edição 319 - de 9 a 15 de abril de 2009

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Barragem de Sobradinho (BA), no médio São Francisco Delegados de vários países participam de sessão da Comissão de Narcóticos da ONU, em Viena, na Áustria Baixada Fluminense mantém tradição de assassinatos Pág. 6 São Paulo, de 9 a 15 de abril de 2009 www.brasildefato.com.br Ano 7 • Número 319 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,50 ISSN 1978-5134 ONU mantém uma política antidrogas reacionária e inócua Fortemente influenciada pelos interesses dos EUA, a ONU manteve, em reunião com 130 países realizada em março, sua postura obtusa em relação às drogas, centrada sobretudo na repressão. Números mostram que a estratégia é falha: só a produção de cocaína praticamente triplicou em dez anos. Especialistas apontam que não real interesse em combater o tráfico, um dos negócios mais lucrativos do mundo, chegando a movimentar 320 bi de dólares ao ano. De quebra, os Estados Unidos ainda usam o combate às drogas como justificativa para intervenções militares, sobretudo na América Latina. Págs. 10 e 11 Argentina: duas mães, uma ditadura Depois de 32 anos, as duas entidades que reú- nem as Mães da Praça de Maio ainda fazem voltas na praça toda quinta-feira, de- nunciando e perguntando: “Onde estão os nossos fi- lhos?”. Em entrevistas, No- ra Cortiñas e Hebe de Bo- nafini explicam a natureza Quênia e Etiópia segui- ram o exemplo (ou orienta- ção) dos EUA e prenderam, em 2007, 150 supostos terroristas sem acusação Na África, Guantánamo faz escola: prisão ilegal e tortura As resoluções do G-20 revelam a distância entre a profundidade da crise e a inconsistência das soluções adotadas pelos governantes, analisa Fátima Mello, ativis- ta da Fase. As medidas man- têm as bases da globalização neoliberal, recolocam o FMI no centro da administração monetária e financeira da crise e anunciam a impor- tância da retomada das negociações da Rodada de Doha da OMC. Pág. 2 G-20 propõe velhas receitas para a crise do regime ditatorial em seu país e o envolvimento de setores civis e da Igreja Católica na repressão aos opositores. Pág. 9 formal. Os detidos foram torturados, mantidos inco- municáveis e interrogados por agentes estaduniden- ses e israelenses. Pág. 12 O Ipea realizou um levan- tamento sobre o “tamanho” do Estado brasileiro, com- parando-o com o de outras nações. E, ao contrário do que rezam os analistas mais conservadores, o Bra- sil figura entre os países com a menor proporção de funcionários públicos, 6% em relação ao conjunto da população. Mesmo países como os EUA, defensores do Estado “mínimo”, possuem mais servidores. Pág. 3 Em relação a outros países, Brasil tem um Estado “mínimo” A crise econômica e a subsequente ajuda de go- vernos para grandes bancos despertaram o debate acerca do caráter do sistema fi- nanceiro. Em seminário em São Paulo, o professor Paul Singer defendeu a estatiza- ção de tais instituições. Para ele, só assim elas poderiam assumir a sua verdadeira missão, que é redistributiva, financiando a maioria da população. Pág. 4 O sistema financeiro deveria ser público Jim Garamone Asociación Madres de Plaza de Mayo Grupo de Mães da Praça de Maio realizam protesto diante da Casa Rosada Em Curitiba, moradores do Caximba contra o lixão Seres humanos buscam restos de comida no aterro que concentra o lixo da ca- pital e de mais 16 cidades do Paraná. Urubus, mosquitos, fedor. Aborto por anence- falia, problemas renais e respiratórios são casos co- muns entre os moradores do Caximba, bairro de Curitiba onde está o maior lixão do Estado. Pág. 7 Plano Decenal de “Exportação” da Energia Pág. 5 Adriano Dias UN Office on Drugs and Crime João Zinclar

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Uma visão popular do Brasil e do mundo São Paulo, de 9 a 15 de abril de 2009 www.brasildefato.com.brAno7•Número319 Adriano Dias UN Office on Drugs and Crime falia, problemas renais e respiratórios são casos co- muns entre os moradores do Caximba, bairro de Curitiba onde está o maior lixão do Estado. Pág. 7 Seres humanos buscam restos de comida no aterro que concentra o lixo da ca- pital e de mais 16 cidades do Paraná. Urubus, mosquitos, fedor. Aborto por anence- Pág. 5

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Page 1: Edição 319 - de 9 a 15 de abril de 2009

Barragem de Sobradinho (BA), no médio São Francisco

Delegados de vários países participam de sessão da Comissão de Narcóticos da ONU, em Viena, na Áustria

Baixada Fluminense mantém tradição de assassinatos Pág. 6

São Paulo, de 9 a 15 de abril de 2009 www.brasildefato.com.brAno 7 • Número 319

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,50

ISSN 1978-5134

ONU mantém umapolítica antidrogasreacionária e inócuaFortemente influenciada pelos interesses dos EUA, a ONU manteve, em reunião com 130 países realizada em março, sua postura obtusa em relação às drogas, centrada sobretudo na repressão. Números mostram que a estratégia é falha: só a produção de cocaína praticamente triplicou em dez anos. Especialistas apontam que não há real interesse em combater o tráfico, um dos negócios mais lucrativos do mundo, chegando a movimentar 320 bi de dólares ao ano. De quebra, os Estados Unidos ainda usam o combate às drogas como justificativa para intervenções militares, sobretudo na América Latina. Págs. 10 e 11

Argentina: duas mães, uma ditaduraDepois de 32 anos, as

duas entidades que reú-nem as Mães da Praça de Maio ainda fazem voltas na praça toda quinta-feira, de-

nunciando e perguntando: “Onde estão os nossos fi-lhos?”. Em entrevistas, No-ra Cortiñas e Hebe de Bo-nafini explicam a natureza

Quênia e Etiópia segui-ram o exemplo (ou orienta-ção) dos EUA e prenderam, em 2007, 150 supostos terroristas sem acusação

Na África, Guantánamo fazescola: prisão ilegal e tortura

As resoluções do G-20 revelam a distância entre a profundidade da crise e a inconsistência das soluções adotadas pelos governantes, analisa Fátima Mello, ativis-ta da Fase. As medidas man-têm as bases da globalização neoliberal, recolocam o FMI no centro da administração monetária e financeira da crise e anunciam a impor-tância da retomada das negociações da Rodada de Doha da OMC. Pág. 2

G-20 propõevelhas receitaspara a crise

do regime ditatorial em seu país e o envolvimento de setores civis e da Igreja Católica na repressão aos opositores. Pág. 9

formal. Os detidos foram torturados, mantidos inco-municáveis e interrogados por agentes estaduniden-ses e israelenses. Pág. 12

O Ipea realizou um levan-tamento sobre o “tamanho” do Estado brasileiro, com-parando-o com o de outras nações. E, ao contrário do que rezam os analistas mais conservadores, o Bra-sil figura entre os países com a menor proporção de funcionários públicos, 6% em relação ao conjunto da população. Mesmo países como os EUA, defensores do Estado “mínimo”, possuem mais servidores. Pág. 3

Em relação aoutros países,Brasil tem umEstado “mínimo”

A crise econômica e a subsequente ajuda de go-vernos para grandes bancos despertaram o debate acerca do caráter do sistema fi-nanceiro. Em seminário em São Paulo, o professor Paul Singer defendeu a estatiza-ção de tais instituições. Para ele, só assim elas poderiam assumir a sua verdadeira missão, que é redistributiva, financiando a maioria da população. Pág. 4

O sistemafi nanceirodeveria serpúblico

Jim Garamone

Asociación Madres de Plaza de Mayo

Grupo de Mães da Praça de Maio realizam protesto diante da Casa Rosada

Em Curitiba, moradoresdo Caximba contra o lixão

Seres humanos buscam restos de comida no aterro que concentra o lixo da ca-pital e de mais 16 cidades do Paraná. Urubus, mosquitos, fedor. Aborto por anence-

falia, problemas renais e respiratórios são casos co-muns entre os moradores do Caximba, bairro de Curitiba onde está o maior lixão do Estado. Pág. 7

Plano Decenal de“Exportação”

da Energia Pág. 5

Adriano Dias UN Offi ce on Drugs and Crime

João

Zin

clar

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Quem quer a ditadura

A RECENTE reunião do G-20 (Gru-po dos 20 países mais industrializa-dos), realizada em Londres, revela as contradições entre a necessidade de transformações profundas na ordem internacional para o enfrentamento da crise global e as soluções que apontam para o “mais do mesmo”.

O mundo vive um ciclo de acelera-das transformações. Nos últimos 20 anos temos assistido a rupturas de natureza estrutural no sistema e na política internacionais como não se via desde o fi m da Segunda Guerra Mundial. Em 1989, a ordem inter-nacional passou por uma drástica alteração com o fi m da bipolaridade da Guerra Fria. A década seguinte, que alguns denominaram de “fi m da história”, marcou o curto período em que parecia que não existiam alternativas à hegemonia estaduni-dense e ao capitalismo em sua forma neoliberal, batizado de Consenso de Washington. Porém, ao fi nal dos anos de 1990 os protestos de Seattle, EUA, durante uma reunião ministe-rial da OMC, selaram o término do “fi m da história” e inauguraram um novo ciclo de quebra da hegemonia neoliberal e de busca de alternativas ao unilateralismo, que se manifes-taram no crescimento do Fórum Social Mundial e na reascensão dos movimentos sociais globais. Hoje, exatos 10 anos depois de Seattle, a crise de paradigmas obriga o siste-ma internacional a se repensar em profundidade.

A reunião do G-20 foi o momento de consolidação do fi m dos recentes ciclos bi e unipolares. Brasil, China, Índia e outros países chamados emergentes são convocados ao núcleo duro do processo decisório global, visando a dar-lhe maior legitimidade e solidez simbólica, política e econômica, e apontando para a perspectiva de fi nalmente o sistema internacional entrar em um ciclo marcado pela multipolaridade e pela democratização da governan-ça global.

No entanto, as resoluções adota-das ao fi nal do encontro de Londres pelo G-20 revelam a distância entre a profundidade da crise e a inconsis-tência das soluções adotadas. Apesar da aparente tendência à multipolari-dade e à adoção de algumas medidas merecedoras de elogios – como uma

maior regulação do sistema fi nan-ceiro, o fi m dos paraísos fi scais e o aperto aos bônus para executivos fi nanceiros –, a aposta numa ins-titucionalidade caduca para gerir a crise é muito preocupante. Não é de hoje que as instituições de Bretton Woods estão em crise. Essas insti-tuições, criadas no pós-guerra, há muito não refl etem as necessidades de desenvolvimento e de governança do mundo atual. O G-20, ao invés de “fechar o caixão” dessas instituições moribundas, decidiu ressuscitá-las, recolocando o Fundo Monetário In-ternacional (FMI) no centro da ad-ministração monetária e fi nanceira da crise e anunciando a importância da retomada das negociações da Ro-dada de Doha da Organização Mun-dial do Comércio (OMC).

Essas medidas não correspondem às necessidades de um mundo que vive uma crise profunda de natu-reza não apenas econômico-fi nan-ceira, mas também com dramáticas dimensões climáticas, energéticas, ambientais, alimentar, social, de valores, e que desemboca na esfera da política. A longa crise de legiti-midade do FMI, Banco Mundial e OMC têm uma motivação real que o G-20 parece desconsiderar: os princípios e regras que governam essas instituições estão obsoletos e não correspondem ao atual es-tado do mundo e da correlação de forças na ordem internacional. Por exemplo, FMI e Banco Mundial são governados por um sistema cujo poder de voto de cada país é pro-porcional a sua contribuição fi nan-ceira, ao contrário do sistema das Nações Unidas (cada país um voto). Por mais “chique” que seja o Brasil contribuir ao FMI, o peso decisório dos países do Norte sempre será infi nitamente maior.

No caso da OMC, não é à toa que a Rodada de Doha se arrasta há anos sem solução. Os países-membros simplesmente não aderem mais às regras liberalizantes e estrutural-mente desequilibradas. Os países do Sul não querem mais abrir mão de seu direito a ter espaço para im-plementarem políticas industriais e agrícolas sem sofrerem retaliações e sanções. Não é condizente com um mundo em transformação que os países do Sul continuem a fornecer matéria-prima e exportar recursos naturais para que os países do Norte mantenham seus padrões insusten-táveis de consumo. As negociações e regras da OMC são incompatíveis com a necessidade urgente de se re-duzir as distâncias entre produção, distribuição e consumo, economi-zando assim energia e reduzindo a crise climática. Ao contrário da pres-são da OMC pela expansão infi nita do comércio global, é necessária a criação de regimes, mecanismos e instituições de natureza regional e local que estimulem a relocalização das economias, dos mercados locais, aproximando e corresponsabilizan-do produtores e consumidores. É preciso que as grandes corporações parem de dominar a agenda das ne-gociações globais de comércio e que, no lugar delas, vigore a noção de bens comuns da humanidade.

Uma nova ordem multipolar deve se pautar pelo reconhecimento de uma gravíssima crise civilizatória em curso, cuja dimensão econômi-co-fi nanceira é apenas um dos sin-tomas. Os remédios do passado só piorarão o estado de um planeta em crise generalizada.

Fátima Mello é ativista da FASE e da Rede Brasileira Pela Integração

dos Povos.

debate Fátima Mello

G-20 e a multipolaridade com sabor de passado

crônica Luiz Ricardo Leitão

A FOLHA de S. Paulo está real-mente empenhada em reescrever a história recente do Brasil. Seus leitores fi caram sabendo, no dia 5 de abril, que a atual ministra Dilma Roussef, ex-militante da organiza-ção VAR-Palmares, uma das que promoveram a luta armada contra o regime militar, participou, naquela época, de um plano para sequestrar o senhor Delfi m Neto, ex-ministro da ditadura, único signatário civil do AI-5 e um dos arquitetos do “milagre econômico” que gerou a monstruosa dívida externa brasilei-ra. A informação da Folha – um jor-nal sem dúvida sério, equilibrado, imparcial –, baseou-se numa única entrevista, feita por telefone, com Antonio Roberto Espinosa, também ex-militante da VAR-Palmares, atualmente professor de Política Internacional e doutorando em Ci-ência Política pela USP. Só tem um detalhe: Espinosa nega que tenha dado tais informações e desafi a o jornal a prová-las.

Em carta enviada imediatamente à Folha, Espinosa diz, entre outras coisas: “Afi rmo publicamente que os editores da Folha transformaram

um não-fato de 40 anos atrás (o sequestro que não houve de Delfi m) num factóide do presente (inician-do uma forma sórdida de anticam-panha contra a ministra). A direção do jornal (ou a sua repórter, pouco importa) tomou como provas con-clusivas somente o suposto croquis [um desenho esquemático de como se desenrolaria o suposto seques-tro] e a distorção grosseira de uma longa entrevista que concedi sobre a história da VAR-Palmares. Ou seja, praticou o pior tipo de jorna-lismo sensacionalista, algo que en-vergonha a profi ssão que também exerço há mais de 35 anos (...).”

Mas o falso “furo” da Folha não é um caso isolado. Longe disso. Ainda repercutem as discussões em torno do já famoso editorial de 17 de feve-reiro, quando os leitores do jornal – sem dúvida sério, equilibrado e imparcial –, aprenderam que nunca houve uma ditadura no Brasil, mas sim um regime relativamente “bran-do”. Segundo as explicações dadas pela própria direção da Folha, o edi-

torial quis, simplesmente, mostrar que as coisas não são o que parecem. Assim, enquanto uma ditadura pode conviver com instituições estáveis e até com um certo parlamentarismo (como teria sido o caso do “brando” regime militar brasileiro), outros re-gimes aparentemente democráticos constituem, de fato, uma avenida para a implantação de uma ditadura (como seria o caso do governo Chá-vez, na Venezuela).

Muito bem: qual o vínculo entre as duas coisas? Parece óbvio, não? Se a ministra Dilma Roussef ganhar as eleições em 2010, o povo brasileiro terá conduzido uma “terrorista” ao poder, alguém potencialmente tão perigoso para a democracia como Chávez e Morales. Ou, na lógica da Folha, Dilma é a ditadura disfarçada de democracia. Eis o ponto: será que queremos para o Brasil um regime como o venezuelano – e, por exten-são, como o cubano e o boliviano? Não por acaso, aliás, as ofensas as-sacadas pelo jornal – sem dúvida sé-rio, equilibrado e imparcial – contra

os professores Konder Comparato e Maria Victoria Benevides referiram-se, equivocadamente, ao seu suposto apoio ao regime cubano, enquanto condenavam o regime militar bra-sileiro. Eles são, segundo a Folha, cínicos e mentirosos. A Folha sim, fala a verdade. Ora...

Tampouco por acaso, isso tudo acontece num quadro mundial de crise sem precedentes do capitalis-mo, da retomada das lutas dos tra-balhadores nos países centrais da Europa e da crescente agitação do movimento de massas na América Latina, com participação signifi ca-tiva de setores inteiros que, tradi-cionalmente, não se integravam de maneira tão clara e positiva, como é o caso dos povos originários. A burguesia brasileira tem sólidas razões para se mostrar preocupada com a conjuntura internacional, e as ações do jornal revelam isso. É o que explica a grande campanha movida pelo jornal – sem dúvi-da sério, equilibrado e imparcial – contra o Movimento dos Traba-

lhadores Rurais Sem Terra (MST) e todos os movimentos sociais do país. A burguesia precisa conduzir ao poder alguém de sua estrita con-fi ança, que não hesite na hora de conter o movimento de massas no Brasil, se necessário usando a força extrema. Embora a “elite” brasilei-ra esteja satisfeita com o governo Lula, Dilma Roussef não tem, pelo menos para um setor representado pela Folha, o perfi l necessário.

Não se trata, aqui, de discutir o programa de Dilma Roussef, nem de saber se ela poderá representar ou não os interesses dos trabalha-dores. Trata-se de apontar uma campanha de calúnias, difamações e de um pérfi do revisionismo histó-rico conduzido pela Folha, que hoje se coloca na vanguarda dos inte-resses das elites, como se colocou em 1984, ao se apresentar como o “jornal da abertura”– sem dúvida sério, equilibrado e imparcial –, no momento em que a ditadura estava historicamente esgotada e a bur-guesia decidiu mudar a forma de seu governo. Em tempos de crise, a Folha demonstra sua nostalgia ao se recordar da ditadura.

de 9 a 15 de abril de 20092

editorial

Gama

Os novos “Adões” de BruzundangaO CRONISTA Carlos Heitor Cony acertou em cheio quando classificou o (anti)meritíssimo Gilmar Mendes como o novo Adão desta Repúbli-ca. Explique-se: o escritor “homenageia” com o epíteto bíblico aquela personalidade que volta e meia surge na cena pública nacional, des-tacando-se pela “capacidade de dar palpites sobre qualquer assunto”. Ou seja, aquela fi gura que, segundo reza a mitologia católica, a pedido do grande Criador terminou por “dar nome às árvores, às galinhas e às nuvens”.

Na opinião de Cony, a mídia tem um faro especialíssimo para desen-cavar esses oráculos, cuja relação incluiria até mesmo personalidades progressistas como o corajoso Dom Hélder Câmara, que, até ser bani-do do noticiário pelas arapongas do regime militar de 64, era acolhido com grande simpatia pelos meios de comunicação da terrinha. Agora, contudo, em meio à ampla crise – fi nanceira, social e moral – que nos espreita, a aliança conservadora que se locupleta a expensas da distra-ída pátria-mãe encontra no presidente do Supremo Tribunal Federal a metralhadora giratória perfeita para subscrever suas posições retró-gradas e antipopulares.

Ocorre, porém, que o egrégio sr. Mendes não é um cardeal, a quem cabe o dever de zelar pelo seu rebanho sobre a face, por vezes dema-siado árida, de nossa terra. Ele é um juiz da mais alta esfera do terceiro Poder, a quem a norma recomenda somente manifestar-se nos autos de um processo, isso se a criatura não possuir, como sói acontecer por cá, comprometimento anterior com nenhuma das partes envolvidas no litígio. É claro que um alto magistrado pode expressar opiniões sobre qualquer tema, admite com sarcasmo o escritor, desde a previsão da chuva até o desfecho das novelas da TV, mas tal veleidade não o auto-riza a antecipar publicamente “juízos sobre problemas que, mais cedo ou mais tarde, poderão entrar na pauta daquela corte de Justiça”.

Quem dera as palavras do prosador lograssem atingir a cega cons-ciência do arrogante cidadão. Desconfi o, porém, que não surtirão ne-nhum efeito sobre o semideus tupiniquim, cuja prodigalidade em pon-tifi car sobre o alheio, sobretudo contra aqueles que se opõem ao regi-me do latifúndio e do grande capital, já vem de longa data. Conforme tão bem lembrou o jornalista Luis Nassif, referir-se de forma desairosa e agressiva a quem luta por uma sociedade mais justa e democrática tem sido praxe na carreira do caprichoso juiz, que não hesita em se valer de termos como “canalha” e “gângster” para desqualifi car seus adversários.

Relembra Nassif que, em 2008, ao rebater a divulgação pela PF de dados relacionados à Operação Navalha, Mendes acusou a corporação policial de empregar métodos “fascistas” e de cometer “canalhice”. Um repórter paulista também tratou de descrever-nos o vocabulário incorporado pelo jurista ao seu juridiquês, quando servia com fervor à dinastia de FHC: ao defender “os interesses do governo”, Mendes empregou termos como “manicômio judiciário”, na luta pelo fi m da greve nas universidades; “autismo dos juízes”, na privatização do Ba-nespa; e “censura prévia”, quando sugeriu que os ministros do STF não falassem mais em off. O que dizer agora da criatura, em sua cruza-da raivosa contra o MST (que, por motivos óbvios, jamais receberá do novo Adão os mesmos “mimos” com que ele afaga o banqueiro Daniel Dantas e sua tchurma).

Mas Mendes não está só em Bruzundanga. O presidente do Senado, outra instituição lapidar da tosca República, também se notabiliza por sua ingerência diuturna em nossa vida política. Este, porém, eu até compreendo: depois de cruzar incólume a ditadura, a Nova República e dois mandatos de Lulinha Paz & Amor, o cacique maranhense julga-se no direito de dar piteco sobre qualquer tema, inclusive de moral e bons costumes, que, como bem sabemos, são matéria escassa no Ma-ranhão dos fi lhos do Sir Ney.

Apesar de tudo, não se avexe, caríssimo leitor: esses próceres da moralidade quase sempre têm frágeis pés de barro, como bem atesta o boquirroto Pelé, que insiste em palpitar sobre a vida alheia, esque-cendo-se de que, em sua fi cha corrida, há casos nebulosos como o da fi lha ilegítima que careceu de recorrer à Justiça para ser reconhecida, a maracutaia muito mal explicada em um evento da UNICEF, sem contar os espetos de pau que guarda em sua própria casa (a espúria relação de seu fi lho Edinho com o submundo do tráfi co em São Paulo é apenas a mais conhecida...). Pois é, conterrâneo, assim prospera o nosso folclore político: se já não bastassem os velhos anões do orçamento, temos ago-ra os novos Adões de Bruzundanga, que, para nosso azar, não se con-tentam apenas em escalar a seleção do Dunga – aliás, um outro anão sobre o qual nossos cronistas ainda terão muitas laudas para escrever...

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: refl exões, crô-

nicas e fi cções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.

As resoluções adotadas no encontro de Londres revelam a distância entre a profundidade da crise e a inconsistência das soluções adotadas pelos governantes

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Luís Brasilino • Subeditor: Igor Ojeda • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sales de Lima, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Ma-

druga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte - Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Delci Maria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] Para anunciar: (11) 2131-0800

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de 9 a 15 de abril de 2009 3

brasil

Renato Godoy de Toledoda Redação

Aqueles que defendem um Estado cada vez menos pre-sente na economia e com um reduzido quadro de funcioná-rios devem considerar-se sa-tisfeitos com a representati-vidade do serviço público bra-sileiro. O receituário que indi-ca a necessidade de uma má-quina pública diminuta pare-ce ser seguido à risca no pa-ís, que detém um dos meno-res percentuais de servidores do mundo, de acordo com um recente levantamento do Ins-tituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Intitulado Emprego Público no Brasil: Comparação Inter-nacional e Evolução, o docu-mento comprova o que o pre-sidente do instituto, Marcio Pochmann, convencionou de-nominar “Estado raquítico”: os funcionários públicos não chegam a representar 6% da população brasileira. É sim-bólico o fato de a região com a menor proporção de servido-res, o Nordeste (5,15%), ser a mais afetada por mazelas so-ciais.

Em relação ao total de tra-balhadores ocupados, o fun-cionalismo representava 10,7% em 2005. A maior par-te dos países centrais relacio-

nados no estudo apresenta ní-vel maior do que o Brasil.

Os EUA, maiores propa-gandeadores do Estado míni-mo, têm 14,8% de seus traba-lhadores na esfera pública. Os países escandinavos, onde se encontram os maiores mode-los de proteção social dentro do capitalismo, apresentam números muito superiores aos demais. A Dinamarca, por exemplo, tem 39,2% de servi-dores públicos.

Na América Latina, o Bra-sil está atrás de países como o Uruguai, Argentina e Para-guai. Mas à frente de impor-tantes economias, como Chile

O serviço público brasileiro estáaquém do razoável, conclui IpeaECONOMIA Especialistas propõem fortalecimento do emprego público como saída para a crise fi nanceira mundial

e Colômbia – países que têm adotado diretrizes notada-mente neoliberais. Pelo qua-dro da região, pode ser per-cebida uma redução do núme-ro de funcionários públicos de 2000 até 2006. Exceção notá-vel é a Venezuela, que passou de 14,6% em 2000 para 16,6% em 2006, alcançando a tercei-ra posição, atrás de Panamá e Costa Rica.

Estado inchado?No dia 31 de março, o Banco

Central divulgou números do erário público que demonstra-ram uma redução no ritmo de crescimento do superavit pri-mário – economia para o pa-gamento de dívidas. Em feve-reiro, o setor público brasilei-ro economizou R$ 4,1 bilhões, equivalente a 3,43%, estando portanto abaixo da meta es-tabelecida, de 3,8%, para es-te ano.

Expoentes do pensamento macroeconômico conserva-dor alertaram para o fato de a maior parte desse gasto não ter sido em função da crise. As principais despesas “em de-masia” teriam sido com a in-sufl ação dos dispêndios com custeio e do “inchaço” da es-fera pública. Tal tese deve ser no mínimo questionada após a leitura do estudo do Ipea.

Mesmo assim o levantamen-to do instituto foi criticado por tais setores. No jornal O Esta-do de S. Paulo, a legitimidade do documento e do Ipea foi co-locada em xeque pelo artigo do jornalista Rolf Kuntz, denomi-nado “O Estado balofo e seus defensores”. “O critério segui-do nessa avaliação é esquisi-tíssimo. Coreia, Japão e Su-íça não valem. Também não valem latino-americanos com bons padrões administrativos, como Chile e Colômbia, nem a segunda maior economia lati-no-americana, o México. Mas valem os europeus, em geral com grandes burocracias as-sociadas ao Estado do Bem-Estar e os Estados Unidos”, afi rma o artigo.

Economistas com visão mais progressista deram aval ao que o Ipea levantou e criticam du-ramente a versão do “Estado balofo”. “A pesquisa é rigoro-samente verdadeira. Quem acompanha essa questão há anos já sabia disso. O levanta-mento desses dados é relativa-mente simples, não precisa de muita sofi sticação, é só com-parar com outros países”, ex-plica o economista José Carlos de Assis, presidente do Institu-to Desemprego Zero.

Para ele, a resposta ao estu-do do Ipea é fruto de uma lei-tura mais ideológica do que científi ca. “O problema é que vem sendo feita uma campa-nha asfi xiante sobre o ‘incha-ço’ do Estado para pressionar o governo a elevar o superá-vit. Enfi m, uma campanha totalmente ideológica e que não está fundamentada em dados. O Estado de S. Pau-lo apresentou um artigo sem nenhum dado e falsifi ca ide-ologicamente a questão. Esse estudo do Ipea põe uma pá de cal no argumento do ‘Estado inchado’”, defi ne.

A pesquisa afi rma, mais de uma vez, textualmente que tal argumento não tem validade perante os dados relaciona-

dos. “É preciso antes de tudo destacar que não está haven-do, nos últimos anos, um ‘in-chaço’ do Estado, medido em termos de emprego público”, pontua.

Migração privado-públicoPara o economista da Uni-

versidade Federal de Alago-as (Ufal), José Martins, o mo-mento é de ampliação de ser-viços públicos, por conta dos impactos da crise econômica mundial. “Em momentos co-mo esse, é natural o aumento da demanda por serviços pú-blicos. Grande parte da classe média que tinha fi lhos na es-cola particular e plano de saú-de privado passa a utilizar os serviços públicos. Esse é mais

da Redação

Em suas considerações fi -nais, o comunicado da pre-sidência do Ipea recomen-da a criação de novos empre-gos públicos, combinada com a redução da taxa de juros e o incentivo a obras de infraes-trutura no setor privado. Tais medidas teriam caráter anti-cíclico na atual conjuntura de crise econômica.

“Além da necessária redu-ção das taxas de juros (com o efeito duplamente bené-fi co de reduzir os gastos fi -nanceiros do orçamento pú-blico e de estimular os inves-timentos produtivos do se-tor privado), seria interes-sante reordenar os gastos públicos para atividades in-tensivas na geração de em-pregos, quer sejam no se-

tor privado (construção ci-vil, por exemplo), quer sejam mesmo no setor público, nas quais os serviços públicos so-ciais teriam papel importan-te”, atesta o estudo.

A ampliação do serviço pú-blico também é apontada co-mo meio de fortalecimento da democracia e da universaliza-ção do bem-estar. “Há espaço para o crescimento do esto-que e da participação relativa do emprego público no Bra-sil. O fortalecimento da demo-cracia, com o consequente au-mento da demanda por servi-ços públicos amplos e políti-cas sociais universalistas, bem como a necessidade de am-pliação e melhoria da infra-estrutura urbana são fatores que se somam para mostrar a necessidade de ampliação do emprego público no Brasil”, conclui. (RGT)

da Redação

Diante da retração do superavit primário brasi-leiro, anunciada no dia 31 de março, a política fi scal do governo passou a ser questionada por econo-mistas ortodoxos. As críti-cas são endereçadas a uma suposta falta de rigor fi scal e gastos em excesso. En-tretanto, o mundo assiste a uma queda do superavit primário e o consequen-te defi cit de diversos paí-ses centrais, como os EUA e a França.

Enquanto os recursos que o Brasil acumula para o pagamento de juros de-vem representar 3,8% do PIB, de acordo com a meta

anual, os EUA deverão fe-char o ano fi scal com 2 tri-lhões de dólares negativos. Projetando que o PIB esta-dunidense seja de 13 tri-lhões de dólares, o defi cit deve representar cerca de 15% do montante.

Economia desnecessáriaPara José Martins, eco-

nomista da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o Brasil não tem moti-vos para economizar essa

quantia e poderia até ser defi citário para investir na ampliação do serviço pú-blico. No entanto, o eco-nomista aponta que a polí-tica de defi cit aplicada por países centrais tende a ser arriscada.

“Os EUA, que gostam muito do liberalismo, vão ter um defi cit fi scal de 2 trilhões de dólares. Japão e Alemanha também estão fazendo uma política arris-cada, porque estão crian-do um defi cit público mui-to grande. Acho que isso vai gerar uma crise gigan-tesca do crédito público”, aponta.

Mas, segundo José Car-los de Assis, presiden-te do Instituto Desempre-go Zero, o Brasil necessita de uma balança defi citá-ria para amenizar os efei-tos da crise e sair de um quadro de recessão imi-nente. “Não há porque te-mer o defi cit. A única sa-ída é o aumento do gas-to público. No momento de recessão, o setor priva-do se retrai e diminui o in-

Instituto aponta medidas contra a criseEmprego público e redução da taxa de juros são iniciativas anticíclicas

Para José Martins, economista da Ufal, o Brasil poderia até ser defi citário para investir na ampliação do serviço público

Defi cit não é problema, afi rma economistaMomento requer investimento público pesado

vestimento. O setor públi-co deve tomar emprésti-mos do privado, por meiode emissão de títulos pú-blicos, e investir. Isso ge-ra um defi cit, mas com oinvestimento, há uma re-tomada da economia e daarrecadação e o defi cit so-me”, explica.

IdeologiaPara convencer a socie-

dade da necessidade doaumento do gasto públi-co, contudo, seria neces-sário um enfrentamen-to ideológico com os de-fensores do ajuste fi scal.“A melhor maneira de su-perar esse pensamento éenfrentá-lo, mostrando averdade. É como no casoda previdência privada. Seformos olhar [os destinosorçamentários previstos]na Constituição, não hádefi cit nenhum. Superavitpara quê? Para pagar aosbanqueiros? Eles são im-produtivos, não fornecemempréstimos para capitalfi xo. Isso tem que acabar”,sustenta. (RGT)

Emprego público em relação ao total de ocupados (em %)

1995 2005

ALEMANHA 15,5 14,7

AUSTRÁLIA 15,2 14,4

BÉLGICA 19,3 19,5

CANADÁ 19,9 16,3

COREIA 6,6 6,3

DINAMARCA 39,3 39,2

ESPANHA 15,4 14,3

ESTADOS UNIDOS 14,9 14,8

FINLÂNDIA 25,7 23,4

FRANÇA 24,6 24,9

HOLANDA 15,5 14,6

JAPÃO 7,0 6,3

PORTUGAL 14,4 15,1

SUÉCIA 33,5 30,9

SUÍÇA 8,3 8,4

TURQUIA 10,1 10,7

BRASIL 11,3 10,7

Fonte: OCDE e PNADs

Emprego público em relação ao total de ocupados (em %) na América Latina

PAÍSES 2000 2002 2004 2006 ordem em2006

PANAMÁ 21,1 20,4 19,6 17,8 1

COSTA RICA 18,7 17,3 17,0 17,2 2

VENEZUELA 14,6 13,8 15,4 16,6 3

URUGUAI 17,2 17,3 17,0 16,3 4

ARGENTINA 15,9 21,7 19,3 16,2 5

PARAGUAI 12,7 11,5 11,4 13,4 6

REP. DOMIN. 13,8 13,8 11,9 13,2 7

BRASIL 12,7 12,6 12,5 12,5 8

HONDURAS 9,7 9,7 9,6 10,6 9

CHILE 13,1 n.d. 11,4 10,5 10

EQUADOR 11,0 11,5 10,6 9,7 11

COLÔMBIA 8,7 7,6 7,6 7,5 12

PERU 11,0 12,0 10,7 n.d. 13

Fonte: CEPAL

OCUPADOS NO SETOR PÚBLICO var. média anual (%)

1995 2002 2003 2007 1995-2002

2003-2007abs. % abs. % abs. % abs. %

Brasil 7815144 8703045 8815810 10168680 1,55 3,63

Centro-Oeste 690346 8,83 785265 9,02 817122 9,27 922896 9,08 1,86 3,09

Nordeste 2176917 27,86 2347787 26,98 2351179 26,67 2691932 26,47 1,09 3,44

Norte 525676 6,73 703866 8,09 721961 8,19 883638 8,69 4,26 5,18

Sudeste 3268406 41,82 3601286 41,38 3586977 40,69 4179463 41,1 1,4 3,9

Sul 1153799 14,76 1264841 14,53 1338571 15,18 1490751 14,66 1,32 2,73

Fonte: Elaboração própria a partir das PNADs dos anos selecionados

um motivo para pensar na ampliação dos serviços e in-vestir na qualidade das insta-lações e principalmente dos fatores humanos”, analisa.

Martins aponta para a ne-cessidade de um plano emer-gencial. “Duas medidas ur-gentes: modernização e atu-alização de treinamento dos servidores existentes e uma grande contratação de no-vos funcionários diretamen-te ligados ao atendimento das pessoas”, defende.

Outro ponto do ideário ne-oliberal é alvo de contestação dos economistas ouvidos pe-la reportagem. As principais críticas de setores da impren-sa às destinações orçamentá-rias da União estão relacio-

nadas ao aumento de gastos com o custeio da máquina pública. Em outras palavras, com o reajuste de salários aos servidores.

“Existem dois comporta-mentos sem base teórica. Um que afi rma que o Estado, em momento de crise, não deve gastar com nada. Outro indica que o gasto com investimen-to deve aumentar, mas deve ser diminuído o com custeio. Os dois argumentos são fal-sos. O gasto em investimen-to arrasta o custeio. A não ser que se criem ‘elefantes bran-cos’, como hospitais sem mé-dicos. Saúde, educação e pre-vidência requerem gente para trabalhar”, contesta José Car-los de Assis.

Economistas com visão mais progressista deram aval ao que o Ipea levantou e criticam duramente a versão do “Estado balofo”

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Lula e Dilma Rousseff durante o lançamento do programa Minha Casa, Minha Vida

O economista Paul Singer

de 9 a 15 de abril de 20094

brasil

2/3 do defi cit habitacio-nal brasileiro poderiam ser resolvidos com a ocupação dos imóveis atualmente ociosos

Quanto

Crise econômica expõe a necessidade de um sistema fi nanceiro públicoECONOMIA Paul Singer defende estatização de bancos que “emprestam para quem não precisa”

Eduardo Sales de Limada Redação

OS BANCOS zumbis, aque-les que se tornaram insolven-tes após o colapso fi nancei-ro mundial, não emprestam. Mas o pior é que, além deles, quase todos os grandes bancos do planeta, por causa da crise econômica, difi cultam os fi -nanciamentos. Assim, a maior parte é, de certo modo, tam-bém insolvente: 90% dos de-pósitos permanecem neles. Se fossem regidos segundo uma visão pública, isso não aconte-ceria. A grosso modo, essa é a mensagem que foi transmitida pelo economista Paul Singer, secretário Nacional de Eco-nomia Solidária do Ministé-rio do Trabalho e do Emprego (MTE), no seminário “Alter-nativas à crise: Por uma eco-nomia social e ecologicamente responsável”. O debate foi re-alizado no dia 27 de março na Pontifícia Universidade Cató-lica de São Paulo (PUC-SP).

Para o professor, a lógica do sistema fi nanceiro sempre foi a de “emprestar para quem não precisa”, favorecendo a especulação fi nanceira. “Fa-talmente, outra crise virá. Por isso, a necessária mudança nas instituições. Uma oportu-nidade para, em vez de reme-diar, dar passos à frente”, de-fende Singer.

Dar passos à frente, de acordo com ele, é estatizar os bancos, já que a missão de um sistema fi nanceiro é ser, so-bretudo, redistributivo. “Vai fi nanciar o grande capital, mas principalmente os arte-sãos, os garimpeiros”, defen-de Singer, que conclui: “Pre-cisa aplicar o dinheiro a favor da maioria do povo”.

Se no dia 13 de fevereiro o professor Luiz Gonzaga Bellu-zo afi rmava ao Brasil de Fa-to que a estatização dos ban-cos já transcorria de “forma não declarada”, o economis-ta Plínio Arruda Sampaio Fi-lho, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tam-bém presente no seminário da PUC-SP, afi rmou que, até o momento, nos Estados Unidos e na Europa só houve socorro do Estado aos bancos em crise. “E o que é o pior: assume uma forma de estatização, mas que não tem um conteúdo, que é o Estado ter o controle total da política do banco”, pondera.

Plininho compreende que houve somente uma sociali-zação dos prejuízos dos ban-

cos pela compra de ativos po-dres e conclui que “estamos a léguas de distância de qual-quer processo que de fato mu-de o sentido do fi nanciamento no capitalismo”.

Lógica privadaComo exemplo da inge-

rência de interesses priva-

“O lixo reciclável teve seu preço muito rebaixado após a crise econômica internacional. Se não houver um rápido plano que gere oportunidades aos trabalhadores desse setor, que são, em grande parte, moradores de rua, eles voltarão a viver nos lixões, inclusive se alimentando lá, de forma desumana”, defende o secretário Nacional de Economia Solidária, Paul Singer.

De acordo com ele, se a crise “acelera” a procura por novos caminhos na cadeia produtiva, “um plano de médio prazo para os catadores é trabalhar com a ideia de eles cobrirem a ca-deia produtiva inteira, até a transformação dos novos produtos originados do material reci-clado”.

Ele recorda que uma outra experiência, mais ampla, já está sendo implementada no setor agrícola junto aos pequenos agricultores. “Eles produzem alimentos in natura, oriundos de um processo que ocorre dentro dos próprios assentamentos da reforma agrária ou nas coo-perativas”, lembra Singer. (ESL)

Projeto para habitação foca emprego e esquece moradiasMORADIA Para especialistas, plano do governo federal é mais uma resposta “keynesiana” de geração de emprego do que uma política habitacional

da Redação

Propagandeado como ação de combate à crise econômi-ca e ao defi cit habitacional no país, o programa para cons-trução de 1 milhão de mora-dias destinadas à população de baixa renda foi lançado pe-lo governo federal no dia 25 de março. Ao todo, a União lan-çará mão de R$ 34 bilhões em empréstimos e subsídios, que abarcarão desde pesso-as físicas até as construtoras, a partir deste mês. Especia-listas entendem o plano co-mo um conjunto de medidas keynesianas clássicas, desco-ladas de uma política habita-cional efetiva.

Denominado “Minha Casa, Minha Vida”, o pacote prevê a redução da carga tributá-ria que incide sobre o setor da construção civil. Um dos car-ros-chefes será um subsídio de R$ 16 bilhões, por parte do governo federal, para as famí-lias que tiverem renda mensal de até três salários mínimos. Estas poderão pagar uma par-cela mensal de R$ 50 ou 10% de seu rendimento, no decor-rer de 10 anos.

O economista Paul Singer, secretário Nacional de Eco-nomia Solidária, destaca o ca-ráter funcional do pacote: “É uma medida anticíclica da cri-se econômica, principalmen-te por gerar postos de traba-lho na indústria de constru-

ção”. Na mesma linha, o plano também é visto pelos arquite-tos urbanistas Raquel Rolnik e Kazuo Nakano como um con-junto de medidas keynesianas clássicas, por mobilizar in-vestimentos públicos com o fi m de impulsionar a geração de emprego e a indústria de construção civil. Rolnik é re-latora internacional do Direi-to à Moradia da Organização

das Nações Unidas (ONU). Nakano é técnico do Institu-to Pólis.

Bom para empresáriosAliás, o setor de construção

fi cou mais que satisfeito com a elaboração do pacote, ten-do sido até mesmo consulta-

do durante o processo de con-fecção. O presidente da Câ-mara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), Paulo Safady Simão afi rmou recen-temente que “o plano traduz, em grande parte, muito do que o nosso setor vem defen-dendo nos últimos anos”.

É fácil compreender por-que eles vêm defendendo a política do governo federal. No artigo “As armadilhas do pacote habitacional”, publi-cado no Le Monde Diploma-tique Brasil, Rolnik e Naka-no salientam que 2007 foi um excelente ano para o se-tor imobiliário. Das 500 mil unidades fi nanciadas no pa-ís, 50% foram para famílias com renda superior a cin-co salários mínimos men-sais. Da parcela fi nanciada com recursos do FGTS, 61% foram para famílias de bai-xa renda. Porém, eles argu-

mentam no artigo que meta-de dos fi nanciamentos aces-sados por essas famílias foi para compra de materiais de construção usados em lotea-mentos precários e favelas, sem assistência técnica que pudesse garantir edifi cações seguras e de qualidade.

O resultado, segundo os ur-banistas, foi o adensamento nas favelas e periferias e uma sobreoferta de unidades ha-bitacionais para a demanda de renda média que perma-necem “encalhadas”, engros-sando o número de imóveis vazios, hoje quase em mesmo

número que o defi cit habita-cional do país.

Para os dois, “é perigoso confundir política habitacio-nal com política de geraçãode empregos”, que, emboratenham relações óbvias, “nãosão sinônimas”. “Na práti-ca, sem regulação no mer-cado de terras, o subsídio se-rá integralmente engolido pe-los proprietários de terrenos(inclusive pelas incorporado-ras que fi zeram grandes esto-ques nos últimos anos)”, diz oartigo.

DescoladosUma política de ampliação

do direito à moradia deve ser focada nas necessidades ha-bitacionais das populações de baixíssima renda e na reabili-tação de edifícios localizados em espaços urbanos consoli-dados, em especial nos cen-tros das cidades, aproveitados para moradias populares, evi-tando a criação de guetos nas periferias e enormes impac-tos ambientais e na mobilida-de urbana.

Embora se confi gure comoum pesadelo para construto-ras, o Estatuto das Cidadespoderia funcionar como umimportante componente pa-ra a realização do sonho dacasa própria junto à popula-ção de baixa renda. A quan-tidade de imóveis vazios noBrasil corresponde a mais dedois terços do defi cit habita-cional, e no Sul e Sudeste es-ses valores são quase equiva-lentes. Por não cumprirem asua “função social”, muitosestariam sujeitos a uma sé-rie de ações do poder públi-co, como o IPTU progressivono tempo e utilização com-pulsória. (ESL)

Dar passos à frente, de acordo com Paul Singer, é estatizar os bancos, já que a missão de um sistema fi nanceiro é ser, sobretudo, redistributivo “Dominar a cadeia produtiva”

dos nesse setor, visto como público por Singer, o pro-fessor da Unicamp cita, en-tre outras, as práticas exerci-das pelo Banco Central (Ba-cen). Para ele, as suas pre-visões para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano mudam to-do o mês, porque se confor-mam como um média arit-mética de palpites de econo-mistas com interesses e vi-sões de mercado, “uma mé-dia de previsões de gente que não sabe o que está falan-do”. “Se o boletim do Bacen disser que a economia cres-ce mais, de certo ela crescerá mais. Assim é a forma como a economia capitalista age”, completa. De fato, segun-do levantamento feito pelo próprio Banco com analis-

tas e empresas no país em ja-neiro, a taxa de expansão doPIB deve ser de apenas 2%.Em março, a previsão caiupara 1,2%.

Mas o Bacen é só um dos exemplos. Singer lembra que, no Brasil, metade do sistema fi nanceiro é estatal, embo-ra trabalhe com as metas de bancos privados. “Eles agem como os bancos privados pa-ra gerar lucro ao tesouro fe-deral”, explica. A taxa de ju-ros que incide sobre o crédi-to de capital de giro fl utuan-te ilustra tal análise. Entre os dias 12 e 18 de março, as taxas do Itaú eram de 1,43%; as do Banco do Brasil, de 1,5%. Para Singer, “banco público é para dar prejuízo mesmo; vai dar prejuízo no sentido de cobrar menos juros que gerar gas-tos, não no sentido de especu-lar errado”.

DisputaSegundo o secretário, a cú-

pula do governo está forçan-do pouco para que os bancosdiminuam os juros. Ele rela-tou no seminário uma dispu-ta entre essa cúpula e o cha-mado setor “social”, que virialutando pelo acesso ao crédi-to das pequenas e médias em-presas. “Dentro da estrutura[governamental], tem genteque quer mudar, até mesmomuitos dos gerentes dessesbancos estatais”, afi rma Sin-ger. Desapontado, ele cate-goriza sua visão sobre o pre-sidente da República. “Nes-se sentido, o presidente Lu-la tem o seu direcionamen-to”, lamenta.

Convencido há mais tempo, Plinio Arruda Sampaio, presi-dente da Associação Brasilei-ra de Reforma Agrária (Abra) e membro do Psol, também presente no seminário, dimi-nuiu um pouco as luzes sobre Lula e a espalhou: “O proble-ma não é exatamente o ‘Lula’; é o equívoco nosso [esquerda] de sempre pensar em refor-mar o capitalismo”.

“O problema não é exatamente o ‘Lula’; é o equívoco nosso [esquerda] de sempre pensar em reformar o capitalismo”, analisa Plinio Arruda Sampaio

“É perigoso confundir política habitacional com política de geração de empregos”, que, embora tenham relações óbvias, “não são sinônimas”, dizem urbanistas

Roosewelt Pinheiro/ABr

Gervásio Baptista/ABr

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A barragem de Itaparica, em Pernambuco, no submédio São Francisco

de 9 a 15 de abril de 2009 5

brasil

Patrícia Benvenutida Reportagem

Reforçar um modelo ener-gético que favorece as em-presas transnacionais e one-ra a população e o meio am-biente. Essa é a lógica que permeia o Plano Decenal de Expansão de Energia (2008-2017) do governo federal, que prevê, nos próximos dez anos, um incremento de 54 mil me-gawatts (MW) na matriz ener-gética brasileira.

A questão foi o tema central de um seminário promovido pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) na Esco-la Nacional Florestan Fernan-des (ENFF), em Guararema (SP), no dia 1º de abril, e que contou com a participação de movimentos sociais, entida-des ambientalistas, pesquisa-dores, estudantes e represen-tantes do governo.

Com uma potência atual de 107 mil MW, a previsão é de que, com o Plano, a produção de energia alcance até 2017 cerca de 161 mil MW. Dos 54 mil MW que serão acrescidos, 16 mil MW correspondem a empreendimentos de geração já contratados e 38 MW ainda a contratar.

Esse aumento se dará espe-cialmente por meio de usinas hidrelétricas e termelétricas movidas a óleo combustível, carvão mineral e gás. O res-tante – uma quantidade irri-sória – será preenchido por energia nuclear e as chamadas energias alternativas, como a eólica e a solar. Para a conso-lidação do Plano, estão previs-tos R$ 142 bilhões.

Alto consumoA demanda de energia elé-

trica para um determinado período de tempo é calcula-da de acordo com a projeção de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB); no caso

do Plano, em um período de dez anos.

A lógica do cálculo é pra-ticamente a mesma para to-dos os países, segundo o pro-fessor do Instituto de Eletro-técnica e Energia da Universi-dade de São Paulo (USP) Célio Bermann. No entanto, ele res-salta uma diferença do Brasil em relação aos países mais ri-cos: projetar mais energia do que o crescimento econômico necessita.

Até 2017, o Plano Decenal de Expansão de Energia prevê para o Brasil uma elevação de 4% do PIB, com um aumento de 4,8% na geração de ener-

gia. Já no Japão e nos Estados Unidos, por exemplo, para ca-da ponto percentual de cresci-mento da economia, se utiliza menos de 1% de incremento de energia disponível.

O motivo da diferença, de acordo com Bermann, está no tipo de desenvolvimento que caracteriza cada país. “Eles [países ricos] conseguem fazer isso principalmente porque grande parte das indústrias que consomem energia elétri-ca está nos países do Terceiro Mundo, nos países subdesen-volvidos; entre eles, o nosso”.

Da energia consumida ho-je no Brasil, 30% correspon-

dem a apenas seis setores indus-triais, os chamados eletrointensi-vos: produção de aço na siderur-gia, alumínio primário, ferro-li-gas na metalurgia, cimento, in-dústria química e o ramo de pa-pel e celulose.

Portanto, é o mercado, de acor-do com o professor, que dita es-se ritmo acelerado da geração de energia no Brasil, a fi m de aten-der essencialmente a essas indús-trias cuja produção é voltada qua-se que em sua totalidade para a exportação.

Energia para quê?O problema começa, para Ber-

mann, na falta de um questiona-mento sobre a fi nalidade da ener-gia gerada. Sem essa refl exão mais crítica, a consequência é um planejamento energético baseado exclusivamente na demanda do mercado em curto prazo.

O Plano não leva em conside-ração, por exemplo, a carência de energia que atinge ainda um grande número de domicílios no país. Ao ignorar essa demanda so-cial e apostar somente nas exigên-cias do mercado, reproduz-se a vi-são “ofertista” que, segundo Ber-

mann, predomina no atual modelo. “Como não se dis-cute o destino da energia elétrica, se toma a quantida-de de energia que vai ser de-mandada como base inques-tionável”, argumenta.

Gilberto Cervinski, da co-ordenação nacional do MAB, estende a necessidade desse questionamento principal-mente em relação à energia das hidrelétricas, que, além de limpa, seria mais bara-ta, por ser gerada a partir da água.

Ele lembra, por exemplo, da diferença paga pela po-pulação e pelas grandes in-dústrias em relação à ener-gia gerada pelas barragens. Empresas como Vale do Rio Doce e Alcoa gastam, em média, 5 centavos pelo qui-lowatt (KW) – praticamente a preço de custo. O trabalha-dor, porém, desembolsa cer-ca de 60 centavos pelo mes-mo KW – um valor que cor-responde, no mercado inter-nacional, ao da energia ge-rada nas termelétricas.

Cervinski recorda, ain-

da, do fi nanciamento públi-co para a construção de bar-ragens via recursos do Ban-co Nacional de Desenvol-vimento Econômico e So-cial (BNDES), o que permi-te que os consórcios tenham cada vez menos despesas.

Célio Bermann refuta o argumento de que as indús-trias eletrointensivas preci-sam de mais incentivos por serem responsáveis pela ge-ração de emprego e renda. De acordo com ele, há ou-tros setores que contribuem mais para o crescimento do país, sem, com isso, deman-dar tanta energia.

Outro desenvolvimento“A quantidade de empre-

gos que esse tipo de indús-tria cria é muito menor do que outros setores indus-triais, que são mais inten-sivos em mão-de-obra, co-mo o têxtil e de alimentos”, explica.

Bermann defende, por is-so, mais investimento nes-ses segmentos, que pode-riam reorientar, inclusive, uma nova política de desen-volvimento nacional. “Te-mos que mudar essa forma de produção e de inserção do país no mercado inter-nacional como mero produ-tor de bens primários, com baixo valor agregado, mas com alto conteúdo energéti-co e de problemas ambien-tais”, afi rma.

A necessidade de um no-vo modelo energético e de desenvolvimento também é destacada por Luiz Dalla Costa, da coordenação na-cional do MAB. De acor-do com ele, situações como a crise econômica, o desti-no dos recursos da camada do pré-sal e as mais recen-tes denúncias contra a cons-trutora Camargo Corrêa são importantes para reacender os debates.

As discussões, para Dalla Costa, devem ser o primeiro passo para criar articulação e unidade entre os trabalha-dores, essenciais para cons-truir um modelo que atenda aos interesses da população.

“Nós queremos que o re-curso gerado pela produção da energia sirva aos interes-ses da maioria do povo, não como é hoje, em que ele fi ca na mão das multinacionais, das grandes indústrias, só sobrando para o povo pagar a conta e os problemas so-ciais e ambientais”, afi rma.

da Reportagem

O potencial e a posição estra-tégica da Amazônia a tornam um caso emblemático de subserviên-cia aos interesses do capital trans-nacional e de uma economia de exportação de riquezas. A opinião é do professor da Universidade Federal de Rondônia (Unir) Luis Fernando Novoa Garzon.

Segundo ele, isso pode ser com-provado pelo fato de que os estu-dos para o aproveitamento hidre-létrico das bacias amazônicas fo-ram encomendados pelo Ministé-rio de Minas e Energia (MME) ao programa Estal, do Banco Mun-dial, que aposta no aumento da geração de energia para atrair in-

da Reportagem

As críticas ao Plano De-cenal de Expansão de Ener-gia partem também do Mi-nistério Público Federal (MPF), que verifi cou uma série de irregularidades no documento. Ausência de participação da sociedade em todas as fases de elabo-ração e falta de acesso às in-formações, segundo a ge-rente jurídica da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão, Maria Rita Reis, estão entre as principais falhas do Pla-no, o sufi ciente para com-prometer sua viabilidade.

“Sem esses requisitos, é impossível tratar esse te-ma realmente como um te-ma de governo, porque não tem qualquer regulamen-tação; as decisões que es-tão lá não são fundamenta-das”, afi rma.

A análise socioambien-tal dos empreendimentos, por exemplo, baseou-se so-mente em informações das empresas que aceitaram repassar os dados (ape-nas 16), cuja pesquisa fi -cou restrita à aplicação de questionários.

Mesmo com a quantidade reduzida de informações, segundo Maria Rita, é pos-sível detectar que, dos 71 projetos hidrelétricos pla-nejados, 11 interferem di-retamente em Unidades de Conservação e quatro im-pactam esses locais de for-ma indireta.

IncompatibilidadePara Maria Rita, isso ilus-

tra bem o que ela denomi-na de incompatibilidade do Plano em relação a outras políticas setoriais, como o reconhecimento e a demar-

cação de terras indígenas e quilombolas, demanda por reforma agrária e am-pliação de áreas de prote-ção ambiental e, inclusi-ve, de Unidades de Con-servação. “As opções toma-das pelo Ministério de Mi-nas e Energia contradizem compromissos que o go-verno assinou em relação a outras políticas públicas”, avalia.

O MPF destaca, ainda, impactos relacionados à utilização das usinas ter-melétricas. A previsão é de que, com elas, haverá um aumento de 172% nas emis-sões de gás carbônico, ele-mento que contribui dire-tamente para o aquecimen-to global.

Em função disso, o órgão expediu, no dia 9 de março, uma recomendação ao Mi-nistério de Minas e Ener-gia (MME) para que sejam revistas todas as falhas. O prazo para este apresentar um posicionamento era até o dia 29 de março, mas, até o fechamento desta edição (em 7 de abril), o MPF não havia obtido resposta. (PB)

vestimentos estrangeiros. Em contrapartida, o banco sugere a fl exibilização do li-cenciamento ambiental, ti-do como “obstáculo” para esse desenvolvimento.

Tais estudos também ser-viram como base para a ela-boração do Plano Decenal de Expansão de Energia, fa-to que permite compreen-der, segundo Novoa, a lógi-ca que está por trás de suas metas, especialmente na re-gião amazônica.

Dependência“Essas grandes obras,

grandes intervenções que estão previstas para a Ama-zônia, vêm e virão com um sentido de aprofundar a de-pendência do Brasil em rela-ção às grandes cadeias pro-dutivas internacionais. Es-sas obras são pensadas para o escoamento, a transferên-cia de riqueza”, explica.

Novoa destaca, ainda, a responsabilidade do poder público sobre a exploração e a espoliação da Amazô-nia, oferecida como área pa-ra novas fronteiras de inves-timento. “O problema vem embutido nos próprios pro-gramas de planejamento go-vernamentais, aos quais as

empresas transnacionais se associam, na forma de con-cessões e de parcerias públi-co-privadas, e têm toda a le-gitimidade fornecida por es-ses mecanismos públicos de decisão e de planejamento”, afi rma ele.

ConsequênciasAinda que a perda da so-

berania e dos recursos na-turais da Amazônia atin-jam todos os brasileiros e, em boa parte, os sul-ameri-canos, o maior prejuízo fi -ca com os povos que habi-tam a região amazônica, co-mo ribeirinhos, indígenas e quilombolas, que perdem seu território para reserva-tórios de água e têm ignora-dos seus modos de vida e de cultura.

“O que está se tratandoaqui é de um retrocesso po-lítico e institucional, depoisde anos de conquistas des-sas comunidades e dessesmovimentos, para que sepossa transformar as ba-cias hidrográfi cas da re-gião da Amazônia em áre-as completamente privati-zadas, a serviço do forneci-mento energético de baixocusto às grandes transna-cionais”, lamenta. (PB)

Plano Decenal reproduz modelode alto consumo e exportaçãoENERGIA Projeto que prevê o incremento de 54 mil MW na matriz energética do país atenderá principalmente a indústria eletrointensiva

Da energia consumida hoje no Brasil, 30% correspondem a apenas seis setores industriais, os chamados eletrointensivos: produção de aço na siderurgia, alumínio primário, ferro-ligas na metalurgia, cimento, indústria química e o ramo de papel e celulose

Projetos marcados por irregularidadesPara Ministério Público Federal (MPF), empreendimentos previstos no Plano devem causar impactos sociais e ambientais

Prejuízo também para a AmazôniaPara analista, Plano aprofunda dependência do Brasil em relação aos países ricos e consolida internacionalização da região amazônica

João Zinclar

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Familiares de vítimas e militantes dos direitos humanos protestam na Via Dutra, no Rio de Janeiro

RECONHECIMENTO

de 9 a 15 de abril de 20096

brasil

Paraíso banidoO G-20 decidiu aumentar a fi sca-

lização dos paraísos fi nanceiros, no-me dado aos países que facilitam a movimentação de capitais sem iden-tifi car os proprietários e a origem do dinheiro, seja fruto de crime ou não. Só falta agora o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, deixar que a polícia e a jus-tiça consigam investigar, processar, condenar e punir os “banqueiros” e outros operadores brasileiros em paraísos fi scais.

Evasão punidaAcordo do governo dos Estados

Unidos com o banco suíço UBS per-mite àquele país identifi car clientes que desviaram recursos públicos e da sociedade, sonegaram impostos e enriqueceram ilicitamente. Lá, as prisões já começaram. Ao todo serão investigados 52 mil cidadãos que fi -zeram depósitos nas contas do UBS na Suíça e em outros países. Aqui o Banco Central e a Receita Federal não estão nem aí.

Bode expiatórioPrimeiro, nos anos de 1990, as

agências internacionais – FMI, Ban-co Mundial, BID, OMC – impuse-ram o modelo neoliberal aos países da América Latina, com consequên-cias danosas para os trabalhadores (aumento do desemprego, perda de direitos e rebaixamento salarial). Agora, com a crise do modelo, o BID prevê que 12 milhões de trabalhado-res perderão o emprego na região. Quem paga sempre?

Papel estatalO pensador marxista britâni-

co David Harvey afi rmou ao IHU Online: “Sou a favor de estabilizar o capitalismo através de medidas keynesianas que se transformem em possibilidades marxistas. Um co-lapso do capitalismo sem nenhuma alternativa pronta para tomar seu lugar causará miséria e sofrimento incalculável para a massa da popula-ção, enquanto que a classe capitalis-ta escapará relativamente incólume”.

Futuro sombrioO pensador marxista estaduni-

dense James Petras alerta: “O Brasil será profundamente afetado pela crise fi nanceira. Sei que o país tem mais de 250 bilhões de dólares em reservas, mas elas acabarão sendo gastas. O fi nanciamento da falta de liquidez não é uma solução a longo prazo, nem uma solução estrutural; é simplesmente fi car injetando di-nheiro para protelar o colapso imi-nente da economia”.

Crime ofi cialMilitante da Rede de Comuni-

dades e Movimentos Contra a Vio-lência, José Luís da Silva teve a sua casa invadida por policiais militares na manhã do dia 1º, em Acari, no Rio de Janeiro. Não havia ninguém na residência, mas tudo foi revira-do. Pior: José Luís tentou registrar queixa contra os policiais do 9º BPM, mas o delegado do 39º DP se recusou a fazer o BO. Como acabar com a arbitrariedade?

Puro extermínioSerá realizado nos dias 9 e 10 de

maio, em São Paulo, o encontro de mães e familiares dos “crimes de maio de 2006”, quando 494 pessoas foram executadas – pela polícia e por grupos de extermínio – no Es-tado de São Paulo, logo após os ata-ques atribuídos à organização crimi-nosa PCC. Esses casos de execução, na maioria de jovens e negros da periferia, jamais foram investigados e levados à Justiça.

IndependênciaOs partidos de esquerda que dão

sustentação ao presidente Fernando Lugo, do Paraguai, continuam apos-tando na mobilização popular para acelerar as transformações sociais. No dia 2, uma nota assinada pelo Partido do Movimento ao Socialis-mo, Partido Popular Tekojoja, Parti-do Convergência Popular Socialista e Partido Comunista Paraguaio cri-ticou as autoridades que tentam cri-minalizar o movimento camponês. Nada de ofi cialismo!

Ego vaidosoTempos atrás, num encontro

internacional, o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, na ho-ra da foto, apoiou as duas mãos, por trás, nos ombros do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A foto serviu como prova da intimidade entre os dois e da docilidade de FHC diante do poderoso presidente dos Estados Unidos. No último encontro do G-20, Barack Obama também ex-plorou a vaidade dos interlocutores. Muito esperto!

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Leandro Uchoasde Nova Iguaçu (RJ)

APÓS PASSAR uma tarde bebendo no bar Aza Branca, no Centro de Nova Iguaçu (RJ), quatro policiais saíram num gol prata, na compa-nhia de um quinto colega de cor-poração. No trajeto até a vizinha Queimados, mataram 29 inocen-tes, sendo oito crianças. Nesse dia, 31 de março de 2005, aconteceu a maior chacina da história do Esta-do do Rio de Janeiro. A data com-pleta quatro anos em clima de pre-ocupação. Nos últimos meses, in-tensifi cou-se a ocorrência de homi-cídios políticos na região.

A Baixada Fluminense tem a fú-nebre tradição de assassinatos – políticos ou não – e desapareci-mentos. Faz parte da cultura de confl itos sociais e políticos da re-gião, onde historicamente preva-lece a impunidade quase absoluta. Recentemente, a sucessão de pre-feituras progressistas em algumas das cidades havia reduzido leve-mente a tendência de homicídios. Entretanto, em Campo Belo, bair-ro afastado de Nova Iguaçu, uma série de assassinatos recentes tem criado um clima de medo.

Na madrugada do dia 19 de mar-ço, o presidente da Associação de Moradores de Campo Belo, Oséias Carvalho, foi morto dentro de sua casa. Quatro ocorrências se deram na mesma noite na região. Duas delas no mesmo bairro. Os outros dois aconteceram no assentamen-to de Linha Velha, também na re-gião. Um dos quatro havia sido tes-temunha em julgamento da ocupa-ção 17 de maio, quando uma imo-biliária reivindicou terras dos as-sentados.

Em protesto, moradores de to-da a Baixada e do Rio de Janeiro enviaram fax ao secretário de Se-gurança do Estado, José Mariano Beltrame. Ainda não se tem infor-mações precisas sobre a razão dos assassinatos, mas há muitos in-dícios de crime político. Embora muito pobre, a área é a única on-de a expansão imobiliária ainda é possível na região. Desconfi a-se que esse seja um fator motivador. Além da costumeira violência gera-da pelas tensões sociais, soma-se a da disputa pelo solo urbano.

Poder paraleloO surgimento, em 2003, da ocu-

pação 17 de maio intensifi cou nes-sa área o aparecimento de grupos de extermínio que se intitulam mi-lícias – muito embora seu funcio-namento seja muito diferencia-do das milícias da capital carioca, já que não cobram por serviços ou por proteção (modelo que fi cou co-nhecido por “eu te protejo de mim

Nova onda de homicídios na Baixada FluminenseVIOLÊNCIA Quatro anos após a maior chacina do Estado, assassinatos políticos voltam a preocupar

mesmo”). A ação desses grupos tem sido a de extermínio gratuito, um modelo tradicional da Baixada Fluminense.

A situação ainda é agravada pela ação do tráfi co de drogas. No afã de retaliar a milícia, os trafi cantes ter-minam por eliminar inocentes que julgam ser informantes. O mer-cado de drogas na Baixada Flumi-nense organiza-se de forma dife-rente se comparado ao da capital. Enquanto no Rio existe um mode-lo de negócios claro, com controle político e econômico de favelas, na Baixada ele é menos estruturado. Dessa forma, torna-se mais com-plicado conceber as disputas de poder de certas localidades.

Na noite do dia 30 de março, Maurício Campos, da Rede de Co-munidades e Movimentos contra a Violência, recebeu um telefonema assustado de uma moradora da re-gião de Campo Belo. Salomão, vi-ce-presidente de Oséias, que as-sumira a Associação de Morado-res, teria sido assassinado. Os mi-litantes mais próximos a ambos, com medo, saíram imediatamen-te da comunidade. Estão desapa-recidos. Devido à distância dos as-

sentamentos e ao medo dos morado-res de falar, informações como essa levam muitos dias para serem con-fi rmadas.

De 2007 a 2008, embora o núme-ro de homicídios ofi cialmente regis-trados na Baixada Fluminense tenha aumentado apenas 2,7%, o de desa-parecidos cresceu 24,7%. É um índi-ce quase cinco vezes maior do que o da cidade do Rio de Janeiro (5,1%). Os números em Nova Iguaçu são mais estáveis, devido à atuação da prefeitura local nas áreas social e de segurança pública.

Entretanto, segundo Adriano Dias, subsecretário de Assistência Social e Prevenção da Violência da cidade, os índices apontariam para uma su-bida neste ano. “A prefeitura de No-va Iguaçu conseguiu reduzir em 25% os índices de homicídio. A atuação de delegados novos, somada a algu-mas políticas públicas implantadas no município, auxiliaram nesse sen-tido. Mas agora parece que há, infe-lizmente, uma reversão”, diz.

Dano psicológicoAdriano lembra ainda o custo psi-

cológico e econômico de ondas de homicídios como essa. “As pessoas costumam se preocupar apenas com as vítimas de violência. O estrago do entorno em geral não é considerado. E ele é enorme. O dano aos familia-res e aos vizinhos é muito grande. O medo é um estrago ainda maior do que os assassinatos”, constata.

Segundo Luciene Silva, da Asso-ciação de Familiares e Amigos de Ví-timas de Violência (Afaviv), pelo me-nos quatro mães de vítimas teriam morrido nos últimos meses, devido a problemas causados provavelmen-

do Rio de Janeiro (RJ)

O Grupo Tortura Nunca Mais condecorou, no dia 1º, 17 perso-nalidades ligadas à defesa dos direitos humanos e à justiça so-cial com a medalha Chico Men-des de Resistência. Entre os ho-menageados estiveram: o pro-fessor Abdias Nascimento, o músico Sérgio Ricardo, a ativis-ta de direitos humanos Márcia Jacintho e os cinco presos polí-ticos cubanos detidos nos Esta-dos Unidos.

A cerimônia ocorreu no dia de aniversário de 45 anos do gol-pe militar. O instante de maior emoção ocorreu durante o dis-curso da ex-vereadora Márcia

de Nova Iguaçu (RJ)

Na manhã do dia 31 de março, familiares de vítimas da violência e militantes dos direitos humanos percorreram a via Dutra com fl o-res nas mãos, em memória às vi-timas da chacina de 2005 na Bai-xada Fluminense. O ato refez o iti-nerário dos cinco policiais, no dia do aniversário dos 29 assassinatos. Em clima de emoção, alguns inte-grantes da marcha manifestaram sua preocupação com os casos re-centes e com a suposta omissão do governo estadual.

A marcha recebeu mais mani-festantes do que as dos anos an-teriores, em decorrência das novas mortes. “Viria ainda mais gente se as famílias não tivessem medo. Mas o estado psicológico desses fa-miliares é tão negativo que muitos não vêm”, explica Luciene Silva, da Associação de Familiares e Amigos de Vítimas de Violência.

A manifestação começou no lo-

Manifestação lembra os quatro anos da chacinaApenas dois, dos cinco policiais que cometeram os assassinatos, estão presos

cal da via Dutra onde foi assassina-do Rafael da Silva, fi lho de Lucie-ne e primeira vítima, e prosseguiu até a Igreja da Posse; no local foi realizada uma missa em memória às vítimas de violência. Em segui-da, prosseguiu até o ponto no qual ocorreram os últimos assassinatos.

Dos cinco policiais envolvidos na chacina e denunciados pela Justiça em 2005, apenas Júlio César Ama-ral e Marcos Siqueira estão pre-sos. Ivonei de Souza aguarda julga-mento em liberdade. Fabiano Gon-çalves também está solto, e teria sofrido tentativa de homicídio em Queimados. O cabo Gilmar Simão foi assassinado quando ia prestar depoimento, em 2006.

Participaram do ato familiares de vítimas de casos de bastante re-percussão. Daniela Duque, mãe de Daniel Duque, e Roberto Soares, pai de João Roberto, caminharam lado a lado durante todo o tempo. Daniel foi brutalmente assassinado na boate Baronetti e João foi morto por policiais na Tijuca. (LU)

Prêmio lembra vítimas de violências cometidas pelo Estado brasileiroGrupo Tortura Nunca Mais homenageia 17 defensores dos direitos humanos

Jacintho, que investigou, qua-se sozinha, o assassinato covar-de do fi lho Hanry Siqueira pela polícia carioca. Seis anos após a morte do jovem, em 2002, os culpados foram presos. “É mui-to difícil, para uma mãe que es-tá esperando seu fi lho vir da es-cola, ouvir um tiro. A tortura ainda existe. Apenas mudou de nome. Agora é extermínio”, dis-se Márcia, sob aplausos de uma plateia de pé.

O também homenageado car-tunista Carlos Latuff, reconhe-cido por retratar violências contra minorias, pediu descul-pas ironicamente por ser home-nageado: “Quando eu vejo uma mulher dessas, sinto que não sou ninguém. Estou aqui por engano”. (LU)

te pelas alterações psicológicas. “As mães são sempre as maio-res vítimas. As consequências podem ser de dois tipos diferen-tes. Ou a mãe se torna uma mi-litante ativa dos direitos huma-nos ou fi ca debilitada, depressi-va”, comenta.

Segundo a psicóloga da prefei-tura de Nova Iguaçu, Ligia Mar-ques dos Santos, “o estado da fa-mília após as mortes é deplorá-vel. Medo de represálias, medo de morrer, angústia, depressão, doenças físicas. Há consequên-cias graves em irmãos, que de-monstram alteração de persona-lidade. O tratamento psicológico é para o resto da vida. Além dis-so, há muita diminuição de renda também, devido aos problemas”.

Maurício cita ainda a conse-quência para a região no que se refere à organização em movi-mentos sociais. “Quando lide-ranças como Oséias são assassi-nadas, a militância deixa de atu-ar. Infelizmente, o objetivo dos grupos de extermínio é alcança-do. Os movimentos sociais fi cam fragilizados. Isso mostra que a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais hoje em dia estão entrelaçados”.

O enfraquecimento dos movi-mentos sociais explicaria a leni-ência com que o Estado enfren-ta o aumento de casos de homi-cídio, como tem ocorrido. Prota-gonizados por grupos de exter-mínio, os assassinatos de lide-ranças, supostamente adversá-rias da “ordem pública”, termi-nariam sendo convenientes a al-guns governos.

“O medo é um estrago ainda maior do que os assassinatos”, observa subsecretário de Segurança Pública de Nova Iguaçu

Adriano Dias

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Para moradores do bairro, aterro sanitário é somente lixão

Urubus procuram alimento nas montanhas de lixo do aterro sanitário localizado no bairro do Caximba (PR)

de 9 a 15 de abril de 2009 7

brasil

Pedro Carranode Curitiba (PR)

SERES HUMANOS buscam restos de comida em meio ao aterro sanitário que concentra o lixo da capital e de mais 16 cidades do Paraná. Outros co-mercializam os alimentos que chegam por ali com prazo de validade vencido, vendidos pa-ra os comércios da região. Uru-bus, mosquitos, fedor. Abor-to por anencefalia, problemas renais e respiratórios; casos comuns entre os moradores do Caximba, bairro de Curiti-ba onde está instalado o maior aterro sanitário do Estado.

A região é habitada por tra-balhadores e proprietários de quarenta olarias, fábricas de cimento e grameiras. É o pó-lo industrial cerâmico da capi-tal. Descendentes de italianos vivem por lá há décadas. Mas hoje o Caximba está associado apenas com o aterro sanitário, que existe há 20 anos, embora sua vida útil fosse de apenas 11. Desde 1989, houve duas am-pliações emergenciais. O pre-feito Beto Richa (PSDB) sinali-za nova ampliação do aterro e a criação de uma indústria de re-ciclagem, o Sistema Integrado de Processamento e Aproveita-mento de Resíduos (Sipar).

Os moradores são contrá-rios à continuação do lixão e da indústria no território. De-nunciam o risco de desmoro-namento desse aterro lotado, o acúmulo de gases com pou-cos fornos para queimá-los e a concentração de compostos como o metano. O chorume (líquido que escorre a partir do lixo) desemboca no rio Iguaçu. A prefeitura admite vazamen-to, mas afi rma ser algo “não sufi ciente para alterar a po-luição atual”, como disse José Antônio Andreguetto, secretá-rio de meio ambiente, em en-trevista a uma rádio local.

De acordo com os morado-res, o novo prolongamento do lixão deve desapropriar 100

hectares de área, o que pode atingir cerca de 30 mil pes-soas. A luta dos moradores é para que o aterro seja lacra-do (veja abaixo a pauta do movimento).

A instalação do aterro é es-tudada para outros dois mu-nicípios da região metropolita-na de Curitiba – Fazenda Rio Grande e Mandirituba. Segun-do Adélcio Ângelo Bazzo, mo-rador e integrante do movi-mento de defesa do Caximba, os estudos sobre o destino do lixão “consideram os impactos ambientais, mas não levam em

Reivindicações dos moradores✓ O selamento do aterro do Caximba com a máxima urgência. O

ambiente e a saúde dos moradores estão cada vez mais compro-metidos pelo gás metano, pela chuva ácida, pelos vetores produ-zidos pelo lixo etc.

✓ Não à ampliação do lixão por imprudência do poder público.

✓ A população da região sul de Curitiba: Caximba, Tatuquara, Campo Santana, Rio Bonito, Pompéia, Jardim da Ordem etc. não aceitará a instalação de mais um aterro sanitário na região, isso seria a conclusão do processo de destruição total de suas tradições, culturas e famílias que se encontram no local há mais de 100 anos.

A periferia como cesto de lixoQUESTÃO URBANA Moradores do bairro do Caximba, em Curitiba, se organizam contra o lixo, pelo direito ao território e pelo meio ambiente

de Curitiba (PR)

A prefeitura de Curiti-ba, desde os anos de 1990, apresenta um sonoro dis-curso de que a cidade é um modelo de coleta, separação e tratamento do lixo. En-quanto isso, a realidade in-dica que apenas 1% do lixo é tratado na capital. A popula-ção paranaense produz 20 mil toneladas de dejetos por dia e 40% desse volume po-deria ser reciclado.

Os moradores denunciam

de Curitiba (PR)

A situação dos aterros sani-tários e lixões no Brasil é uma bomba-relógio. Até 2012, a vida dos aterros controlados deve se esgotar. Na verdade, represen-tam uma minoria, uma vez que 5 mil lixões estão a céu aberto – o que contraria os acordos de eliminação da ECO-92 desse ti-po de prática.

No bairro do Caximba, em Curitiba, a empresa que reali-za a coleta e o transporte é pa-ga por tonelada de lixo. “Qual é o interesse em continuar pro-duzindo cada vez mais lixo? On-

de Curitiba (PR)

A intensifi cação da produção de mercadorias, em menor tem-po e com maior descarte, para poder manter a taxa de lucro das empresas, de acordo com o eco-nomista holandês Win Dierckx-sens, é uma característica mar-cante no modo de produção ca-pitalista a partir da década de 1970.

O produto transforma-se rapi-damente em lixo. Este alimenta

ra a coleta do lixo, chamada Cavo, pertence ao Grupo Ca-margo Corrêa, envolvido em recentes denúncias de corrup-ção e compra de políticos pa-ís afora. De acordo com fonte do Brasil de Fato, a prefei-tura de Curitiba tem interes-se eleitoral em construir a no-va indústria no Caximba. A re-sistência dos moradores apon-ta para a construção na cida-de de Mandirituba, onde a Camargo Corrêa possui terre-no, mas esbarra no momento com lei municipal que impe-de a instalação. Não é má jo-gada para ninguém: as cidades teriam direito a 3% da arreca-dação do lixo.

Pelo caixa 1, a empreiteira patrocinou a campanha dosdois principais candidatos àprefeitura em 2008, Beto Ri-cha e Gleisi Hoffmann (PT),com R$ 300 mil e R$ 500 mil,respectivamente. O tema dolixão não apareceu nas elei-ções municipais. “Há muitosinteresses políticos, a recei-ta do lixo é alta, Richa querganhar politicamente com is-so, para se lançar como go-vernador”, denuncia a mes-ma fonte.

Em outras áreas analisadas para instalação do aterro, co-mo a cidade de Fazenda Rio Grande, também houve denún-cia de moradores. “O problema são as nascentes da região e o trânsito de caminhões”, criti-ca o técnico em meio ambien-te, Eriberto Werner.

Os moradores da regiãoainda não têm uma soluçãopara o lixo. Defendem que oprocesso deve ser debatidopor meio de um fórum com ostrabalhadores de outras cida-des e bairros que possam serafetadas. “A prefeitura não in-centiva a redução do lixo, fi -zemos caminhada que parouo lixão por uma hora e meia,manifestação com faixas ebraços dados em frente ao li-xão. Vamos nos articulando,se o projeto não foi aprovadoainda é pelo barulho das pes-soas”, conclui Ana Cristina.

Estourou em São Paulo O exemplo de que a luta é urgente está na zona leste e ABC

paulista, quando, em agosto de 2007, milhões de toneladas de lixo desabaram no aterro São João Batista. O montante pos-suía a altura de um edifício de 40 andares, com 500 mil metros quadrados de diâmetro. Com o desabamento, uma nuvem de poluição pairou sobre a região, interrompendo as aulas. (PC)

Discurso do marketing e o deserto do mundo do trabalhoAo contrário da propaganda da prefeitura, apenas 1% do lixo de Curitiba é reciclado

também que funcionários de dentro do pátio do ater-ro não usam equipamentos de proteção para o apare-lho respiratório. De acordo com o padre José Antônio da Cunha, uma das lideran-ças locais, “a ameaça à vida e à saúde não é apenas para os moradores que convivem há 20 anos com o mau cheiro e doenças causadas pelo lixão, mas também aos trabalha-dores da empresa operado-ra. Temos conhecimento de que eles se alimentam den-tro do próprio local e não usam equipamentos ade-quados, o que os deixa do-entes”, comentou em entre-vista ao site do Partido dos Trabalhadores de Curitiba.

Na luta dos moradores do Caximba, a pauta foi am-pliada para pensar a re-gião sul de Curitiba: região de bacia hidrográfi ca, onde

são obrigados a viver traba-lhadores, migrantes e carri-nheiros, sujeitos a despejos forçados, enchentes e acu-sações de “ocupações irre-gulares”, devido ao projeto de urbanismo excludente da capital e da reserva de valor imobiliário.

Por ora, moradores do Caximba fazem questão de chamar o aterro sanitário como lixão simplesmente. Isto porque, em um ater-ro sanitário ideal, o choru-me (líquido acumulado) é enviado a um sistema de tratamento e os gases são queimados. No estado atu-al, o chorume polui córre-gos e cavas da região, desa-guando no rio Iguaçu. O en-contro do material poluen-te com o rio é uma imagem forte. Nascentes limpas cor-rem ao lado dos dutos de chorume. (PC)

País não tem políticas públicas para o setorBrasil possui 5 mil lixões a céu aberto

de nós vamos parar, já que a co-brança é feita por tonelada de lixo entregue no aterro?”, ques-tiona manifesto de moradores da região.

O projeto da prefeitura de Be-to Richa, de uma indústria e um sistema integrado de proces-samento de resíduos, buscou a concorrência internacional pa-ra prolongar a agonizante vida do lixão. O modelo prevê a usi-na de reciclagem de 85% do li-

xo. Interessado na licitação, es-tá o grupo Camargo Corrêa. Ou-tro possível concorrente é o Es-tre, de má fama: tem negócios de lixo em Buenos Aires (Argenti-na) e buscava dar cabo do lixo na região da Patagônia. Mas ainda falta defi nir o local do novo ater-ro. E, nisso, ainda pode haver re-sistência da população (PC, com informações do jornal O futuro do lixo no Brasil, produzido pe-los moradores do Caximba).

Mercadoria vira lixo e lixo, mercadoriaDa fabricação até a eliminação dos produtos, lógica do lucro impera

a economia e empresas do ramo, que desenvolvem tecnologias e lucram por tonelada vendida. Dados do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE) de 2002 apontam que cerca de 230 mil toneladas de lixo domi-ciliar e comercial são coletadas a cada dia – sem contar gran-de parte dos resíduos da cons-trução, lixo industrial, de esta-belecimentos de saúde, lixo pe-rigoso e lixo rural. Dos 230 mi-lhões de quilos diários coletados em 5.471 dos 5.507 municípios, pouco mais de 40% chegam a aterros sanitários.

“Para demonstrar a gravida-de da situação, basta relembrar que a cidade de São Paulo está com seus aterros esgotados e te-rá de defi nir, em curtíssimo pra-

zo, onde depositará as pelo me-nos 14 mil toneladas diárias de li-xo domiciliar e comercial que ge-ra. Curitiba também esgotou seu aterro. Belo Horizonte tem de mandar seu lixo para dezenas de quilômetros de distância”, des-creve em artigo o jornalista e am-bientalista Washington Novaes.

Soluções até agora são frá-geis, sobretudo dentro da lógica de mercado e fora da questão do controle popular e das comuni-dades nos territórios. A questão do lixo não é tratada como polí-tica pública. No caso de Curitiba, a crítica ao sistema integrado de reciclagem é a de buscar retirar os catadores de papel – cerca de 15 mil – da parte central da ci-dade. Afi nal, a Copa de 2014 está no horizonte. (PC)

conta a população local”. Du-rante o feriado da Páscoa, vá-rias cruzes vão ser pregadas ao longo de toda a estrada no en-torno do aterro, como forma de protesto. “Temos um passi-vo de 20 anos, casas há 50 me-tros do lixão. A creche fi ca há 50 metros do portão do ater-ro, com o teto cheio de mos-cas”, acrescenta Ana Cristina Juzcok, moradora há oito anos do local.

Fortes interesses Interesses econômicos em

cena: a empresa licenciada pa-

A prefeitura admite vazamento, mas afi rma ser algo “não sufi ciente para alterar a poluição atual”

“Se o projeto [de ampliação] não foi aprovado ainda, é pelo barulho das pessoas”

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de 9 a 15 de abril de 20098

cultura

CONTO

Do heroísmo de Henri Alleg à legalização da torturaCINEMA O fi lme de Christophe Kantcheff provocou mal-estar no governo de Sarkozy por recordar que a tortura foi uma prática rotineira durante a Guerra da Argélia

Miguel Urbano Rodrigues

COM POUCAS exceções, os grandes meios ignoraram a iniciativa, porque o tema é in-cômodo para os detentores do poder, conscientes de que as novas gerações assimilaram, da história das guerras colo-niais da França, a visão dis-torcida que dela apresentam os manuais escolares.

O fi lme Henri Alleg, o ho-mem de “La Question”, de Christophe Kantcheff, muito belo, é mais literário do que político, mas provocou mal-estar no governo de Sarkozy e no Alto Comando do Exército por recordar que a tortura foi uma prática rotineira durante a Guerra da Argélia.

Para avivar a memória dos franceses deste início do sécu-lo 21, Kantcheff funde passado e presente, numa obra em que a leitura de passagens de La Question, num cárcere imun-do, por um grande ator con-temporâneo, alterna com o testemunho de Alleg, que, ao responder a jovens que o cer-cam numa sala de conferên-cias, evoca hoje as torturas a que foi submetido.

Publicado no auge da Guer-ra da Argélia, em 1958, La Question – palavra que a In-quisição utilizava na Idade Média para designar a tortu-ra – foi apreendido, mas a va-ga de emoção e escândalo de-sencadeada pelo livro varreu a França.

Dois Prêmios Nobel, Roger Martin du Gard e François Mauriac, e dois grandes escri-tores, Jean Paul Sartre e An-dré Malraux, assinaram então

um documento, exigindo do governo francês uma resposta às gravíssimas denúncias de Alleg, torturado pelos para-quedistas do general Massu.

Traduzido em 30 línguas, o livro correu pelo mundo, e a indignação suscitada pelas re-velações nele contidas, ao en-lamearem a imagem de honra cultivada pelo Exército fran-cês, contribuíram para apres-sar o fi m da guerra suja e cri-minosa na Argélia.

Mas numa época como a nossa, de desinformação e perversidade midiática, em que jovens franceses, na res-posta a inquéritos de opinião, afi rmam que a URSS foi alia-da da Alemanha nazista du-rante a Segunda Guerra Mun-dial, não é surpreendente que ignorem os crimes cometi-dos nas guerras coloniais do seu país.

TorturasÉ, portanto, compreensível

a emoção suscitada pelo fi l-me de Kantcheff. Milhares de telespectadores ouviram, com um sentimento de angústia, Henri Alleg, ao lado do edifí-cio do antigo centro de terror de El Biar, onde foi torturado barbaramente pelos ofi ciais da 10º Divisão de paraquedis-tas, contar histórias de horror que se diria terem ocorrido numa terra inimaginável.

E, contudo, elas foram bem reais. Essas coisas acontece-ram há 50 anos.

Henri Alleg, preso por de-fender, como diretor do diá-rio Alger Republicain (já en-tão proibido e encerrado), o direito do povo muçulmano argelino à autodeterminação,

foi tratado como um animal por ofi ciais franceses, que o submeteram a torturas que fi -guravam nos manuais da Ges-tapo hitleriana.

E a tudo resistiu. Não falou quando lhe aplicaram cho-ques elétricos na boca e no sexo, e calado permaneceu quando o penduraram de ca-beça para baixo, como se fora um porco depois de abatido. Resistiu inclusive à injeção do pentotal, o mal-chamado “so-ro da verdade”.

Nesse tempo de crise de ci-vilização, em que os detento-res do poder glorifi cam a re-ligião do dinheiro e tudo fa-zem para reescrever a histó-

ria, é reconfortante escutar a palavra de Henri Alleg. Co-mo revolucionário e comunis-ta, ele sentiu, depois de trans-ferido de El Biar para a prisão Barberousse, que era seu de-ver levar ao conhecimento do povo francês o que se passava naquele centro de horrores. E decidiu escrever não um sim-ples folheto sobre a sua expe-riência pessoal, mas La Ques-tion, o livro que se tornaria, com os anos, best-seller mun-dial.

Utilizando um caderno em que teoricamente prepara-va a sua defesa, conseguiu fa-zer sair do presídio, por mãos de advogados vindos de Fran-

Nós que moramos no esquecimento da lembrança não temos tristezaUma casa desamparada de frente pro canavial. Com seu isolamento. E agora com sua desgraça, com seu pesar, com sua ruína, com sua morte. A morte de Telma

Augusto Juncal

Quando chegaram com o corpo de Telma estendido nos braços de uma pequena multi-dão, seu pai engoliu um vácuo seco que desceu rasgando sua garganta e sua mãe soltou um gemido lancinante, pio de co-ruja que agoniza. Telma vinha numa paixão de cristo com seu sangue ressumando de sua saia. Pálida. Mortalmen-te pálida. Todo seu sangue na saia. E pingado pelo caminho que vinha desde dentro do ca-navial até a porta da casa.

A casa. Uma casa desvalida, de tudo escassa. Árida. Uma penúria só. Uma casa desam-parada de frente pro canavial. Com seu isolamento. E ago-ra com sua desgraça, com seu pesar, com sua ruína, com sua morte. A morte de Telma.

Uma casa de taipa, com su-as gengivas de sarrafos em al-

guns pontos expostas. Lugar onde o barro não fi cou tão lisi-nho, tão agarradinho. E se foi com a primeira chuva. Uma casa de tudo escassa, mas que tinha uma poltrona. A bele-za que a casa apresentava fo-ra Telma quem criara: mal-vas perfumadas circundan-do-a em latinhas de extrato de tomate. Da mesma latinha que eram feitos os copos. Pa-ra cada um da família, Telma diversifi cara um copo. De ex-trato, de salsicha, de ervilha, de milho. Eram oito irmãos e irmãs, todos para o mesmo quarto, mas para cada qual o seu copo. E isso era uma ri-queza. Nessa tapera faminta, o luto fez pouso.

Apesar da dor, apesar do de-samparo, apesar da uma úni-ca poltrona, fez-se um veló-rio para Telma. A madeira de seu caixão foi coberta com al-gum papel crepom azul claro, que alguém trouxe, e com de-

coração de estrelas e corações recortados de papel alumínio. E as malvas retiradas das lati-nhas de extrato.

Era um velório pouco de gente pouca. Mais de irmãos e irmãs que de gente. De gen-te eram cinco. Os das casas mais próximas e das famílias mais perto. Uma delas, uma senhora muito gorda, lem-brou de pôr um pano preto na janela.

Ocupava mais a sala o cho-ro de sua mãe, que se esvaía pela porta e janela, espraian-do-se pelo canavial, como um choro primordial, de uma dor antepassada, deixando a cana mais verde, mais viçosa. Adu-bo, alguém haveria de pensar.

Gemido de mãe é pergun-ta que não se responde: “Fia, fi a, o que aconteceu? De on-de vem todo esse sangue? Que maldade te fi zeram? Quem te rasgou dessa maneira bárba-ra? Que horror você encon-trou dentro desse canaviá?”.

Ninguém sabia. Encontra-ram Telma fl ácida no cana-vial. Seu sexo abria sulcos de sangue na terra esgotada da cana. Em silêncio de pedra e cal, seu pai enchia uns copos de lata de aguardente. Em ou-tros ia café. O pouco café que tinha. Que de cadeira, só a poltrona. E esta era para para a senhora muito gorda.

A mãe de Telma não arreda-va pé, nem sentava, nem co-mia, grudada ao caixão da fi -lha: “Fia, fi a, de onde vem to-

do esse horror? Quem te ras-gou essa maldade? Quem te barbarizou dentro do cana-viá?”. O terço da velha mãe era infi nito e tinha sempre as mesmas contas de perguntas. Ave-marias repetidas, padre-nossos desgastados. Até de re-za pode um ser muito pobre, que para a pobreza parece não haver limite.

A senhora muito gorda da poltrona tirou para Telma uma ladainha que a aproxi-masse de Deus. Os prantos de Nossa Senhora das Do-res somavam-se aos prantos da mãe.

Seu pai aproximou-se de Telma morta. Olhou bem o rosto da fi lha, seus olhos sem luz que não se fecharam. Suas pernas fraquejaram. Apoiou-se no caixão, quase caindo e levando o caixão junto. Uma das cinco gente, um senhor, segurou, dando-lhe apoio. A senhora muito gorda levan-tou-se muito solícita e, gene-rosa, ofereceu a poltrona para que o pai sentasse. Sentado, com as mãos trêmulas cobrin-do os olhos, chorou: “Quisera lembrar alguma coisa. Quar-quer coisa. Uma palavra. Uma hora que fosse. Mas não con-sigo me lembrar de nada. Esse canaviá todo. Essa vida. Nóis tudo. É um esquecimento só”. Lá fora, emparedando a casa, o canavial era uma miragem. Uma vertigem.

A monotonia e a tristeza da casa se elastecia. Um rapaz,

chegando do corte da cana, postou-se na janela, com os braços cruzados sobre o pano preto, e fi cou um tempo em si-lêncio olhando. E sem querer ser mensageiro de nada, mas sendo, esticou o braço, esten-dendo até o pai na cadeira uma embalagem de citotec: “Achei perto do lugar donde acharam o corpo dela”.

A mãe teve uma conta a mais de pergunta no seu terço: “Fia, fi a, quem te engravidou? Que maldade você se fez? Não pre-cisava. A gente ia cuidar do seu

fi lho. Nem eu nem seu pai ha-verá de te desamparar”.

Se Telma pudesse dizer, se Telma pudesse contar: “Ah mãe! Ah pai! São muitos os perigo desse canaviá”.

A notícia do engravidamen-to de Telma se espalhou com o vento. Todos tentavam pen-sar quem tinha sido o malfei-tor. Mas Telma nunca fora vis-ta com nenhum rapaz. Nunca tinha tido namorado. Poderia até ser virgem.

Logo, uma história começou a correr de terreiro em terrei-ro: a pobre Telma, cortando suas toneladas de cana, foi, sem se dar conta, adentrando cada vez mais dentro do cana-vial. Chegando até o olho, on-de habita a Cana Caiana que a todo ser vivente devora. Ali a Cana Caiana teria engravida-do a Telma à força.

Outros rumores falaram da Cana Caiana transmutada em homem bonito, vestindo pale-tó brando e chapéu panamá, saindo de dentro do canavial e seduzindo Telma, bem ali no terreiro de casa.

Com a verdade vinda pela metade na embalagem do ci-totec, pai, mãe, irmãos, irmãs e cinco gente enterram Telma. E dia seguinte, com metade da verdade, todos, com exceção de Juliano, guardaram luto por Telma. Juliano retornou pro canavial.

Augusto Juncal é militante do MST.

Sentado, com as mãos trêmulas cobrindo os olhos, chorou: “Quisera lembrar alguma coisa. Quarquer coisa. Uma palavra. Uma hora que fosse. Mas não consigo me lembrar de nada. Esse canaviá todo. Essa vida. Nóis tudo. É um esquecimento só”.

Henri Alleg, preso por defender o direito do povo muçulmano argelino à autodeterminação, foi tratado como um animal por ofi ciais franceses, que o submeteram a torturas que fi guravam nos manuais da Gestapo hitleriana

ça (alguns assassinados pe-los fascistas da OAS), quatro folhas de cada vez, em letra miudinha, o texto que pouco a pouco ia redigindo, iludindo a vigilância dos guardas.

HeroísmoNão foi, aliás, por aca-

so que o Partido Comunista Português, então na clandes-tinidade, distribuiu o livro aos seus militantes, em edi-ção copiografada, por ver em Alleg exemplo de comporta-mento de um comunista pre-so e torturado.

O fi lme de Christophe Kan-tcheff procura, sobretudo, iluminar o homem e a sua co-ragem, como paradigma do heroísmo individual. O com-batente revolucionário apare-ce abatido, o que é uma pena.

Não creio que qualquer dos canais portugueses de televisão inclua a película na sua programação. O te-ma da guerra colonial, tam-bém em Portugal, continua a incomodar aqueles que aqui exercem o poder econômico e político.

É difícil esquecer que nem um único dos ofi ciais para-quedistas que torturaram Henri Alleg em El Biar foi pu-nido pelos seus atos crimino-sos. Posteriormente, todos fo-ram promovidos de acordo com a antiguidade, enquanto alguns foram condecorados por serviços à pátria.

Sucessivos governos daFrança e o alto comando doseu Exército não reconhece-ram, até hoje, a prática datortura durante a Guerra daArgélia.

É útil esclarecer que, nofi lme, Alleg, estabelecendouma ponte entre o passado eo presente, sublinha, dirigin-do-se aos jovens que o ou-viam, que a tortura no mun-do atual não somente perma-nece como em alguns paísestem cobertura institucional.E cita os casos dos EUA e deIsrael. No primeiro, o Con-gresso, com base em pro-posta do ex-presidente Geor-ge W. Bush, aprovou uma leique autoriza certas formasde tortura (algumas foramrotineiras em Guantánamo eno presídio iraquiano de AbuGhraib). No tocante a Isra-el, generais sionistas reco-nheceram que, em 2006, du-rante a guerra de agressão aopovo do Líbano, utilizaram,com aprovação ofi cial, ma-nuais das SS nazis.

Senti que deveria escrever estas linhas ao ver Henri Al-leg, o homem de “La Ques-tion”. Para mim, é motivo de orgulho que o autor de Mé-moire Algérienne me inclua entre os seus amigos.

Uma longa vida abriu-me a possibilidade de conhecer e por vezes trabalhar com gran-des revolucionários do século 20. Em Henri Alleg, identifi co um dos mais puros e autênti-cos comunistas que conheci.

Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português.

“Fia, fi a, de onde vem todo esse horror? Quem te rasgou essa maldade? Quem te barbarizou dentro do canaviá?”

Reprodução

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Madres realizam ato na Praça de Maio, diante da Casa Rosada, sede do governo argentino

de 9 a 15 de abril de 2009 9

américa latina

Nora Cortiñas é psicóloga social e ativista de direitos humanos na Argentina. Seu fi lho, Carlos Gustavo Cortiñas, militante do Partido Peronis-ta, foi detido e “desaparecido” em Buenos Aires no dia 15 de abril de 1977. É cofundadora da Associação das Mães da Praça de Maio, Linha Funda-dora, dissidência da organiza-ção criada nos anos de 1970. Como professora da Faculda-de de Ciências Econômicas da capital, realizou estudos sobre a relação entre a ditadura, a dívida externa e a crise econô-mica no país.

Quem é

A ditadura na Argentina foi civil-militar-clerical

Achille Lollode Buenos Aires (Argentina)

A BELEZA arquitetônica de Buenos Aires e o charme de seus restaurantes repletos de endinheirados turistas euro-peus e estadunidenses na-da têm a ver com o mapa dos

horrores que ainda divide os argentinos. Por um lado, te-mos uma parte pequena, mas poderosa, que não quer que o mundo saiba o que aconte-ceu com os opositores e com as riquezas do Estado duran-te a ditadura. Outra – a maio-ria, mas sem uma represen-tatividade política consisten-

te – luta, ainda, pela verdade e contra a legitimação da im-punidade.

De fato, depois de 32 anos, as duas entidades que re-únem as Mães da Praça de Maio (a de Nora Cortiñas e a de Hebe de Bonafi ni), a ca-da quinta-feira, ainda fazem sua histórica volta na praça,

denunciando e perguntan-do: “Onde estão os nossos fi -lhos? Onde estão os nossos netos?”. Em entrevistas pa-ra o Brasil de Fato, Nora e Hebe explicam a natureza do regime ditatorial em seu país e o envolvimento de setores civis e da Igreja Católica na repressão aos opositores.

Brasil de Fato – Por que a Argentina, que hoje é uma democracia consolidada, ainda não consegue se livrar da dramática herança da ditadura?

Eu nasci em 1920, quando aqui em Buenos Aires houve uma revolução, e, até 1970, os militares sempre foram o braço armado da oligarquia. Porém, durante o governo de Isabelita Perón, houve uma mudança histórica, visto que os militares, os empresários e a oligarquia atuaram juntos, como se fossem sócios, para a conquista do poder e a di-visão dos lucros provenientes do grande saque do Estado e de toda a economia argentina.

Mas quem preparou o golpe durante o confuso e reacionário governo de Isabelita Perón e López Rega?

Houve um planejamento realizado conjuntamente. Os grupos oligárquicos come-çaram a fi nanciar a Triplo A [Aliança Anticomunista Ar-gentina], com vista a alimen-tar a instabilidade política. Os empresários apimentaram o clima de crise econômica. Nesse contexto, os militares começaram a reprimir dura-mente as vanguardas do mo-vimento popular recorrendo a todas as técnicas de tortu-ra e de luta antissubversiva aprendidas na então Escola das Américas, no Panamá.

Por isso, hoje, dizemos que houve um regime de ditadu-ra civil-militar no qual tudo o que aconteceu foi planejado e decidido em conjunto. Por is-so, quando foram defi nidas as formas de saquear o Estado, foi também estabelecido que este devia calar a boca de to-do tipo de oposição. Por isso, a repressão foi maior que nun-ca. Fundamentalmente, o gol-pe serviu para implantar um novo modelo econômico que demolia o Estado, mas que, ao mesmo tempo, se utilizava dele para enriquecer a maio-ria das famílias que represen-tam a oligarquia argentina: os banqueiros, as transnacionais, os políticos profi ssionais, o la-tifúndio, e uma nova burgue-sia que se preocupava somen-te com a manutenção de seus privilégios de classe.

Na Argentina, os militares e a oligarquia procuraram controlar com violência a oposição do movimento popular. Entretanto, em 1972, durante o governo “democrático” de Isabelita, já havia cerca de 1.500 presos políticos e já se falava em 500 desaparecidos, sendo que a maior parte deles não era militante de organizações revolucionárias. Pode falar desse fenômeno político?

Na Argentina sempre houve pobres, pobreza e fome. Por isso, desde o governo do gene-ral Onganía, em 1966, milita-res e grupos oligárquicos ope-ravam um estreito controle

sobre o movimento popular, que exigia uma maior justiça social. Não podemos esquecer que, nos anos de 1950, toda a Argentina foi sacudida pe-lo movimento justicialista de Perón. A geração dos anos de 1970 – como é conhecida aqui na Argentina – era um perigo-so empecilho para o projeto neoliberal, e não se pode sa-quear um Estado se há uma oposição que se manifesta na rua, mobilizando o povo.

Meu fi lho, bem como a maioria dos 30 mil desapare-cidos e dos 10 mil presos po-líticos, lutava para desmasca-rar um governo que fazia con-cessões absurdas às transna-cionais, enquanto a classe po-lítica elaborava as leis para desmantelar o Estado. O gol-pe veio porque a maioria dos argentinos rejeitava o modelo neoliberal e porque os compo-nentes do movimento popular estavam demonstrando uma grande capacidade de mobili-zação. Praticamente, o golpe de Estado legitima, aprofunda e amplia a repressão.

As estatísticas indicam que durante a ditadura desapareceram 160 bilhões de dólares do Tesouro do Estado. Foi por isso que houve 30 mil desaparecidos?

Exatamente! Há uma pro-funda ligação entre saque e re-

Brasil de Fato – Na Argentina, a repressão teve um período de “ensaio técnico” durante o governo dito democrático de Isabelita Perón. Depois, com o golpe, começaram os horrores. Foi nesse dramático contexto que nasceram Las Madres de la Plaza de Mayo?

Em 1974 e 1975, apareceu com força a Triplo A [Alian-ça Anticomunista Argentina], que perseguia os simpatizan-tes das organizações “verme-lhas”, e, em particular, os mi-litantes do movimento estu-dantil. Nesses anos, já se ha-viam registrados cerca de 500 sequestros de militantes e ou-tros 1.500 estavam ofi cial-mente presos. Porém, foi a partir de 1976, quando o golpe de Estado solidifi cou sua es-trutura institucional e repres-siva, que os sequestros e as prisões nos centros de tortura clandestinos se multiplicaram como nunca. Por isso, em se-guida, começamos a nos mo-ver para saber, junto com os juízes, os paradeiros de nos-sos familiares raptados.

Em 1977, fi zemos nossa primeira aparição na Plaza de Mayo (que repetimos há 32 anos todas as quintas-fei-ras), porque haviam desco-berto que o número dos de-saparecidos estava crescendo em ritmos impensáveis. Por outro lado, havíamos desco-berto que muitos estrangei-ros que viviam na Argentina, de repente, apareciam presos nas prisões do Chile, do Uru-guai, da Bolívia, do Paraguai, ou eram declarados mortos em seus países de origem de-pois de terem sido sequestra-dos pelo homens do Exérci-to, da Marinha, da Aeronaúti-ca ou da Gendarmeria aqui na Argentina.

Diante desse quadro de hor-rores, decidimos nos organi-zar e fomos à luta para desco-brir a verdade. Durante os pri-meiros três anos, nossas ca-

sas se transformaram em es-critórios, onde realizamos to-do o trabalho de investigação, uma vez que recebíamos todo tipo de cartas e muitas infor-mações denunciando seques-tros e torturas.

Foram vocês que denunciaram, publicamente, a existência da Operação Condor. Pode contar como isso aconteceu?

Em 1979, eu fui na reunião da OEA [Organização dos Es-tados Americanos], que se re-alizava na Bolívia, em Santa Cruz de la Sierra. Uma mulher paraguaia, Lidia Centurion, me passou a primeira infor-mação sobre a Operação Con-dor, que, até aquela época, era praticamente desconhecida por todos nós. Ingenuamente fi zemos a denúncia na própria OEA, mas nada aconteceu, visto que a entidade era pra-ticamente controlada pelos EUA. A partir desse momen-to, começamos a dirigir nos-sas investigações para o siste-ma repressivo criado no Cone Sul com a Operação Condor e,

em função disso, descobrimos as diferentes características e potencialidades das ditaduras em implantar seus tremendos modelos repressivos.

É verdade que a Igreja Católica argentina, como a chilena, colaborou com a repressão, a ponto de os capelães serem ofi cialmente escalados para dar “assistência espiritual” aos pilotos e soldados que realizavam os vôos da morte, nos quais os presos sequestrados na ESMA (Escola Superior de Mecânica da Armada) eram atirados no mar, ainda vivos ou drogados com o Pentotal?

Em todas as famílias tradi-cionais da dita oligarquia ha-via, sempre, um fi lho que era bispo, outro juiz e outro mili-tar. Esse é um triângulo que funcionou perfeitamente na implantação da ditadura. Em oposição à Igreja conserva-dora, havia a chamada Igreja do Povo, liderada pelo bispo Pallotino, que os militares as-sassinaram juntamente com outros três bispos, enquanto 150 padres e várias freiras – todos originários de países do Terceiro Mundo – literalmen-te desapareceram.

É verdade que a Igreja Ca-tólica apoiou o golpe mandan-do, para as unidades do Exér-cito, da Marinha e da Aero-náutica, um número conside-rável de padres, cuja tarefa era convencer os soldados e os ofi -ciais de que as matanças que realizavam eram para salvar a pátria, e que, por isso, lhes era dada a absolvição. Repito: ha-via padres ou bispos com a es-pecífi ca função de consolar os militares que haviam atirado no mar nossos fi lhos, ainda vivos. Um papel terrível que foi desempenhado até o fi m. Havia, por exemplo, um que, quando nos recebia, consulta-va sempre um arquivo enor-me onde estava anotado o pa-radeiro dos nossos familiares sequestrados. De fato, um dia ele me disse: “Teu fi lho desa-pareceu juntamente com um padre que era um organis-ta famoso; bom, fi que saben-do que, se nada fi zeram, vo-cê o terá de volta. Do contrá-rio, nunca mais o verá”. Quer dizer, eles sabiam tudo o que acontecia nos centros de tor-turas. Usavam seus próprios arquivos e, depois, com a vol-ta da democracia, nada disse-ram sobre os desaparecidos, porque a cumplicidade com a ditadura foi total.

No início de nossa luta, co-meçamos a nos reunir em igrejas, mas quando os padres descobriam quem éramos, apagavam as luzes da sacris-tia e chamavam a polícia. Foi mesmo terrível! Imagine que houve até freiras-espiãs. Por exemplo, anos atrás, desco-brimos que uma freira de Mar de la Plata delatou todos os companheiros psicólogos que trabalhavam no hospital psi-quiátrico, enquanto outra en-trava na prisão com a missão de consolar os presos, mas, na realidade, procurava informa-ções sobre a atividade política de cada um deles. Às vezes, ía-mos falar com um padre e ele nos recebia com uma pistola calibre 38 na mesa! Essa é a verdade, triste, mas real.

Ativista de direitos humanos na Argentina, Hebe de Bonafi ni é uma das fundado-ras da Associação das Mães da Praça de Maio, entidade que preside desde 1979. Possuindo apenas o nível de educação primário, era dona-de-casa até o desaparecimento de seu fi lho, Jorge Bonafi ni Pastor. Em 1999, recebeu o Prêmio Educação para a Paz, da Unes-co. Desde 2004, difunde a luta de sua organização por meio de programas de rádio.

Quem é

pressão, em função da qual, hoje, é muito difícil saber o que de fato aconteceu com os 30 mil desaparecidos ou com os 500 bebês que foram tira-dos de suas mães “subversi-vas”, detidas nos centros de torturas, e oferecidos, qua-se como prêmio, a juízes, po-liciais, mas, sobretudo, a em-presários. Devemos ter cla-ro que, para saquear o Esta-do, era preciso, por um lado, ter a certeza absoluta de que ninguém teria capacidade or-ganizativa e presença física de ir denunciar nas ruas as opera-ções do saqueio. E, por outro, ter um sistema de “regalias” capazes de silenciar eventuais escrúpulos de consciência.

Então, o fi lme de Fernando Pino Solanas, Memórias do Saqueio, não é fi cção, mas pura verdade!

É sim. O fi lme explica de for-ma pedagógica como se deu o saqueio, como os governos militares começaram a es-trangular as empresas públi-cas com empréstimos pedi-dos ao FMI, ao Banco Mun-dial, ao Clube de Paris e, so-bretudo, a bancos privados, para implementar falsos pro-gramas de modernização in-fraestrutural.

O fi lme não diz onde foi pa-rar o dinheiro porque esse é o grande mistério da ditadura. Empréstimos que nunca che-gavam nos cofres das estatais, que fi caram com o ônus do pagamento. Isso tudo abriu o caminho para a voracida-de do menemismo, que fa-tiou e vendeu a preços de ba-nana todas aquelas empresas públicas que haviam contraí-do dívidas com o exterior du-rante a ditadura. A maneira como Carlos Menem as des-centralizou permitiu que se apagassem suas memórias fi -nanceiras, de forma que, ho-je, é quase impossível recons-truir as operações fi nanceiras relacionadas com o valor dos empréstimos recebidos. A dí-vida externa argentina está manchada com o sangue dos 30 mil desaparecidos e dos 10 mil presos políticos.

“Devemos ter claro que, para saquear o Estado, era preciso ter a certeza absoluta de que ninguém teria capacidade organizativa e presença física de ir denunciar nas ruas as operações do saqueio”

“É verdade que a Igreja Católica apoiou o golpe mandando um número considerável de padres, cuja tarefa era convencer os soldados e os ofi ciais de que as matanças que realizavam eram para salvar a pátria, e que, por isso, lhes era dada a absolvição”

Nora Cortiñas

Hebe de Bonafi ni

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Delegados participam da 52ª Sessão da Comissão de Narcóticos da ONU, realizada entre os dias 12 e 20 de março deste ano

de 9 a 15 de abril de 200910

internacional

Dafne Meloda Redação

“Utopia totalitária”. Assim é a política antidrogas preconi-zada pela Organização das Na-ções Unidas (ONU) há quase cinco décadas, de acordo com o professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) Henrique Carneiro. Guiada pela repres-são à produção, tráfi co e con-sumo, ela ainda estabelece co-mo meta máxima a erradica-ção das drogas no mundo. En-tretanto, ainda que duramen-te criticada por países euro-peus, latino-americanos e or-ganizações não-governamen-tais – sobretudo nos últimos anos –, a ONU não dá sinais de que pode ceder.

De 12 a 20 de março, re-presentantes de 130 países se reuniram em Viena (Áustria) para reavaliar essa política. A posição de setores progres-sistas presentes na 52ª Sessão da Comissão de Narcóticos da ONU é que a organização não só não reconheceu a inefi cácia e impertinência de sua políti-ca, como ainda retrocedeu no pouco que tinha de avançado.

No documento fi nal, a ex-pressão “redução de danos” (ver ao lado), presente em de-clarações anteriores, foi reti-rada, mesmo com a insistên-cia de 26 países – a maioria da União Europeia, mais Bolívia e Austrália. Esse termo abria uma brecha para a atuação de alguns países que não concor-dam com a política puramente repressiva das Nações Unidas, que, na verdade, é a defendi-da historicamente pelos Esta-dos Unidos. O termo “redução de danos” foi aprovado pela maioria esmagadora das na-ções, mas saiu do documento fi nal da reunião após veto es-tadunidense. Japão, Vaticano, Rússia, Itália e Colômbia fo-ram os outros países contrá-rios à manutenção do termo.

FracassoAntes e durante a reunião

da comissão, a ONU liberou uma série de relatórios so-bre o tema. Em todos preva-

ONU aposta em política falidaDROGAS Nações Unidas aprofunda política repressiva contra drogas ilícitas, mesmo após o fracasso das últimas décadas

lecem o tom eufemístico de que a “guerra contra as dro-gas”, ainda que com trope-ços, é bem-sucedida. Os nú-meros, contudo, são desani-madores. A produção de co-caína, por exemplo, aumen-tou de 362 toneladas para 994 toneladas, de 1986 a 2007, pe-ríodo que coincide com o en-durecimento das políticas an-tidrogas (ver box).

O documento também aponta para o aumento do consumo de substâncias sin-téticas e de maconha, embo-ra não forneça novas estimati-vas. De acordo com o relatório de 2008, a produção da erva aumentou de 33 mil toneladas em 1986 para 41 mil tonela-das em 2007, mantendo o sta-tus de droga mais consumida do mundo. Porém, a própria ONU reconhece que esse nú-mero deve ser ainda maior, já que é uma planta que pode ser mais facilmente cultivada, di-

fi cultando o monitoramento dos plantios.

Quanto à papoula (usada para fabricar heroína), a pro-dução tem aumentado verti-ginosamente nas últimas du-as décadas, sobretudo – e pa-radoxalmente – após a ocupa-ção estadunidense no Afega-nistão, país que cultiva 92% da papoula do mundo (ver

matéria). A produção ilegal da planta (há produção legal para fabricação de morfi na, usada como medicamento) passou de pouco mais de uma tonelada em 1980 para 8,8 to-neladas em 2007.

LucrosPara a socióloga mexica-

na Ana Esther Ceceña, um

Neste ano, a ONU comemora 100 anos de combate às drogas; embora só a partir de 1945, após sua criação, ela tenha passado a acompanhar de perto o tema. Abaixo, um resumo das políticas nesses 100 anos:

1909 – A primeira conferência de representantes de Es-tado ocorre em Shangai, na China. O objetivo era conter o tráfi co e o consumo de ópio, trazidos pelos ingleses ao país no século 19.

1914 – Nos anos que se seguem à Primeira Guerra Mun-dial, o consumo de drogas cresce rapidamente em diver-sos países.

1936 – A Convenção pela Supressão do Tráfi co Ilícito de Drogas Perigosas é a primeira tentativa de criminalizar e reprimir o uso de drogas.

1946 – A recém-criada ONU passa a cuidar das políticas contra as drogas. Várias substâncias começam a integrar a lista de drogas ilícitas, como maconha e ópio.

1961 – Uma nova convenção defi ne que países devem participar e submeter-se às defi nições únicas estabeleci-das pela ONU. Uma série de tratados são feitos e substi-tuem as ações individuais de cada país. Na prática, as na-ções perdem autonomia para lidar com o tema.

1971 – Respondendo à criação de novas drogas sintéti-cas, lança plano de ação de combate aos psicotrópicos, tornados ilegais.

1988 – Convenção se foca em aumentar os mecanismos de combate e repressão à produção, tráfi co e uso de dro-gas ilícitas.

1998 – Reafi rma as posições de 1988 e adota a meta de alcançar “a eliminação ou uma redução signifi cativa do cultivo ilícito de coca, cannabis e ópio” até 2008.

2008 – Reafi rma o paradigma proibitivo e joga a nova meta de erradicação do uso de drogas para 2019.

da Redação

A lista de interesses que fa-zem do tráfi co de drogas um mal necessário ao mundo de hoje não para nos lucros as-tronômicos. De acordo com especialistas, há inúmeros ou-tros que vão de contenção so-cial a interesses comerciais da indústria bélica, passando pe-la manutenção da estrutura jurídico-policial montada há décadas pelos países de todo mundo para combater o nar-cotráfi co.

Para Henrique Carneiro, professor do Departamento de História da USP, não à toa os Estados Unidos continu-am defendendo o paradigma proibitivo e manteve-se fi rme nessa tarefa em Viena. Ele ex-plica que essa política serve a diversos interesses do país, in-terna e externamente. Um de-les é a contenção social, o que também ocorre no Brasil. “Is-so é muito útil ao Estado con-temporâneo, sobretudo para o estadunidense, que tem o maior número de prisioneiros do mundo e a metade deles presa por crimes relacionados às drogas. Faz com que a po-pulação, sobretudo negra, se-ja encarcerada continuamen-te nos EUA”. Aos negros, hoje também se somam os latino-americanos: depois da imigra-

ção ilegal, o tráfi co é o princi-pal delito que os levam para a cadeia. O número de homicí-dios ligados ao tráfi co tam-bém cumpre esse papel. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, 70% dos assassina-

tos estão ligados ao narcotrá-fi co, de acordo com dados de 2006 da Organização dos Es-tados Ibero-Americanos.

ArmasLuiz Paulo Guanabara, psi-

cólogo e diretor da ONG Psi-cotropicus, que esteve presen-te em Viena, lista outros mo-tivos para manter a estraté-

gia da guerra contra as dro-gas. “A indústria bélica sem-pre está interessada em ‘guer-ras’, em confl itos”. O ativista observa que não entra nessa conta somente as armas com-pradas pelo aparelho repressi-vo de cada Estado, mas tam-bém as usadas pelo narcotráfi -co. “Nos morros cariocas já se encontrou armamento esta-dunidense e alemão”, pontua Guanabara. Na prática, isso mostra que o tráfi co de drogas está intimamente ligado a ou-tra atividade ilegal bilionária: o tráfi co de armas. De acor-do com a ONU, ele movimen-ta entre 300 e 400 bilhões de dólares por ano, tal como o de narcóticos.

Recentemente, antes da úl-tima reunião do G-20, o presi-dente mexicano Felipe Calde-rón, pressionado a dar expli-cações acerca do crescimen-to do narcotráfi co no seu pa-ís, mesmo após o lançamen-to do Plano Mérida (ver ma-téria ao lado), afi rmou que 90% das armas usadas pelos cartéis mexicanos são fabri-cadas nos Estados Unidos. O presidente – um tradicional aliado do país vizinho – ainda rejeitou o discurso hegemôni-co estadunidense que culpa os latino-americanos pelo tráfi -co. “Existe o tráfi co no Méxi-co porque existe corrupção no México. Mas usando o mesmo

critério, se existe tráfi co nos EUA é porque existe corrup-ção por lá. É impossível colo-car toneladas de cocaína nos EUA sem a cumplicidade de algumas autoridades norte-americanas”, disparou.

ViolênciaOutro motivo, aponta Car-

neiro, é todo o aparato de Es-tado já montado, durante dé-cadas, sob esse paradigma proibitivo e repressivo. O pro-fessor conta que, só nos Esta-dos Unidos, são gastos 1.400 dólares por segundo na guer-ra contra as drogas. “O fato de existir esse aparato crescente interessa a muitos setores. Há toda uma burocracia estatal que existe por conta da guerra contra as drogas”, pontua.

“Nos Estados Unidos exis-tem, inclusive, incentivos em dinheiro para aqueles que apreendem drogas ou pren-dem trafi cantes”, completa Luiz Paulo Guanabara. Essas medidas, entretanto, não se li-mitam aos EUA, mas acabam sendo exportadas para outros países, como México, Colôm-bia e também o Brasil. “Essa política militarista tem sido posta em prática aqui no Rio de Janeiro nos últimos anos, e a sensação geral da população é que a violência ligada ao nar-cotráfi co só tem aumentado”, observa o psicólogo. (DM)

Para além dos lucrosContenção social e justifi cativa para intervenções militares são outros dos inúmeros interesses em manter paradigma proibitivo

“É impossível colocar toneladas de cocaína nos EUA sem a cumplicidade de algumas autoridades norte-americanas”, disparou presidente mexicano

Para Ana Esther Ceceña, é contra a própria natureza do capitalismo erradicar uma atividade econômica de tamanha envergadura, seja ela ilegal ou não

Cronologia

dos principais motivos para o “fracasso” dessa política é o fato do narcotráfi co ser uma atividade altamente lucrativa, que movimenta, segundo da-dos de 2005 da ONU, 320 bi-lhões de dólares por ano. Pa-ra ela, é contra a própria na-tureza do capitalismo erra-dicar uma atividade econô-mica de tamanha envergadu-ra, seja ela ilegal ou não. “O tráfi co de drogas é a ativida-de econômica mais dinâmi-ca do capitalismo contempo-râneo; e altamente rentável, por ser ilegal, livre de impos-tos”. Na sua avaliação, o úni-co objetivo das políticas atuais é mantê-la simplesmente sob controle. Legalizar signifi caria diminuir em muito os lucros, uma vez que seria necessário criar uma série de controles e impostos.

E são justamente os países ricos que mais ganham com esse negócio. De acordo com

a própria ONU, aqueles que produzem a droga embolsam apenas 4% dos lucros. A ven-da direta para o consumidor fi nal fi ca com a maior fatia, 71%. O restante, 25%, vai para os exportadores e importado-res do produto. Só nesta últi-ma fase, a movimentação é de 94 bilhões de dólares, mais do que a soma anual das exporta-ções de carne e cerais.

Como a fabricação de ma-térias-primas para as dro-gas está nos países pobres eo consumo é mais alto nos ri-cos, na prática, revela a ONU,76% do lucro das vendas fi -cam nas nações desenvolvi-das. A América do Norte res-ponde, sozinha, por 44% dofaturamento no varejo dessasdrogas. A Europa aparece co-mo segundo maior mercado,com 33%. A América do Sulrepresenta apenas 3%, per-centual menor do que o daOceania, de 5%.

Em linhas gerais, pode ser defi nida co-mo uma estratégia de saúde pública que visa a reduzir os danos decorrentes do uso de drogas a partir de uma perspecti-va de não-criminalização do usuário. Um dos princípios é lutar pelos direitos hu-manos dos usuário de drogas, reduzin-do danos, sejam eles biológicos, sociais, econômicos ou culturais, sem necessaria-mente incentivar o abandono do uso, pois levam em consideração a liberdade de es-colha das pessoas e a liberdade de uso do

seu próprio corpo. No caso de drogas, uma das medidas mais comuns e antigas é a dis-tribuição de seringas descartáveis para evitar disseminação do HIV e hepatites. Educação de profi ssionais, ampliação do debate sobre o tema – também no sentido de prevenção –, in-centivo a programas públicos de saúde para tratamento de dependentes químicos e a de-fesa de fl exibilizações na legislação proibiti-va (ou até apoio à legalização das drogas) são outras bandeiras defendidas pelos militantes da redução de danos. (DM)

Redução de danos

UN Offi ce on Drugs and Crime

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O presidente boliviano, Evo Morales

de 9 a 15 de abril de 2009 11

internacional

Dafne Meloda Redação

PARA UM país que se mostra tão preocupado em erradicar o uso de drogas no mundo, os Estados Unidos não têm feito um bom trabalho. Hoje, Afe-ganistão e Colômbia são os maiores produtores de ópio e cocaína, respectivamente. O primeiro viu sua produção de papoula crescer vertigino-samente após a ocupação em 2001 (ver matéria abaixo); o segundo tem mantido estável sua produção de cocaína nos últimos dez anos, que coinci-dem com a execução do Pla-no Colômbia. Posto em práti-ca em 2000, o governo do país mais poderoso do mundo pro-meteu acabar com o narcotrá-fi co na Colômbia e, de quebra, atacar as guerrilhas que, acu-sam ainda hoje, detêm o con-trole da produção da droga.

“Essa fi scalização é útil pa-ra as ambições geopolíticas e de dominação em relação ao continente”, aponta Henrique Carneiro, professor do Depar-tamento de História da Uni-versidade de São Paulo (USP). “Todo sistema de operações militares de investigação e espionagem, como a Base de Manta, que faz todo monito-ramento da Amazônia e do espaço aéreo, é exemplo dis-so”, completa. A Base de Man-ta, localizada no Equador, foi cedida aos EUA em 1998, por um período de dez anos. O pe-dido foi feito em função da guerra contra o narcotráfi co na região. Em 2008, o presi-dente equatoriano Rafael Cor-rea resolveu não renovar o acordo e declarou que os sol-dados devem deixar a base até novembro deste ano.

MéxicoA exemplo do Plano Co-

lômbia, o presidente mexica-no Felipe Calderon aceitou, em 2006, dar início à guerra às drogas, logo após assumir seu mandato. Com George W.

“Combate” ao narcotráfi co justifi capresença militar na América LatinaDROGAS Plano Colômbia e Plano Mérida, no México, são desculpas para reprimir e controlar movimentos sociais, dizem especialistas

Bush fi rmou o Plano Mérida, acatado pelo Senado dos EUA em 2008. Até agora, tem dado tão certo como seu modelo co-lombiano. Em fevereiro, o mi-nistro da Economia, Gerar-do Ruiz Mateos, chegou a de-clarar que os cartéis mexica-nos se tornaram tão podero-sos que “o próximo presiden-te do México será um narco-trafi cante”. O número de mor-tes relacionadas ao comércio de drogas também vem atin-

gindo dimensões preocupan-tes. Em 2008, foram 5.600 mortes, e estima-se que cerca de 70% das vítimas fatais não tinham nenhuma ligação com o tráfi co. Neste ano, já foram mortos 1.501 mexicanos.

O jornalista e sindicalista estadunidense Shamus Cooke, em artigo para o Global Rese-arch, afi rma, entretanto, que essas recentes notícias que apontam para aumento da violência e do poder dos car-

Drogas em números• 5% da população mun-dial com idade entre 15 a 64 anos – ou seja, 200 milhões de pessoas (3,4% da população mundial) – usam drogas ilícitas com alguma regularidade.

• Destes, apenas 0,6% são considerados dependen-tes químicos (0,4% da po-pulação mundial).

• De acordo com dados de 2005, o tráfi co mundial de drogas movimenta 320 bi-lhões de dólares.

• Os países ricos fi cam com 76% do lucro obtido a partir da venda de dro-gas ilícitas.

• A produção de papou-la aumentou de 1 tonela-da em 1980 para 8 tonela-das em 2007. O Afeganis-tão é responsável por 92% do cultivo.

• A produção de cocaína aumentou de 362 tone-ladas para 994 toneladas de 1986 a 2007. A Colôm-bia é o maior produtor de folhas de coca e cocaína, com 55% e 60%, respecti-vamente.

• O continente americano produz 55% de toda ma-conha do mundo. Nos Es-tados Unidos, onde em 13 Estados é legalizado seu uso medicinal, pesquisa-dores defendem que ela é o produto agrícola mais rentável do país.

da Redação

Com três folhinhas de coca na mão, o presidente bolivia-no, Evo Morales, pediu mais uma vez às Nações Unidas que retire a planta da lista de entorpecentes proibidos pelas convenções internacionais. “A folha de coca não é cocaí-na, não é nociva para a saúde, não provoca males físicos nem dependência”, declarou Mora-les – ex-líder cocaleiro – que, em seguida, mascou as folhas. “Esta folha de coca é medici-na para os povos. Não é pre-judicial para a saúde humana em seu estado natural”, com-plementou. Além das proprie-dades medicinais, a planta é considerada sagrada no mun-do indígena andino.

Desde a convenção de

Evo Morales defende folhas de cocaDurante reunião em Viena, presidente boliviano pede que ONU respeite tradição milenar dos povos andinos

1961, a folha entrou na lista de substâncias entorpecen-tes, pois é usada como ma-téria-prima para a produção de cocaína. A Bolívia tem a menor produção mundial da droga, atrás do Peru e Co-lômbia, que produzem 10, 30 e 60%, respectivamente.

Morales também mandou uma carta ao secretário-ge-ral da ONU, Ban Ki-moon, na qual explicou a importân-cia de se retirar a planta da lis-ta. Como contrapartida, com-prometeu a estabelecer planos para os agricultores de coca – os cocaleiros – para industria-lizar seus derivados para fi ns nutritivos, medicinais e bené-fi cos, inibindo a produção de cocaína no país.

Já de volta a La Paz, Mora-

les afi rmou que a luta contra o narcotráfi co representa um “negócio” para a Agência Cen-tral de Inteligência Americana (CIA) e o Departamento An-tidrogas dos Estados Unidos (DEA). Esta última foi expul-sa da Bolívia em novembro de 2008, acusada de incentivar a ação de separatistas, em se-tembro daquele ano, que dei-xaram 19 mortos no país.

O presidente afi rmou que, para os EUA, a luta con-tra o narcotráfi co é “um ins-trumento de controle polí-tico” e que as agências anti-drogas usam como descul-pa o fracasso no combate às drogas para “conseguir mais verbas do seu governo” e in-crementar sua ingerência no país. (DM)

da Redação

Desde que as tropas es-tadunidenses chegaram ao Afeganistão, a produção de papoula, matéria-prima pa-ra o ópio, morfi na e heroí-na, passou de pouco menos de 4 toneladas para 7,7 to-neladas, de 2002 a 2008. Os EUA afi rmam que a produ-ção é controlada pelos “ter-roristas” do Talibã e o di-nheiro obtido com a produ-ção é usado para fi nanciar suas ações.

O que não é muito divulga-do é que o grupo, quando no poder (1996-2001), proibiu o cultivo da planta em 1997 e, a partir de 2000, iniciou um programa para erradicar seu plantio que se mostrou altamente bem-sucedido, alcançando uma queda de 94% da produção. O resul-tado é que, em 2001, a pro-dução foi para 1 tonelada. No ano seguinte, após a invasão, os cultivos já passaram para

Produção de papoula dobra no Afeganistão após invasão dos EUAONU avalia que 92% de toda heroína que circula no mundo é feita a partir da planta afegã

4 toneladas e não têm para-do de crescer desde então. De acordo com a ONU, esti-ma-se que 92% de toda a he-roína que circula no mundo são feitos com papoula afe-gã. A droga segue principal-mente para o mercado euro-peu, embora também este-ja sendo trafi cada de forma crescente para os EUA.

Retomar comércioO narcotráfi co, porém, é

uma das justifi cativas usa-das pelo governo dos EUA para manter a ocupação do país e, inclusive, mandar mais tropas, conforme re-centemente anunciado pe-lo presidente Barack Oba-ma. Junto à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), ele conseguiu o en-vio de mais 5 mil homens e promete também mais 34 mil mercenários até o fi m do ano.

A berrante contradição faz com que muitos acredi-tem que acabar com o tráfi -

co de opiácios no país não é uma prioridade, muito pelo contrário. Jornais da gran-de imprensa estadunidense, como o Washington Post, já fi zeram matérias apontan-do que o Exército dos EUA não coopera com as agên-cias antidrogas internacio-nais. O historiador canaden-se Michel Chossudovsky vai além e defende que recupe-rar a produção da papoula e obter o controle das rotas da heroína fazem parte da agenda estadunidense para a região e eram um dos ob-jetivos da ocupação.

O canadense também res-salta que, até a invasão do país pela União Soviética (1979-1989), não se produ-zia papoula. Com o objetivo de desestabilizar a presença soviética, a Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA teve um papel central no desenvolvimento da pro-dução da droga, cujo dinhei-ro alimentava forças rebel-des. (DM)

Gerardo Ruiz Mateos, ministro da Economia, chegou a declarar que os cartéis mexicanos se tornaram tão poderosos que “o próximo presidente do México será um narcotrafi cante”

O general colombiano Freddy Padilla, o almirante estadunidense Mike Mullen e o embaixador dos EUA na Colômbia, William Brownfi eld

Adam M. Stump/US Air Force

téis do México, “prestes a vi-rar um narco-Estado”, devem ser vistas com cuidado, pois justifi cam o aumento das po-líticas militaristas do EUA em relação ao vizinho. Ele aponta que lideranças têm acusado o Exército mexicano de usar a “guerra contra as drogas” pa-ra reprimir sistematicamen-te os movimentos sociais me-xicanos, que vêm colecionan-do denúncias de violações dos direitos humanos por parte da força policial e Exército, co-mo prisões arbitrárias, desa-parecimentos, torturas e as-sassinatos.

Terrorismo e drogasCooke lembra que Feli-

pe Calderón entrou na presi-dência bastante enfraqueci-do, após ter sua vitória con-

testada e em um momento no qual os levantes de Oaxaca ainda estavam frescos na me-mória dos mexicanos. Por is-so, anunciar uma “guerra ao tráfi co” foi a estratégia per-feita para usar as forças poli-ciais e militares na manuten-ção da ordem.

“A política antidrogas é, em realidade, uma política con-trainsurgente; o que busca fundamentalmente é o disci-plinamento das populações às regras do jogo estabeleci-das e legalizadas pelo sistema de poder”, defi ne a socióloga mexicana Ana Esther Ceceña. Ela destaca que há um esfor-ço de vincular o narcotráfi -co ao terrorismo ou a grupos insurgentes, para então justi-fi car a repressão. No próprio relatório em que avalia seus

100 anos de políticas de com-bate às drogas, após reconhe-cer que Colômbia e Afeganis-tão lideram a produção de co-ca e ópio, a ONU decreta, nas linhas seguintes, que “a maio-ria dos cultivos se dá em áre-as afetadas por insurgentes”, sem, no entanto, comprovar sua afi rmação.

Para Ceceña, esse discurso tem como objetivo justifi car a “polarização/militarização da sociedade e da política, às custas dos interesses dos mo-vimentos sociais latino-ameri-canos, vistos como terroristas. Termo ambíguo que se refere a qualquer ação de protesto, a qualquer tentativa de organi-zação autônoma, a qualquer manifestação de discordância em relação às políticas e práti-cas do poder.”

UN Offi ce on Drugs and Crime

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Soldados etíopes durante cerimônia de graduação de treinamento dado por militares estadunidenses

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áfrica

Na África, um outro GuantánamoDIREITOS HUMANOS Quênia e Etiópia, aliados dos EUA, encarceram suspeitos de terrorismo em prisão secreta e sem acesso a advogados

Isabel Coellode Mombasa e

Nairobi (Quênia)

FAZ SÓ quatro meses que Sa-lim Awadh Salim voltou para casa. Quando chegou, depois de passar cerca de dois anos detido, sem acusação, em pri-sões do Quênia e da Etiópia, sua casa no bairro de Mwen-beleza, na cidade costeira que-niana de Mombasa, havia si-do saqueada. “Com a venda de um carro velho, comprei 300 pintinhos para criá-los. Aos 37 anos, tenho que começar do zero”, disse ele, junto a um pequeno criadouro tampado com chapa de aço.

Sua mulher, Fatima Ah-med Chande, presa e deporta-da com ele, mas liberada an-tes, está com sua família na Tanzânia, de onde é originá-ria. “Ela estava grávida quan-do nos prenderam. Passou por muito estresse. Perdeu o fi lho. Não posso ir vê-la por-que, até hoje, não me devol-veram o passaporte. E ela não quer ouvir falar de voltar ao Quênia”, diz.

Salim e Fatima formam parte do grupo de até 150 pessoas que as autoridades quenianas detiveram, em ja-neiro de 2007, quando fu-giam dos combates que ocor-riam na Somália contra a União dos Tribunais Islâmi-cos, cujos vários membros es-tão na lista de terroristas bus-cados pelos EUA e pelos sol-dados somalis apoiados por tropas etíopes que haviam entrado no país dias antes.

Trasladados a delegacias de Nairobi, a capital do Quênia, os detidos fi caram incomuni-cáveis durante semanas, sem acesso a advogados nem fa-miliares, antes de serem leva-dos de volta à Somália e entre-gues à Etiópia. Lá, foram sub-metidos a tratamentos cruéis, interrogados por agentes do FBI, da CIA e do serviço se-creto de Israel e privados do contato com a família e com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que tem mandado internacional para visitar pre-sos em todo o mundo. Pou-co se sabe desse Guantána-mo africano. Os governos im-plicados têm se dedicado a ne-gar as denúncias.

“Eu trabalhava com celula-res”, relata Awadh. “Fomos para a Somália para tentar a sorte, mas, depois de quatro meses, decidimos voltar. Na fronteira, encontramos um grupo de mulheres e crianças,

e cruzamos todos juntos. Fo-mos detidos e levados a Nai-robi. Depois, nos inteiramos de que, nesse grupo, estava a esposa de Fazul”.

Fazul Abdullah Mohammed é um dos supostos terroristas mais procurados pelos EUA, que o acusa de ser o chefe da Al Qaeda na África e de estar por trás dos atentados às em-baixadas do Quênia e da Tan-zânia, em 1998.

Detidos de 19 países“O Quênia prendeu cente-

nas de pessoas que tentavam cruzar a fronteira a partir da Somália. A polícia tinha ins-truções de não deixar que nin-guém visse os detidos”, expli-ca o responsável pelo Fórum Muçulmano de Direitos Hu-manos, Al Amin Kimathi, que acompanhou os casos. “Atra-vés de pequenos subornos, recarregando os celulares dos guardas, conseguimos contar 150 presos, de 19 nacionali-dades”.

As condições, diz, eram de-ploráveis. “Havia uma grávida de seis meses que tinha sido ferida por bala enquanto fu-gia da polícia antes de ser pre-sa. Nunca recebeu assistência médica”. Com a exceção de quatro, todos estiveram deti-dos por mais tempo que os pe-ríodos legais que a lei quenia-na permite: 24 horas para cri-mes menores e duas semanas para delito capitais.

Como a polícia quenia-na se negava a ter os suspei-tos sob sua custódia, Kima-thi apresentou, aos tribunais, 34 casos de violação do habe-as corpus. “No dia da sessão, o Estado alegou que não po-dia trazer os presos porque não estavam no país, e apre-sentou três planilhas de voo com os nomes de todos os en-tregues. Foi a primeira con-fi rmação que tivemos sobre o número e identidade dos presos, e sobre a participação das autoridades quenianas na entrega deles à Somália.”

O nome de Salim Awadh es-tá em uma das listas de passa-geiros. Saiu do Quênia em 27 de janeiro de 2007. O voo era da companhia African Air Ex-press. O destino: Mogadiscio, a capital somali. Awadh fi gura no posto 26 da lista. Sua mu-lher é a seguinte. Houve mais três voos. No total, 85 passa-geiros, dos quais 19 mulhe-res e 15 crianças. Outras fon-tes falam de mais de 100 en-tregues.

“Da Somália, nos levaram para a Etiópia. Lá, me inter-rogaram, durante três sema-nas, um homem e uma mu-

lher estadunidenses e um is-raelense”, recorda Awadh. “Me acusavam de participar dos atentados de Mombasa. Quando lhes dizia que não sabia nada, gritavam que eu mentia. Gritaram muito co-migo. Durante um tempo, perdi um pouco da audição”.

Em uma entrevista tele-fônica, um funcionário do FBI confi rmou à Human Ri-ghts Watch (HRW) que tanto agentes do FBI como da CIA haviam interrogado os deti-dos em Adis Abeba, capital da Etiópia. O governo etíope só reconheceu ter 41 pessoas sob custódia.

Chantagem De acordo com o Fórum

Muçulmano de Direitos Hu-manos, em muitas fases dos interrogatórios, esposas e fi -lhos foram usados para exer-cer infl uência sobre os deti-dos, quando os policiais ame-açavam feri-los ou sugeriam que as mulheres haviam ad-mitido que eram terroristas.

“Trouxeram uma máquina para ver se eu dizia a verdade”, continua Salim. “No fi m, me disseram que sentiam muito, que eu era inocente e que me soltariam em duas semanas. Mas me mantiveram preso por mais um ano e meio, até 2 de outubro de 2008, quan-do fui liberado com outros se-te quenianos”. Durante gran-de parte desse tempo adicio-nal, Awadh esteve incomuni-cável. Pensava que seus com-panheiros tinham voltado pa-ra casa e que só restava ele en-carcerado. “Às vezes, queria me matar e pensava que ia fi -car louco”.

Nas contas do Fórum, pe-lo menos 77 pessoas foram li-beradas ao longo dos últimos dois anos. “Sobre o resto”, diz Kimathi, “não sabemos na-da. Há seis quenianos cujos paradeiros continuam desco-nhecidos”.

Numa cafeteria de Nairo-bi, Mariam Alí não tira o véu que cobre toda sua cara (me-nos os olhos) até que se sen-ta em um cantinho. Tem um rosto amável. “Esse governo não protege seus cidadãos. Os vende”, diz a alterada viú-va de 32 anos, mãe de três fi -lhas e um fi lho e que sobrevi-ve vendendo sapatos de se-gunda mão. “Meu irmão nun-ca foi levado perante um juiz. Se tinham algo contra ele, de-veriam tê-lo julgado aqui”, assinala. Chora e relata que seu irmão era uma pessoa amável, que tinha negócios e ensinava, a domicílio, as li-ções do Corão.

Mohammed Abdulmalik, o irmão de Mariam, foi pre-so em Mombasa em 13 de fe-vereiro de 2007. Trasladado a Nairobi e interrogado por agentes quenianos, as auto-ridades o mantiveram detido sem acusação e incomunicá-vel durante um mês. Depois, foi entregue às autoridades estadunidenses.

Negação de cidadaniaEm 26 de março de 2007,

os EUA informaram, de ma-neira ofi cial, que Abdulma-lik estava na prisão de Guan-tánamo, em Cuba. “Ele admi-tiu sua participação nos aten-tados de 2002 contra o hotel Paradise, de Mombasa”, assi-nalava o comunicado.

“Sabemos que está vivo. Nos comunicamos através do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Recebemos três cartas em dois anos. Uma ad-vogada que o visitou nos dis-se que as provas demonstra-ram que não era o que acredi-tavam”. Mas Abdulmalik não pode ser devolvido ao Quênia porque, desde sua detenção, as autoridades locais vêm ne-gando que ele seja um de seus cidadãos.

Mariam reza para que o ir-mão volte, agora que o presi-dente estadunidense, Barack Obama, ordenou o fechamen-to de Guantánamo. “Mas, se o governo queniano não o reco-nhece, para onde ele vai? Es-tará a salvo se voltar? Meus pais já morreram. Meu ma-rido também. Minha famí-lia são meus fi lhos e meus ir-mãos”, diz, entre soluços.

O Fórum Muçulmano de Direitos Humanos apresen-tou uma ação na Justiça para demonstrar que Abdulmalik é queniano. Kimathi acre-dita que o Quênia se nega

a admitir sua nacionalida-de porque teme ser deman-dado por tê-lo entregado aos EUA, violando as normas in-ternacionais.

Segundo o relatório do Fó-rum, a detenção, os interro-gatórios e a entrega “carre-gam a marca de uma estrei-ta colaboração entre as au-toridades do Quênia e dos EUA. O mais preocupan-te é até que ponto as agên-cias de segurança quenianas abdicaram de sua sobera-nia em favor dos interesses estadunidenses”.

Para a HRW, os EUA “não são diretamente responsá-veis” pelas prisões, detenções e entregas. “Mas, defi nitiva-mente, tinham conhecimen-to deles, e aproveitaram os abusos do Quênia e da Etió-pia para interrogar os suspei-tos, o que desperta sérias dú-vidas sobre sua cumplicida-de em relação a esses abusos”, assinala a organização em um relatório.

Além disso, a HRW acusa a Etiópia de ter usado a opera-ção de entregas ilegais “para seus próprios objetivos: con-cretamente, reprimir as insur-gências nas regiões de Ogadén e Oromo”. “Os militares etío-pes submeteram os detidos a torturas brutais. Os presos di-zem que lhes arrancaram as unhas, esmagaram seus geni-tais e lhes deram coronhadas na cabeça enquanto as armas estavam carregadas. Também os forçaram a assinar papéis que não podiam ler”, indica o informe.

Ajuda fi nanceira dos EUANo ano fi scal de 2007, os

EUA deram à Etiópia 12 mi-lhões de dólares em ajuda re-lacionada à “segurança”. A as-sistência ao Quênia foi de 5 milhões de dólares. “Há tan-ta ajuda fi nanceira dos EUA para o antiterrorismo que as autoridades locais têm que demonstrar que estão traba-lhando duro”, diz Kimathi. “Os EUA fi nanciam uma uni-dade antiterrorista de elite na polícia queniana e não viam grandes resultados”.

“É evidente que não apoia-mos o terrorismo, mas acredi-tamos que, se for dado poder a esses governos africanos, eles abusarão dele e o usarão pa-ra reprimir a dissidência. É la-mentável que os EUA tolerem isso. É a contratação externa do abuso. Um cenário muito perigoso”, pontua.

Pouco antes de serem libe-rados, Awadh e seus compa-nheiros quenianos receberam a visita de alguns funcioná-rios de inteligência do Quê-nia. “Eles disseram que nos-so governo havia se equivo-cado, que todo mundo comete erros, que devíamos ser razo-áveis, esquecermos tudo e não falarmos com a imprensa.”

Enquanto vê crescer seus pintinhos, Salim Awadh es-pera que a demanda judi-cial contra o Estado quenia-no dê frutos: “Quero dinhei-ro. Perdi tudo. Até minha es-posa, que está perdendo a ca-beça. E quero justiça. Que seja uma lição para eles” (Rebelión - www.rebelion.org).

Na Etiópia, foram submetidos a tratamentos cruéis, interrogados por agentes do FBI, da CIA e do serviço secreto de Israel e privados do contato com a família e com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que tem mandado internacional para visitar presos em todo o mundo

De acordo com o Fórum Muçulmano de Direitos Humanos, em muitas fases dos interrogatórios, esposas e fi lhos foram usados para exercer infl uência sobre os detidos, quando os policiais ameaçavam feri-los

Jim Garamone