economia & sociedade n africano - fao.orggio... · a famigerada era dos “descobrimentos”...

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TURISMO Prestígio Maio/Junho de 2015 36 EM BUSCA DO SONHO AFRICANO A História não podia ser mais cruel para a África: de berço da human- idade para palco dos mais degradantes episódios de saque e humilha- ção. A famigerada era dos “descobrimentos” atropelou literalmente o continente. Não só os seus recursos naturais foram desenfreadamente espoliados, também as suas culturas e valores foram espezinhados e relegados à clandestinidade. Chegou-se ao ponto de questionar a condição humana do povo africano (negro). Com base nessas ideias aberrantes, muitos homens, mulheres e crianças foram lançados às “hor- das” da escravatura, tratados como mercadoria transaccionada à escala global. Hélder Muteia (texto) * ECONOMIA & SOCIEDADE 37 Prestígio Maio/Junho de 2015 N o decurso dessa história, que passou por regimes esclavagistas e coloniais, as instituições tradicionais foram escamoteadas e instrumentalizadas para servir interesses obscuros. A economia foi reduzida à extracção de recursos e exploração ilimitada de mão-de-obra escrava. Um continente inteiro foi colocado de cócoras, à margem do progresso e do desenvolvimento económico e social. Por ironia do destino, os territórios mais para o interior, nas florestas tropicais dominadas por uma vegetação exuberante, repletas de mosquitos, mosca tsé-tsé, crocodilos, serpentes, felinos e outros predadores, mantiveram- -se menos explorados. De igual modo, as regiões mais desérticas, escassas de água potável e sob o sol abrasador tropical, foram também menos pressionadas pelo avanço colonial. Nesses lugares algumas comunidades se refugiaram, amedrontadas e marginalizadas. Desprovidas dos seus valores e instituições, e de qualquer espécie de educação formal, essas comunidades foram reduzidas às condições mais primitivas. O longo, tortuoso e muitas vezes sangrento processo de descolonização remeteu o continente à inevitabilidade de se erguer a partir do caos social, económico e político: com memórias apenas para esquecer para quem foi vítima, e lições eternas para a humanidade. No esforço desesperado de se erguerem, alguns países caíram facilmente na armadilha neocolonial, amarrados a compromissos pouco transparentes. Outros tentaram descobrir novas fórmulas e novos processos, sempre com limitado sucesso. Embora seja evidente que a descolonização foi um passo gigantesco na reposição da justiça e reconquista da auto-estima, muitas feridas ainda sangram e causam dor. A extrema pobreza a que está relegada a devastadora maioria das pessoas, a falta de instituições e valores com capacidade agregadora e estruturante, a vulnerabilidade à manipulação orquestrada por interesses políticos e económicos, o analfabetismo A extrema pobreza a que está relegada a devastadora maioria das pes- soas, a falta de instituições e valores com capacidade agregadora e es- truturante, a vulnerabilidade à manipulação orquestrada por interesses políticos e económicos, o analfabetismo generalizado, e a falta de infra- -estruturas sociais e económicas básicas (estradas, pontes, comunicação, saúde, energia, água, etc.), condicionam as perspectivas de desenvolvim- ento.

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turisMO

Prestígio Maio/Junho de 2015 36

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OA História não podia ser mais cruel para a África: de berço da human-idade para palco dos mais degradantes episódios de saque e humilha-ção. A famigerada era dos “descobrimentos” atropelou literalmente o continente. Não só os seus recursos naturais foram desenfreadamente espoliados, também as suas culturas e valores foram espezinhados

e relegados à clandestinidade. Chegou-se ao ponto de questionar a condição humana do povo africano (negro). Com base nessas ideias aberrantes, muitos homens, mulheres e crianças foram lançados às “hor-

das” da escravatura, tratados como mercadoria transaccionada à escala global.

Hélder Muteia (texto) *

EcOnOMiA & sOciEdAdE

37 Prestígio Maio/Junho de 2015

No decurso dessa história, que passou por regimes esclavagistas e coloniais, as instituições tradicionais foram escamoteadas

e instrumentalizadas para servir interesses obscuros. A economia foi

reduzida à extracção de recursos e exploração ilimitada de mão-de-obra escrava. um continente inteiro foi colocado de cócoras, à margem do progresso e do desenvolvimento

económico e social.

Por ironia do destino, os territórios mais para o interior, nas florestas tropicais dominadas por uma vegetação exuberante, repletas de mosquitos, mosca tsé-tsé, crocodilos, serpentes, felinos e outros predadores, mantiveram- -se menos explorados. de igual modo, as regiões

mais desérticas, escassas de água potável e sob o sol abrasador tropical, foram também menos pressionadas pelo avanço colonial. nesses lugares algumas comunidades se refugiaram, amedrontadas e marginalizadas. desprovidas dos seus valores e instituições, e de qualquer espécie de educação formal, essas comunidades foram reduzidas às condições mais primitivas.

O longo, tortuoso e muitas vezes sangrento processo de descolonização remeteu o continente à inevitabilidade de se erguer a partir do caos social, económico e político: com memórias apenas para esquecer para quem foi vítima, e lições eternas para a humanidade.

no esforço desesperado de se erguerem, alguns países caíram facilmente na armadilha neocolonial, amarrados a compromissos pouco transparentes. Outros tentaram descobrir novas fórmulas e novos processos, sempre com limitado sucesso. Embora seja evidente que a descolonização foi um passo gigantesco na reposição da justiça e reconquista da auto-estima, muitas feridas ainda

sangram e causam dor.A extrema pobreza a que está

relegada a devastadora maioria das pessoas, a falta de instituições e valores com capacidade agregadora e estruturante, a vulnerabilidade à manipulação orquestrada por interesses políticos e económicos, o analfabetismo

A extrema pobreza a que está relegada a devastadora maioria das pes-soas, a falta de instituições e valores com capacidade agregadora e es-truturante, a vulnerabilidade à manipulação orquestrada por interesses políticos e económicos, o analfabetismo generalizado, e a falta de infra--estruturas sociais e económicas básicas (estradas, pontes, comunicação, saúde, energia, água, etc.), condicionam as perspectivas de desenvolvim-ento.

Estância turística

generalizado, e a falta de infra-estruturas sociais e económicas básicas (estradas, pontes, comunicação, saúde, energia, água, etc.), condicionam as perspectivas de desenvolvimento.

com índices de pobreza, malnutrição e analfabetismo sem paralelo em todo o planeta, o continente ainda atravessa uma fase delicada do seu percurso. segundo uma avaliação feita pelas nações unidas em 2009, 22 dos 24 países com os mais baixos índices de desenvolvimento humano estão na África subsaariana. Entre os 50 países menos desenvolvidos do planeta, 34 são africanos. uma em cada quatro pessoas na África subsaariana vive abaixo da linha da pobreza absoluta e na insegurança alimentar e nutricional.

Embora os dados macroeconómicos e as tendências globais de desenvolvimento ofereçam números e gráficos com tendências positivas, o ponto de partida foi extremamente negativo. daí que a realidade continue a expor

situações críticas,voláteis e muito aquém dos limites da dignidade humana.

nesse contexto, o continente tornou-se fértil a: conflitos armados, como os que se assistem na África central; levantamentos populares sangrentos como os que se vivem no Mali e níger; explosões xenófobas como as que se assiste na África do sul; extremismo religioso que assola as regiões da África ocidental; e ondas de genocídio como as que se viveram no ruanda. Para além dos efeitos imediatos, estes fenómenos

abalam os sistemas políticos,

retraem as iniciativas de investimento, abalam os mecanismos de resiliência aos desastres naturais e pragas. O espectro de vulnerabilidade é também responsável pela precariedade dos sistemas de saúde, dificultando os esforços de combate às doenças e epidemias como a malária, HiV-sida, ébola, cólera e tuberculose.

Esta é uma análise crua e nua do passado e do presente. contudo, e apesar deste quadro quase desolador, nem tudo está perdido. As projecções demográficas indicam que o continente terá índices de natalidade superiores à média mundial. O risco é que esse boom demográfico suplante a capacidade de prover serviços sociais básicos para as populações. Mas o crescimento demográfico pode ter elementos positivos, se for acompanhado de um programa de

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Segundo uma avaliação feita pelas Nações Unidas em 2009, 22 dos 24 países com os mais baixos índices de desenvolvimento humano estão na África Subsaariana. Entre os 50 países menos desenvolvidos do planeta, 34 são africanos.

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educação adequado e orientado para as áreas prioritárias de desenvolvimento. A mão-de-obra daí resultante pode ser uma mais-valia para o continente.

Os recursos minerais em forma de petróleo, gás natural, carvão, ouro, diamante, bauxite e quartzo ainda continuam com elevado potencial de exploração. na agricultura, a disponibilidade de extensas áreas de cultivo e vastos recursos hídricos oferecem vantagens comparativas sem paralelo. Em termos de solos aráveis 25% do total mundial, e imensa disponibilidade de água doce.

A biodiversidade, as extensas praias com longas horas de insolação, oferece oportunidades na área do turismo e ecoturismo. Os sectores de infra-estruturas de transporte e comunicação evidenciam oportunidades de investimento e oportunidades com efeito multiplicador. Os sectores sociais, como a saúde, educação e outros serviços também denotam grandes perspectivas de desenvolvimento.

A responsabilidade primária está no continente como um todo, estabelecendo prioridades e mecanismos de cooperação entre si e com o resto do mundo. Essa liderança pode ser exercida pela união Africana ou outros mecanismos como a nEPAd (nova Parceria para o desenvolvimento Africano), para estabelecer consensos sobre uma agenda comum.

depois cabe a cada país cumprir as suas obrigações e responsabilidades domésticas, com base no fortalecimento dos processos democráticos, melhoramento do ambiente de negócios, e lideranças

firmes e determinadas nos vários ramos de desenvolvimento económico, social e político; utilização do potencial científico e empreendedor da diáspora; dinamização da cooperação e comércio internacional; diversificação económica e desenvolvimento de um sector privado forte, capaz de fazer investimentos no desenvolvimento da indústria e infra-estruturas. isso porque os estados não terão vocação nem capacidade de fazer simultaneamente investimentos nos sectores sociais e económicos. Algumas áreas prioritárias e estratégicas deverão ser abordadas através de parcerias público-privadas.

É preciso também não perder de vista a colaboração e cooperação com outros continentes, subregiões, blocos e países. Há muitos mecanismos que estão a ser criados pelas organizações das nações unidas, Organização Mundial do comércio, Fundo Monetário

internacional, união Europeia, Banco Mundial e o Banco Africano do desenvolvimento.

com uma combinação perfeita de medidas e políticas, e com as parcerias acertadas, o continente pode tornar realidade o seu sonho sempre adiado. Encontrar os seus próprios caminhos e conquistar um lugar no panorama mundial. Enquanto esse sonho não chega, a pobreza continuará a fazer as suas vítimas, muitas crianças sucumbirão à dureza do seu quotidiano, muitas famílias vão continuar encurraladas no ciclo de desespero e escassez, e muitos sonhos afundarão no Mediterrâneo em tentativas desesperadas e vãs de procurar melhores condições de vida P

* responsável do Escritório da FAO em Portugal e Junto da cPLP

EcOnOMY & sOciEtY

I 40 Prestígio Maio/Junho de 2015

In the course of this story, which went through slavery and colonial regimes, traditional institutions were dodged and instrumentalized

to serve vested interests. the economy was reduced to the extraction of resources and unlimited exploitation of labour, slave labour. A whole continent was placed squatting on the sidelines of progress and economic and social development.

ironically, the more territory inland, the tropical forests dominated by lush vegetation, full of mosquitoes, tsetse

flies, crocodiles, snakes, cats and other predators, remained less explored. similarly, the most desert regions, scarce drinking water and under the scorching tropical sun were also less pressured by colonial advance. in these places some frightened and marginalized communities took refuge. devoid of their values and institutions, and any kind of formal education, these communities have been reduced to the most primitive conditions.

the long, tortuous and often bloody decolonization process referred the

continent to the inevitability of rising from the social, economic and political chaos: with only memories to forget for whoever fell victim, and eternal lessons for humanity.

in desperate effort to rise up, some countries have fallen easily into neo-colonial trap, tied to less transparent commitments. Others have tried to find new formulas and new processes, always with limited success. While it is clear that decolonization was a giant step in restoring justice and regaining

In search of African dream

Helder Muteia (text) *

The story could not be crueler for Africa: from the cradle of humanity to the stage of the most degrading episodes of looting and humiliation. The notorious era of “discoveries” literally ran over the continent. Not only its natural resources were wantonly despoiled but also their cultures and values have been trampled and relegated underground. We came to the point of questioning the human condition of the African people (black). Based on these aberrant ideas, many men, women and children were thrown to the “hordes” of slavery. They have been thrown, treated as traded goods on a global scale.

41 Prestígio Maio/Junho de 2015

The extreme poverty to which the vast majority of the people is relegated to, the lack of institutions and values with aggregating and structuring capacity, vulnerability to manipulation orchestrated by political and economic interests, widespread illiteracy and lack of basic social and economic infrastructure (roads, bridges, communication, health, energy, water, etc.) affect the development prospects.

43 Prestígio Maio/Junho de 201542

self-esteem, many wounds still bleed and cause pain.

Extreme poverty to which most of the devastating people are relegated, the lack of institutions and values with aggregating and structuring capacity, vulnerability to manipulation orchestrated by political and economic interests, widespread illiteracy, and lack of basic social and economic infrastructure (roads, bridges, communication, health, energy, water, etc.) affect the development prospects.

With poverty rates, malnutrition and illiteracy unparalleled all over the planet, the continent is still going through a delicate phase of its route. According to an assessment by the united nations in 2009, 22 of the 24 countries with the lowest human development indexes are in sub-saharan Africa. Among the 50 least developed countries in the world, 34 are African. One in four people in sub-saharan Africa live below the absolute poverty line and food and nutritional insecurity.

Although the macroeconomic data and global development trends offer numbers and graphics with positive trends, the starting point was extremely negative. Hence, the reality continues to expose critical situations, volatile and far below the limits of human dignity.

in this context, the continent has become fertile to: armed conflict, as those being experienced in central Africa; bloody popular uprisings such as those taking place in Mali and niger; xenophobic explosions as those being witnessed in south Africa; religious extremism that plagues parts of West Africa; and genocide waves such as those experienced in rwanda. in addition to the immediate effects, these phenomena undermine political systems, retract the investment initiatives, and undermine the resilience mechanisms to natural disasters and pests. the vulnerability spectrum is also responsible for the precarious health systems, hampering efforts of combating diseases and epidemics such as malaria, HiV-Aids, Ebola, cholera and tuberculosis.

this is a raw and naked analysis of past and present. However, despite

this almost bleak picture, all is not lost. demographic projections indicate that the continent will have birth rates above the world average. the risk is that this demographic boom supplants the ability to provide basic social services to the populations. But population growth can have positive elements, if accompanied by an appropriate education programme and targeted to priority areas of development. Hand labour resulting can be an asset for the continent.

the mineral resources in the form of oil, natural gas, coal, gold, diamond, bauxite and quartz are still with high exploration potential. in agriculture, the availability of large areas of farming and vast water resources offers unparalleled comparative advantages. in terms of arable land, 25% of the world total, and immense freshwater are available.

the biodiversity extensive beaches, with long hours of insolation, offer opportunities in the tourism and ecotourism area. transport and communication infrastructure sectors show investment opportunities and opportunities with multiplier effect. the social sectors such as health, education and other services also denote great prospects for development.

the primary responsibility is on the

According to an assessment by the United Nations in 2009, 22 of the 24 countries with the lowest human de-velopment indexes are in sub-Saharan Africa. Among the 50 least developed coun-tries in the world, 34 are African.

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continent as a whole, setting priorities and mechanisms for cooperation among themselves and with the rest of the world. that leadership can be exerted by the African union or other mechanisms such as nEPAd (new Partnership for Africa’s development), to establish consensus on a common agenda.

then it is up to each country to meet its obligations and domestic responsibilities, based on the strengthening of democratic processes, business environment improvement and firm leadership and determined in the various branches of economic, social and political development; use of scientific potential and entrepreneur from the diaspora; boosting cooperation and international trade; economic diversification and development of a strong private sector, able to make investments in the development of industry and infrastructure. this is because the

states have no vocation or ability to simultaneously make investments in social and economic sectors. some priority and strategic areas should be addressed through public-private partnerships.

One should also not lose sight of collaboration and cooperation with other continents, sub-regions,

blocks and countries. there are many mechanisms that are being created by the united nations organizations, the World trade Organization, the international Monetary Fund, the European union, the World Bank and the African development Bank.

With a perfect combination of measures and policies, and with correct partnerships, the continent can realize its always-postponed dream. Africans can find their own ways and win a place in the world panorama. While this dream does not come, poverty will continue to make its victims, many children will succumb to the harshness of their daily lives, many families will remain trapped in the cycle of despair and scarcity, and many dreams will sink in the Mediterranean in desperate and vain attempts to seek better living conditions. P

* Head of the FAO Office in Portugal and in he cPLP

The biodiversity extensive beaches with long hours of insolation offer opportuni-ties in the tourism and eco-tourism area. Transport and communication infrastruc-ture sectors show investment opportunities and opportu-nities with multiplier effect. The social sectors such as health, education and other services also denote great prospects for development.