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nova Economia_Belo Horizonte_18 (3)_361-378_setembro-dezembro de 2008 Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado Mauricio C. Coutinho Professor do Instituto de Economia da Unicamp Palavras-chave Celso Furtado, economia da mineração, Minas Gerais. Classificação JEL B31, N01. Key words Celso Furtado, mining economy, Minas Gerais. JEL Classification B31, N01. Resumo O artigo tem por objetivo contribuir para o entendimento do modelo de abstração da história econômica brasileira de Celso Furta- do, por meio da análise do ciclo da minera- ção. O ciclo da mineração ocorrido em Minas Gerais no século XVIII é posto em contraste com os dois outros ciclos induzidos por de- manda externa – o ciclo açucareiro e o do ca- fé –, assim como confrontado com o modelo geral de economia mineradora, presente nos estudos sobre a América hispânica. Enten- demos que por meio destes contrastes po- dem-se entender as notórias lacunas a respeito do desenvolvimento do escravismo em Mi- nas Gerais no século XIX, presentes em For- mação Econômica do Brasil e, em especial, divisar os principais elementos da teoria eco- nômica subjacente aos modelos de abstração histórica de Furtado. Abstract The paper aims at a better understanding of the abstract modeling of the Brazilian Economic History, exposed by Celso Furtado in his celebrated essay The Economic Growth of Brazil. The mining cycle of 18th century Minas Gerais is contrasted with the two other main export-led cycles of the Brazilian economy: the Northeastern sugar-cane cycle and the coffee crop cycle. It is also confronted with the general model for a mining economy, to be found in Furtado’s studies about Hispanic America. In our view, these contrasts allow us a better understanding of the notorious flaws of Furtado’s hypotheses on the development of the slave economy in 19th century Minas Gerais. Additionally, these contrasts may prove instrumental to the understanding of the economic theory underneath Furtado’s models of historical abstraction.

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Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado

Mauricio C. CoutinhoProfessor do Instituto de Economia da Unicamp

Palavras-chaveCelso Furtado, economia damineração, Minas Gerais.

Classificação JEL B31, N01.

Key words

Celso Furtado, mining economy,

Minas Gerais.

JEL Classification B31, N01.

ResumoO artigo tem por objetivo contribuir para oentendimento do modelo de abstração dahistória econômica brasileira de Celso Furta-do, por meio da análise do ciclo da minera-ção. O ciclo da mineração ocorrido em MinasGerais no século XVIII é posto em contrastecom os dois outros ciclos induzidos por de-manda externa – o ciclo açucareiro e o do ca-fé –, assim como confrontado com o modelogeral de economia mineradora, presente nosestudos sobre a América hispânica. Enten-demos que por meio destes contrastes po-dem-se entender as notórias lacunas a respeitodo desenvolvimento do escravismo em Mi-nas Gerais no século XIX, presentes em For-mação Econômica do Brasil e, em especial,divisar os principais elementos da teoria eco-nômica subjacente aos modelos de abstraçãohistórica de Furtado.

AbstractThe paper aims at a better understanding of the

abstract modeling of the Brazilian Economic

History, exposed by Celso Furtado in his

celebrated essay The Economic Growth ofBrazil. The mining cycle of 18th century Minas

Gerais is contrasted with the two other main

export-led cycles of the Brazilian economy:

the Northeastern sugar-cane cycle and the coffee

crop cycle. It is also confronted with the general

model for a mining economy, to be found in

Furtado’s studies about Hispanic America.

In our view, these contrasts allow us a better

understanding of the notorious flaws of

Furtado’s hypotheses on the development of the

slave economy in 19th century Minas Gerais.

Additionally, these contrasts may prove

instrumental to the understanding of the

economic theory underneath Furtado’s models

of historical abstraction.

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1_ Introdução

Pode-se dizer que o volume de pesquisashistóricas sobre o escravismo no Brasil,dos últimos 20 anos, produziu nas hipó-teses de Celso Furtado sobre a economiaescravista um abalo comparável ao que ha-via sido provocado no modelo clássico deindustrialização, anos antes, pelas abun-dantes evidências empíricas referentes àindústria brasileira no pré-1930 (ver a res-peito Suzigan, 2001; Dean, 1971; Villela,2000). Admite-se hoje que as bases empí-ricas dos modelos de economia escravis-ta de Formação Econômica do Brasil são in-completas, inconsistentes mesmo.

A constatação aplica-se com vigorainda maior à abordagem da economia damineração do século XVIII e, particular-mente, às especulações de Furtado a respeitodo destino do escravismo em Minas Geraisnos momentos subseqüentes à decadênciadas minas. De fato, a opinião de que a eco-nomia mineira do século XIX entrou emmarasmo é desmentida pelo vigor das ati-vidades agrícolas e, mais ainda, pelas evi-dências de que o contingente de escravosnão decresceu ao longo do século. Ao con-trário, Minas Gerais manteve-se como pó-lo de atração de escravos até a abolição (vera respeito Martins Filho e Martins, 1983;Martins, 1982; Paiva, 1996; Libby, 1988).

É razoável admitir que, dos três gran-des ciclos primário-exportadores analisadosem Formação Econômica do Brasil – cana-de-açúcar, mineração, café –, o da mineraçãorecebe a menos satisfatória das abordagensda decadência. O contraste na abordagemdos três ciclos é expressivo. Afinal, o térmi-no do ciclo do café coincidiu com a expan-são da indústria, e as teses de Furtado sobrea transição da etapa primário-exportadorapara o desenvolvimento baseado no mer-cado interno foram muito inovadoras. Domesmo modo, o sofisticado retrato queFurtado traça da economia colonial açuca-reira foi baseado em um conhecimento ra-zoável da cultura de cana-de-açúcar.1 Dasminas, Furtado conhecia muito pouco; emenos ainda do que sucedeu à região mi-neira no século XIX. Suas conclusões, des-se modo, estão pouco referidas ao quadrohistórico real. Pode-se dizer que se susten-tam, em grau bem maior do que no restan-te do livro, em racionalizações construídascom base em um modelo geral de históriaeconômica brasileira.

O objetivo do presente trabalho éjustamente trazer à tona os princípios deanálise econômica subjacentes ao modelogeral de história econômica de Furtado, emsuas aplicações imediatas à economia dasminas. Cabe antecipar que o artigo não temqualquer compromisso com a revisão his-

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1 Sua tese de doutoramento(Furtado, 2000) foi sobre aeconomia colonial açucareira.

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tórica ou historiográfica. Procura, exclusi-vamente, efetuar uma digressão em histó-ria do pensamento econômico, alimentadapelo entendimento de que o modelo deeconomia da mineração proporciona umbom ângulo de abordagem à “teoria eco-nômica” de Celso Furtado. Vale dizer queas interpretações do autor sobre a econo-mia de Minas Gerais, em particular, e sobrea mineração, de modo geral, contribuempara o esclarecimento das bases teóricas deseu sistema de reconstrução racional dahistória – o núcleo da obra de Furtado. Poroutro lado, e no sentido inverso, acredita-mos que a “teoria econômica” de Furtadopermite entendermos o porquê de suasconclusões, assim como as lacunas de suashipóteses (e conclusões) a respeito da eco-nomia das minas e de Minas.

2_ A economia do ourodo século XVIII

Na terceira parte de Formação Econô-mica do Brasil, em três breves capítulos,Celso Furtado trata da economia escra-vista mineira do século XVIII. A análisearticula-se em torno do esquema do flu-xo de renda da economia mineradora, doqual, a rigor, obtém-se melhor compre-ensão mediante o contraste com os flu-xos de renda da economia açucareira doNordeste, nos séculos XVI e XVII, e do

café do Sudeste, nos séculos XIX e XX.Entre os três grandes ciclos da economiabrasileira impulsionados pela demandaexterna – açúcar, mineração, café –, o damineração apresenta posição ímpar, nosentido de estar mais bem definido pelasdiferenças em relação aos outros dois.

Como é bem sabido, na visão deFurtado, o ciclo do café representou umponto de virada no desenvolvimento eco-nômico brasileiro, por ter aberto as portasà utilização massiva de trabalho livre. Porsua vez, o ciclo açucareiro segue o modeloprototípico da plantation escravista. Já o ci-clo minerador do século XVIII é atípico:baseia-se no trabalho escravo, porém, ofe-rece muitas oportunidades para o trabalholivre; ao contrário do que ocorrera com aatividade açucareira, estimulou os nexos comsetores econômicos fornecedores, fortale-ceu a Coroa e as atividades urbanas, assimcomo diversificou a economia. Enfim, ape-sar de escravista, a economia do ouro con-trasta fortemente com o modelo de plantation

açucareira, o que recomenda uma recapitu-lação de suas (da plantation açucareira) prin-cipais características.

A economia do açúcar nordestino, deacordo com Furtado, caracterizou-se por:

1. dominância da grande proprieda-de agrícola, ou das grandes uni-dades de capital;

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2. presença desprezível de mão-de-obra livre e/ou de população tra-balhadora branca, com inteira do-minância do trabalho escravo;

3. auto-suficiência da propriedade ru-ral, que tanto produz o bem de ex-portação quanto os meios de sub-sistência da escravaria;

4. ausência de nexos econômicos sig-nificativos entre o setor exportadore o restante da economia, conside-rado “economia de subsistência”;

5. baixo nível de monetização das ati-vidades econômicas internas, sejaporque as transações do engenhode açúcar com o restante da eco-nomia são insignificantes, seja por-que, no interior da firma açucarei-ra, sendo escrava a mão-de-obra,não há pagamento a fatores;2

6. os fluxos monetários concentram-sena esfera das relações internacio-nais (receita de exportação, paga-mento de juros no exterior, impor-tação de equipamentos e dos bensde consumo da classe proprietária).

Na verdade, Furtado admite algumapresença de transações monetárias entre oengenho açucareiro e os setores fornece-dores, particularmente no que se refere aofornecimento de lenha e gado. Considera,

no entanto, que são transações residuais,responsáveis por menos de 5% da renda ge-rada na economia. Além disso, o esquemaexplicativo de Formação Econômica do Brasil

deixa na obscuridade a economia urbana eo abastecimento das cidades. A vida eco-nômica do Nordeste girava em torno dagrande propriedade rural açucareira, queera praticamente auto-suficiente. Os trans-bordamentos do negócio do açúcar, comoa criação de gado do sertão, representavameconomias escassamente monetizadas e debaixa produtividade.

Na economia mineradora, ao con-trário, cresce a importância da mão-de-obralivre. A despeito do papel central do trabalhoescravo, o ciclo do ouro motivou o influxode imigrantes portugueses de diversas con-dições sociais. De acordo com Furtado, adesconcentração dos negócios – o ouropodia ser explorado tanto por produtoresabastados como por faiscadores descapita-lizados –, bem como a diversificação ine-rente às economias urbanas, ensejou umadiferenciação social e de ocupações, alémda intensificação dos fluxos monetários.

A firma mineradora não desfrutavade auto-suficiência. Totalmente concentradana atividade extrativa, adquiria alimentospara os escravos, pagava transporte, de-mandava bens e serviços diversos. Se ad-mitirmos que essas aquisições envolviam

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2 A rigor, ocorre opagamento de lucros. A rendaconcentra-se fortemente,o que favorece o consumo deprodutos de luxo das classesproprietárias e o investimentona expansão da lavoura.

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dinheiro, teria ocorrido aumento geral dograu de monetização da economia, um re-sultado crucial, já que, no esquema explica-tivo de Furtado, a ativação do mecanismomultiplicador de renda depende da existên-cia de transações monetárias. O núcleo mi-nerador chegou até mesmo a articular ati-vidades econômicas em outras regiões – éo caso das tropas de muares do extremoSul, da compra de gado bovino do Sul e doNordeste –, assim contribuindo para elevaro grau de monetização e de integração daeconomia em todo o território colonial.

A diversificação econômica e, par-ticularmente, o pagamento de bens e servi-ços redefinem o fluxo de renda. Na econo-mia açucareira, o grosso das transaçõesmonetárias envolvia o engenho e o exterior.Já na economia mineira do século XVIII,as aquisições e o pagamento de serviços di-versos em dinheiro espalhavam a renda pa-ra além da firma mineradora. Em um com-pacto (e confuso) cálculo com base nosvalores das exportações de ouro, Furtadoestima que a renda da região mineira tenhaatingido 3,6 milhões de libras na época demaior prosperidade.3 Reconhece que, emrelação à economia açucareira, [...] as impor-

tações representavam menor proporção do dispên-

dio total (Furtado, 1999, p. 79). Havia de-manda (e produção) no mercado interno.De fato, o coeficiente de importações ad-

mitido no cálculo da renda (0,5) implica ageração de renda monetária fora do nú-cleo exportador.

Além disso, fatores como a menorconcentração de renda, os elevados custosde transporte inerentes a uma atividadeeconômica afastada do litoral contribuírampara modificar a composição da procura emfavor dos bens de consumo corrente. Emcomparação com o Nordeste açucareiro, oambiente econômico tornou-se propício aodesenvolvimento de atividades de mercadointerno. O fato é que, admitido o dinamis-mo das atividades internas, a coerência domodelo passa a depender de dois elemen-tos. Em primeiro lugar, das explicações pa-ra o suposto declínio da economia aos ní-veis de subsistência, após a exaustão dasminas. Adicionalmente, de hipóteses sobreas razões do fracasso no desenvolvimentode manufaturas, uma vez que a constitui-ção de uma base manufatureira representa-ria o desdobramento natural das transaçõesmonetárias e do acionamento do mecanis-mo multiplicador.

Cabe ressaltar que, em relação aonão-desenvolvimento de uma base manu-fatureira em Minas Gerais durante o ciclodo ouro, Furtado não se prende a explica-ções baseadas em vantagens comparativasda Europa ou normas impeditivas de cons-tituição de indústria no Brasil. As razões

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3 No decênio 1750-60,a exportação de ouromanteve-se em torno de2 milhões de libras.4/5 correspondiam à regiãomineira (2 � 4/5 = 1,6).As importações equivalem àsexportações. O coeficiente deimportações é 0,5; logo arenda regional seria igual a3,2 (1,6/0,5) = 3,2. Furtadoafirma que “a renda anual da

economia não seria superior a

3,6 milhões de libras ...”(Furtado, 1999, p. 78).

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aventadas chegam a ser prosaicas: teria fal-tado capacitação técnica, ou experiênciamanufatureira, aos imigrantes portugueses.Houvesse indivíduos com a devida qualifi-cação, nem mesmo os tratados restritivosentre Portugal e Inglaterra teriam impedi-do a erupção de atividades manufatureiras.

Furtado vale-se do exemplo norte-americano para reafirmar que muitas dasrestrições estabelecidas por tratados inter-nacionais ou pelo domínio colonial só nãosão contornadas na prática quando inexis-tem as bases econômicas para tanto. Editosgovernamentais não conseguem suprimirtendências econômicas vigorosas. Formação

Econômica do Brasil utiliza o exemplo do de-senvolvimento da Austrália do século XIXpara mostrar como o declínio de uma ativi-dade mineradora pode levar à diversifica-ção econômica. Em Minas, ao contrário doque viria a ocorrer na Austrália (100 anosdepois...), o declínio da mineração levou auma regressão da atividade econômica.

Foi exatamente a falta de desdobra-mento da economia mineira [...] num sistema

mais complexo [...] (Furtado, 1999, p. 84) –um sistema manufatureiro –, que levou àregressão econômica. No entender de Fur-tado, não se haviam criado nas regiões mi-neiras [...] formas permanentes de atividade eco-

nômica – à exceção de alguma agricultura de

subsistência [...] (Furtado, 1999, p. 84).

Note-se que, por agricultura de sub-sistência, não necessariamente se entendeagricultura não-excedentária. Os alimentose as matérias-primas utilizados na econo-mia urbana e nas minas provinham dos“setores de subsistência”, assim como acriação de gado no sertão para o abasteci-mento do litoral nordestino representou“economia de subsistência”. Posteriormen-te, voltaremos a esse ponto.

Por outro lado, e como foi visto, aeconomia das minas articulou um sistemade trocas monetárias entre o núcleo mine-rador, as cidades e os produtores de bensagrícolas. Pois bem, tal sistema desaparecequando o ouro escasseia. Ocorre um processo

de atrofiamento da economia monetária (Furtado,1999, p. 85) e, em paralelo, um rebaixa-mento do nível de produtividade na eco-nomia como um todo.

É importante observar que, no sis-tema de Furtado, as elevações de produtivi-dade em uma economia primário-exporta-dora decorrem de dois fatores. Em primeirolugar, os produtos líderes de exportaçãotêm preço elevado, o que representa umaelevação da renda monetária (ou do poderde compra) da comunidade. Em segundolugar, a integração da economia a uma cor-rente de comércio internacional possibilitaa ativação de fatores – terra, mão-de-obra –que de outro modo permaneceriam ocio-

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sos. Pelos dois lados – elevação dos preços eaproveitamento de fatores ociosos –, cres-ce a produtividade dos fatores. Simetrica-mente, o colapso das exportações provocadiminuição da produtividade, seja pela au-sência de um produto de elevado valor naeconomia, seja pelo refluxo dos fatores pa-ra uma ou outra forma de ociosidade. Volta-remos adiante à questão da produtividade.

Em suma, nunca é demais ressaltara importância da demanda externa nos mo-delos de crescimento econômico de Furta-do. No limite, foi a ausência de demandaexterna que atrofiou a economia mineiraao término do ciclo do ouro. Até que o sur-gimento do trabalho assalariado e o de umabase industrial tivessem possibilitado o de-senvolvimento baseado no mercado inter-no, os surtos de crescimento dependeramsempre da conexão com uma fonte dinâ-mica de demanda externa. Rompida a co-nexão, o declínio torna-se inevitável.

Os próprios processos de industria-lização bem-sucedidos, em países de ori-gem colonial, não deixam de estar associa-dos a um mercado internacional dinâmico.No caso do Brasil, a percepção da impor-tância do surto exportador do café para onascimento da indústria permanece semi-submersa porque, no conhecido relato daindustrialização de Formação Econômica do

Brasil, o objetivo principal é mostrar o pa-

pel especial desempenhado pela crise dosanos 30 na ruptura do padrão primário-ex-portador. Para conferir destaque à criseeconômica mundial e à decorrente com-pressão da capacidade de importar, Furta-do deixa na penumbra a indústria preexis-tente. Não obstante, e sempre de acordocom Furtado, foi o café que propiciou osurgimento de uma economia urbana di-versificada, a formação de um mercado detrabalho assalariado e até mesmo de umabase industrial, cuja capacidade ociosa foi osuporte para a recuperação econômica dosanos 30.

Os comentários ao desenvolvimentonorte-americano reforçam o papel decisivoda inserção internacional. Como se sabe,Furtado gostava de recorrer ao contrasteentre as colonizações ibérica e inglesa, bemcomo de ressaltar os fatores distintivos pre-sentes na ocupação do território norte-americano: a capacitação da mão-de-obra ea absorção do excedente populacional naInglaterra, o papel positivo da pequenapropriedade no novo território, a visão es-clarecida das lideranças da república nas-cente... O autor não deixou de assinalar, noentanto, a relevância do comércio triangu-lar com as Antilhas, na época colonial, e,após a independência dos Estados Unidos,o papel crucial da plantation algodoeira su-lista. Vale dizer, insistiu no papel decisivo

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da demanda externa no progresso norte-americano. O capítulo XVIII de Formação

Econômica do Brasil, “Confronto com o De-senvolvimento dos EUA”, destaca a im-portância do cultivo e das exportações dealgodão, que lograram articular a nascenterepública ao núcleo dinâmico da revoluçãoindustrial (a indústria têxtil) nos cinqüentaanos subseqüentes à independência.4

3_ O modelo de economiada mineração

Em sua obra, Furtado explicita um mode-lo geral de economia da mineração, intei-ramente distinto do modelo de economiado ouro do Brasil do século XVIII, apli-cável, com variações, a diversos países daAmérica hispânica. Em Formação Econômi-

ca da América Latina, o modelo de econo-mia da mineração é um dos que integrama “tipologia das economias exportadorasde matérias-primas” que resultam da ex-pansão do comércio internacional na se-gunda metade do século XIX.

De acordo com a tipologia, haveriatrês grupos de países exportadores de pro-dutos primários:

a) países exportadores de produtos agríco-

las de clima temperado, b) países exporta-

dores de produtos agrícolas tropicais, e c)

países exportadores de produtos minerais

(Furtado, 1969, p. 41-42).

O último grupo compreende o México, oChile, o Peru e a Bolívia, produtores deminerais não-ferrosos cuja demanda cres-ceu a partir da segunda metade do séculoXIX.5

A característica básica dessas eco-nomias minerais é a presença de grandeprogresso tecnológico nas minas, que sãode propriedade estrangeira (em geral, nor-te-americana). A desnacionalização, bemcomo a utilização de técnicas modernas epouco empregadoras de mão-de-obra, con-verte as atividades mineradoras em espéci-es de enclaves estrangeiros de elevada capi-talização, o que [...] significaria desvincular da

economia interna a parte principal do fluxo de ren-

da a que dá origem essa atividade (Furtado,1969, p. 64). Em resumo, a mineração mo-derna implica transferência de renda para oexterior, fluxos reduzidos de salários no in-terior da economia, pouca ou nenhuma ar-ticulação com os demais setores de atividadeeconômica, reduzida contribuição à expan-são de mercados internos.

Ao individualizar um modelo de eco-nomia da mineração na América Latina jáindependente, Furtado persegue dois obje-tivos. Por um lado, estabelecer o contrastecom as economias dos dois outros gruposde países – exportadores de produtos agrí-colas de clima temperado e tropical –, nosquais as exportações exerceram impacto

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4 O algodão constitui o principal

fator dinâmico do desenvolvimento

da economia norte-americana na

primeira metade do século XIX

(Furtado, 1969, p. 104). Devoa Maria Alice Rosa Ribeiro asobservações sobre o papeldecisivo da agriculturaalgodoeira (e da demandaexterna) na constituição deuma base manufatureira eindustrial nos Estados Unidos,na interpretação de Furtado.5 O grupo compreende aindaa Venezuela, que se tornouexportadora de petróleo noséculo XX.

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bem maior sobre o mercado interno. Por ou-tro, e em decorrência, salientar a existênciade dualismo nas economias latino-ameri-canas, o que é bem mais visível nas econo-mias mineradoras do que nas exportadorasde produtos agrícolas.6

O modelo de economia da minera-ção do século XIX contrasta também como modelo de produção de metais preciososda época colonial, em especial o dos paísesde colonização hispânica. Neste último ca-so, as regiões produtoras dos metais ... comporta-

ram-se como autênticos pólos de crescimento (Fur-tado, 1969, p. 35). Furtado refere-se à cons-tituição de áreas produtoras de alimentos,animais de tiro e produtos artesanais para oabastecimento dos núcleos mineradores deprata, sob o regime de grande propriedadee de arregimentação de trabalho indígenapor meio das encomiendas. Em poucas pala-vras, a mineração colonial de metais precio-sos dinamizou a economia interna – algoque também se aplica ao ciclo do ouro emMinas Gerais.

A exaustão das minas de prata pôsem xeque a instituição da encomienda, ao en-fraquecer a demanda por produtos agríco-las, sem eliminar contudo o regime de grandepropriedade; apenas refizeram-se os víncu-los de subordinação entre os fazendeiros eos trabalhadores rurais. As fazendas sobre-viveram como unidades isoladas, destina-

das à produção de subsistência, mas aindaassim dotadas de grande capacidade de ar-regimentação política e de submissão dapopulação de origem indígena.

É flagrante o contraste entre as di-nâmicas das economias coloniais de ori-gem hispânica (mineração de prata) e por-tuguesa (açúcar e mineração de ouro). Nocaso da plantation açucareira, a crise de mer-cado, decorrente da concorrência interna-cional e da desregulamentação da oferta,teria produzido unidades agrícolas estag-nadas, mas capazes de reter mão-de-obraescrava e sustentar o padrão de produção ede relações sociais típicos dos engenhos.Furtado fala em “letargia secular”. Os seg-mentos conexos, por outro lado, como apecuária do sertão nordestino, até mesmose expandiram, a despeito do isolamento edo enfraquecimento dos vínculos com onúcleo litorâneo. Nos momentos em que ademanda externa se rearticulava, os enge-nhos conseguiam responder sem muitasalterações nas relações sociais e nos pa-drões produtivos, em comparação aos pre-valecentes nos séculos XVI e XVII.

Já a exaustão das minas de ouro, co-mo vimos, teria provocado a dispersão dapopulação – proprietários, trabalhadores li-vres e escravos – na economia de subsis-tência, ou seja, o retrocesso irrecuperável aatividades de baixa produtividade. Furtado

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6 Nos países exportadores de

produtos agrícolas, o dualismo era

menos visível, mas nem por isso

menos real, pelo menos na fase

inicial (Furtado, 1969, p. 62).

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não esclarece o que são essas atividades,porém, descarta a possibilidade de que oscapitais aplicados na mineração tenham setransferido em massa para outras regiõesem busca de melhores oportunidades. Te-ria prevalecido uma espécie de racionalida-de de jogos de azar: os mineradores reluta-vam em desmobilizar o capital e vender osescravos, graças à expectativa de um novogolpe de sorte na descoberta de lavras.Com isso, o capital desapareceu.

De todo modo, um novo surto decrescimento baseado na demanda externaviria a ocorrer apenas com a expansão dademanda externa pelo café, duas ou trêsgerações após o declínio da mineração. Te-ria havido um hiato no crescimento econô-mico e, como se sabe, o texto de Formação

Econômica do Brasil pouco discute o queocorreu na região das minas com a desarti-culação do mercado externo, tanto imedia-tamente (século XVIII) quanto após o sur-gimento do núcleo dinâmico do café. Abem da verdade, os modelos de explicaçãobaseados em ciclos comandados pela de-manda externa de produtos primários pou-ca atenção conferem ao que ocorre nas re-giões onde se deu o surto de crescimento,uma vez cessado o dinamismo. Feita a res-salva, deve-se admitir que a hipótese da“letargia secular” do açúcar tem peso econsistência – chega a ser um clássico de

Furtado. Em contraste, as lacunas de suavisão da economia mineira após o esgota-mento das minas são gritantes.

O que interessa ao presente traba-lho, no entanto, não é a acuidade históricadas conclusões de Formação Econômica do

Brasil a respeito da economia de Minas Ge-rais após a decadência das minas. O rele-vante para o entendimento do método teó-rico-histórico de Furtado é o exame dascaracterísticas básicas do modelo de mine-ração colonial português, e o estabeleci-mento de contrastes e/ou semelhanças comseus congêneres hispânicos, com o modelode plantation açucareira e com o modelo deeconomia mineral do século XIX. Comovimos, a economia do ouro envolveu:

a. diversificação social (coexistência detrabalho livre e escravo) e descon-centração da renda, em relaçãoao modelo clássico de plantation;

b. ativação de núcleos fornecedores(a empresa mineradora não é auto-suficiente);

c. monetização da economia;

d. formação de uma economia urba-na e, portanto, a admissão de queexistia uma razoável diferencia-ção de ocupações.

Em suma, apesar de apoiada na mão-de-obra escrava, a economia do ouro em tu-

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do diferiu da economia de plantation. Di-feriu também da atividade mineradoramoderna porque esta, embora apoiada notrabalho livre, baseava-se em tecnologiaspoupadoras de mão-de-obra e, portanto,exacerbadoras do dualismo. A economiamineral do século XIX não se integrou aostecidos nacionais.

Ficam aqui diversas questões. Porque razão as atividades despertadas pelaeconomia do ouro, a despeito da diversifi-cação, foram incapazes de manter-se de péapós a exaustão das minas? O que explica oretorno às atividades de subsistência, ou aretração absoluta das trocas monetárias?Na verdade, as respostas dadas por Furta-do são apenas aquelas que não colidemcom seu modelo histórico de desenvolvi-mento econômico, cujos traços básicos sãocomentados a seguir.

4_ Os traços básicosdo modelo de Furtado

Para entendermos a rationale do modelode economia colonial de Minas Gerais,bem como a do retorno da região à situa-ção de subsistência, supostamente ocor-rido no século XIX, é conveniente expli-citarmos certas características do métodode reconstrução racional da história, ex-tensamente praticado em Formação Econô-

mica do Brasil e em outras obras. Acredi-tamos que há quatro tópicos que, sem es-gotarem o universo dos elementos deanálise econômica aplicada à história, tí-picos da visão de Furtado, permitem oentendimento das restrições de seus mo-delos de racionalização histórica, em par-ticular o do ciclo do ouro (auge e períodosubseqüente). Os tópicos são:

i. transações monetárias e pagamen-to de fatores;

ii. significados de produtividade;iii. preços relativos;iv. economia de subsistência.

4.1_ Transações monetáriase pagamento de fatores

Na visão de Furtado, ocorre uma verda-deira revolução na economia quando astransações efetuam-se com moeda e, es-pecialmente, quando há contratação/pa-gamento de fatores na forma monetária.A disseminação do pagamento de fato-res, que teve seu ponto culminante no as-salariamento, foi um fenômeno iniciadono auge do período de domínio do capi-tal mercantil na Europa, quando os co-merciantes passam a contratar a produ-ção junto aos produtores artesanais (verFurtado, 1954). A contratação e a subor-dinação dos produtores passaram a exigira pronta liquidação dos negócios para o

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ressarcimento dos trabalhadores e dosfornecedores de matérias-primas. A ur-gência é acrescida ainda pela expansãodas cadeias de crédito, uma vez que oscredores impõem retornos em prazos de-terminados. De acordo com Furtado, es-se episódio de contratação de fatores eexpansão do crédito tem como conse-qüência a transição do “lucro comercial”para o “lucro industrial”. Enquanto o lu-cro comercial admite o entesouramentodos ganhos, o lucro industrial exige pron-ta liquidação e pagamentos de credores,fornecedores e subordinados, sob riscode rompimento das cadeias de produçãoe comércio e/ou de perda de mercado.Na visão de Furtado, é a urgência em li-quidar as operações o que aguça a con-corrência e força a reorganização da pro-dução e a inovação, visando redução decustos, penetração em mercados, etc. Emsuma, a contratação da produção, o pa-gamento de fatores e a decorrente neces-sidade de liquidação dão início a umaconcorrência irrefreável e à remodelaçãoda produção manufatureira.

Por outro lado, são os pagamentosem forma monetária que ativam o meca-nismo multiplicador. Atua aqui o conheci-do multiplicador keynesiano de gastos, oqual, para Furtado, só se aplica a economi-as plenamente monetizadas e, com especial

ênfase, submetidas ao regime de assalaria-mento. Desse modo, entende-se o carátertruncado do fluxo circular de renda na es-cravidão moderna ou colonial. A plantation

açucareira nordestina apresenta o fluxo derenda mais restrito, porque nela, segundoFurtado, praticamente não há pagamentosem dinheiro no interior do território. Osescravos produzem os próprios alimentos,as transações são residuais (lenha e gado), eo contingente de funcionários assalariadose/ou de artesãos contratados é exíguo. Ospagamentos expressivos – compra de escra-vos, equipamentos, pagamento a credoresinternacionais, aquisição de bens de luxo –representam importações e/ou pagamen-to de fatores no exterior, e portanto “vaza-mentos” do fluxo circular de renda.

No outro extremo, o ciclo do caférepresentou verdadeira revolução econô-mica, porque nele ocorreu a combinaçãovirtuosa de fatores como a abundância deterras, a posição quase monopolista do Bra-sil no mercado internacional e, com especi-al ênfase, a transição ao regime de trabalholivre em virtude do término da escravidão.Para Furtado, o trabalho em regime de co-lonato do café do oeste paulista equivale aoassalariamento, mesmo que parte do paga-mento da mão-de-obra dê-se de forma nãoimediatamente monetária (cessão de terraspara o plantio de cereais, meação...), já que,

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ao final, os produtos dos colonos serãovendidos. Em uma ou outra modalidadede remuneração, haverá circulação de di-nheiro, contratação de serviços urbanos,compra de produtos. Enfim, a economiacafeeira é plenamente monetária, e boaparte dos pagamentos é feita no interior doPaís, o que leva ao pleno funcionamentodo multiplicador.

A economia mineira do ouro no sé-culo XVIII ocupa posição intermediária.O escravismo convive com o trabalho li-vre, a subsistência dos escravos é compra-da, as ocupações urbanas se diversificam, opagamento de transportes é relevante. Emsuma, pagamentos são feitos, e o dinheirocircula no interior do território, a despeitoda escravidão. A tal ponto a economia sediversifica que Furtado é levado a especu-lar sobre as razões de não se haver consti-tuído uma economia manufatureira maisestável, com condições de sobreviver ao de-clínio da mineração. Vimos anteriormenteque a resposta é bastante insatisfatória. Orelevante, no entanto, é assinalar a necessi-dade de tal especulação, no contexto domodelo teórico de Furtado: se houve dis-seminação dos pagamentos na forma mo-netária, por um período razoável, apenasrazões bem especiais poderiam impedir aformação de fluxos auto-sustentados deexpansão da renda.

4.2_ ProdutividadeFurtado adota um conceito amplo de pro-dutividade. Para ele, a produtividade naeconomia cresce tanto quando ocorreminovações (novas tecnologias, reorgani-zação do trabalho, processos produtivosmais eficientes), como quando sobe opreço do produto de exportação em rela-ção aos custos de produção e aos preçosdos produtos importados.7 Ademais, aprodutividade na economia como um to-do se eleva quando fatores ociosos pas-sam a ser utilizados e/ou a receber me-lhor utilização. É o caso de um surtoexportador agrícola apoiado em terra dis-ponível, mão-de-obra barata (provindado “setor de subsistência”), que requeirapouco capital; ou ainda da industrializa-ção em presença de excedentes de mão-de-obra.

De um ponto de vista esquemático,os ganhos de produtividade no períodoprimário-exportador advêm dos dois últi-mos fatores: elevação do preço do produtode exportação e incorporação de fatoresociosos. O progresso técnico representariauma característica quase exclusiva dos pro-cessos de industrialização. A visão de Fur-tado pode parecer esquemática, mas assimé, e a tal ponto que ele fechou os olhos àimensa maravilha tecnológica que foram osengenhos de açúcar8 e admitiu apenas pe-

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7 Neste caso, ganho nostermos de troca.8 A despeito de ter sido umleitor atento de Antonil.

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quenos avanços agronômicos no cultivode café dos séculos XIX e XX.

Nesse contexto, é natural que asquedas de preço dos produtos de exporta-ção e até mesmo a exaustão dos cultivos eminas sejam vistas como fatores de perdade produtividade da economia como umtodo. Esses movimentos implicaram retra-ção da renda per capita e retorno da popula-ção ocupada à “economia de subsistência”,ou seja, às atividades desenvolvidas a bai-xos níveis de produtividade.

Até o momento de implantação deuma dinâmica industrial, a economia ficapresa a este dilema: não existe um fator in-terno, auto-sustentado de crescimento daprodutividade.9 Quedas de preços, exaustãode ciclos produtivos em razão da concor-rência ou da superprodução, esgotamento deminas levam à perda de produtividade glo-bal. Simetricamente, a conexão com fontesde demanda dinâmicas do comércio inter-nacional – açúcar, café, tabaco, metais pre-ciosos, borracha – ocasiona um acréscimosúbito de produtividade, graças aos doiselementos mencionados: preços elevados eutilização mais intensa de fatores antes ocio-sos (terra, trabalho, natureza, capital).

4.3_ Preços relativosA ausência de considerações mais amplassobre preços relativos representa uma das

características mais notáveis dos modelosde Furtado. A rigor, Furtado preocupa-secom os preços dos produtos exportados e,no modelo de industrialização por subs-tituição de importações, com a relaçãoentre preços de exportação e de importa-ção (que repercute na taxa de câmbio).

Acreditamos que a ausência de tra-tamento dos preços relativos não represen-te grande problema para o modelo de eco-nomia escravista açucareira, desde que sepresuma a virtual auto-suficiência do enge-nho no que se refere a produtos de merca-do interno. Como a totalidade das transaçõescorrespondia ao mercado internacional, oacompanhamento das relações de troca en-tre o produto (açúcar) e o principal insumo(os escravos) seria plenamente suficiente.10

Convém lembrar que Furtado acautela-se,atribuindo às aquisições do engenho nomercado interno um significado residual;vale dizer, inexpressivo tanto para a firmacomo para a economia como um todo.

Já no caso da economia minerado-ra, a omissão tem maiores conseqüências.Por um lado, Furtado admite que as transa-ções monetárias são disseminadas. Por ou-tro, do relato dos historiadores sabemosque o ciclo do ouro provocou em encareci-mento de todos os gêneros e insumos, tan-to os de mercado interno quanto os im-portados (ver Hollanda, 1960a e 1960b;

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9 Pode-se dizer que oprogresso técnico na indústriae nos serviços industriaismodernos é induzido de fora,vale dizer, por inovaçõesformuladas em outros países etransplantadas para os paísesatrasados. De todo modo,a dinâmica inovadora dospaíses centrais sempre setransplanta, com adaptações,às economias industriaisretardatárias. O progressotécnico não se tornaendógeno, mas é inevitável.10 Pode-se até mesmo admitir,como Furtado faz, umacontabilidade virtual da firmapara efeito de apuração darentabilidade do capital,confrontando o preço dosescravos, sua depreciação ealocação nas diversasatividades necessárias àprodução, dado o preçodo açúcar.

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Zamella, 1990). Ora, o movimento de pre-ços relativos exerceu impacto não apenassobre a firma mineradora, senão sobre a lu-cratividade dos provedores e produtoresde insumos, meios de transporte, serviços.Em suma, o modelo de um único bem, oude uma única relação de troca relevante(produto exportado versus escravos), reve-la-se insuficiente para a economia do ouro.

Revela-se insuficiente, do mesmomodo, para a economia do café. Admita-seque, na análise do ciclo cafeeiro, há um ate-nuante: Furtado lança os olhos sobre a rela-ção de preços entre tradeables e non-tradeables,já que, ao menos no que se refere à economiacafeeira baseada no trabalho livre, os confli-tos entre exportadores, consumidores e pro-dutores vinculados ao mercado interno pas-sam a ser levados em consideração. Valelembrar que tais conflitos balizam a políticaeconômica e estão presentes na análise clás-sica de esgotamento do ciclo cafeeiro daFormação Econômica. A rigor, são decorrên-cias reconhecidas da política de valorizaçãodo café. Em poucas palavras, a admissãode um papel ativo para a política econômi-ca ao longo do ciclo cafeeiro, se não repre-senta um tratamento ampliado de preçosrelativos, ao menos indica alguma atençãoà relação de preços entre tradeables e non-tra-

deables.11 No modelo de economia do ouro, aomissão no tratamento dos preços relati-vos é absoluta e tem conseqüências.

4.4_ Economia de subsistência

Como vimos, a expressão “economia desubsistência” adquire significados diver-sos na obra de Furtado. Tanto abrange osentido literal de produção não-exceden-tária quanto diversas versões atenuadasde economia de baixa produtividade. Aatividade criatória do sertão nordestino,por exemplo, era considerada “de subsis-tência”, embora provesse gado para o li-toral. Mesmo após o início da industriali-zação, Furtado considera que boa parte daagricultura brasileira desenvolve-se em con-dições “de subsistência”, o que, no caso,claramente designa baixa produtividade.

A noção de economia de subsistên-cia exerce ainda papel adicional nos modelosde Furtado. Como se sabe, afora os proces-sos produtivos baseados na mão-de-obraescrava – o escravo é caro e, por definição,um bem escasso –, os demais processosprodutivos encaixam-se em variantes de ummodelo de oferta ilimitada de mão-de-obra.A industrialização brasileira foi um proces-so com oferta ilimitada de mão-de-obra; alavoura cafeeira assalariada, idem; as diver-sas atividades produtivas urbanas e rurais,do mesmo modo. Enfim, há na economiabrasileira um excedente populacional quedeprime os salários. Esse excedente popu-lacional, o qual em meados do século XXdeslocou-se em parte para as cidades, teve

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11 A clássica análise daindustrialização substitutivaleva adianta essetratamento, embora comsérias limitações na análise depreços relativos dos produtosde mercado interno.

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em épocas anteriores seu locus no meio ru-ral e na agricultura.

A população excedente no meio ru-ral formou-se nos tantos momentos de de-sagregação das atividades dinâmicas (açú-car, mineração) ou ainda pela incorporaçãode contingentes não suscetíveis à escravi-zação (descendentes de indígenas, brancospobres, escravos libertos e seus descenden-tes). A base da formação de bolsões de po-pulação excedente é a existência de terra li-vre, ou terra de ocupação acessível desdeque o ocupante aceite as diversas formasde subordinação aos proprietários. Pois bem,tal população forma a base da “economiade subsistência”; vale dizer, é uma força detrabalho que pode ser atraída a baixo preço,sempre que houver oportunidades.

O curioso é que Furtado engloba nas“atividades de subsistência”, nos momen-tos que antecedem o término da escravidão,até mesmo a população escrava. Não nosreferimos, naturalmente, ao contingente es-cravo ocupado em culturas dinâmicas eque dedica uma parte do tempo de traba-lho à produção da própria subsistência. Re-ferimo-nos aos escravos que ficam semi-ociosos quando a cultura dinâmica decai,os quais, no entendimento de Furtado, nãosendo transacionados, permanecem a pos-tos para eventuais retomadas da atividadeprincipal e/ou são alocados em atividades

de baixa produtividade (nos sentidos refe-ridos na seção 4.2). Seria o caso do litoralaçucareiro nordestino, a partir do final doséculo XVII, e, em condições diversas, deMinas Gerais, após a exaustão das minas.

Imaginar que um cultivo pouco ren-tável, ou não rentável, possa manter umapopulação ainda escravizada, requer um pou-co de imaginação, dado o valor do escravo.Pensamos, mais uma vez, que a explicaçãode Furtado para a “letargia secular” do Nor-deste açucareiro é satisfatória. O entendi-mento de que o engenho tradicional é umaunidade econômico-social capaz de resistiràs intempéries, mantendo inclusive a escra-vidão, parece apoiada tanto em relatos his-tóricos quanto nos estudos que tratam daformação da estrutura social nordestina.

Imaginar que os escravos tornadosociosos pela exaustão das minas pudessemrefluir às “atividades de subsistência”, con-servando-se o vínculo da escravidão, é maisdifícil. Naturalmente, o razoável seria ad-mitir que outras atividades rentáveis, com-patíveis com o trabalho escravo, vieram ase desenvolver ou até mesmo já existiam naregião. Essa admissão, no entanto, indicauma capacidade de adaptação da economiaao término de um surto exportador quecolide com o núcleo explicativo de Furta-do. No sistema de Furtado, o dinamismosó pode provir de surtos primário-exporta-

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dores, do aproveitamento de novas opor-tunidades apresentadas pelo comércio in-ternacional de modo geral ou, finalmente,da superação da exportação de produtosprimários como fator dinâmico, apenas pro-porcionada pela industrialização.

Ainda assim, cabe notar que a pró-pria industrialização substitutiva é concebidatendo em vista a existência de bolsões deforça de trabalho ocupada a baixos níveis deprodutividade; vale dizer, dos resíduos de to-dos os surtos expansivos anteriores. Admi-tir que esses resíduos tenham em algummomento mantido a relação de escravidãorequer explicações suplementares. Requertambém uma análise de dinâmicas setoriais,de preços relativos, de rentabilidade, de me-canismos de formação de poupança, quepenetrariam fundo na economia da escra-vidão no Brasil, mas em muito ultrapassa-riam o arcabouço dos modelos de raciona-lização histórica de Furtado.

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Referências bibliográficas

E-mail de contato do autor:

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Artigo recebido em fevereiro de 2008;aprovado em maio de 2008.