ectima gangrenoso: apresentação clínica grave e reveladora...

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Diagn Tratamento. 2009;14(3):108-10. Dermatologia Ectima gangrenoso: apresentação clínica grave e reveladora de imunodeficiência primária subjacente. Relato de caso Sílvio Alencar Marques I José Roberto Fioretto II Joelma Gonçalves Martins III Cristiane Massunari Sato IV Denise dos Santos Martins IV Departamento de Dermatologia e Radioterapia e Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp) INTRODUÇÃO Ectima gangrenoso é manifestação cutânea associada à sepse por germes Gram-negativos, principalmente Pseudomonas aeru- ginosa e, usualmente, ocorre em paciente imunocomprometido. 1 Não é manifestação comum, mas seu pronto reconhecimento pode direcionar o tratamento para sepse por Gram-negativos e salvar vidas. Em certas circunstâncias é o diagnóstico que per- mite a suspeita de imunodeficiência subjacente e, até então, não reconhecida. 2 É de extrema importância que médicos pediatras e dermato- logistas conheçam a entidade e saibam valorizar o seu significa- do. Com esse objetivo, os autores relatam caso de lactente em que o quadro de ectima gangrenoso foi manifestação reveladora do quadro séptico e de quadro de neutropenia primária até en- tão insuspeita. RELATO DE CASO Paciente de dois meses de idade, sexo feminino, previamente hígida, foi atendida na unidade de pronto-socorro da Pediatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botu- catu (Unesp). Apresentava-se de regular para mau estado geral, febril, toxêmica e apresentando lesões cutâneas de rápida evo- lução que motivaram o encaminhamento. A história pregressa fazia referência a vacina contra hepatite há 12 dias, sendo que pouco tempo após passou a ter febre e a mãe percebeu lesão na região glútea, que iniciou-se como vesícula, evoluiu para bolha e ulceração local com conteúdo necrótico. Diagnosticou-se fu- runculose na Unidade Básica de Saúde (UBS) da cidade de ori- gem e a paciente foi medicada com penicilina benzatina. Como não se observou melhora, foi encaminhada a hospital regional, onde recebeu cuidados tópicos e imipenen. Como ainda assim não houve melhora, foi encaminhada para nosso hospital. Ao exame dermatológico de entrada, constatou-se a presença de seis lesões, em diferentes estádios de evolução, de localização perianal, perineal, glútea e na dobra inguino-crural. As lesões referidas como iniciais apresentavam aspecto de ulceração com necrose central, borda elevada edematosa e eritematosa (Figu- ra 1). A lesão mais recente consistia de placa infiltrada, suges- tiva de celulite, mas com área central mostrando evidências de sofrimento cutâneo e possível necrose (Figura 2). Imediata- mente diagnosticou-se ectima gangrenoso, associado a sepse, provavelmente por Pseudomonas aeruginosa. I Professor livre-docente, Departamento de Dermatologia e Radioterapia, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp). II Professor livre-docente, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp). III Médica responsável pelo Pronto-Socorro em Pediatria, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp). IV Dermatologista e ex-residente do Departamento de Dermatologia e Radioterapia, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp). Figura 1. Ectima gangrenoso: lesões úlcero-necróticas com bordas infiltradas, elevadas, com reliquat de bolha sobre as lesões.

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Diagn Tratamento. 2009;14(3):108-10.

Dermatologia

Ectima gangrenoso: apresentação clínica grave e reveladora de imunodeficiência primária subjacente. Relato de casoSílvio Alencar MarquesI

José Roberto FiorettoII

Joelma Gonçalves MartinsIII

Cristiane Massunari SatoIV

Denise dos Santos MartinsIV

Departamento de Dermatologia e Radioterapia e Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp)

INTRODUÇÃOEctima gangrenoso é manifestação cutânea associada à sepse

por germes Gram-negativos, principalmente Pseudomonas aeru-ginosa e, usualmente, ocorre em paciente imunocomprometido.1 Não é manifestação comum, mas seu pronto reconhecimento pode direcionar o tratamento para sepse por Gram-negativos e salvar vidas. Em certas circunstâncias é o diagnóstico que per-mite a suspeita de imunodeficiência subjacente e, até então, não reconhecida.2

É de extrema importância que médicos pediatras e dermato-logistas conheçam a entidade e saibam valorizar o seu significa-do. Com esse objetivo, os autores relatam caso de lactente em

que o quadro de ectima gangrenoso foi manifestação reveladora do quadro séptico e de quadro de neutropenia primária até en-tão insuspeita.

RELATO DE CASOPaciente de dois meses de idade, sexo feminino, previamente

hígida, foi atendida na unidade de pronto-socorro da Pediatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botu-catu (Unesp). Apresentava-se de regular para mau estado geral, febril, toxêmica e apresentando lesões cutâneas de rápida evo-lução que motivaram o encaminhamento. A história pregressa fazia referência a vacina contra hepatite há 12 dias, sendo que pouco tempo após passou a ter febre e a mãe percebeu lesão na região glútea, que iniciou-se como vesícula, evoluiu para bolha e ulceração local com conteúdo necrótico. Diagnosticou-se fu-runculose na Unidade Básica de Saúde (UBS) da cidade de ori-gem e a paciente foi medicada com penicilina benzatina. Como não se observou melhora, foi encaminhada a hospital regional, onde recebeu cuidados tópicos e imipenen. Como ainda assim não houve melhora, foi encaminhada para nosso hospital.

Ao exame dermatológico de entrada, constatou-se a presença de seis lesões, em diferentes estádios de evolução, de localização perianal, perineal, glútea e na dobra inguino-crural. As lesões referidas como iniciais apresentavam aspecto de ulceração com necrose central, borda elevada edematosa e eritematosa (Figu-ra 1). A lesão mais recente consistia de placa infiltrada, suges-tiva de celulite, mas com área central mostrando evidências de sofrimento cutâneo e possível necrose (Figura 2). Imediata-mente diagnosticou-se ectima gangrenoso, associado a sepse, provavelmente por Pseudomonas aeruginosa.

I Professor livre-docente, Departamento de Dermatologia e Radioterapia, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp). II Professor livre-docente, Departamento de Pediatria, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp). III Médica responsável pelo Pronto-Socorro em Pediatria, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp). IV Dermatologista e ex-residente do Departamento de Dermatologia e Radioterapia, Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Figura 1. Ectima gangrenoso: lesões úlcero-necróticas com bordas infiltradas, elevadas, com reliquat de bolha sobre as lesões.

Page 2: Ectima gangrenoso: apresentação clínica grave e reveladora ...files.bvs.br/upload/S/1413-9979/2009/v14n3/a004.pdf · A história pregressa fazia referência a vacina contra hepatite

Diagn Tratamento. 2009;14(3):108-10.

Sílvio Alencar Marques | Jose Roberto Fioretto | Joelma Gonçalves Martins | Cristiane Massunari Sato | Denise dos Santos Martins 109

Figura 3. Ectima gangrenoso: úlcera de fundo limpo, granu-loso, bordas elevadas, infiltradas, formato arredondado, localizada na região glútea. Lesão pós-desbridamento.

Figura 2. Ectima gangrenoso: lesão em placa eritemato-edematosa, de limites difusos e centro preenchido por lesão em placa de aspecto necrótico, localizada na região inguino-crural.

A paciente foi de imediato internada em unidade de terapia intensiva pediátrica e condutas terapêuticas de emergência e de confirmação diagnóstica foram instituídas. A conduta básica foi manutenção de antibioticoterapia com imipenen intravenoso, associada às medidas de ordem geral, e as lesões foram desbri-dadas (Figura 3). A recuperação clínica geral foi relativamente rápida e a criança recebeu alta em 12 dias em bom estado geral com as lesões em cicatrização. O cultivo para bactérias a partir de fragmentos da lesão obtidos por biópsia de pele e da hemocultura confirmou a infecção por Pseudomonas aeruginosa. Os hemogra-mas realizados no período de internação mostraram neutropenia persistente, entre 6,0% a 10,2% e, a título de exemplo, no tercei-ro dia de internação o hemograma mostrou: glóbulos brancos a 4,0 x 103/mm3 (neutrófilos a 6%, linfócitos a 66%, monócitos a 18%, eosinófilos a 10%). A neutropenia persistiu em reavaliações posteriores à alta e sua possível causa continua em investigação.

DISCUSSÃOEctima gangrenoso é quadro classicamente associado a sepse

por Pseudomonas aeruginosa, mas também pode estar associado a outros germes Gram-negativos. Conceitualmente se aceita que o ectima gangrenoso, ou quadros ectima gangrenoso-símiles, possam ser causados por largo espectro de agentes infecciosos, como, por exemplo, sepse por bactérias Gram-positivas e mes-mo fungemias, causadas pela Candida albicans ou por agentes da mucormicose.3-5

A lesão cutânea é expressão de uma vasculite necrosante. A vênula pós-capilar é inicialmente invadida através da adven-tícia por bactérias que progridem para o lúmen, ocasionando trombose do vaso, levando ao edema e à inflamação local. Há comprometimento de arteríolas e a lesão clínica, inicialmente com sinais flogísticos, evolui rapidamente para a formação de bolha e necrose, daí sua denominação que data de 1897.6 As lesões se desenvolvem de eritema a necrose em torno de 12-18 horas e, quando da avaliação clínica, podem ser observadas em diferentes estádios de evolução. Eventualmente, a lesão pode permanecer certo tempo com o aspecto e consistência de nó-dulo antes de evoluir para necrose.7 No geral, as lesões são em pequeno número, mas podem atingir a casa de dezenas. Segun-do relato de livro texto, 55% das lesões localizam-se na região glútea e perineal (como no presente caso), 30% ocorrem nas extremidades e 12% na face e tronco.8 As lesões não são limi-tadas à pele e vasos do parênquima pulmonar e renal podem apresentar o mesmo tipo de vasculite necrosante. O índice de letalidade em que está presente o ectima gangrenoso associado à sepse por Pseudomonas aeruginosa e imunossupressão é de 38% a 77%.1,9 Esses dados realçam a gravidade potencial do quadro e a importância do diagnóstico precoce.

O quadro infeccioso original pode ser devido a gastrenterite, pneumonia, infecção do trato urinário, otite média, endocar-dite e quadros infecciosos, ocorrendo em grandes queimados e em pacientes com necrólise epidérmica tóxica.1,6

O fator de risco mais comum é a existência de neutropenia, associada à quimioterapia ou a causas primárias, ou a defeitos funcionais de neutrófilos. Ou ainda, hipogamaglobulinemia ou

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Diagn Tratamento. 2009;14(3):108-10.

Ectima gangrenoso: apresentação clínica grave e reveladora de imunodeficiência primária subjacente. Relato de caso110

RESUMO DIDÁTICO1. Ectima gangrenoso é afecção dermatológica associada e reveladora de quadro séptico e grave e mais frequente na

faixa etária infantil.2. O agente causal mais frequentemente associado ao ectima gangrenoso é a Pseudomonas aeruginosa. Outras

bactérias Gram-negativas podem ser o agente envolvido. Ectima gangrenoso-símile causado por bactérias Gram-positivas também é descrito.

3. O predisponente mais comum é a neutropenia de diferentes etiologias, assim como outras condições que causem imunodeficiências, por exemplo: hipogamaglobulinemia.

4. Frente a suspeita clínica de ectima gangrenoso, a conduta imediata é cobertura antibiótica contra Pseudomonas aeruginosa, instituição de medidas de suporte e desbridamento cirúrgico da lesão.

5. Investigação etiológica deve utilizar cultivo de fragmento da lesão, hemocultura e pesquisa de possíveis focos infecciosos associados e detectados.

em circunstâncias de imunodeficiência de diferentes etiologias e mesmo ocorrer em grandes queimados.1,10,11

Como a premissa, ao diagnóstico do ectima gangrenoso, é que se trate de sepse por Pseudomonas aeruginosa, a indicação é de antibioticoterapia imediata com antibióticos da classe dos aminoglicosídeos ou β-lactâmicos com espectro anti-Pseudo-monas aeruginosa. O antibiograma deve ser de rotina mesmo se tratando de provável fonte de infecção comunitária. O des-bridamento da lesão, sob anestesia local, é recomendado e a cicatrização se dá em semanas e a intensidade da sequela cicatri-cial será proporcional à intensidade e duração da necrose local. Acompanhamento clínico pediátrico especializado é obrigató-rio no período pós-tratamento.

INFORMAÇÕESEndereço para correspondência:Silvio Alencar MarquesDepartamento de Dermatologia e RadioterapiaFaculdade de Medicina de BotucatuDistrito de Rubião Júnior, s/no

Botucatu (SP) CEP 18618-970Tel./Fax. (14) 3882-4922Cel. (14) 9671-0241E-mail: [email protected]

Fonte de fomento: nenhumaConflito de interesse: nenhum

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Data de entrada: 18/6/2009Data da última modificação: 18/6/2009

Data de aceitação: 27/7/2009