edição 417 - de 24 de fevereiro a 2 de março de 2011

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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 24 de fevereiro a 2 de março de 2011 Ano 9 • Número 417 ISSN 1978-5134 Reprodução Alipio Freire Os mistérios da Cultura Os equívocos do Ministério da Cultura em relação ao Creative Commons e aos direitos autorais pode ser resolvido através de um encontro com os setores pertinentes da sociedade civil. Pág. 3 Altamiro Borges Mídia perde para MST Capa dos jornalões durante meses e assunto predileto dos “calunistas” da televisão, a CPMI do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, instrumento dos latifundiários, foi encerrada. Pág. 3 Fidel Castro Otan quer ocupar a Líbia O petróleo se converteu na principal riqueza em mãos das transnacionais ianques; com essa fonte, dispuseram de um instrumento que aumentou consideravelmente seu poder político no mundo. Pág. 2 Pág. 9 McDonald’s Maus tratos e superexploração Salário mínimo A opção de Dilma pelo mercado Pág. 7 Entrevista Pat Mooney Tecnologias para o controle da vida Págs. 10 e 11 Revoluções no mundo árabe O acontecimento do século Além de sofrerem com baixíssimos salários, de R$ 2,37 a hora, e assédio moral, os trabalhadores do McDonald’s do Brasil enfrentam uma série de violações dos direitos trabalhistas. Diversas denúncias reunidas pelo sindicato da categoria viraram um processo do Ministério Público do Trabalho, que, em outubro de 2010, firmou um acordo com a rede de fast food. Como punição, o McDonald’s terá que destinar R$ 11,7 milhões para publicidade contra o trabalho infantil. Págs. 4 e 5

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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Page 1: Edição 417 - de 24 de fevereiro a 2 de março de 2011

www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 24 de fevereiro a 2 de março de 2011Ano 9 • Número 417

ISSN 1978-5134

Reprodução

Alipio Freire

Os mistérios da CulturaOs equívocos do Ministério da Cultura em relação ao Creative Commons e aos direitos autorais pode ser resolvido através de um encontro com os setores pertinentes da sociedade civil. Pág. 3

Altamiro Borges

Mídia perde para MSTCapa dos jornalões durante meses e assunto predileto dos “calunistas” da televisão, a CPMI do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, instrumento dos latifundiários, foi encerrada. Pág. 3

Fidel Castro

Otan quer ocupar a LíbiaO petróleo se converteu na principal riqueza em mãos das transnacionais ianques; com essa fonte, dispuseram de um instrumento que aumentou consideravelmente seu poder político no mundo. Pág. 2

Pág. 9

McDonald’sMaus tratos esuperexploração

Salário mínimo

A opção de Dilma pelo mercado Pág. 7

Entrevista Pat Mooney

Tecnologias para o controle da vida Págs. 10 e 11

Revoluções no mundo árabe

O acontecimento do século

Além de sofrerem com baixíssimos salários, de R$ 2,37 a hora, e assédio moral, os trabalhadores do McDonald’s do Brasil enfrentam uma série de violações dos direitos trabalhistas. Diversas denúncias reunidas pelo sindicato da categoria viraram um processo do Ministério Público do Trabalho, que, em outubro de 2010, firmou um acordo com a rede de fast food. Como punição, o McDonald’s terá que destinar R$ 11,7 milhões para publicidade contra o trabalho infantil. Págs. 4 e 5

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A voz das ruas árabes

O PETRÓLEO SE tornou a rique-za principal nas mãos das grandes transnacionais ianques. Através desta fonte de energia, dispuseram de um instrumento que acrescen-tou consideravelmente seu poder político no mundo. Foi sua princi-pal arma quando decidiram liqui-dar facilmente a Revolução Cuba-na logo que foram promulgadas as primeiras leis justas e soberanas em nossa Pátria: privá-la de petró-leo.

Sobre essa fonte de energia se desenvolveu a civilização atual. A Venezuela foi a nação deste hemis-fério que maior preço pagou. Os Estados Unidos se tornaram donos das enormes jazidas com que a na-tureza dotou a esse país irmão.

Ao se concluir a última Guerra Mundial, começou a extrair das ja-zidas do Irã, bem como das da Ará-bia Saudita, do Iraque e dos paí-ses árabes situados ao redor deles, maiores quantidades de petróleo. Eles passaram a ser os principais fornecedores. O consumo mundial se elevou progressivamente à fabu-losa cifra de aproximadamente 80 milhões de barris diários, incluí-dos os que são extraídos no territó-rio dos EUA, aos que ulteriormen-te se adicionaram o gás, a energia hidráulica e a nuclear. Até inícios do século 20, o carvão tinha sido a fonte fundamental de energia que fez possível o desenvolvimento in-dustrial, antes que fossem produ-zidos milhares de milhões de auto-móveis e motores consumidores de combustível líquido.

A dilapidação do petróleo e do gás está ligada a uma das maiores tragédias, não resolvida em absolu-to, que sofre a humanidade: a mu-dança climática.

Quando nossa Revolução sur-giu, a Argélia, a Líbia e o Egito não eram ainda produtores de petró-leo, e grande parte das quantiosas reservas da Arábia Saudita, do Ira-que, do Irã e dos Emirados Ára-bes Unidos estavam por ser desco-bertas.

Em dezembro de 1951, a Líbia se transformou no primeiro país afri-cano a atingir sua independência após a Segunda Guerra Mundial, em que seu território foi cenário de importantes combates entre tropas alemãs e do Reino Unido, que de-

ram fama aos generais Erwin Rom-mel e Bernard L. Montgomery.

De seu território, 95% é total-mente desértico. A tecnologia per-mitiu descobrir importantes jazi-gos de petróleo ligeiro de excelen-te qualidade que hoje alcançam um milhão 800 mil barris diários, e abundantes depósitos de gás natu-ral. Tal riqueza lhe permitiu atin-gir uma perspectiva de vida que al-cança quase os 75 anos, e a mais al-ta renda per capita da África. Seu rigoroso deserto está localizado so-bre um enorme lago de água fós-sil, equivalente a mais de três vezes a superfície de Cuba, o que tornou possível a construção de uma am-pla rede de condutores de água do-ce que se estende por todo o país.

A Líbia, que tinha um milhão de habitantes quando atingiu sua in-dependência, tem hoje algo mais de seis milhões.

A Revolução na Líbia aconteceu em setembro de 1969. Seu princi-pal dirigente foi Muammar al-Ga-ddafi , militar de origem beduína, que em sua juventude mais precoce se inspirou nas ideias do líder egíp-cio Gamal Abdel Nasser. Sem dúvi-das que muitas de suas decisões es-tão ligadas às mudanças que se ori-ginaram quando, tal como no Egi-to, uma monarquia fraca e corrup-ta foi derrocada na Líbia.

Os habitantes deste país têm mi-lenárias tradições guerreiras. Há quem diga que os antigos líbios fi -zeram parte do exército de Aníbal

quando esteve a ponto de liquidar a Antiga Roma com a força que cru-zou os Alpes.

Poder-se-á ou não concordar com o Gaddafi . O mundo tem sido invadido com todo o tipo de notí-cias, empregando especialmente os meios maciços de informação. Ha-verá que esperar o tempo necessá-rio para conhecer com rigor quanto tem de verdade ou de mentira, ou uma mistura de fatos de todo o tipo que, no meio do caos, aconteceram na Líbia. O que para mim resul-ta absolutamente evidente é que ao governo dos Estados Unidos não lhe preocupa em absoluto a paz na Líbia, e não hesitará em dar à Or-ganização do Tratado do Atlânti-co Norte (Otan) a ordem de invadir esse rico país, talvez em questão de horas ou em muito breves dias.

Os que com pérfi das intenções inventaram a mentira de que Ga-ddafi se encaminhava para a Vene-zuela, igual que o fi zeram na tarde do dia 20 de fevereiro, receberam uma digna resposta do Ministro de Relações Exteriores da Venezuela, Nicolás Maduro, quando expres-sou textualmente que fazia “votos para que o povo líbio encontre, no exercício de sua soberania, uma so-lução pacífi ca a suas difi culdades, que preserve a integridade do povo e da nação Líbia, sem a ingerência do imperialismo...”

Por minha parte, não imagino o dirigente líbio abandonando o país, eludindo as responsabilidades que lhe são imputadas, sejam ou não falsas em parte ou em sua totali-dade.

Uma pessoa honesta estará sem-pre contra qualquer injustiça que se cometa com qualquer povo do mundo, e a pior delas, neste ins-tante, seria guardar silêncio peran-te o crime que a Otan se prepara para cometer contra o povo líbio.

À chefi a dessa organização beli-cista lhe urge fazê-lo. É preciso de-nunciá-lo!

Fidel Castro é líder da Revolução cubana e ex-presidente de Cuba.

opinião Fidel Castro

O plano da OTAN é ocupar a Líbia

crônica Luiz Ricardo Leitão

A REVOLTA ÁRABE, iniciada em dezembro de 2010, que se alas-tra por todo o Oriente Médio, com uma população superior a 300 mi-lhões de pessoas, contrariando a ex-pectativas dos ditadores e monar-cas da região e dos interesses do ca-pital mundial, não demonstram si-nais de recuo e muito menos de per-der forças.

Quando, na Tunísia, em 17 de de-zembro, o jovem comerciante, Mo-hamed Bouazizi, colocou fogo em si mesmo como ato de desespero de-pois de ter suas mercadorias apre-endidas pela polícia, não imaginou que estaria desencadeando uma on-da de revoltas que ameaça as dita-duras da região e motiva o povo a vencer o medo e sair às ruas para exigir reformas democráticas. À ex-pectativa de qual o próximo despos-ta a deixar o cargo junta-se o exercí-cio de prognosticar se alguma delas se salvará dessa onda de aspirações democráticas.

Ainda é incerta a abrangência e profundidade que alcançarão as re-formas exigidas hoje nas ruas dos países daquela região. O pode-rio repressivo de qualquer ditadu-ra não pode ser menosprezado ja-mais. A capacidade das forças que sustentam e se benefi ciam dos go-vernos déspotas de se recompor, mesmo trocando o mandatário,

também contribuem para a incer-teza dos rumos que tomarão as re-formas hoje vislumbradas. Nem mesmo os processos históricos de transformações políticas e so-ciais têm uma trajetória linearmen-te crescente. Há recuos e possibili-dades novas que se impõe indepen-dentes da vontade e das necessida-des dos protagonistas destas trans-formações.

No entanto, essas incertezas não podem esmaecer a importância e o signifi cado político destas revoltas populares. Para exemplifi car, nos bastam as palavras do fi lósofo Sami Naïr: “as pessoas se deram conta de que quem tinha medo era o poder. Agora são os ditadores que devem temer os povos”. As revoltas popu-lares fortalecem a confi ança e au-mentam a autoestima do povo, po-litizam as pessoas e põem as lutas em movimento.

Mas Naïr vai além ao vislumbrar, nessas revoltas populares, um movi-mento que destrói a ideia de que as sociedades árabes estão fadadas à apenas duas alternativas: viver com perigo extremista e fundamentalis-ta ou com as ditaduras. As revoltas nas ruas almejam conquistas demo-cráticas.

Os jovens, juntamente com as mulheres ocupam um lugar desta-cado em todas essas mobilizações

populares, na Tunísia, no Egito, no Iêmen; foram às ruas contra a aus-teridade e as políticas neoliberais implantadas em seus países nas úl-timas décadas. Mesmo os argeli-nos, primeiro foram às ruas, em ja-neiro, para protestar contra o au-mento dos preços dos alimentos. Estão, agora, mobilizados e em lu-ta por reformas democráticas, exi-gindo o fi m do Estado de emergên-

cia, existente desde 1992, que proí-be manifestações públicas no país. O mesmo ocorreu na Jordânia, on-de o estopim das revoltas foram o aumento dos preços dos alimentos e da energia, que obrigaram o rei a dissolver o governo. Mantem-se, agora, as mobilizações por refor-mas políticas e democráticas.

Se os povos árabes estão fazen-do um acerto de contas com seus governos, não é menos verdade que estão também fazendo sentar no banco dos réus os governos dos países centrais do capitalismo, as instituições internacionais do siste-ma capitalista e as grande corpora-ções empresariais que sempre sus-tentaram as ditaduras no Oriente Médio. Esse conluio do capitalismo internacional com as ditaduras nos países da região assegurou a pilha-gem do petróleo, fortunas para os ditadores (guardadas nos bancos dos países ricos do ocidente) e uma burguesia abastada, com fortunas e “com mais investimentos em Lon-dres do que em Alexandria”, como afi rma o historiador Prashad.

O mesmo ocorreu em Bahrein, com as mobilizações no início de fe-vereiro, exigindo uma Constituição escrita pelo povo. Para Prashad, o país depende do seu petróleo e o seu dinheiro é canalizado para a especu-lação imobiliária – o modelo Dubai.

Os benefi ciários desse processo têm sido a família real e seus comparsas. O povo, de maioria xiita, está furio-so porque quase toda sua riqueza não tem destinação social.

Além desse tripé formado pe-la pilhagem do petróleo, concen-tração da riqueza e governos di-tatoriais, não hesitaram em rele-gar a região à maldição do petró-leo: acostumados com essa riqueza natural, não promoveram a diver-sifi cação da economia e nem o seu uso para o desenvolvimento social do seu povo.

Nessas condições de desenvolvi-mento econômico e social, a exis-tência das ditaduras na região ali-viam os países ricos de um dos seus principais medos da atualidade: im-pedir que ondas migratórias inva-dam o ocidente, principalmente a Europa. Nenhum desses ditadores teria se sustentando no poder sem o apoio político, militar e fi nanceiro do capitalismo internacional.

Os árabes buscam, com as revol-tas populares de agora, comandar a si mesmos, rompendo com gover-nos autoritários e monarcas, entro-nizados em longevas ditaduras. Sem esquecer que esses ditadores são sustentados por governos, merca-dos de ações e capital externo. Co-mo não apoiar e, sobretudo, olhar com esperanças essas lutas?

de 24 de fevereiro a 2 de março de 20112editorial

Os “paladinos” da democraciaO DESCONFORTO de Washington, diante dos rumos inesperados que a onda de rebeliões no mundo árabe poderá assumir, tem suscitado curio-sos malabarismos políticos e retóricos de parte da Casa Branca e da mídia imperial. Afi m de atenuar a má impressão que o bom mulato Obama pro-vocou por conta de sua tímida e tardia reação ao movimento defl agrado pelos egípcios contra o regime de Mubarak (velho serviçal da política de Tio Sam e de Israel no Oriente Médio), os assessores palacianos despe-jam seus factoides na imprensa “livre”, com uma desfaçatez de dar inveja aos jornalistas de Bruzundanga.

O New York Times, por exemplo, evocou até a “agenda da liberdade” (!) que George W. Bush teria adotado como objetivo básico da política exter-na ianque, depois que a invasão do Iraque não pôde comprovar a supos-ta existência de “armas de destruição em massa” naquele país, conforme afi rmaram a CIA e outros serviços de inteligência (?) estadunidenses. Es-sa seria a melhor forma de conferir um signo positivo à famigerada “guer-ra ao terror”, cujo fi asco retumbante o próprio Pentágono não logra dis-farçar.

“Pôr fi m à tirania em nosso mundo” era o mote central do segundo dis-curso de posse de Bush e, por isso, Obama teria evitado o tema, para não ser associado a episódios tão controversos e delicados. Como, porém, ninguém sabe o fi m exato desse tsunami, já é hora de retomar o mantra da “promoção da democracia”, de preferência sob o duradouro molde de Thomas Jefferson, e, de quebra, vender a ideia de que o bom mulato não se omitiu no processo árabe, posicionando-se sem nenhuma hesitação no “lado certo da história”...

Os paladinos da democracia representativa burguesa, temerosos de que o movimento popular resolva seguir por vias ainda mais radicais do que as já trilhadas, tratam de recomendar aos insurgentes que, após o êxi-to na luta contra o velho tirano, saiam das ruas e voltem ordeiramen-te à rotina de fome e exploração que o capital sempre lhes impôs. Es-se pânico não é de hoje: o carrossel da história nos conta que o caminho para a resolução do desafi o moderno em prol de liberdade/igualdade/fraternidade já se apresentara sob ao menos duas alternativas desde os turbulentos dias da Revolução Francesa.

De fato, o projeto da ascendente burguesia de então, delineado pelos cérebros do Iluminismo francês, pressupõe sempre a tutela das maiorias pelas elites ilustradas, ao passo que os defensores da legítima democra-cia de massas (desde Rousseau e os jacobinos até Marx e Lênin) declaram que, se esta não é direta nem participativa, jamais poderá ser considerada democrática. A valorosa experiência da Comuna de Paris e a decisiva in-terferência dos sovietes no processo revolucionário da Rússia em 1917 são exemplos emblemáticos dessa via.

As variantes do padrão dito “ocidental” de democracia representati-va vivem hoje uma crise sem precedentes na história. Não é possível, por certo, qualifi car de “democrático” o sistema político italiano, em que o sá-tiro Berlusconi, “eleito” por apenas 30% da população e há muito con-testado por distintos setores sociais, se mantém no poder à mercê do seu controle da mídia e das inúmeras maracutaias que concertou com os po-dres poderes nacionais. Será que poderíamos imaginar o bom mulato Obama concentrando suas baterias “democráticas” sobre o insaciável ca-po da Bota?

A questão árabe, portanto, ainda será objeto de acirrado debate políti-co e ideológico no seio do movimento social. Para atinar com o futuro, só mesmo parafraseando o clássico samba-enredo da União da Ilha: “O que será o amanhã? Responda quem puder... O que irá nos acontecer? Nos-so destino será o que o povo quiser...” Oxalá as forças populares no mun-do árabe superem a fórmula italiana que Giuseppe di Lampedusa enun-ciou no romance O leopardo e consigam mudar para não deixar tudo co-mo está...

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila,

Cronista do Brasil e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos– CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci MariaFranzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

As revoltas populares fortalecem a confi ança e aumentam a autoestima do povo, politizam as pessoas e põem as lutas em movimento

As variantes do padrão dito “ocidental” de democracia representativa vivem hoje uma crise sem precedentes na história

Uma pessoa honesta estará sempre contra qualquer injustiça que se cometa com qualquer povo do mundo

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de 24 de fevereiro a 2 de março de 2011

tranquilo em usar essa expressão). O fato é que, mês e meio de governo e o motivo da divergência não são sufi cientes para se dizer da viabilidade ou não de um ministro – no caso uma ministra –; e o levante (co-meçado desde janeiro) mais cheira a uma disputa or-questrada por forças afastadas desse nicho de po-der do que uma questão de princípios feridos. Por si-nal, essa possibilidade de manobra mesquinha e apa-relhista de alguns capi resulta exatamente de uma campanha presidencial que não apresentou um cla-ro programa político mais geral (e, menos ainda, pro-gramas e prioridades setoriais), e onde o marketing (com seus apelos que tangenciam a subliminaridade) substituiu o debate.

Em tempoApenas um registro: por mais que discordemos da

atitude tomada pela ministra Ana de Hollanda, certa-mente isto nada representa, se compararmos ao des-cabimento e descalabro da representante do ministro Juca Ferreira em São Paulo, durante toda sua gestão. Nem por isto, a cabeça do ministro foi pedida.

Os mistérios da CulturaNÃO CONHEÇO a ministra da Cultura, senhora Ana de Hollanda. Apenas a vi (à distância) na homenagem ao centenário de Lélia Abramo (7-2- 2011), no Teatro de Arena de São Paulo.

Não sei que forças do PT a ministra representa – embora sua trajetória via Osasco e sua articulação com o hoje presidente da Fundação Nacional de Ar-tes, Antonio Grassi – me ofereçam indícios.

No entanto, apesar de concordar que se trata de um equívoco as posições assumidas com relação ao Cre-ative Commons e itens relacionados às máfi as do di-reito autoral, entendo que essa questão pode ser re-solvida (e até revertida) através de um encontro com os setores pertinentes da sociedade civil. A ministra deveria tomar essa iniciativa, e/ou os movimentos e organizações interessados no assunto devem pressio-nar nessa direção. Todos sairiam fortalecidos, sobre-tudo o governo da presidenta Dilma Rousseff.

Fora isto, continuará uma briga de aparelho, onde várias pessoas sérias (bem como movimentos e orga-nizações do setor) seguirão sendo manipuladas pela velha “máfi a do dendê” (como baiano, fi co mais que

AlexandreTeles

instantâneo

Alipio Freire

fazem um silêncio cúmplice – lembram os jagunços do latifúndio.

O requerimento que criou a chamada “CPMI do MST” foi apresentado pelo deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS) em 21 de outubro de 2009. Seu intento ex-plícito era o de criminalizar a luta pela reforma agrá-ria. Ao longo das 13 reuniões ofi ciais, foram ouvidas dezenas de pessoas – de integrantes de entidades e as-sociações que desenvolvem atividades no meio rural a membros das mais diversas pastas do Executivo fede-ral, passando por especialistas na questão agrária.

Em julho passado, o deputado federal Jilmar Tatto (PT-SP) apresentou seu relatório fi nal, no qual frisa-va a “inexistência de qualquer irregularidade no fato de as entidades manterem relações e atenderem pú-blico vinculado a movimentos sociais”. Mas os propo-sitores da CPMI pressionaram com a ameaça de um voto em separado e conseguiram forçar a sua prorro-gação por mais seis meses. O prazo da prorrogação chegou ao fi m, no fi nal de janeiro, sem que nada mais fosse votado ou discutido.

Enterro da CPMI do MSTA REPÓRTER BRASIL informou na semana passada que foi encerrada ofi cialmente a Comissão Parlamen-tar Mista de Inquérito (CPMI) do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “A instân-cia criada pelos ruralistas para vasculhar as contas do movimento foi coberta com uma pá de cal no último dia 31 de janeiro, sem que o relatório fi nal fosse sub-metido à votação dos membros da comissão”.

Durante meses, a fi nada CPMI foi capa dos jorna-lões e assunto predileto dos “calunistas” da televi-são. A revista Veja produziu várias “reporcagens” pa-ra atacar os movimentos de luta pela reforma agrá-ria. Editoriais foram fartamente usados para atingir caluniosamente o MST por “desvio de recursos pú-blicos”.

Agora, a mesma mídia venal deixa de destacar o enterro formal da CPMI – o que confi rma que ela é um instrumento dos latifundiários. O que era man-chete virou notinha de roda-pé ou simplesmente foi omitido no noticiário. Josias de Souza, Boris Casoy, Willian Waack e outros inimigos da reforma agrária

Altamiro Borges

3

Aumento da tarifa em SPÉ uma questão de respeito ao ser humano. Esse Kassab enxotou milhares de famílias na zona leste, no Jardim Pantanal, e agora es-se preço absurdo do ônibus. Cadê os traba-lhadores e os estudantes da zona leste nes-sas manifestações? O que adianta só os estu-dantes da PUC, Unifesp e USP participarem dos protestos? Nós temos que massifi car es-sas manifestações. Cadê as organizações so-ciais da periferia, as pastorais? Vamos acor-dar! Abraços do Itaim Paulista.

Juliana Saldanha, de São Paulo, por correio eletrônico

Aumento da tarifa em SP – 2E a “midiona” praticamente se cala sobre o assunto. Como se a mobilização contra o ta-rifaço nas passagens fosse uma rebeldia sem causa. Agora, mais do que a contestação dos reajustes, as manifestações devem estar conscientizadas de que a luta principal é pe-la mudança do modelo de prestação de ser-

viço de transporte coletivo no país. Enquan-to o transporte não for encarado como algo de primeira necessidade, como saúde, educa-ção e segurança, mas sim como um nicho me-ramente delegado à exploração da iniciativa privada, bradar simplesmente contra um re-ajuste não terá muito efeito, não.

Wagner De Alcântara Aragão, de Curitiba (PR), por correio eletrônico

Aumento da tarifa em SP – 3A violência normalmente é potencializada quando a maioria dos presentes manifestan-tes são estudantes. Aqui em Floripa, o Movi-mento Passe Livre é bem organizado, mas o aumento para R$ 3,00 aconteceu estrategi-camente um mês antes da entrada das férias. Agora está para ser aprovado um aumen-to para R$ 3,14 e já estão rolando reuniões na UFSC e UDESC para marcar o primeiro ato. O jeito é a estudantada perceber o fun-damental vínculo que tem dentro da socieda-de civil, entre conhecimento e trabalhadores.

Que condenem esses que mesmo armados lincham um professor ou qualquer outro.

Lucas Vezzani, de Florianópolis (SC), por correio eletrônico

Copa e direitos humanosInfelizmente ainda hoje presenciamos a po-lítica de “higienização urbana”, tão recorren-tes nos séculos passados. Tais obras aquecem o mercado, porém tenhamos clareza de que muitos dos capitais investidos são de proce-dência internacional (o que vem, volta maior) e os empregos gerados são na grande maioria subempregos. Será esse o caminho? Será que não aprendemos com a construção de Brasília? A diferença aqui é que já estão retirando, forço-samente, os futuros “calangos”.

Isaac M. Pedro, por correio eletrônico

Creative Commons x CopyrightEu gostaria de ver uma boa auditoria em to-dos os setores da “indústria” (odeio esse ter-mo) cultural e do entretenimento, apenas pa-ra ver se a “pirataria”, o “roubo de proprieda-

de intelectual” é tão prejudicial quanto elas afi rmam. A “pirataria” acaba servindo comouma poderosa forma de marketing informal, e de criar algo tão importante: o mindshare. E é com o mindshare que a “indústria” consegue sufocar o pequeno produtor de conteúdo.

Renan Brick, por correio eletrônico

Copa 2014 e Rio 2016Creio que ninguém é contra o progresso e as obras para a realização da Copa e das Olimpía-das no Brasil. Sabemos que isso aquece a eco-nomia e gera empregos. No entanto, a prefeitu-ra do Rio não pode tratar as comunidades co-mo “coisa”. Já aqui no Brasil, com a mídia que temos, que só divulga aquilo que interessa aos seus proprietários, o tema fi cará de lado, como tantos outros temas de direitos humanos.

Pedro Paulo, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

NINGUÉM FAZ POLÍTICA sozinho. Os sujeitos que decidem intervir na história sabem

que o impulso histórico de mudar o mundo dependede muita luta de sofrido processo de desenvolvimen-to, de análises e intuições e também de convicções.

Mesmo os antigos ditadores que marcaram a épo-ca no início do século 20 – tipo Hitler ou Mussolini –cultivavam o apoio das mesmas massas que eles trata-vam com aspereza retórica e reprimiam, enchendo ascadeias de seus países.

Mais modernamente, esses ditadores e seus asses-sores têm diminuído o recurso à brutalidade assumi-da e oferecem a seus seguidores discursos mais sofi sti-cados, fl ertando com o liberalismo. Agora mesmo nos-sos jornais estão cheios de notícias que se constroemem torno de uma aguda percepção de que os ideais po-líticos libertários podem ser proclamados sem que se-jam realizados.

Quando vemos recentemente no norte da África ma-nifestações da profunda mistifi cação efetivada por di-versos Estados, podemos sempre nos apoiar em umametodologia não corrompida e enxergar a mentiracom que o Ocidente saudava o discurso liberal e re-primia a esquerda nesses países. Mubarak e seus con-gêneres não se tornaram antidemocratas de uma horapara outra. Há muitos anos eles já eram de direita.

É constrangedor para nós a imagem de um movi-mento social de inspiração mulçumana e cristã e no-tar que a amplitude dessa mobilização não correspon-de às verdadeiras lideranças, capazes de encaminharchoques e defi nir os limites dos acordos.

Os antigos romanos infl uenciaram muita gente comideias pragmáticas e truculentas, que convenciam aspessoas de que os movimentos sociais derivavam dasnecessidades econômicas e do vazio político.

Se essa ideia fosse correta, a massa trabalhadora, aosair de casa para enfrentar a dureza do trabalho, ilus-traria o pensamento conservador e as imagens que eledifundia: a maneira de aquietar a multidão seria da-da por duas esmolas típicas do império romano, isto é,panis et circenses (comida e divertimento).

Um senador romano tradicional acrescentou a essaexpressão cínica uma observação sarcástica: “se a si-tuação for perigosa para nossas conveniências políti-cas, podemos reduzir o panis e eliminar o circenses.

Na época atual, a política se tornou um território de-licado. Seus teóricos ensinam que debates e contro-vérsias devem ser evitados quando questionam valo-res que estão, por assim dizer, no núcleo da democra-cia. O resultado desse movimento é a proliferação dequestões teóricas pouco importantes e o quase aban-dono das questões cruciais da história dos ideais de-mocráticos.

Na democracia, aparece com nitidez a chamadaquestão social. O compromisso democrático vincula oprojeto de uma nova sociedade tanto à criação de no-vas bases sociais como à defesa das liberdades.

A democracia, como sabemos, se baseia em um mo-vimento teórico e prático que repele o programa polí-tico liberal, a partir do momento em que o liberalis-mo se mostra insensível às frustrações da classe tra-balhadora.

Nas circunstâncias atuais, para o bem ou para o mal,a derrota histórica do socialismo trouxe como conse-quência a exclusão da sofi sticação com que os socia-listas atuavam politicamente em ligação com as pre-ocupações liberais. Os liberais, por sua vez, chegarama dispensar, como interlocutora, a perspectiva dos de-mocratas e dos socialistas.

Uma das razões pelas quais podemos prever que aspróximas décadas, no Brasil, serão tumultuadas, tal-vez venham a ser compreendidas e trabalhadas pelosnossos sucessores. Esperamos que eles, ao avançar,tragam os conhecimentos científi cos que, ao mesmotempo, nos ajudam e nos frustram.

Leandro Konder escreve semanalmente neste espaço.

Leandro Konder

O pão e o divertimento

O compromisso democrático vincula o projeto de uma nova sociedade tanto à criação de novas bases sociais como à defesa das liberdades

comentários do leitor

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brasilde 24 de fevereiro a 2 de março de 20116

DebandadaMais um recuo do atual governo

em relação às promessas do governo anterior: a Telebrás deveria assumir a implantação e a gestão do Progra-ma Nacional de Banda Larga, con-trolar as concessões e universalizar a internet em todo o Brasil a preços acessíveis para a população de baixa renda. Agora a exploração da banda larga fi cará por conta das empresas privadas de telefonia – principal-mente onde for mais lucrativo.

Lucro espanhol A empresa espanhola Telefonica en-

cerrou o ano de 2010 com um lucro lí-quido de R$ 2,4 bilhões, um aumento de 8,8% em relação ao ano anterior. É uma das campeãs de reclamações dos usuários no Procon, seja por falhas nos serviços prestados, atendimento ruim e irregularidades nas contas. Uma prática nociva adotada pela em-presa tem sido a elevação do preço do Speedy (banda larga) sem a autoriza-ção do usuário. Até quando?

Promessa vaziaPromessa da campanha presiden-

cial de Barack Obama, a desativação da base militar dos Estados Unidos em Guantánamo fi cou apenas no discurso. Os presos desse campo de concentração estadunidense foram sequestrados pela CIA em várias par-tes do mundo, desde 2002, são sub-metidos a torturas e mantidos fora do alcance das leis para prisioneiros políticos, comuns ou de guerra. A barbárie continua!

Dura realidadeNa última semana, alguns inte-

grantes da “tropa de choque” do lulismo na campanha eleitoral de Dilma Rousseff manifestaram des-confi ança sobre a posição do novo governo na questão da regulação da comunicação social. Chegaram a dizer – em artigos e debates – que a orientação do Palácio do Planalto tem sido a de buscar composição com a grande mídia burguesa. A de-cepção anda mais rápido do que era de se esperar!

Reação popularGanha força na sociedade a cam-

panha contra a aprovação de novo Código Florestal, projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, “porque privilegia a grilagem de terras públicas, o desmatamen-to irresponsável, a mineração em áreas de reserva e o abandono dos interesses do povo brasileiro”. A pe-tição pode ser assinada no link http://www.causes.com/causes/569333-contra-o-projeto-de-novo-c-digo-fl orestal?m=58d3db0b

Nova frotaDepois que o site WikiLeaks passou

a divulgar os documentos secretos da diplomacia dos Estados Unidos, o governo daquele país vem tentando por todos os meios estabelecer novos controles sobre a Internet. Isso ex-plica o encontro, na semana passada, do presidente Barack Obama com os executivos do Google, Twitter, Yahoo, Facebook, Oracle e outros. Está na cara que o imperialismo or-ganiza a sua frota ideológica no espa-ço virtual.

Direito violadoEntidades que apoiam as comu-

nidades da Restinga, Vila Recreio II e Vila Harmonia, ameaçadas de despejo forçado no Rio de Janeiro, apresentaram denúncia formal à Co-missão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, na qual solicitam medida cautelar contra a violação de direitos dos moradores. Em nome da Copa do Mundo e das Olimpíadas está ocorrendo a mais brutal remo-ção de favelados da história do Rio de Janeiro.

Marcha mulherPelo menos 250 mulheres devem

participar da marcha organizada por vários movimentos sociais do Espí-rito Santo contra a violência e em defesa de um projeto popular para o Brasil. Elas saem de Serra Sede no dia 28 de fevereiro e encerram a marcha no dia 3 de março, no centro de Vitória. No caminho, param em algumas cidades para debater com a população temas da realidade brasi-leira, em especial a violência contra as mulheres.

Luta médicaMais de 100 entidades médicas de

todo Brasil – entre elas, o Conselho Federal de Medicina e a Federação Nacional dos Médicos – decidiram suspender o atendimento das segura-doras e operadoras de planos privados de saúde no dia 7 de abril, Dia Mun-dial da Saúde. Os médicos reivindicam reajuste dos honorários, contratos com os planos e aprovação do Projeto de Lei nº 6.964/2010, que obriga o reajuste periódico da categoria.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Eduardo Sales de Limada Redação

A PRESSÃO INFLACIONÁRIA que ocor-reu, pelo menos em janeiro, decorreu de escolhas políticas, tendo em vista que os itens que apresentaram as maiores altas constituem os chamados preços admi-nistrados, relacionados à energia elétri-ca, telefonia, gasolina, e, principalmen-te, ao transporte público.

Desde o fi nal de 2010, a tarifa de ôni-bus subiu em pelo menos 17 grandes ci-dades brasileiras, dentre as quais São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Salvador, pressionando índices infl acionários. De acordo com o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), medido pelo IBGE, o item tarifas de ônibus urba-nos subiu 4,13% somente em janeiro.

Na capital paulista, o reajuste do preço do ônibus coletivo foi de 11%. Na cidade, o preço passou de R$ 2,70 para R$ 3,00. O IPCA total fi cou em 0,83% em janeiro. Maior resultado desde abril de 2005, pu-xado fortemente pelo item transportes, que teve alta de 1,55%.

Para ilustrar. Ao lado dos transportes, alimentação e bebidas também se desta-caram na composição da infl ação, com alta de 1,16% em janeiro. Segundo a eco-nomista Maria Lúcia Fatorelli, a contra-dição, no caso do aumento de preços de alimentação e bebidas no país, reside no fato de não haver necessidade de “co-tarmos” o custo de alimentos pelo pre-ço das commodities internacionais. “Nós

não importamos essas commodities. Pe-lo contrário. Isso deveria ser até um mo-tivo para aumentar o lucro das empresas brasileiras que produzem alimentos e até de redução do preço para os brasileiros”, explica.

CaronaO item alimentação e bebidas contri-

buiu com 23,47% da totalidade do ín-dice infl acionário de janeiro e o item transportes contribuiu com 18,68%. Mas quando se fala em infl ação puxada por aumento do preço de transporte públi-co, surge uma contradição tão grande ou maior quando comparada com a puxa-da pelo preço dos alimentos. Ocorre, no caso dos transportes, uma relação dire-ta com as escolhas políticas de poderes executivos locais. Segundo conta Lucas Monteiro, integrante do Movimento Pas-se Livre (MPL), em 2010, o aumento do preço do ônibus foi de 17,4%. “Muito aci-ma do valor infl acionário”, destaca o in-tegrante do MPL.

Por isso, Fatorelli ressalta que a cha-mada infl ação de demanda, gerada pe-lo crescimento do consumo dos traba-lhadores, não é a que ocorre atualmente no Brasil, como defende o Banco Central. O que acontece, segundo ela, é a infl ação de custo, criada pelos reajustes de em-presas concessionárias, como as empre-sas de ônibus. “O que ocorreu agora em janeiro em relação ao transporte, ocor-re quando tem aumento da tarifa de te-lefone, em decorrência dos contratos fei-tos na época da privatização de todos es-ses setores”, explica.

Mas se os transportes coletivos pos-suem preços administrados, seria lógico considerar, pelo menos um componen-te da infl ação como de fácil controle. “Os contratos podem e deveriam ser revistos, porque já está mais que provado que o processo de privatizações foi repleto de irregularidades e esse reajuste automá-tico, anual, ele é nocivo; ele está tornan-do os preços de energia elétrica, de tele-fonia e de transporte no Brasil os mais al-tos do mundo, e isso não tem nada a ver

com a demanda”, explica Fatorelli. Para ela, “foi-se por terra todo o discurso fa-vorável à privatização, porque não houve barateamento do serviço, pelo contrário, ele se tornou muito mais caro”.

Dessa forma, o mais simples, de acor-do com Fatorelli, seria, em vez de au-mentar a taxa de juros para controlar a infl ação, controlar e reduzir os preços administrados, como as tarifas de trans-porte público. “Transporte, energia, te-lefonia, alimentos, petróleo, nada disso deveria afetar nossa infl ação”, defende a economista.

Nas costasSe esses preços administrados não pre-

cisariam infl uir na infl ação, também não deveriam, segundo a economista, in-fl uenciar no aumento da taxa de juros. “Só faria sentido aumentar juros se es-tivesse havendo uma infl ação decorren-te de um excesso de demanda, um exces-so de compra, por exemplo, de produtos fi nanciados, que poderia gerar uma bo-lha infl acionária; e isso não está aconte-cendo”, ressalta.

Cria-se um círculo vicioso. A infl ação de custo, segundo ela, gera mais custo. Gerada pelo aumento dos preços admi-nistrados, a infl ação pressiona a taxa de juros, que, por sua vez, transforma-se em componente de custo para as empresas, seja de transporte, telefonia. Isso recai, novamente, nas costas do trabalhador. “No fi m, quem está pagando essa conta é o trabalhador, com seu ganho reduzido e tendo que arcar com contas mais eleva-das”, dispara a economista.

Infl ação vai de carona no “busão”ECONOMIA E TRANSPORTES Elevação das tarifas de ônibus puxam a infl ação e, em consequência, elevam a taxa Selic

da Redação

O prefeito de São Paulo (SP) Gilberto Kassab (DEM) optou por passar o au-mento de custo do transporte para o usuário em vez de fi nanciá-lo com re-curso público. “Isso é emblemático por-que o poder público não encara o trans-porte como um direito social e sim co-mo uma mercadoria. E reajusta as tari-fas todos os anos”, critica Lucas Mon-teiro, integrante do Movimento Passe Livre (MPL).

Segundo ele, a prefeitura tem sobra de caixa. São cerca de R$ 4 bilhões. O custo total do sistema, segundo afi rma, de transporte é de R$ 5 bilhões. “A questão não é se tem ou não dinheiro, mas qual a prioridade de orçamento da prefeitura”, afi rma.

Monteiro enxerga ainda uma “in-vasão” do modelo de privatização dos transportes para dentro da esfera gover-namental paulista. “Passa-se a defender a lógica do lucro no sistema de cobran-ça. O metrô, por exemplo, não é um sis-tema privado, mas o sistema de cobran-ça funciona dentro da mesma lógica mercadológica”, defende.

Dessa forma, para o integrante do MPL, a mudança está muito além do ti-po de gerência, pública ou privada, mas passa por um conceito que faça com que o meio de transporte passe a ser tratado

como direito social, que seja custeado pelo “bolo orçamentário do poder públi-co”, no caso dos ônibus, da prefeitura.

BarradoE isso já foi tentado dentro da própria

prefeitura de São Paulo, há pouco mais de 20 anos. Em outubro de 1990, a en-tão prefeita Luiza Erundina (PT, hoje deputada federal pelo PSB) anunciava uma nova proposta de governo: a tari-fa zero, com autoria do então secretário de Transportes Lúcio Gregori. O projeto pretendia garantir a gratuidade total do transporte coletivo entre 1º de julho a 31 de dezembro de 1991.

A tarifa zero seria fi nanciada por um Fundo de Transporte, que recolheria fa-tias de uma cobrança progressiva do IP-TU. Ou seja, o custeio do transporte seria baseado no conceito de forte distribui-ção de renda: quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos e quem não tem nada não paga. O Projeto Tari-fa Zero foi derrotado na Câmara Munici-pal, atacado, até mesmo, por integrantes do PT. (ESL)

Projeto pretendia garantir a gratuidade total do transporte coletivo entre 1º de julho a 31 de dezembro de 1991

Um conceito de direito retomadoHá 20 anos, ex-prefeita tentou o “tarifa zero”

“O que ocorreu agora em janeiro em relação ao transporte, ocorre quando tem aumento da tarifa de telefone, em decorrência dos contratos feitos na época da privatização de todos esses setores”

Manifestação contra o aumento da tarifa do ônibus realizada diante da prefeitura de São Paulo

Carlos Cecconello/Folhapress

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brasil de 24 de fevereiro a 2 de março de 2011 7

Vinicius Mansurde Brasília (DF)

A PRIMEIRA GRANDE batalha do go-verno Dilma no Congresso Nacional re-gistrou diversas proezas. A casa, que a pouco menos de dois meses havia apro-vado a toque de caixa um aumento pró-prio de 62%, foi capaz de protagonizar uma longa novela, cujo fi nal estabeleceu uma elevação de 6,86% do salário míni-mo – o que representa somente 0,37% de aumento real. Outras façanhas do episó-dio foram a unifi cação do PMDB, que vo-tou inteiro na proposta do governo, e o inusitado descontentamento de PSDB e DEM com tão baixo aumento. Ao invés de R$ 545,00 os democratas defenderam R$ 560,00 e os tucanos R$ 600,00.

O que permanece inabalável é a força do capital fi nanceiro para ditar os rumos da economia brasileira. Fazendo alar-de sobre a alta da infl ação e o “desequi-líbrio” das contas públicas, a pressão do mercado fi nanceiro segue hegemonizan-do a política macroeconômica do Brasil no governo Dilma, sendo a defi nição do salário mínimo a sua mais recente vitó-ria. O anúncio do corte de R$ 50 bilhões nas despesas do governo e o aumento da taxa de juros (Selic) foram outras duas medidas direcionadas a este setor.

CríticasDentro do parlamento, o Psol foi voz

isolada no questionamento ao discur-so do capital fi nanceiro. No dia da vota-ção do aumento do salário mínimo, o de-putado Ivan Valente (SP) afi rmou que “a decisão a ser tomada pelo Congresso Na-cional é política. Não é técnica nem eco-nômica e nada tem a ver com o acordo entre o ministro da Fazenda e as centrais. É uma escolha política que um governo faz indagando se o salário mínimo é im-portante para distribuir renda, para fazer justiça social [...] A chantagem de que a elevação do mínimo aumenta a infl ação é um terrorismo do mercado”.

Do lado de fora, a CUT considerou uma vitória a aprovação da lei que asse-gura a correção do salário mínimo pela infl ação mais o índice de crescimento da economia de dois anos antes até 2015 – política gestada pelo governo Lula (ver box). Entretanto, o secretário geral da entidade, Quintino Severo, aponta que o aumento do salário poderia ser maior. “O governo alegou que estávamos des-cumprindo o acordo, mas nós quería-mos um tratamento excepcional aos tra-balhadores, da mesma forma que foi da-do aos empresários em 2009 [durante a crise econômica]; mas, infelizmente, há uma posição no governo de inibir o con-sumo para segurar a infl ação. Aumentar o mínimo era ir contra essa lógica. Te-mos discordância. A infl ação se comba-te com aumento da produção, portan-to baixando os juros e aumentando sa-lários para consumir essa produção. A presidenta fala em combater a miséria, mas não é reduzindo o consumo que se vai fazer isso”, argumentou.

A origem da infl açãoPara o economista Amir Khair, “é fun-

damental aprofundar as discussões so-bre as causas da infl ação para evitar so-luções que, aparentemente, têm signifi -cado, mas que, na prática, não funcio-nam”. O economista salienta que o país já está acompanhando a elevação da in-fl ação que está ocorrendo em todos os países, desde setembro do ano passa-do, por causa da elevação dos preços dos alimentos e commodities. Como

Saldo da 1ª batalha do governo Dilma no Congresso: mínimoECONOMIA E POLÍTICA Aumento de R$ 5,00 na proposta inicial mantém, no governo Dilma, a política de valorização do salário mínimo de Lula, mas demonstra a força do capital fi nanceiro

agravante, neste início de ano, a infl a-ção no Brasil é sazonalmente mais ele-vada, por causa das chuvas que afetam a produção de alimentos in natura, dos reajustes das tarifas do transporte cole-tivo, das despesas com material escolar e o IPTU e IPVA.

Nesse cenário, Khair considera que as respostas dadas pelo governo para com-bater a infl ação servem exclusivamente ao mercado fi nanceiro. “Essa saída via Selic está esgotada por causa dos pre-juízos causados na indústria nacional e nas contas externas. O argumento mui-to utilizado nas decisões sobre a Selic – formar as expectativas dos agentes do

mercado para indicar o rumo da infl a-ção – vem sendo frustrado ante a reali-dade maior que é a infl ação vinda de fo-ra dos alimentos e commodities – que respondem por mais da metade da infl a-ção – e da indexação da infl ação ocorri-da no passado, como no caso do reajus-te dos aluguéis, baseado no IGP-M, que cresceu 11,5% em 2010”, explica.

Segundo o membro do Conselho Re-gional de Economia do Rio de Janeiro, Paulo Passarinho, em um cenário de al-ta dos preços das commodities agrícolas, em uma economia aberta como a brasi-leira, sem mecanismos de regulação in-terno, o Brasil acaba por importar a infl a-

Salário mínimo desde o governo Lula

Período Salário Mínimo (R$)

Reajuste Nominal (%)

INPC(%)

Aumento Real (%)

Abr de 2002 200 – – –

Abr de 2003 240 20,00 18,54 1,23

Mai de 2004 260 8,33 7,06 1,19

Mai de 2005 300 15,38 6,61 8,23

Abr de 2006 350 16,67 3,21 13,04

Abr de 2007 380 8,57 3,30 5,10

Mar de 2008 415 9,21 4,98 4,03

Fev de 2009 465 12,05 5,92 5,79

Jan de 2010 510 9,68 3,45 6,02

Jan de 2011 545 6,86 6,47 0,37

Total período – 172,50 76,66 54,25

Fonte: Dieese

Máximas do mínimoPara acumular o dinheiro que um de-putado federal recebe em um ano, um trabalhador pago com o atual salário mínimo necessita de 56 anos de tra-balho, sem gastar um centavo. Exata-mente o mesmo tempo de vida pública que tem o mais antigo dos congressis-tas, o presidente do Senado, José Sar-ney (PMDB-AP).

Caso o aumento de 62% dado a deputa-dos e senadores fosse aplicado ao salário mínimo, ele subiria para R$ 826,20.

A Constituição Federal afi rma que “é direito do trabalhador o salário mínimo capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saú-de, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. O salário mínimo necessário para garantir esses direitos, segundo o Dieese, seria de R$ 2.227,53 – em valores de dezembro de 2010.

de Brasília (DF)

Em entrevista ao jornal Valor, do dia 17 de fevereiro, o ex-presidente do BC, Armínio Fraga, elogiou a políti-ca do corte de gastos do governo fede-ral e disse: “fi zeram o que achavam que tinha que ser feito em ano de eleição. Agora não tem jeito, tem que pagar a conta”. Fraga, que ainda elogiou a pre-sença do ministro da Casa Civil Antônio Palocci no governo, lidera o coro de di-versos comentaristas que apostam que o governo Dilma não “inchará a máqui-na pública” como o governo Lula.

Para o supervisor técnico do Depar-tamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócioeconômicos (Dieese), Clóvis Scherer, “de forma nenhuma se pode dizer que a Dilma inverteu a polí-tica do Lula”, uma vez que as primeiras medidas da atual presidente são de aus-

teridade dura, assim como foram a do presidente anterior, em 2003.

O economista Paulo Passarinho vê da mesma forma e aponta que a polí-tica de austeridade deverá ser mantida para o governo fazer caixa nos dois pri-meiros anos:

“A perspectiva é de arrocho fi scal e monetário. Eles vão desacelerar a eco-nomia, buscando uma melhor condi-ção para crescer nos dois últimos anos do mandato, uma visão absolutamente conservadora. Farão caixa também para o plano de investimento criminoso para a Copa do Mundo. Fifa e COI são enti-

dades multilaterais muito mais fortes eimpositivas do que o próprio FMI”.

Quintino Severo, da CUT, tambémnão vê diferenças. “A Dilma escolheuesse caminho para acalmar o deus mer-cado, mas isso se assemelha às medidasdo Lula em 2003”, afi rma. De qualquermaneira, o sindicalista aposta que esteano os trabalhadores sairão à luta poraumento real: “O fato do PIB ter cres-cido 7,8% e de estar faltando mão-de-obra qualifi cada motiva. Já tem proje-to de paralisação em vários locais doBrasil”.

Aprovado o salário mínimo, as pró-ximas pautas que a CUT pretende tra-tar com o governo são o reajuste do im-posto de renda (IR) e a política de re-cuperação das aposentadorias paraquem ganha mais de um salário míni-mo. “Adianto que esse debate da corre-ção do IR é muito estratégico, porqueno ano passado, como houve aumentoreal, sem correção, parte disso irá paraos cofres do governo. Queremos que es-se dinheiro permaneça no bolso do tra-balhador. O Gilberto Carvalho [minis-tro da Secretaria-Geral da Presidênciada República] e o Mantenga [ministroda Fazenda] já sinalizaram para isso”,concluiu. (VM)

ção. Por isso, o país necessitaria de “um tratamento dos estoques agrícolas total-mente diferenciado, com um imposto so-bre a exportação de alimentos, como for-ma de incentivar a canalização da produ-ção para o mercado interno e não deixar tudo nas mãos de três empresas interna-cionais”.

Contudo Passarinho salienta que a questão de fundo passa pela completa re-modelação da política agrária. “O modelo do agronegócio é insustentável, o Estado renegocia suas dívidas de cinco em cinco anos. Ele se baseia no petróleo, no potás-sio, produtos em processo de alta de pre-ços, porque há uma tendência a escassez. O custo de produção só aumenta. Nós so-mos líderes na importação de agrotóxico. Isso é um absurdo. Por que não investir em novo modelo agrícola?”, questiona.

BC e mercado fi nanceiroPara o economista, o governo poderia

combater a infl ação de outras formas: di-minuindo crédito através do aprofunda-mento das medidas macroprudenciais (tomadas no fi nal do governo Lula); in-cidindo sobre as taxas cobradas pelos bancos ou ter maior rigor sobre setores monopolistas, como a Vale, que aumen-tou em mais de 100% o preço do miné-rio de ferro, contaminando todos os cus-tos da cadeia de produção. Entretanto, isso não ocorre, segundo Khair, por ha-ver uma “relação simbiótica” entre BC e sistema fi nanceiro. “Eles fazem reuniões sistemáticas. O BC se comunica com os bancos, mas pouco com a economia real. É como pedir para a raposa tomar conta do galinheiro... Discute-se muito a ques-tão da autonomia operacional do BC em relação ao governo federal, especialmen-te em relação ao Ministério da Fazenda. Mas a verdadeira pressão, que empana essa autonomia, está no mercado fi nan-ceiro, o maior interessado em manter a Selic em níveis elevados e crescentes co-mo solução milagrosa para domar a in-fl ação”, analisa.

“A Dilma escolheu esse caminho para acalmar o deus mercado”Especialistas analisam o rumo da política econômica no governo Dilma

“A perspectiva é de arrocho fi scal e monetário. Eles vão desacelerar a economia, buscando uma melhor condição para crescer nos dois últimos anos do mandato”

“A infl ação se combate com aumento da produção, portanto, baixando os juros e aumentando salários para consumir essa produção”

“O BC se comunica com os bancos, mas pouco com a economia real. É como pedir para a raposa tomar conta do galinheiro”

Sessão de votação do Projeto de Lei nº 38.211, do Executivo, que reajusta o salário mínimo

Renato Araújo/ABr

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brasilde 24 de fevereiro a 2 de março de 20118

Leandro Uchoasdo Rio de Janeiro (RJ)

TUDO COMEÇOU numa sexta-feira, 11 de fevereiro. Nos noticiários, entre uma revolta e outra nos países árabes, os cario-cas se surpreenderam com um confronto diferente. Através da efi ciente Operação Guilhotina, com o auxílio da Secretaria de Segurança Pública e do Ministério Pú-blico do Rio de Janeiro, a Polícia Federal prendeu 35 policiais civis e militares em um só dia. Nascia mais uma crise na Se-gurança Pública do Rio de Janeiro. Polícia contra polícia. Na ação, duas delegacias foram vasculhadas, e a Baia da Guanaba-ra foi revirada atrás de corpos. A PF tam-bém desmontou a milícia – grupos para-militares que controlam territórios no Rio – da favela de Roquete Pinto, do Comple-xo da Maré, em Ramos. Os crimes envol-viam cessão de armas ao tráfi co e às milí-cias, fornecimento de segurança privada a casas de caça-níqueis e cobrança de pro-pina a trafi cantes. Era apenas o primeiro dia de uma semana tensa.

Entre os presos, dois nomes se desta-cavam. E dos elementos causadores das duas prisões se supõe que ainda há mui-to que se revelar, caso as investigações não encontrem freios políticos. O prin-cipal detido foi Carlos Antônio de Oli-veira, subsecretário da Secretaria Espe-cial de Ordem Pública (Seop), responsá-vel pelo “choque de ordem” da Prefeitu-ra, e ex-subchefe operacional da Polícia Civil. Através de escutas telefônicas, fi l-magens e fotos, provou-se que o delega-do tinha vínculos com a milícia da Maré, vinculada à 22ª Delegacia de Polícia – a mesma acusada, em 2009, de alugar um caveirão para trafi cantes da favela Baixa do Sapateiro. Oliveira foi braço direito do então chefe da Polícia Civil, Allan Turno-wski, e tinha proximidade com o deputa-do federal Rodrigo Bethlem (PMDB), ex-titular da Seop, o “xerife do choque de or-dem”. O delegado mantinha uma espécie de quadrilha na Seop, com pelo menos se-te policiais, e tentáculos em diversos ór-gãos. Quando o esquema veio a público, Turnowski se disse traído.

Outra importante prisão foi a de Chris-tiano Gaspar Fernandes, vinculado à mi-

A Operação Guilhotina nas entranhas da corrupção e do crimeRIO DE JANEIRO Efi ciente ação da Polícia Federal revela o intestino das polícias Civil e Militar

lícia de Roquete Pinto. Seu pai, Ricar-do Afonso Fernandes, o Afonsinho, tam-bém foi preso. Christiano seria o chefe do grupo paramilitar e teria sido benefi ciado por Oliveira com informações de ativida-de policial por diversas vezes.

RetaliaçãoNo terceiro dia da operação, Turnovski

assume um movimento suspeito. Invade a Delegacia de Repressão às Ações Crimi-nosas Organizadas (Draco), alegando ter recebido denúncias de que o órgão teria supostos esquemas com prefeituras do in-terior. Lacrada a delegacia, o chefe da Po-lícia Civil faz uma devassa. Não por acaso,

o chefe da Draco, Cláudio Ferraz, auxilia-ra na investigação que culminou na Ope-ração Guilhotina e, um dia antes da ação da PF, fora nomeado pelo Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, sub-secretário da Contra Inteligência. Não é preciso ser especialista em Segurança Pú-blica para deduzir que a ação de Turno-wski contra a Draco tinha todos os sinais de retaliação.

Cláudio Ferraz foi um dos delegados que mais atuaram no sentido de reprimir a atuação das milícias, a partir de 2008. Ele revela, em depoimento à Corregedo-ria Interna da Polícia Civil, que Carlos de Oliveira tinha um informante no disque-denúncia. Ele sabia, inclusive, da própria

investigação da Polícia Federal, e temia ser pego. Zeca Borges, coordenador do disque-denúncia, refutou a declaração: “não há a menor possibilidade de nossos colaboradores terem repassado informa-ções”.

Ao lacrar a Draco, Turnowski parecia saber qual seria seu destino. Dias depois, após conversa de quatro horas com Bel-trame, ele foi exonerado da chefi a da Po-lícia Civil. Havia múltiplos indícios de sua conivência com o esquema de corrupção e crime da instituição que coordenava. Para seu lugar, foi chamada Martha Rocha, no-meação elogiada por diversos setores.

Bandido e mocinhoComo a Guilhotina foi a ação de uma

polícia sobre outra, os fatos reforçaram um conceito antigo no debate sobre Se-gurança Pública no Rio. O de que existe na polícia: uma banda podre e uma banda boa. E que a solução estaria na elimina-ção dos ofi ciais criminosos pelos hones-tos – polícia-mocinho contra polícia-ban-dido. O conceito é historicamente renega-do por organizações de direitos humanos. Em geral, as entidades – que reconhecem a necessidade de se afastar os maus poli-ciais – defendem que o problema do setor é estrutural. Não haveria solução, portan-to, sem garantia de melhores salários, di-álogo fl uente entre as polícias e seus seto-res de inteligência, infraestrutura adequa-da, entre outros elementos. Seria conve-niente, para o Estado, repassar a culpa de sua inércia aos profi ssionais de caminho mais errante.

No início da Operação, não se tinha no-tícia de onde estava o governador Sér-gio Cabral (PMDB). Ele só apareceria no quarto dia, em São Paulo. Em suas pri-meiras declarações, o Cabral tratou de elogiar Turnowski, que teria dado “enor-mes contribuições para a nossa política de segurança”. O governador também dis-se que Beltrame tinha “total autonomia” para tomar qualquer decisão, numa afi r-mação que foi interpretada como trans-ferência de responsabilidade por eventu-ais crises.

Circularam informações de que Cabral estaria viajando quando a operação ocor-reu. Não é a primeira vez. Em janeiro, du-rante as chuvas da região serrana, com ao menos 905 mortos, o governador estava na Europa. No réveillon de 2010, quan-do as chuvas levaram morros a desmo-ronar e soterrar casas em Angra dos Reis, ele também demorou dois dias a apare-cer, por provável viagem. E em março de 2008, quando houve uma epidemia de dengue no estado, ele estava no Japão.

do Rio de Janeiro (RJ)

Em dezembro, trafi cantes vinculados, majoritariamente, ao Comando Verme-lho incendiaram veículos pela cidade do Rio de Janeiro. As polícias agiram de for-ma enérgica, reprimindo comunidades controladas pela facção e ocupando a Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão. Seus ofi ciais celebraram o suposto suces-so da operação com estardalhaço, e a mí-dia comercial apenas ecoou a comemora-ção, criando na população um sentimen-to de vitória sobre o crime. Enquanto is-so, organizações de direitos humanos re-cebiam incontáveis denúncias de viola-ções por parte das polícias e do Exérci-to que ocupavam as comunidades. Rou-bos, arrombamentos, humilhação, assé-dio moral, execuções e até estupros fo-ram relatados. As denúncias foram di-

do Rio de Janeiro (RJ)

Uma das marcas do governo munici-pal de Eduardo Paes (PMDB), no Rio de Janeiro, é o “choque de ordem”. Logo que assumiu, em 2009, o prefeito anun-ciou ordenar atividades como o estacio-namento de veículos, a invasão de calça-das pelos bares, a mendicância nas ruas e o comércio informal. Algumas catego-rias foram impactadas de forma direta – fl anelinhas, moradores de rua e came-lôs. As medidas encontraram forte resis-tência dos setores da esquerda não ali-nhados com a Prefeitura, mas seguiram ocorrendo. Ruas inteiras foram disponi-bilizadas para empresas privadas de se-gurança de veículos, mendigos foram le-vados em massa para abrigos, ocupa-ções urbanas foram reprimidas e came-lôs tiveram seu material apreendido – muitas vezes aqueles que tinham regis-tro da atividade.

À frente da Secretaria Especial de Or-dem Pública (Seop), Rodrigo Bethlem (PMDB), hoje deputado federal, era cha-mado de “xerife do choque de ordem”. Era um herói dos defensores da medi-da do governo. A Operação Guilhotina, porém, dá sinais de que, pela secreta-ria, operava-se uma quadrilha. O dele-

gado Carlos de Oliveira, preso, era sub-secretário de operações e teria sido indi-cado ao cargo pelo próprio Bethlem. Boa parte dos policiais investigados também trabalhava na Seop. “Ele [Oliveira] sem-pre vinha na frente e estava sempre ar-mado. Eu acompanhei várias apreensões com ele. Era o responsável pela repres-são. Todo mundo sabia que ele era dele-gado”, conta Maria dos Camelôs, líder da categoria. “A morte do Alexandre [Perei-ra], presidente do camelódromo da Uru-guaiana – que, na verdade, é um empre-sódromo – foi queima de arquivo. De-ve ter tido o dedo deles. O Oliveira era o braço direito do Bethlem. A Polícia es-tá em cima, mas vai ter uma hora que o governador vai dizer: não mexe aí não”, completa.

Na contramão do discurso da ordem, Bethlem foi um dos candidatos mais ve-zes punidos por desrespeitar as regras eleitorais. Teria tido votação recorde em área de milícia. Além de fi lho da atriz Maria Zilda, também é genro do presi-dente da Câmara de Vereadores do Rio, Jorge Felippe (PMDB).

A vereadora Andrea Gouvêa Vieira (PSDB) tenta instalar uma CPI na casa para investigar as ações de Oliveira na Seop e as possíveis vinculações com Be-thlem. Porém, encontra enormes difi cul-dades. “Sabemos que 32 policiais da PM foram colocados à disposição da prefei-tura. Destes, 11 foram para o gabinete do secretário Rodrigo Bethlem, e sete, para o gabinete do Oliveira”, afi rma. A proxi-midade entre Bethlem e as milícias tam-bém seria investigada. Andrea diz que era notória a proximidade dele com o ve-reador Cristiano Girão (PMN), preso por vínculo com as milícias. Segundo o de-putado estadual Marcelo Freixo (Psol), que presidiu a CPI das Milícias, Girão disse em depoimento que trabalhou no governo de Rosinha Garotinho (2003-2006) por indicação de Bethlem. Frei-xo está prestes a instalar, na Assembleia Legislativa, a CPI do Tráfi co de Armas e também pretende utilizar informações da Operação Guilhotina. (LU)

35policiais civis e militares foram

presos em um só dia

Em suas primeiras declarações, o Cabral tratou de elogiar Turnowski, que teria dado “enormes contribuições para a nossa política de segurança”

“Alemão é Serra Pelada”Afi rmação de policial confi rma acusações de entidades de direitos humanos

A ordem de cada umProtagonistas do “choque de ordem” seriam os mesmos criminosos pegos pela Guilhotina

Além de fi lho da atriz Maria Zilda, Bethlem também é genro do presidente

da Câmara de Vereadores do Rio

vulgadas pelas organizações, sem grande repercussão. Guiada pela cobertura festi-va, a população preferia celebrar a repen-tina efi ciência da polícia.

Entretanto, uma declaração recente confi rmou o que diziam as organizações. Nas escutas da PF que levaram à Opera-ção Guilhotina, um policial disse ao ou-tro: “aí virou Serra Pelada, aí em cima no topo do morro”. Serra Pelada foi um ga-rimpo no Pará que, na década de 1980, atraiu milhares de aventureiros atrás de ouro. A afi rmação confi rma, assim, que as violações não foram casos isolados, mas aconteceram em grandes propor-ções. “Foram muitos os policiais que rou-baram o Alemão. Eles [imprensa] esta-vam cobrindo apenas o que a Secretaria (de Segurança Pública) passava. E a gen-te já recebeu informação de que policiais que deveriam estar presos na Operação Guilhotina não estão”, afi rma Patrícia de Oliveira, da Rede Contra a Violência. A Justiça Global divulgou nota responsabi-lizando o governo do Estado pelas viola-ções. “Com as provas levantadas pela PF, o Estado tem obrigação de fazer um pedi-do de desculpas formal à população local e de reconhecer e indenizar os danos mo-rais e materiais aos moradores atingidos pela violência estatal”, diz. (LU)

A delegada Martha Rocha, nova chefe da polícia civil carioca

Policiais revistam casa de morador do Complexo do Alemão

Rogério Santana/Governo RJ

Marcello Casal Jr./ABr

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de 24 de fevereiro a 2 de março de 2011 9internacional

Renato Godoy de Toledoda Redação

O EFEITO DOMINÓ causado pela re-volução na Tunísia, em janeiro de 2011, ainda não pode ter suas consequências calculadas. Mas certamente já é o pro-cesso de transformação da ordem geopo-lítica mundial mais importante do século 21. Após caírem as ditaduras de Ben Ali na Tunísia e de Hosni Mubarak no Egi-to, os governos da Líbia, do Bahrein, da Jordânia, da Argélia, do Marrocos, do Iê-men, de Omã e do Irã enfrentam fortes protestos na região do norte da África e no Oriente Médio.

Nem mesmo a revolução islâmica de 1979, no Irã, que deu nova cara à geo-política da região, pode ser comparada às mudanças conjunturais que estão se consolidando no chamado mundo ára-be (que inclui o Irã, país persa). As re-voltas têm ocorrido com grande veloci-dade e violência. A fúria das massas não obedece a qualquer orientação ideológi-ca. Tanto regimes autoritários pró-EUA, como no Egito e na Tunísia, são atingidos pela insurreição popular como a Líbia de Muamar Kadafi , opositor do país estadu-nidense na região.

O impacto geopolítico das transforma-ções ainda não está claro. O que se sen-te até o momento são as consequências econômicas: o preço do barril de petróleo atingiu 109 dólares, aumentando 9% so-mente no dia 21 de fevereiro, quando Ka-dafi ordenou que aviões líbios atirassem contra manifestantes na capital Trípoli.

Os protestos no Bahrein causaram da-nos fi nanceiros e políticos à monarquia que controla o país: o Grande Prêmio de Formula 1 foi cancelado em função das revoltas. Apesar de diferentes contex-tos, as revoltas nos países têm alguns de-nominadores comuns, como a exigência de liberdade democrática, de imprensa e o rechaço à corrupção e ao desempre-go. Também tem sido comum a repres-são violenta por parte dos governos auto-cráticos. Somente na Líbia, mais de 400 pessoas morreram nos protestos. Ainda sob a ditadura de Mubarak, cerca de 300 egípcios foram assassinados.

Momento históricoNa opinião do historiador Valério Ar-

cary, professor do Instituto Federal de São Paulo, o que ocorre no norte da Áfri-ca e no Oriente Médio não pode ser qua-lifi cado apenas como revoltas pontuais ou mobilizações dispersas, mas sim um processo revolucionário “espetacular”.

“Esse cenário tem todas as caracterís-ticas de um processo revolucionário. Pa-ra os historiadores, um processo revolu-cionário é aquele que acelera a história e provoca uma irrupção da vida política de milhões de pessoas. As circunstâncias nesses países puniram as grandes mas-sas de de tal maneira que elas vão às ru-as e derrubam governos em um processo em que a legitimidade se impõe pela for-ça das manifestações”, defi ne.

Arcary compara o atual período com o início deste século na América Latina. O processo de turbulência social come-çou com a queda do presidente argenti-no Fernando de la Rúa em 2001. A que-da dele deu origem a um processo de re-volta na Argentina. No período de 2000 a 2005, caíram o presidente Alberto Fu-jimori, no Peru, Sanchéz de Lozada, na Bolívia, e foram depostos três presiden-tes equatorianos, pelas revoltas indíge-

nas. Soma-se a esse processo a tentativa frustrada de golpe na Venezuela contra o presidente Hugo Chávez. O resultado da-quele processo foi a diminuição da hege-monia dos EUA na região e uma menor presença das políticas neoliberais.

Apesar de comparar os períodos, Ar-cary aponta que o atual momento já é mais importante em termos de mudan-ças na conjuntura do que aquele da dé-cada passada. O historiador, no entanto, alerta que o processo revolucionário não necessariamente acarreta em vitória. As-sim como o caráter da revolução, no iní-cio do processo, permanece em dispu-ta. “Situações de revolução não signifi -cam vitórias. Toda a revolução política que derruba ditaduras começa com re-voluções democráticas e tem caráter so-cial. Na sequência da queda de Mubarak no Egito e de Ben-Ali na Tunísia, entra-ram em greve setores mais representati-vos da população. Isto porque a revolu-ção social estava contida dentro da revo-lução política. Há um despertar político de uma geração. Em processos revolucio-nários, as décadas são meses e os anos, dias”, aponta.

Processos diferentesO geógrafo da Universidade de São

Paulo, André Martin, procura diferenciar os processos revolucionários em cada país. “Precisamos tomar cuidado com as generalizações, não podemos dizer que o Bahrein e a Líbia, por exemplo, vivem si-tuações iguais. Na Líbia, bem ou mal, o Kadafi tem uma base social, há uma guerra civil em marcha. Já no Bahrein, não há essa base. Não há unidade ideo-lógica nos protestos. Quando se fala em ‘mundo árabe’, fazem-no para incluir o Irã. Mas por que também não incluem a Turquia? Eles têm uma democracia per-feita? A confusão, nesse ponto de vis-ta, pode em alguns casos interessar aos EUA, que apoia o movimento de estabili-zação em alguns países”, avalia.

Para Martin, o que há em comum no processo de levante popular é o rechaço à política dos EUA para a região, basea-da na defesa de Israel e de preços do pe-tróleo abaixo do mercado. Segundo o ge-ógrafo, a imprensa mundial tem passa-do uma versão equivocada dos protestos em países opositores dos EUA. De acor-do com essa interpretação, diz Martin, aqueles que protestam contra o governo da Líbia e do Irã manifestam-se a favor da política dos EUA para a região, o que não é verdade.

“Tenho um aluno em Teerã, no Irã, que me relatou que os protestos são re-alizados por uma juventude mais urba-nizada que, sim, quer respirar mais. Mas não são protestos pró-EUA. Por outro la-do, com o cerco internacional apertan-do, restam poucas alternativas ao Irã que passa a tomar as críticas internas como apoio aos EUA”, analisa.

Valério Arcary também acredita que o cenário de convulsão social no Oriente Médio não é visto com bons olhos pela Casa Branca. “Obama e o departamen-to de Estado estão apavorados. O gover-no dos EUA é a favor da estabilidade no Oriente Médio, pois são governos alia-dos de sua política que lhe concedem fa-vorecimento no acesso ao petróleo. Ago-ra, toda a geopolítica será alterada. Os EUA tal como outros Estados estão nu-ma luta para manter posições. Os Esta-dos são sujeitos políticos, mas existem outros protagonistas. Em circunstâncias normais, as massas não entram na polí-tica como hoje ocorre no Magreb, e is-so os deixa preocupadíssimos”, aponta o historiador.

Sem programa Por vezes, a esquerda mundial se vê

entusiasmada com movimentos insur-recionais e acaba frustrada com os ru-mos tomados por estes. No caso das atu-ais revoltas, especialistas alertam que há o perigo de um recrudescimento religio-so, como ocorreu no Irã após a derruba-da do regime do Xá em 1979.

Arcary salienta que o movimento so-cialista na região não está muito articu-lado. Como exemplo, ele cita o caso do Partido Comunista do Egito que, segun-do sua análise, colaborava com o regime de Mubarak.

No entanto, com a velocidade das rup-turas, o historiador não descarta que as revoluções em curso possam tomar ru-mos de esquerda. “As massas não saem para as ruas com projetos. Eles querem derrubar governos odiados, saem por-que lutam contra tiranias que usam mé-todos brutais. Eles não saem às rua commodelos tocquevillianos [referente aAlexis de Tocqueville, pensador políticofrancês] de divisão de poderes etc. Eles têm fome de democracia, de derrubar ti-ranos e de levá-los a julgamento. Claro que vão querer eleições, mas democra-cia é muito mais do que isso. O regimedemocrático liberal está em crise nos próprios países centrais. Ainda não dá para saber se as massas irão além dis-so e construirão um regime anticapita-lista. Mas as massas enfrentaram uma das polícias mais violentas do mundo, de peito aberto, e agora vão procurar or-ganizarem-se e tirar lições”, prevê.

da Redação

O jornalista turco Metin Yegin, apre-sentador do programa de televisão Rua do Mundo, em um canal comunitário, concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato e comentou os acontecimentos no Egito e em demais países do norte da África. Confi ra trechos da entrevis-ta abaixo.

Brasil de Fato – Como você tem visto a situação de insurgência no mundo árabe e qual é a perspectiva da Turquia sobre o mundo árabe? Metin Yegin – Essa resistência não co-meçou agora, no Egito, ela vem de mui-to tempo. Estive no ano passado no Egi-to e acompanhei o movimento de traba-lhadores no setor têxtil. Os trabalhado-res de uma fábrica com 30 mil trabalha-dores realizaram uma greve e ocuparam a fábrica. E a repressão era muito forte, não deixavam sequer entrar com câmera na fábrica. Então, essa resistência vem de

muitos anos e não é só contra Mubarak, mas também contra o neoliberalismo. O Egito é um país muito bom para o neoli-beralismo. Há fábricas, terras muito bo-as para o plantio de transgênicos. E está muito perto da Palestina.

Como vê a composição política do Egito hoje em dia?

Sem dúvida, o grupo Irmandade Mu-çulmana é muito forte. Antes, era um grupo muito radical, hoje é pouco. Eles querem um governo parecido como o go-verno turco. Um governo “teoliberalista”. A Irmandade Muçulmana tem muitos contatos com os banqueiros. Mas acredi-to que os EUA e Israel não confi am neles. Pode ser que um eventual governo da Ir-mandade Muçulmana fosse direcionado aos interesses dos EUA e de Israel. Mas estes não confi am neles, pois não são ra-cionais. (RGT)

“O grupo Irmandade Muçulmana é muito forte. Antes, era um grupo muito radical, hoje é pouco”

“Resistência egípcia não começou agora”Jornalista turco comenta a situação no Oriente Médio

Revoluções por minutoMUNDO ÁRABE Revoltas no norte da África e Oriente Médio já são consideradas o processo mais importante do século 21

“Para os historiadores, um processo revolucionário é aquele que acelera a história e provoca uma irrupção da vida política de milhões de pessoas”

“Há um despertar político de uma geração. Em processos revolucionários, as décadas são meses e os anos, dias”

“Tenho um aluno em

Teerã, no Irã, que me

relatou que os protestos

são realizados por

uma juventude mais

urbanizada que, sim, quer

respirar mais. Mas não

são protestos pró-EUA”

Cenário de guerra em Bengazhi, na Líbia: insurreição popular

Cena de vídeo em que Kadafi nega ter fugido do país

Protestos no Egito pela queda de Mubarak

Reprodução

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culturade 24 de fevereiro a 2 de março de 201112

Rui Martinsde Berlim (Alemanha)

O CHOQUE ENTRE a modernidade e o conservadorismo no Irã é a trama prin-cipal do fi lme Nader e Simin, uma se-paração, premiado com o Urso de Ou-ro no encerramento do 61º Festival In-ternacional de Cinema de Berlim, reali-zado entre os dias 10 e 20 de fevereiro. Sem dúvida, o júri do Festival, presidido pela atriz Isabella Rosselini, quis enviar um recado ao governo iraniano ao pre-miar não só o fi lme como todo o elenco, em protesto contra a punição do cineas-ta iraniano Jafar Panahi, condenado em seu país a seis anos de prisão e a 20 sem poder fi lmar.

Mesmo porque, durante o Festival houve uma manifestação de apoio a Ja-far e, na cerimônia de encerramento, foi mostrada a cadeira vazia que o cineasta iraniano deveria ocupar no júri. O dire-tor premiado, Asghar Farhadi, embora pesando bem as palavras a fi m de evitar problemas no retorno ao Irã, lamentou a ausência de Jafar, logo depois da exibi-ção de seu fi lme para a imprensa.

O Grande Prêmio do Júri concedido ao fi lme não comercial, em preto e bran-co, O cavalo de Torino, do cineasta hún-garo Béla Tarr, marcou a independência do Festival diante dos grandes estúdios. Inspirado num episódio da vida de Niet-zche, o fi lme mostra a repetição rotinei-ra da vida, numa visão pessimista, crua, descrente e sem esperanças.

O prêmio de melhor direção para o fi lme Doença do sono, rodado nos Ca-marões, pelo alemão Ulrich Koehler, deu um destaque ao continente africa-no, mostrado na sua pobreza, mas na sua exuberância e nos seus mistérios, a ponto de enfeitiçar europeus. Coprodu-ção germano-franco-holandesa, não é um fi lme africano, porém o diretor, ape-sar de alemão, nasceu e viveu a infân-cia e adolescência na África, onde seus pais trabalhavam em missão humanitá-ria. Confi ra nesta página matéria sobre os principais premiados.

de Berlim (Alemanha)

O fi lme iraniano “Nader e Simin, uma separação, vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim, apresenta uma situa-ção inesperada e pouco conhecida no Irã, país mais conhecido pelo seu fundamen-talismo, pela prisão do cineasta Jafar Pa-nahi e pela ameaça de lapidação de Saki-neh Ashtiani. O fi lme se constrói em tor-no de um divórcio entre um casal da clas-se média, depois de 14 anos de casados e com um fi lha adolescente.

A esposa quer tentar a vida em outro país; o marido não pode, pois seu pai so-fre de Alzheimer e dele depende total-mente. Depois de uma discussão diante do juiz, digna de fi lme italiano, é rejeita-do o divórcio por não haver um consenso entre os cônjuges. Mas Simin larga o ma-rido e vai viver com a mãe, renunciando viajar diante da decisão da fi lha de fi car com o pai, esperando com isso – vai se saber mais tarde – forçar a mãe a retor-nar ao lar. Na verdade, não há nenhum problema grave no casal, mas incompati-bilidade de gênios.

Sem a esposa em casa, Nader contra-ta uma empregada para tomar conta do pai durante sua ausência no trabalho. A funcionária pertence a outra catego-

ria social, a dos pobres, que, como ex-plicou o diretor do fi lme, Asghar Farha-di, são mais religiosos e guiam suas vidas pelo Corão.

Quando o velho pai de Nader, incon-tinenti e senil, faz suas necessidades nas calças, surge o primeiro problema: se-gundo os preceitos corânicos, pode a em-pregada limpar seu bumbum? Pelo Pro-feta, não, porque tal limpeza só podem fa-zer os membros da família, mas a empre-gada consegue uma dispensa para isso.

Dois dias depois, ao voltar do traba-lho com a fi lha, estressado, o marido en-contra a porta do apartamento fechada e, ao entrar, descobre seu pai caído no chão inconsciente, com a mão amarra-da na beira da cama. A empregada, que traz consigo a fi lha pequena, pois não tem onde deixá-la, ao retornar ao apar-tamento é repreendida, pois Nader não sabe que seu pai, mesmo senil, tinha sa-ído do apartamento sozinho e foi encon-trado por ela na rua. A coitada, grávida de algumas semanas, chega a receber um choque, quase atropelada por um carro. Como parece ter desaparecido algum di-nheiro, Nader culpa a empregada que, religiosa, não suporta a acusação. Na dis-cussão, Nader empurra a empregada, que cai nas escadas, é levada ao hospital e tem um aborto.

de Berlim (Alemanha)

Bela Tarr, cineasta húngaro, trouxe ao Festival de Berlim o fi lme O cavalo de Torino, que se poderia resumir co-mo o fi lme do fi m do mundo, mostran-do um lugar qualquer, no meio de um campo vasto, onde existe uma casa anti-ga, de pedra, sem eletricidade, sem água corrente e onde vivem duas pessoas, um pai e sua fi lha. A casa é açoitada pelo ven-to forte de uma tempestade até acabar a água no poço, não se acenderem mais as lamparinas, morrer o cavalo e tudo ser envolto pelas trevas.

Bela Tarr começa o fi lme com uma le-genda sobre o fi m de Nietzsche e citando uma frase com qual o pessimista escritor teria tentado salvar um cavalo, açoitado pelo carroceiro, abraçando-se, chorando, ao cavalo. A seguir, passou dois dias sem falar, que se prolongaram por dez anos, vivendo na demência, cuidado por sua mãe e irmã.

É fácil de se resumir o fi lme, como é fá-cil se resumir os gestos básicos da roti-na da vida, desde o levantar até o deitar. O velho pai volta com sua usada carroça e seu velho cavalo, num longo trecho da estrada lembrando um trecho de fi lme de Manoel Oliveira, onde as rodas de uma carruagem ocupam a cena durante lon-gos minutos.

Ao chegar, o cavalo é desatrelado, ti-ram-se seus freios e é recolhido para co-mer e beber, recolhe-se igualmente a car-roça. O velho pai tem suas botas retira-das pela fi lha, que o esperava e que o aju-da a recolher o cavalo. Como seu velho pai tem um braço inerte, ela retira o seu casaco, malha e lhe veste com o de dor-

mir. Ele se deita, ela prepara o jantar, uma grande batata para cada um, co-mem, deitam. São seis dias, e nesses seis dias, a fi lha refaz sempre os mesmos ges-tos de vestir e desvestir o pai, acender o fogo, cozinhar as batatas, lavar os pratos e dormir.

Lá fora o vento ulula fortemente, ela vai buscar água no poço, e uma música, tocada por diversos instrumentos, repe-titiva (como nas atuais músicas techno) se ouve, desde o começo até as duas ho-ras de duração do fi lme preto e branco, bela fotografi a, tomada de posições dife-rentes, já que tudo se repete dia a dia até o sexto dia fi nal. Não há praticamente di-álogo: o mínimo, como em Vidas secas de Nelson Pereira dos Santos.

Para Bela Tarr é a rotina da vida e a certeza de que tudo tem um fi m. É a insu-portável repetição de nossos gestos des-de o nascer ao morrer, mas que não im-pede as pessoas de continuarem vivendo, na mesma repetição. Para ele, deve ser o último fi lme, porque ele ali matou o ci-nema, que também vai ter seu fi m, como nós todos e a Terra e o universo.

Filme digno não só de Nietzsche, mas igualmente de um Schopenhauer, que pela sua plasticidade não viu o cinema esvaziar. (RM)

de Berlim (Alemanha)

Quem sai da África e vive na Europa é imigrante; mas quem sai da Europa e vi-ve na África parece ter o nome de expa-triado, missionário ou, se está numa mis-são ligada à saúde, é um humanitário. É o caso do fi lme Doença do Sono, do ale-mão Ulrich Koehler, ele mesmo fi lho de funcionários de organizações internacio-nais que viviam em missão humanitária, tendo estudado o primário, secundário e colegial no Zaire, hoje República Demo-crática do Congo.

O personagem principal do fi lme, fei-to em Camarões, é um médico, Ebbo Vel-ten, encarregado de um programa de tra-tamento contra a doença do sono, pe-lo qual já viajou com a esposa por diver-sos países africanos. Porém, depois de 20 anos na África, com a fi lha estudando num internato na Alemanha, a esposa re-torna ao seu país natal, a Alemanha, sem conseguir convencer o marido a acompa-nhá-la. Na verdade, ele não tem mais o que fazer, pois na sua região existe ape-nas um paciente afetado, mas as verbas continuam mantidas.

Por sua vez, Ebbo Velten desfruta, em Camarões, de um certo prestígio junto à

Choque entre o conservadorismo e a modernidade no Irã

CINEMA Urso de Ouro, prêmio máximo do Festival de Berlim, é usado para enviar um recado ao governo iraniano

O prêmio de melhor direção para

o fi lme Doença do sono deu um

destaque ao continente africano

Divórcio à iraniana

O fi lme do fi m do mundo Alienação na África

população que não teria jamais na Ale-manha, onde como médico generalista trabalharia anônimo num simples con-sultório. Por isso e pela atração da Áfri-ca primitiva e selvagem prefere ir adian-do seu retorno à Alemanha, mesmo por-que tem também, em Camarões, uma fa-mília africana.

O fi lme mostra o drama do alienado, que não sabe mais se é ainda um alemão na África ou se já virou igualmente afri-cano. O outro aspecto do fi lme é o do des-vio de verbas, pois o programa de trata-mento contra a doença do sono se baseia em estatísticas antigas.

Enfi m, chega na casa de Ebbo Velten um funcionário francês de origem afri-cana, encarregado de atualizar a ques-tão para a Organização Mundial da Saú-de (OMS). Embora de origem congo-lesa, mas com nacionalidade francesa, Alex Nzila vive um outro tipo de aliena-ção ou de identidade. Filho de africanos, ele chega numa África que não conhe-ce e cuja língua desconhece, interessado em fazer rapidamente seu trabalho pa-ra retornar à França. Mas não pode con-tar com a ajuda de Velten, talvez temero-so de que uma verdadeira estatística pos-sa signifi ca o fechamento de seu ambula-tório. (RM)

Foi o empurrão que matou o feto? Caso positivo, Nader pode pegar até três anos de cadeia. Essa a trama desse bom fi lme iraniano, mostrando um país em fase de modernização.

Jafar PanahiVir a Berlim, quando o Festival denun-

ciou a prisão de Jafar Panahi, que deve-ria estar no júri mas cumpre pena de seis anos de prisão e foi proibido de fazer ci-nema por 20 anos, exige uma tomada de posição. E foi isso que um jornalista pe-diu, na primeira pergunta da coletiva ao cineasta Asghar Farhadi. Este não se ne-gou: “Nenhum cineasta do mundo pode fi ca indiferente ao que se passou. E eu es-tou ainda mais triste porque conheço Pa-nahi pessoalmente. No dia da manifesta-ção aqui em Berlim, eu lhe telefonei e me senti ainda mais triste, porque eu vinha para o Festival ao qual ele não pôde vir”.

O cineasta, que não se inspirou na vida pessoal para fazer um fi lme sobre divór-cio, conta haver um número enorme de divórcios no Irã. E revela haver uma opo-sição surda entre o moderno nas classes mais elevadas e a classe pobre, religiosa, que rejeita a modernidade. É esse cho-que que anima as atuais manifestações no Irã, país milenar e não árabe como al-guns pensam, mas persa. (RM)

É a insuportável repetição de nossos gestos desde o nascer ao morrer, mas que não impede as pessoas de continuarem vivendo

Cena do fi lme Nader e Simin, uma separação, do diretor iraniano Asghar Farhadi

Cena de Doença do sono, do alemão Ulrich Koehler

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