inconsciente. In. Obras psico-

lógicas completas. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1969.LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In.

Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 1998._____ . O seminário 3 - As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

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DON JUAN: UM SONHO FEMININO

Maria Rosane Pereira Pinto1

“Não há nada que possa parar a impetuosidade de meus desejos.Sinto em mim um coração que pode amar a terra inteira.

E como Alexandre, eu gostaria que outros mundos existissempara poder neles estender minhas conquistas amorosas”.

(Molière, Don Juan, ato I, cena 2)2

Afigura do sedutor é constitutiva da “urzene”, da cena originária daqual nasceu a psicanálise. Escutando suas pacientes histéricas, Freudconstruiu sua ”neurotica”’ (teoria das neuroses) sobre os pilares da

cena traumática de sedução, cujo protagonista era o pai perverso. Durantealgum tempo, as narrativas de sedução foram tomadas por Freud como umarealidade que dava conta da etiologia sexual das neuroses. E do mesmomodo como na trama de Don Juan a estátua do Comendador vem, ao final dopercurso, punir o sedutor por seus pecaminosos abusos eróticos e suastransgressões, conduzindo-o aos abismos do inferno3, Freud tratava de libe-rar suas pacientes, através da interpretação, de suas fixações traumáticasao pai sedutor, neutralizando então, supostamente, os efeitos nefastos dotrauma. Assim, o pai sedutor era, de certo modo, punido, jogado no poçodos infernos. Seu posto de sedutor “imobilizador”, engendrador de culpa dahistérica, era reduzido ao lugar do vilão culpado, uma vez que todo seduzidotraz consigo a presumida inocência. Mas não tardou muito para que Freud

1 Psicanalista, membro da Association Psychanalyse et Médecine-Paris, da AssociationLacanienne Internationale-Paris e da equipe do Instituto Jean Bergès-Clínica e Centro deEstudos em Psicanálise e Medicina-Porto Alegre-RS.2 Molière, Don Juan, GF Flammarion, Paris, 1998, p.66.3 Conforme as versões de Tirso de Molina(1630), Molière (1665) e Mozart (1787). Trabalha-remos aqui com os elementos de dramaturgia das versões da peça teatral de Molière e daópera de Mozart Don Giovanni.

PINTO, M. R. P. Don Juan...

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se colocasse a questão quanto a realidade da cena. Em sua carta a Fliessde 21.09.1897, depois de perder várias pacientes, ele explica de que modoele deu-se conta de que essas narrativas eram de caráter duvidoso, e mes-mo fictício, e desvelavam, sim, uma construção fantasmática. Freud consta-ta, ainda, que no inconsciente não existe nenhum “índice de realidade”, desorte que, diz ele:

“é impossível distinguir uma da outra, a realidade e a ficção investidade afeto. (É por isso que uma solução resta possível, ela é fornecida pelofato do fantasma sexual sempre se constituir em torno do tema dos pais)”.4

Deixar de acreditar em sua neurótica, este grande segredo que lenta-mente foi se revelando a Freud naquele verão e provavelmente graças a suaauto-análise, o colocou na posição dramática da vítima da sedução. Essadecepção com sua primeira teoria das neuroses, que o coloca a um passoda descoberta do complexo de Édipo, faz com que ele evoque, ao final dacarta a Fliess, com uma ponta de amargura, uma citação que ele extrai desua antologia de histórias judias, ‘’Rébecca, tira teu vestido, tu não és maisuma noiva virgem”. É justamente essa perda da inocência que vai colocarFreud em um ‘’afundamento geral”, graças ao qual se produz nele um inte-resse cada vez maior pelos sonhos e também um entusiasmo cada vezmaior pelo início de sua incursão na metapsicologia.

Vale notar que de modo algum Freud retira a importância da cenaoriginária. Sua decepção lhe permite elucidar o alcance fantasmático des-sas cenas, independentemente de sua veracidade, levando mesmo em con-ta a possibilidade de uma eventual realidade material ali estar sendo desve-lada. O importante é que a figura do sedutor, concretizada na figura paterna,sai de cena para dar lugar a uma entidade onírica, fantasmática. A partir deentão, não se trata mais de “acusar o pai de perversão”. As formulações deFreud, a partir do Complexo de Édipo, vão ser resultantes dessa outra versãodo pai ter se desvendado em sua clínica. Entretempos, é a mãe, ou aquela

4 Masson J.M., “A Correspondência completa de Sigmund Freud para Willhelm Fliess”, Cartade 21.09.1897, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1985, p. 265/267.

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que prodiga cuidados à criança, que vai aparecer como a sedutora e, assim,como a “geradora” de neurose, mas também como decisiva para a estrutura-ção do psiquismo. Nessa estruturação, a urzene passa a ser a tessiturafantasmática do sujeito, tanto no que concerne à sedução quanto no que dizrespeito ao coito parental, ao fantasma das origens. E uma vez formado otriangulo edípico, a castração também vai concorrer como mola mestra dofantasma.

Uma possível articulação das aventuras de D. Juan com a pré-históriada psicanálise se dá pela lógica que preside o próprio tema. Pois afinal, erade sedução, de feminilidade e de desejo, que se tratava no discurso dashistéricas de Freud, do mesmo modo como era disso que se tratava na sagadesse fascinante personagem.

Para refletirmos sobre esta articulação, consideremos alguns aspec-tos da figura mítica de D. Juan. Trata-se de um jovem nobre que investe todasua vitalidade na conquista das mulheres. Em várias versões desta obraliterária, a fantasia, o disfarce, é nele uma segunda natureza. Para se intro-duzir no quarto de suas belas, na calada da noite, ele se faz passar por umoutro, geralmente pelo noivo ou pretendente. Pego em flagrante peloComendador, pai de Dona Ana, que ele acabara de violar, o mata em duelo.Pouco antes, não havia hesitado em fazer com que Elvira, uma religiosa queseduziu, deixasse o convento para casar-se com ele, abandonando-a, logoem seguida, movido por outra paixão. Com os irmãos de Elvira em seu encal-ço para lavar a honra da família, sua fuga é uma constante tentativa de sedu-ções e seqüestros de belas mulheres. Buscando onde se esconder de seusperseguidores, D. Juan acaba entrando no mausoléu onde está a estátuafúnebre do Comendador. Cinicamente, ele convida a estátua para jantar. Seucriado vê a estátua assentir com a cabeça e se aterroriza. D. Juan, cético,ironiza a crendice nas coisas do além e segue seu caminho. Especialista dasedução e estrategista do discurso, Don Juan é também, conseqüentemen-te, um especialista em esquivar-se do constrangimento da palavra dada aooutro, do reencontro com este outro. Sua última jornada de vida é uma su-cessão de reencontros com furiosos e furiosas que ele faz de tudo para evitar

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SEÇÃO TEMÁTICA

e dos quais ele participa apenas com seu silêncio, em completa ausência,fiel apenas a sua própria insolência. Interrogado por seu criado, D. Juan lheexplica que a fidelidade não somente lhe parece ridícula, mas também equi-vale, para ele, a uma morte, morte da qual ele foge em direção à liberdade,voando de mulher em mulher. Uma vez conquistada, toda a beleza do encon-tro desaparece e sua sede de mudança exige que ele abandone sua bela poruma outra a ser conquistada, e para tanto, nenhum escrúpulo pode deter suaempreitada. Assim, a mulher e a morte, para D. Juan, estão quase em equi-valência. Além de sedutor, D. Juan é também um descrente e um transgressor,que desafia as leis do Céu e da terra. Não bastasse isso, ele é também ummau filho, que ultraja e ridiculariza a autoridade paterna com sua condutadepravada e suas transgressões aos códigos morais da nobreza. Seu pai lheassinala que ele não é digno de sua descendência. E, coisa curiosa, a figuramaterna não aparece em nenhuma das versões, senão em uma breve alu-são, sem jamais constituir um personagem da trama. Acrescentemos a issoo fato que D. Juan parece ter um gosto não somente por abandonar cadauma de suas mulheres conquistadas, mas também por invalidar, depois doabandono, a palavra dessa mulher. Não raramente ele as designa para seuinterlocutor, quando se introduzem na cena e o interpelam em suas furiosasreivindicações, como “loucas”. Entretanto, Don Juan, este ser de fuga e deinconstância que jamais suporta permanecer com nenhuma dessas mulhe-res e que se sustenta em uma incansável evasão do desejo, pervertendo alinguagem com seus artifícios sedutores, surpreende. Ele, que jamais foi fielà palavra dada, vai cumpri-la comparecendo ao “reencontro” marcado justa-mente com a estátua do Comendador, este pai morto que, com um aperto demão, o conduz aos infernos.

Analisando o processo da sedução em Don Juan, Monique Schneider5

propõe um recorte particularmente interessante no que diz respeito à relação

5 Schneider, Monique, Don Juan entre le père et la femme in : Don Juan et le procès de laséduction, Ed. Aubier, Paris, 1994, p. 215-265.

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do sedutor com o pai e com a mulher. Estes sucessivos abandonos da mu-lher e esta invalidação da palavra feminina participariam, segundo esta auto-ra, de uma lógica do “matar ou ser morto”. Assim, cada abandono e cadainvalidação da palavra feminina estariam inscritos em uma espécie dematricídio velado. Cada mulher estaria no lugar de uma mãe a ser morta e,assim, reafirmando também a completa impossibilidade de descendênciapara D. Juan. Com efeito, o pai de D. Juan fala, em seu discurso de reprova-ções e advertências, do ardente desejo com o qual ele pedira ao Céu paradar-lhe um filho, sem jamais se referir nem à existência nem ao desejo damãe, uma espécie de procriação humano-celestial. A isso, Monique Schneiderse refere como sendo um fantasma de partenogênese masculina. Na verda-de, este mesmo pai aparece como demasiadamente humano para este serde exceção que Don Juan encarna, de onde seu desprezo de filho. Para umser de exceção, um pai absoluto. Este pai absoluto que, ultrapassando aprópria morte, retorna para levar consigo em sua eternidade infernal, o filhoque, infiel às mulheres e às leis dos homens, não lhe faltou com a palavra.De sorte que podemos interpretar, de certo modo este encontro de D. Juancom a estátua do Comendador, no final de sua trajetória, tragado pelo buracoinfernal aberto para ele por este pai, como uma espécie de feminização ab-soluta, de penetração pelo pai neste enlace fatal. Os gritos de D. Juan, nacena final de sua danação, efetivamente evocam o desejo carnal. Ele diz:“Um fogo invisível me queima, não agüento mais, meu corpo inteiro transfor-ma-se em um braseiro ardente, ha!!!!”6. Provavelmente, o mesmo fogo queanimava suas conquistas eróticas.

Foi pelo viés do desejo, do gozo e da angústia, que Lacan se interes-sou pelo mito de Don Juan7. Pouco antes de afirmar que “Don Juan é umsonho feminino”, ele trata da questão da necessária presença, no reino mas-culino, de alguma impostura. Diferente da mascarada feminina, que deixa ver

6 Ibid. Ato V, cena VI.7 Lacan, Jacques, Séminaire ´´l´ Angoisse´´, Lições XV e XVI, publicação interna daAssociation Lacanienne Internationale.

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SEÇÃO TEMÁTICA

o que há por detrás dela, por pouco que seja, a impostura masculina estariapreocupada em jamais deixar ver o que não há. Por isso, deixar ver seudesejo, pela mulher, resultaria angustiante para o homem. Isso nos faz pen-sar na constante evasão do desejo, acima evocada, no personagem de D.Juan. Enquanto “sonho feminino”, D. Juan apareceria, segundo Lacan, comoum homem perfeitamente igual a ele mesmo, um homem ao qual não faltarianada. Lacan assinala ainda a relação de D. Juan com esta imagem do paiabsoluto, não castrado, uma pura imagem, uma imagem feminina. A com-plexidade da relação do homem a seu objeto, nos diz Lacan, resta apagadaem D.Juan, mas para isso é necessária uma aceitação de sua “imposturaradical”, da qual depende todo o seu prestígio. Colocando-se sempre nolugar de um outro, D. Juan aparece como o objeto absoluto, que está sempreali. Em lugar da dimensão do desejo, estaria, em D. Juan, alguma coisa quefaz função, já que o desejo mesmo pouco contaria em seu jogo. Esta algumacoisa seria o odor di femina, que tem justamente a propriedade de ser volátil,desaparecendo na própria aventura.

Enquanto para a mulher o desejo teria como ponto de partida, paraconstituir seu objeto, aquilo que ela não tem, para o homem, as coisascomeçariam por aquilo que ele não é.

É nessa ofuscante problemática do ser e do ter, que Lacan situa ofantasma de Don Juan como um fantasma feminino. Melhor dizendo, trata-sedessa busca feminina de uma imagem que teria uma função fantasmática.Antes de mais nada, a imagem de um homem que “tem”, que sempre o “terá”e que jamais vai “perdê-lo”. E Lacan acrescenta ainda que justamente é essaa posição de D. Juan no fantasma, a de que nenhuma mulher vai “tomá-lo”dele. Nesse sentido é que o fantasma de D. Juan seria um fantasma femini-no, é isso o que ele teria em comum com a mulher, já que ninguém poderiatomar dela o que ela não tem. Seguindo este raciocínio, Lacan afirma que “oque a mulher tem em vista, na homenagem do desejo masculino, é que esteobjeto (...) torne-se propriedade sua”.8 Uma vez que ele lhe pertença, não se

8 Op. Cit. P. 220.

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perde mais, como havia já avançado Lacan. Enfim, Lacan nos diz com issomuita coisa da relação de D. Juan com a mulher. Quanto à relação de D.Juan com o pai, podemos nos permitir aqui uma ousadia de leitura. Em seuscomentários finais sobre D. Juan, Lacan diz que “(...) uma mulher pensasempre que o homem se perde com outra mulher. Don Juan a deixa segurade que há um homem que não se perde em hipótese alguma”9. Nossa ousa-dia seria a de acrescentar: a não ser com o pai.

Essa incerteza do ser, esse gosto por se fazer passar por outro, esseapego ao parecer ter, essa busca do pai não castrado, essa curiosa evasãodo desejo, características essenciais de D. Juan, são elementos constitutivosdo sonho feminino que escutamos todos os dias em nossa clínica, desdeFreud. A familiaridade de D. Juan com a constituição fantasmática como tal,desde os primórdios da psicanálise até nossa atualidade é bastante signifi-cativa e continua nos servindo de paradigma para nossa necessária perda dainocência, sem a qual as coisas jamais avançariam.

Nascido da tradição oral medieval, esse mito chegou a 1630 commais de trezentas versões e, desde então, já inspirou mais de 400 obrasescritas. Se Don Juan faz falar tanto, é porque, sem sombra de dúvidas, aliteratura imita a vida, e não o contrário.

9 Op. Cit. P. 221.

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SEÇÃO DEBATES

SOBRE O “MAIS” FEMININO

Francisco Settineri

Em uma de minhas traduções, caiu-me nas mãos um autor que ésempre impressionante, capaz de despertar transferências, pela suacapacidade teórica.

Todavia, uma de suas intervenções, nesse livro, deixou-me impressio-nado, até pelo menos, certa vez, comentá-la com a Ana Maria da Costa, oque me fez pensar por anos, até que um dia... Ana me disse: “Não é bemassim!” E nada mais disse...

Aconteceu em uma comunidade do Orkut, em que se citavam frasesda correspondência amorosa entre Heidegger e Hannah Arendt. Acendeu-sea centelha, e comecei a pensar um pouco mais, sobre o “mais” feminino.

Nesse trecho, Harari afirmava que o grito de “mais”, durante o orgas-mo feminino, era característico da histérica. Ela, segundo o erudito argenti-no, demandaria mais – pênis-, justo na hora em que o homem não podia darmais o que ela, supostamente, lhe pediria. Desse modo, o humilharia.

Tenho dois motivos, lingüísticos e psicanalíticos, para me permitir dis-cordar do renomado psicanalista e escritor, do qual traduzi, com todo esme-ro que pude, dois livros. E sobre os quais ele próprio comentou, com umanalisante seu, que estavam muito bons, porque tinham sido traduzidos comtransferência.

O primeiro é de ordem lingüística. Um significante nunca é repetidocom o mesmo valor semântico, mesmo na mesma frase. Isso está no Cursode Lingüística Geral, do Mestre genebrino, e Lacan o cita, nem sempre refe-rindo a fonte.

Aliás, quem é que nos garante que, para cada mulher, em cada orgas-mo, ao dirigir-se ao parceiro para pedir mais, está enunciando o mesmosignificante, com seus mesmíssimos efeitos de significado?

Formulando essa interpretação completamente fechada, Harari sim-plesmente, além de ser injusto com as mulheres, provocando inibições se-

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xuais em suas discípulas fiéis, e privando seus homens deste maravilhosoprazer (menos os obsessivos...), transforma esse belíssimo significanteamoroso em uma reles holófrase. Uma holófrase perigosa, difícil de desfazer.

Como diria Quintana, “que poder de síntese”!Um pedido de mais pode ser para que lhe recitem Vinicius, ao ouvido,

depois do coito. Pode ser para ganhar um beijo na testa. E pode ser paradepois dormir de conchinha, e ser “atacada” de madrugada... Pode ser qual-quer coisa, o que importa é que, fiel ao ensino de Lacan, sei que o significa-do desliza constantemente, sob o significante. Isso é Lacan, e pode tambémser encontrado na teoria do valor, de Saussure. E, como sabemos, umsignificante, em si, não significa nada... É tudo aquilo que os outros não são,sem termos positivos.

Certa vez, Alfredo relatou que Lacan perguntava aos que assistiam aseus seminários, de onde eles eram. De que cidade, de que país, era suaintenção. E um argentino respondeu:

– Eu venho da Filosofia!Quanto a mim, eu venho da poesia. E deixo o meu recado, em forma

de soneto.Perguntas rodrigueanas na noite cavernosaO que quer uma mulher?O que, realmente, quer uma mulher,Quando, em pleno embate amoroso,Grita MAIS! Mais, mais, e mais...Aos ouvidos de seu doce esposo?Não seria apenas um outro afago,Mais um beijo carinhoso, ou mesmoUm verso sussurrado ao ouvido?Poderia, enfim, ser uma outra coisa?Ela poderia ter mais, mas mais do que?Ou então quer ser simplesmente mulher,Cheia de vida, cheia de alma, pleno sentido,Uma mulher, apenas, com toda calma...?Envolta em brumas, acalantos, gritos e ais...

SETTINERI, S. Sobre o “mais” feminino.

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RESENHA

DIÁRIO DE UM SEDUTOR

KIERKEGAARD, Soren. Diário de um sedutor. Os Pensa-dores, Abril Cultural, 1979, 52p.

Escrita em 1843, “Diário de um sedutor” éuma obra do filósofo dinamarquês SorenKierkegaard, num período em que procu-

rava demonstrar a necessidade de escolha entreo modo de vida ético e estético. Kierkegaard,cristão luterano atormentado, na juventude ex-perimentou a vida boêmia após a morte do pai.Passados os primeiros momentos de crise, re-toma seus estudos univesitários e torna-se en-tão pastor. Logo, rompe o noivado com uma jovem de 17 anos para viver umavida solitária em busca de sua vocação filosófica religiosa.

O autor narra a fictícia descoberta de um diário pertencente a alguémque ele conheceu – Johannes – cujo conteúdo fala das suas relações comuma jovem, também sua conhecida, de nome Cordélia. Acompanha o diário,um conjunto de cartas do sedutor à jovem que as doa ao narrador, que, porsua vez, as intercala no desenrolar do diário. O conteúdo do diário: a paixãode Joahnnes por Cordélia, melhor dizendo, por sua imagem e sua pacienteestratégia em seduzi-la, deflorá-la e abandoná-la.

Jean Baudrillard (“Da Sedução”, 1992) bem comenta o clima da obra:“O Diário de um sedutor é o cenário de um crime perfeito. Nada no cálculo dosedutor, nenhuma de suas manobras fracassa. Tudo se desenrola com umainfalibilidade que poderia ser não real ou psicológica mas mítica. Essa perfei-ção do artifício, essa espécie de predestinação que orienta os gestos dosedutor só faz refletir, como num espelho, a perfeição da graça infundida najovem e a inelutável necessidade de seu sacrifício. O sexo seria assim ape-nas o soldo ou o desconto de um processo mais fundamental, um resíduoeconômico do processo sacrificial da sedução. Os deuses levam sua parte,os humanos dividem os restos.”

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RESENHA

O leitor vai acompanhando sua campanha, sua obra, sua “operação”,modo como ele se refere à conquista da jovem. Conquista esta sempre oblí-qua. Mas há uma intenção clara do sedutor nos seus atos; despojá-la de seupoder. A teoria do sedutor é: “A mulher é, pois, aparência. Aliás, partilhameste destino com toda a natureza e, em resumo, com tudo que é feminino.”“Enquanto aparência, a mulher é marcada pela virgindade pura.”

A narrativa dos passos da conquista vai sendo envolvida nas reflexõesdo sedutor sobre a natureza feminina e sobre a própria natureza da seduçãoe da estética. O sedutor não é um homem vulgar, sua visada é o espírito dajovem.

Ficam noivos após endereçar a Cordélia uma série de cartas. Destas,ele diz: “Minhas cartas acertam o alvo. Desenvolvem sua alma, senão mes-mo seu erotismo. Para tal, aliás, as cartas não servem, mas sim os bilhetes.Quanto maior é o caminho percorrido pelo erotismo, tanto mais curtas ascartas se tornam; mas vão tocar com maior certeza no ponto erótico. A fimde não tornar sentimental ou indolente, a ironia irá, por seu lado, retesar ossentimentos, ao mesmo tempo em que a torna ávida do alimento que prefe-re. Os bilhetes fazem, de longe e vagamente, adivinhar o supremo bem. Asnossas relações quebrar-se-ão no instante em que esse pressentimentocomeçar a despontar na sua alma.”

No momento do noivado tem-se a impressão de atingir um ponto mor-to, o sedutor leva o ardil do desencanto e a dissuasão a um grau quaseperverso de mortificação: “Não sou erótico, que faria apenas despertá-la; soudócil, maleável, impessoal, não sou mais que um estado d’alma...” Desen-cantar, esfriar, decepcionar, guardar distância, até que ela mesma tome ainiciativa da ruptura do compromisso, rematando assim o trabalho da sedu-ção e criando a situação ideal para seu total abandono.

Escreve ele: “O rompimento é um fato consumado; forte ousada, divi-na, ela eleva-se nos ares como um pássaro a quem só hoje foi permitidomostrar a envergadura da suas asas.” Ao acabar o noivado, a tia permite–lhepassar algum tempo no campo. O sedutor volta às cartas com intenção detorná-la forte e incliná-la para o lado de um desprezo periférico pelas pesso-

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RESENHA

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as e pela moral. Escreve-lhe: “... chamo-te minha porque nenhum sinal exte-rior recorda a minha posse. Em breve ao chamar-te assim será pura verdade.E, apertada nos meus braços, quando me enlaçares nos teus, não precisa-remos de nenhum anel para nos recordar que somos um do outro; pois nãoserá esse abraço uma aliança mais real que um simples símbolo?”

Depois do último ato, Joanhnnes lamenta por um instante a brevidadeda noite em que possuiu Cordélia, para logo concluir que está tudo acabado,que uma jovem é fraca quando deu tudo, pois tudo perdeu: “... no homem ainocência era um elemento negativo, mas na mulher, a essência da suanatureza.”

Então, formula um desejo a respeito de Cordélia e sua repulsa porlágrimas e súplicas femininas: “Ameia-a, mas já não posso interessar-me.Se eu fosse um deus faria aquilo que Netuno fez por uma ninfa, transformá-la-ia em homem.”

Quanto a Cordélia, sua voz está nas três cartas desesperadas queabrem o relato da trama. Para Baudrillard, mesmo este desespero é estra-nho: “Nem exatamente enganada, nem exatamente despojada de seu dese-jo, mas espiritualmente desviada por um jogo cuja regra não conhecia. En-volvida como por um sortilégio – a impressão de ter sido sem o saber oobjeto de uma maquinação, mais que aniquiladora, de um rapto espiritual –é, com efeito, sua própria sedução que lhe foi roubada e voltada contra siprópria. Destino inominável, do qual resulta um estupor bem diferente dodesespero.” Diz o narrador a este respeito: “Estas vítimas eram pois de umtipo muito especial (...) sua vida era semelhante à que se vê todos os dias, e,entretanto, haviam se modificado sem que os outros pudessem notar. Suavida não se quebrara nem rompera como outras, antes se curvara dentrodelas próprias; perdidas para os outros, em vão procuravam reencontrar-se.”

Silvana Lunardi

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AGENDA

AGOSTO – 2007

PRÓXIMO NÚMERO

Reunião da Comissão de EventosDia Hora Local Atividade

Reunião da Comissão de Aperiódicos

Sede da APPOA Reunião da Comissão da Revista

PERCURSO DE ESCOLA

Reunião da Comissão do Correio

19h30min

15h30min

Sede da APPOA

Sede da APPOA

Reunião da Mesa DiretivaSede da APPOA

Sede da APPOA

21h

8h30min

20h30min09

02, 09, 16,23 e 30

06 e 2003 e 1703 e 17

Reunião da Mesa Diretiva Aberta aosMembros da APPOA

23 21h Sede da APPOA

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EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro

Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt,Fernanda Breda, Marcia Zechin, Maria Cristina Poli,Marta Pedó, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior

e Robson de Freitas Pereira.

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2007/2008

Presidência: Lucia Serrano Pereira1a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees2a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg

1a Secretária: Lucy Linhares da Fontoura2a Secretária: Maria Elisabeth Tubino

1a Tesoureira: Ester Trevisan2a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros da Costa

Ângela Lângaro Becker, Beatriz Kauri dos Reis, Carmen Backes,Emília Estivalet Broide, Fernanda Breda, Ieda Prates da Silva, Maria Ângela Bulões,

Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Cristina Poli, Otávio Augusto Winck Nunes,Robson de Freitas Pereira, Siloé Rey e Simone Kasper

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 2SEÇÃO TEMÁTICA 4EPISTEMOLOGIA E TOPOLOGIALACANIANA: TEMPO DE COMPREENDERAlmerindo A. Boff 6SOBRE A TOPOLOGIADAS ESTRUTURAS CLÍNICASLigia Gomes Víctora 12ENSAIO SOBRE A TOPOLOGIADA NEUROSE OBSESSIVABernard Vandermersch 22A QUESTÃO DA TRANSFERÊNCIANAS PARANÓIASLouis Sciara 33DOM QUIXOTE (O AVESSODO AVESSO DA LOUCURA II)Sueli Souza dos Santos 48DOM JUAN: UM SONHO FEMININOMaria Rosane Pereira Pinto 55

SEÇÃO DEBATES 62SOBRE O “MAIS” FEMININOFrancisco Settineri 62

RESENHA 64O DIÁRIO DE UM SEDUTOR 64

AGENDA 67

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A TOPOLOGIA DASESTRUTURAS CLÍNICAS

N° 160 – ANO XIV AGOSTO – 2007