ed47 2 miolo - redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br · ufrr - universidade federal de roraima ufsc -...

4
157 Brasília Med 2010;48(2):157-160 Introdução A s desigualdades sociais no Brasil são histórias. O acesso ao sistema educacional, que ocorre de maneira não democrática, é, sem dúvida, um fator que contribuiu para a permanência daquelas. 1,2 Muitos acreditam que a criação de cotas no ingresso das escolas públicas de ensino superior seria uma forma de tentar diminuir o desequilíbrio sociorracial dos ingressos. Assim sendo, a política de cotas foi e con- tinua sendo debatida na sociedade, tendo sido adotada em alguns locais. 1,3,4 Contudo, a congruência de pen- samentos e a uniformidade na adoção desse tipo de política ainda estão distantes da realidade. Adesão Ao sistemA de cotAs dentre As instituições públicAs federAis brAsileirAs com curso de medicinA Henrique Fernandes de Oliveira 1 e andré luiz lOpes sampaiO 2 objetivo. Determinar a adesão à política de cotas no ingresso das instituições federais brasileiras de ensino superior que dispõem de curso de medicina. Método. Utilizaram-se dados disponíveis no Ministério da Educação e Cultura para a identificação das formas de ingresso nas instituições públicas federais com curso de medicina, tomando-se como base os respectivos editais referentes ao ingresso para o ano de 2010. resultados. Dentre as instituições federais de ensino superior que mantêm curso de graduação em medicina no Brasil, 25(59,5%) delas, num total de 42, apresentam alguma forma de distinção entre os candidatos ao ingresso. Conclusão. Mais da metade das instituições analisadas contam com algum sistema de ingresso diferente do vestibular tradicional. Contudo, não há uniformidade dentre as formas opcionais adotadas. Palavras-chave. Política de cotas; instituições públicas federais. THE ADHESION OF FEDERAL PUBLIC INSTITUTIONS OF BRAZIL WITH A MEDICINE COURSE TO THE AFFIRMATIVE ACTIONS objective. To determine the presence of the affirmative actions in Brazilian medical public institutions. Method. Analysis of data available at the Ministry of Education and Culture for the identification of the means of admittance at the federal public institutions with a medicine course, based on the information for the year 2010. results. 59,5% of the Brazilian medical public institutions have an alternative way of ingression. Conclusion. Among Brazilian federal public institutions with a medicine course, 25 (59,5%) from a total of 42 use any means of distinguishing their candidates at admittance. Key words. Affirmative actions; federal public institutions. resumo ABSTRACT Artigo originAl 1 Médico otorrinolaringologista, mestrando em Ciências Médicas, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Brasília. Correspon- dência: CCSW 03, lote 5, bloco A, ap. 205, Sudoeste, CEP 70680-350, Cruzeiro, Distrito Federal. Telefones: 61 81856177 e 61 30459866. Fax: 61 34433745. Internet: [email protected] 2 Médico otorrinolaringologista. Doutorado em Ciências da Saúde. Médico do Setor de Otorrinolaringologia e Implante Coclear da Univer- sidade de Brasília Recebido em 19-4-2010. Aceito em 25-5-2010. O presente estudo tem o objetivo de determinar a adesão à política de cotas no ingresso das institui- ções federais brasileiras de ensino superior que têm curso de medicina. Método Todas as instituições federais brasileiras de ensino superior que dispõem de curso de graduação em medicina foram identificadas com base em dados disponíveis no Ministério da Educação e Cultura. 5 Com a identificação de cada uma delas, encontrou-se a forma de ingresso vigente no curso de medicina. Para tal, foram utilizadas informações disponíveis

Upload: lekien

Post on 25-Jan-2019

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: ed47 2 MIOLO - redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br · UFRR - Universidade Federal de Roraima UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina x x ... sistema além do vestibular como forma

157Brasília Med 2010;48(2):157-160

Introdução

As desigualdades sociais no Brasil são histórias. O acesso ao sistema educacional, que ocorre de

maneira não democrática, é, sem dúvida, um fator que contribuiu para a permanência daquelas.1,2 Muitos acreditam que a criação de cotas no ingresso das escolas públicas de ensino superior seria uma forma de tentar diminuir o desequilíbrio sociorracial dos ingressos. Assim sendo, a política de cotas foi e con-tinua sendo debatida na sociedade, tendo sido adotada em alguns locais.1,3,4 Contudo, a congruência de pen-samentos e a uniformidade na adoção desse tipo de política ainda estão distantes da realidade.

Adesão Ao sistemA de cotAs dentre As instituições públicAs federAis brAsileirAs com curso de medicinA Henrique Fernandes de Oliveira1 e andré luiz lOpes sampaiO2

objetivo. Determinar a adesão à política de cotas no ingresso das instituições federais brasileiras de ensino superior que dispõem de curso de medicina.

Método. Utilizaram-se dados disponíveis no Ministério da Educação e Cultura para a identificação das formas de ingresso nas instituições públicas federais com curso de medicina, tomando-se como base os respectivos editais referentes ao ingresso para o ano de 2010.

resultados. Dentre as instituições federais de ensino superior que mantêm curso de graduação em medicina no Brasil, 25(59,5%) delas, num total de 42, apresentam alguma forma de distinção entre os candidatos ao ingresso.

Conclusão. Mais da metade das instituições analisadas contam com algum sistema de ingresso diferente do vestibular tradicional. Contudo, não há uniformidade dentre as formas opcionais adotadas.

Palavras-chave. Política de cotas; instituições públicas federais.

THE ADHESION OF FEDERAL PUBLIC INSTITUTIONS OF BRAZIL WITH A MEDICINE COURSE TO THE AFFIRMATIVE ACTIONS

objective. To determine the presence of the affirmative actions in Brazilian medical public institutions.Method. Analysis of data available at the Ministry of Education and Culture for the identification of the means

of admittance at the federal public institutions with a medicine course, based on the information for the year 2010.results. 59,5% of the Brazilian medical public institutions have an alternative way of ingression.Conclusion. Among Brazilian federal public institutions with a medicine course, 25 (59,5%) from a total of 42

use any means of distinguishing their candidates at admittance.Key words. Affirmative actions; federal public institutions.

resumo

ABSTRACT

Artigo originAl

1 Médico otorrinolaringologista, mestrando em Ciências Médicas, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Brasília. Correspon-dência: CCSW 03, lote 5, bloco A, ap. 205, Sudoeste, CEP 70680-350, Cruzeiro, Distrito Federal. Telefones: 61 81856177 e 61 30459866. Fax: 61 34433745. Internet: [email protected] 2 Médico otorrinolaringologista. Doutorado em Ciências da Saúde. Médico do Setor de Otorrinolaringologia e Implante Coclear da Univer-sidade de BrasíliaRecebido em 19-4-2010. Aceito em 25-5-2010.

O presente estudo tem o objetivo de determinar a adesão à política de cotas no ingresso das institui-ções federais brasileiras de ensino superior que têm curso de medicina.

MétodoTodas as instituições federais brasileiras de

ensino superior que dispõem de curso de graduação em medicina foram identificadas com base em dados disponíveis no Ministério da Educação e Cultura.5 Com a identificação de cada uma delas, encontrou-se a forma de ingresso vigente no curso de medicina. Para tal, foram utilizadas informações disponíveis

Page 2: ed47 2 MIOLO - redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br · UFRR - Universidade Federal de Roraima UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina x x ... sistema além do vestibular como forma

158 Brasília Med 2010;47(2):157-160

Henrique Fernandes de Oliveira e andré luiz lOpes sampaiO

Tabela 1. Instituições federais de ensino superior com curso de medicina: adoção e modalidade do sistema de cotas.

InStItuIçÕES

CotAS

BÔnuSEscola pública

Escola pública: negro e pardo

Escola pública: índio

UNIR - Fundação Universidade de Rondônia

UFBA - Universidade Federal da Bahia x x x

UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados x

UFPB - Universidade Federal da Paraíba

UFAL - Universidade Federal de Alagoas x

UFCG - Universidade Federal de Campina Grande

UFGO - Universidade Federal de Goiás x x x

UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora x x

UFMT - Universidade Federal do Mato Grosso

UFMS - Universidade Federal do Mato Grosso do Sul

UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais x

UFOP - Universidade Federal de Ouro Preto x

UFPEL - Universidade Federal de Pelotas

UFPE - Universidade Federal de Pernambuco x

UFRR - Universidade Federal de Roraima

UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina x x

UFSM - Universidade Federal de Santa Maria x x x

UFSCar - Universidade Federal de São Carlos x x x

UFSJ - Universidade Federal de São João Del Rei x x

UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo x

UFS - Universidade Federal de Sergipe x x

UFU - Universidade Federal de Uberlândia x

UFAC - Universidade Federal do Acre

UNIFAP - Universidade Federal do Amapá

UFAM - Universidade Federal do Amazonas

UFC - Universidade Federal do Ceará

UFES - Universidade Federal do Espírito Santo x

UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

UFMA - Universidade Federal do Maranhão

UFPA - Universidade Federal do Pará x x x

UFPR - Universidade Federal do Paraná x x

UFPI - Universidade Federal do Piauí

UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

FURG - Universidade Federal do Rio Grande x

UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte x

UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul x x

UFT - Universidade Federal do Tocantins x

UFTM - Universidade Federal do Triângulo Mineiro x

UNIVASF - Universidade Federal do Vale do São Francisco

UFF - Universidade Federal Fluminense x

UFCSPA - Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre

UnB - Universidade de Brasília x x

Page 3: ed47 2 MIOLO - redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br · UFRR - Universidade Federal de Roraima UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina x x ... sistema além do vestibular como forma

COtas nas instituições públiCas Federais

159Brasília Med 2010;47(2):157-160

nos respectivos editais referentes aos processos sele-tivos de admissão para o ano de 2010 ou informa-ções a respeito do ingresso nos sítios eletrônicos das instituições. Tal coleta de informações foi realizada ao longo dos meses de outubro e novembro de 2009.

Após a identificação do modelo de ingresso de cada instituição, atentou-se para a existência ou não das cotas como uma forma desse ingresso.

Por fim, caso houvesse as cotas como critério no processo seletivo, estas eram classificadas de acordo com seus subtipos. Dentre estes, separaram-se as cotas em egressos de escola pública; egressos de escola pública de etnia parda ou preta; egressos de escola pública de etnia indígena; ou ainda, a existên-cia de alguma forma de bonificação para o candidato egresso de escola pública.

Com base em todos os dados individuais, foram feitos agrupamentos conforme os critérios de cotas, sendo calculado o percentual referente a cada moda-lidade adotada.

rESultAdoSDentre as instituições federais de ensino supe-

rior dotados de curso de graduação em medicina no Brasil, 25(59,5%) delas, num total de 42, apresen-tam alguma forma de distinção entre os candidatos ao ingresso, diferindo da regra única do vestibular tradicional. Algumas destas apresentam mais de um tipo de cota em seu processo de ingresso, como é evidenciado na tabela 1.

As cotas diferem em suas características de acordo com cada instituição. Elas podem ser separadas em três grupos principais, a saber, cota para egressos de escola pública, cota para egressos de escola pública e de etnia parda ou negra, e cota para candidato índio. Algumas instituições não adotaram cotas, mas con-ferem um bônus na pontuação final do candidato egresso de escola pública. A adesão a cada um desses critérios de ingresso está representada na tabela 2.

dISCuSSãoHistoricamente se discute a desigualdade ao

acesso à educação no Brasil como importante causa, talvez a maior, das desigualdades sociais que marcam o País. Para isso, remonta-se ao período escravocrata e de colonização de populações indígenas como exem-plo de opressão de uma etnia sobre outras, o que possi-bilitou o surgimento das desigualdades entre as etnias.

Há alguns anos, discute-se a criação de políticas de cotas raciais para o acesso a diversas instituições

brasileiras.1,2,4 Os que advogam a favor de tal pensa-mento afirmam que tal política seria uma forma de corrigir ou, ao menos, minimizar os erros do passado.

A política de cotas raciais entra no conceito de Ações Afirmativas,1,2 as quais são definidas como medidas especiais e temporárias, tomadas ou determi-nadas pelo estado, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historica-mente acumuladas, o que garante a equivalência de oportunidades e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminação e marginaliza-ção, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religio-sos, de sexo e outros. Sua origem remonta-se à década de 1960, nos Estados Unidos, quando o presidente John Kennedy adotou medidas com o objetivo de pro-mover a igualdade entre negros e brancos.

No Brasil, a lei 3.708, de 9 de novembro de 2001, instituiu o sistema de cotas para estudantes negros ou pardos nas universidades estaduais do Rio de Janeiro.6 Contudo, diversos projetos de lei foram criados no intuito de modificar, manter ou extinguir a ideia inicial.6

Atualmente, o que se verifica é uma diversidade entre as várias instituições no Brasil. Conforme mos-trado nas tabelas, dentre as instituições públicas fede-rais de ensino superior que abrigam um curso de gra-duação em medicina, há diferenças tanto na adoção ou não das cotas como dentre estas.

Na realidade, o que possibilitou essa diferenciação foi o fato de o governo federal delegar a cada institui-ção o poder da decisão a respeito das cotas. Assim, existem instituições que não adotaram nenhum sis-tema de cotas e mantêm o vestibular como exame de ingresso único. Há, conversamente, instituições que criaram sistemas de cotas, cada qual com suas particularidades.

Tabela 2. Modelos de cotas adotados por algumas das 42 instituições federais de ensino superior com curso de medicina

Modelos de cotasInstituições federais

n %

Escola pública 17 40,5

Escola pública: negro e pardo 12 28,6

Escola pública: índio 7 16,6

Bônus 6 14,3

Page 4: ed47 2 MIOLO - redeacaoafirmativa.ceao.ufba.br · UFRR - Universidade Federal de Roraima UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina x x ... sistema além do vestibular como forma

160 Brasília Med 2010;47(2):157-160

Henrique Fernandes de Oliveira e andré luiz lOpes sampaiO

Dentre as 42 escolas públicas federais com o curso de medicina, mais da metade, 25, adotam algum sistema além do vestibular como forma de admissão. Vê-se, aqui que, apesar de longe da totalidade, a par-cela que criou cotas é significativa.

Dentre as cotas, a mais prevalente é a que reserva parcela de vagas para estudantes que comprovem ter estudado todo ou expressiva parte do ensino funda-mental e médio em escolas públicas. Em segundo lugar, em termos de frequência, a reserva de vagas para negros. Em menor número de adesão, a polí-tica de reservar vagas para indígenas. No que tange a estes, algumas instituições, como a Universidade de Brasília e a Universidade Federal de São Carlos, ado-taram um processo seletivo restrito a eles, com cria-ção de vagas além das que existiam.

Vale ressaltar, ainda, uma modalidade distinta das cotas, que foi adotada por um número representativo de instituições. Estas, em discordância à forma das cotas, atribuem um bônus à nota final do candidato egresso de escolas públicas, o qual compete com os demais pelas mesmas vagas.5

ConCluSão Após análise das instituições públicas federais que

mantêm curso de medicina, especificamente no que se refere à política de cotas no sistema de ingresso, vê-se uma diversidade entre elas. Mais da metade aderiu ao sistema de cotas. Contudo, este não é apenas um e,

sim, vários, sendo o mais comum o que destina vagas para egressos de escolas públicas. Tal variação foi possível pelo fato de cada instituição ter tido auto-nomia para tratar o assunto e tomar decisão indepen-dente das demais.

ConFlItoS dE IntErESSESNada a declarar pelos autores.

rEFErÊnCIAS

1. Neves CEB, Raizer L, Fachinetto RF. Acesso, expansão e equidade na educação superior: novos desafios para a polí-tica educacional brasileira. Sociologias. 2007;17:124-57.

2. Guarnieri FV, Melo-Silva LL. Ações afirmativas na educa-ção superior: rumos da discussão nos últimos cinco anos. Psicol Soc. 2007;19:70-8.

3. Naiff DGM, Naiff LAM, Souza MA. As representações sociais de estudantes universitários a respeito das cotas para negros e pardos nas universidades públicas brasileiros. Estudos e Pesquisas em Psicologia, UERJ 2009;9:216-29.

4. Maggie Y, Fry P. A reserva de vagas para negros nas uni-versidades brasileiras. Estudos Avançados. 2004;18:67-80.

5. Brasil. Ministério da Educação e Cultura. Disponível em: http://www.mec.gov.br.

6. Brasil. Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.camara.gov.br.