eco, umberto. o texto estético como exemplo de invenção

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3.7. O TEXTO EST~~TICO COMO EXEMPLO DE INVENÇÃO 3.7.1. Relevo semiótico do texto estético O uso estético da linguagem merece atènção por várias razões: (i) um texto estético implica um trabalho particular, qual seja, uma manipulação da expressão (cf. 3.7.2) ; (ii) essa manipulação provoca (e é provocada por) um reajustamento do conteúdo (cf. 3.7.3); (iii) esta dupla operação, produzindo um gênero de função sígnica alta- mente idiossincrática e original (cf. 3.7.4), vem refletir-se, de certa forma, nos códigos que servem de base à operação estética, provo- cando um processo de mutação de código (cf. 3.7.5); (iv) a operação completa, mesmo quando visa à natureza dos códigos, produz com freqüência um novo tipo de visão do mundo (cf. 3.7.6); (v) enquanto visa a estimular um complexo trabalho interpretativo no destinatário, o emitente de um texto estético focaliza sua atenção nas suas possí- veis relações, de modo que tal texto representa um retículo de atos locutivos, ou comunicativos, que objetivarn solicitar respostas ori- ginais (cf. 3.7.7). Em todos estes sentidos, o texto estético representa um modelo de laboratório' de todos os aspectos da função sígnica; nele se mani- festam os vários modos de produção e, ainda mais, diversos tipos de juízo, colocando-se em definitivo como asserto metassemiótico sobre a natureza futura dos códigos em que se baseia. Assim, a tabela da Fig. 31 poderia ser relida como uma repre- sentação esquematizada do que acontece quando um texto estético é produzido e interpretado. É neste sentido que a experiência estética toca de perto o semió- logo; mas há ainda outra razão pela qual uma atenção semiótica à experiência estética pode corroborar ou corrigir muitas das posições da estética filosófica tradicional. Antes de tudo, aquela proposição de 'inefabilidade', que por tanto tempo guiou a definição da obra de arte e da emoção específica que se lhe segue, pressuposição que reduziu muitas definiç&s de estética a uma simples soma de truísmos do tipo "a arte é a arte", "a arte é aquilo que provoca emoção estética", "a arte é aquilo que realiza um valor estético", "a arte é poesia", "a poesia é intuição lírica", e assim por diantes4.

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Page 1: ECO, Umberto. O texto estético como exemplo de invenção

3.7. O TEXTO EST~~TICO COMO EXEMPLO DE INVENÇÃO

3.7.1. Relevo semiótico do texto estético

O uso estético da linguagem merece atènção por várias razões: (i) um texto estético implica um trabalho particular, qual seja, uma manipulação da expressão (c f. 3.7.2) ; (ii) essa manipulação provoca (e é provocada por) um reajustamento do conteúdo (cf. 3.7.3); (iii) esta dupla operação, produzindo um gênero de função sígnica alta- mente idiossincrática e original (cf. 3.7.4), vem refletir-se, de certa forma, nos códigos que servem de base à operação estética, provo- cando um processo de mutação de código (cf. 3.7.5); (iv) a operação completa, mesmo quando visa à natureza dos códigos, produz com freqüência um novo tipo de visão do mundo (cf. 3.7.6); (v) enquanto visa a estimular um complexo trabalho interpretativo no destinatário, o emitente de um texto estético focaliza sua atenção nas suas possí- veis relações, de modo que tal texto representa um retículo de atos locutivos, ou comunicativos, que objetivarn solicitar respostas ori- ginais (cf. 3.7.7).

Em todos estes sentidos, o texto estético representa um modelo de laboratório' de todos os aspectos da função sígnica; nele se mani- festam os vários modos de produção e, ainda mais, diversos tipos de juízo, colocando-se em definitivo como asserto metassemiótico sobre a natureza futura dos códigos em que se baseia.

Assim, a tabela da Fig. 31 poderia ser relida como uma repre- sentação esquematizada do que acontece quando um texto estético é produzido e interpretado.

É neste sentido que a experiência estética toca de perto o semió- logo; mas há ainda outra razão pela qual uma atenção semiótica à experiência estética pode corroborar ou corrigir muitas das posições da estética filosófica tradicional. Antes de tudo, aquela proposição de 'inefabilidade', que por tanto tempo guiou a definição da obra de arte e da emoção específica que se lhe segue, pressuposição que reduziu muitas definiç&s de estética a uma simples soma de truísmos do tipo "a arte é a arte", "a arte é aquilo que provoca emoção estética", "a arte é aquilo que realiza um valor estético", "a arte é poesia", "a poesia é intuição lírica", e assim por diantes4.

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TEORIA DA PRODUÇÃO SÍGNICA

3.7.2. A m biguidade e au to-reflexividade

A definição operativa mais útil já formulada do texto estético é a fornecida por Jakobson quando, com base na bem conhecida sub- divisão das funções lingüística^^^, definiu a mensagem com função poética como AMBÍGUA e AUTO-REFLEXIVA.

Do ponto de vista semiótico, a ambiguidade é definível como violação das regras do código. Existem, neste sentido, mensagens totalmente ambíguas (como Iwxdsrtb mul), que violam tanto as regras fonológicas quanto as lexicais; -mensagens ambíguas do ponto de vista sintático (IJoão é quandol) e mensagens ambíguas do ponto de vista semântico (1 o quebra-nozes se pôs a dançar I), mas é óbvio que nem todos os tipos de ambigüidade produzem efeito estético, e que existem numerosos estados intermediários (por exemplo, as palavras I baleneone 1 e I lontanlantema 1, usadas na primeira tradução italiana da Anna Livia Plurabelle de Joyce) que são, por certo, lexi- calmente 'ambíguos', mas muito menos que I wxdsrtb mu 1.

Existe outra forma de ambiguidade, desta vez de tipo estilís- tico. Coseriu (1952), distinguindo entre SISTEMA e NORMA, sugere que uma língua pode permitir diversas execuções, todas igualmente gramaticais, só que algumas têm aparência 'normal' e outras cono- tarn excentricidade estilística (literariedade, vulgaridade, esnobismo, etc.). O latim permite tanto IPetrus amat Paulum ( como IPetrus Paulum amat 1 e IPaulum Petrus amatl, mas a terceira expressão parece menos 'normal' que as duas primeiras e favorece uma conotação de exces- siva elegância. As normas dependem naturalmente de SUBCÓDIGOS ESTILÍSTICOS que atribuem conotações singulares a blocos sintá- ticos (frases feitas) e representam um caso típico de HIPERCODIFI- CAÇÃO (cf. 2.14.3). Assim, quando ouço IPaulurn Petrus amatl, estou menos interessado na relação afetiva entre estas duas pessoas do que nos matizes 'poéticos' (ou mesmo Kitsch) que a mensagem sugere.

Sabe-se que o enfoque estilístico da crítica literária (Spitzer, 1931j fala exatamente do fenômeno estético como DESVIO DA

54. A estética da intuição alcança seu ponto máximo na doutrina cro- cima da cosmicidade da arte: "Toda representação artística sincera é em si mesma o universo, o universo naquela forma individual, aquela forma individual como o universo. Em todo acento de poeta, em toda criatura da sua fantasia, está t o d o o humano destino, todas as esperanças, todas as ilusões, dores, de- grias, grandezas e misérias humanas; o drama inteiro do real, que se transforma e cresce perenemente sobre si mesmo, sofrendo e gozando" (Breviano de este- tica, Bari, Laterza, 1913, 9a ed., 1947, pp. 134-135). Semelhante definição parece o que de mais distante existe do presente enfoque semiótico; todavia,

%flete. uma sensação que não poucos experimentaram diante de obras de arte. O escopo da presente seção é definir em termos de categorias semióticas .as razões dessa sensação.

55. As funções são: referencial, emotiva, imperativa, fática ou de con- tato, metalingüística, poética. No presente contexto, que abrange também obras estéticas não-lingiiísticas, preferimos traduzir Ipoé tica 1 com lesté tica 1. Vale a pena lembrar que Jakobson não diz que numa mensagem se manifesta uma só destas funções, mas que mais ou menos todas estão presentes a um tempo, só que apenas uma delas prevalece sobre as demais.

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NORMA. O que não parece de todo satisfatório porque existem des- vios nãeestéticos: IArnat Paulum Petrus 1 é semanticamente com- preensível e estilisticamente desviante, mas não provoca qualquer satisfação particular. Além disso, ainda não se disse se o desvio esté- tico deve exercer-se nos confrontos das normas do uso cotidiano ou do sistema de desvios já codificados que são as normas estilísticas. Com efeito, pode haver desvios de ambos os tipos.

Por outro lado, a arnbiguidade é artifício muito importante, porque funciona como vestíbulo à experiência estética: quando, em vez de produzir mera desordem, ela atrai a atenção do destinatário e o põe eIg situação de 'orgasmo interpretativo', o destinatário é estimulado a interrogar as flexibilidades e as potencialidades do texto que interpreta como as do código a que faz referência.

Como primeiro enfoque, poder-se-ia dizer que se tem ambigui- dade estética quando c um desvio no plano da expressão corresponde uma alteração qualquer no plano do conteúdo. As frases latinas 'des- viantes' acima mencionadas não atingem inteiramente o conteudo que veiculam. Uma frase desviante como. Ias idéias verdes sem cor dormem Euriosarnentel já está mais próxima do efeito estético, por- que obriga o destinatário a reconsiderar toda a organização do con- teúdoS6. Uma violação da norma que jogue tanto com a expressão como com o conteúdo obriga a considerar a regra de sua correlação; desse modo o texto se toma auto-reflexivo porque atrai a atenção sobretudo pela sua organização semióticaS7.

56. O que ficou dito remete-nos a uma característica da comunicação estética teorizada pelos formalistas russos: o efeito de estranhamento, que desautomatiza a linguagem. Um artista, para descrever-nos algo que porven- tura sempre vimos e conhecemos, emprega as palavras de maneira diferente, e nossa primeira reação se traduz num sentido de desorientação, quase numa incapacidade de reconhecer o objeto (efeito devido à organização ambígua da mensagem em relação ao código) que nos leva a olhar de forma diversa a coisa representada, mas ao mesmo tempo, como é natural, também os meios de repre- sentação, e o código a que se referem. A arte aumenta "a dificuldade e a dura- ção da percepção", descreve o objeto "como se o visse pela primeira vez" e "o fim da imagem não é tornar mais próxima da nossa compreensão a signi- ficação que veicula, mas criar uma percepção particular do objeto"; isto explica o uso poético dos arcaísmos, a dificuldade e a obscuridade das criações artís- ticas que apresentam pela primeira vez, a um público ainda não adestrado, as próprias violações rítmicas que a arte põe em ação no momento mesmo em que parece eleger suas regras áureas: "Em arte há 'ordem'; no entanto, não há uma Única coluna do templo grego que a siga exatamente, e o ritmo estético con- siste num ritmo prosaico violado. . . trata-se, não de um ritmo complexo, mas de uma violação do ritmo, e de uma violação tal que não se pode prevê-la; se essa violaçãoy se toma cânone, perde a força que tinha como procedimento- -obstáculo" (Sklovskij, 19 17).

57. Tornou-se célebre o exame que Jakobson dedica a um slogm polí- tico como II like ike 1, onde nota que "em sua estrutura sucinta, é constituído de três monossílabos e contém três ditongos lay I, cada um dos quais é seguido simetricamente por um fonema consonântico, 1. . . l . . . k . . . kl. A disposição das três palavras apresenta uma vaxiação: nenhum fonema consonântico na pri- meira palavra, duas em tomo do ditongo na segunda e uma consoante final na terceira. . . As duas cola da forma trissilábila I like I Ike rimam entre si, e a segunda das duas palavras rimadas está totalmente inclusa na primeira (rima em eco): Ilaykl - laykl; imagem paronomástica de um sentimento que envolve total- mente o seu objeto. As duas cola formam uma aliteração, e a primeira das duas

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TEORIA DA PRODUÇÃO S~GNICA

3.7.3. A manipulação do continuum

Ambigüidade e auto-reflexividade não se concentram só nos dois planos da expressão e do conteúdo. O trabalho estético é exer- cido também sobre os NIVEIS INFERIORES do plano expressivo. Numa poesia, o trabalho estético se desenvolve também sobre os valores meramente fonéticos que a comunicação comum aceita por pré-definidos; numa obra de arquitetura (em pedra ou em tijolos), não são só as formas geometricas que estão em jogo, mas também a consistência, a textura do material empregado; uma reprodução a cores de um quadro de Magnasco, por mais perfeita que seja, não dá conta do papel fundamental que nesta pintura desempenham grumos e filtrações de cor, o traço em relevo deixado por uma pincelada gor- durosa e pastosa, onde a luz externa desempenha diversos papéis nas diversas situações e nas diversas horas do dia. A presença de um dado material interage com o tempo real que se emprega em inspe- cionar o objeto (pelo menos em obras de consistência tridirnensional). Em outras palavras, em qualquer tipo de obra de arte, até mesmo um romance em que o ritmo narrativo impõe ou sugere pausas ou golpes de vista (uma página feita de breves diálogos é lida numa velocidade diversa de uma página feita de descrições), jogam diversos tipos de MICROESTRUTURAS~~, os quais o código, em seu trabalho de segmentação e pertinentização, não havia levado em conta, relegan- deos às variantes facultativas e às propriedades físicas individuais das ocorrências concretas de tipos abstratos.

Ora, a análise das microestmturas, conduzida por vários tipos de estética experimental e matemática, deve sugerir um movimento teórico ulterior à indagação semiótica. Ou seja, no texto estético se prossegue o processo de PERTINENTIZAÇÃO DO CONTINUUM expressivo, chegandese a uma forma da expressão mais 'profunda'.

palavras aliterantes está incluída na segunda: 1 ay I - 1 ayk 1, imagem paronomástica do sujeito amante envolvido no objeto amado. A função poética secundária dessa fórmula eleitoral reforça sua expressividade e eficácia" (Jakobson, 1960).

58. Numa mensagem estética, podemos individuar os seguintes níveis de informação: (a) nível dos suportes físicos: na linguagem verbal, são os tons, as inflexões, as emissões fonéticas; nas linguagens visuais, são as cores, os fenô- menos materiais; na musical, são os timbres, as freqüências, as durações tem- porais; etc.; (b) nível dos elementos diferenciais no plano da expressão: fone- mas; igualdades e desigualdades; ritmos; comprimentos métricos; relações de posição; formas acessíveis em linguagem topológica; etc.; (c) nível das relaçõks sintagmáticas: gramáticas; relações de proporção; perspectivas; escalas e inter- valos musicais; etc.; (d) nível dos significados denotados (códigos e léxicos específicos); (e) nível dos significados conotados: sistemas retóricos, léxicos, estilísticos; repertórios iconográfícos; grandes blocos sintagmáticos; etc.; (0 sin- tagmas hipercodificados: sistemas; figuras de retórica; iconogramas; etc.

Bense (1965), porém, fala de uma "informação estética" global, que não atua em nenhum destes níveis em particular, mas ao nível daquilo a que ele chama "cclrealidade", que todos os níveis correlatos denotam. Em Bense, esta "cclrealidade" aparece como a situação contextual geral de improbabilidade que a obra exibe, quanto aos códigos subjacentes e à situação de equiprobabi- iidade a que estes se sobrepuseram; mas por vezes o termo, em virtude da matriz hegeiiana de seu autor, se impregna de conotações idealísticas. Então a "co-rea- lidade" parece denotar uma "essência" qualquer - e outra coisa não seria senão a Beleza - que se realiza na mensagem mas não é determinável com instru-

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A teoria dos códigos delineada no capítulo 2 apresentou o nível da expressão como a organização formal de um continuum material: essa organização dá vida a unidades-tipo que são correlacionadas a unidades de conteúdo. Essas unidades-tipo geram suas ocorrências concretas, mas destas não se considerou explicitamente a natureza de sinal físico, d a n d ~ s e maior atenção a suas qualidades combina- tórias, isto é, às chamadas marcas sintáticas. Ficou dito que as quali- dades físicas do sinal e suas possibilidades de produção e transmis- são eram matéria para uma engenharia da comunicação. Chamamos a este aspecto físico do sinal MATÉRIA DO SIGNIFICANTE.

Ora, no gozo estético, tal matéria se reveste de uma função nada despicienda, e isto não ocorre para lá das propriedades semió- ticas do texto estético, mas exatamente porque a matéria foi tornada SEMIOTICAMENTE RELEVANTE.

A matéria do sinal torna-se, no texto estético, um campo de ULTERIOR SEGMENTAÇÃO.

No trabalho estético não existem variantes facultativas: toda diferença assume valor 'formal' (onde o termo Iforma. 1 é enten- dido no sentido técnico proposto pela teoria dos códigos). Significa isto que também os traços individuais das ocorrências concretas que o discurso semiótico normal não leva em consideração assumem impor- tância semiótica: a matéria da substância significante torna-se um aspecto da forma da expressão.

Uma bandeira vermelha num comício político pode ser feita de diversos materiais, e seu significado 'político' não muda; tampouco são particularmente importantes as gradações de vermelho que pigmentam o pano. Mas uma ban- deira vermelha inserida num quadro que representa um comício político assume um d e v o textual diferente (ou seja, muda os significantes globais do quadro) também por força de suas qualidades cromáticas. Para produzir uma cruz, basta cruzar dois bastões, mas para produzir uma cruz de relicário bárbaro é neces- sário ouro e pedras preciosas, e qualquer gema contribui para o significado global do objeto em função do seu peso, do seu formato, da sua transparência e pureza, e assim por diante. O modo como o ouro e as gemas são manipulados conta. A matéria se carrega de conotações culturais mesmo antes de o artesão começar a trabalhar a cruz, e faz diferença que ele escolha o bronze em vez do ouro. Mas, uma vez escolhidos, mais tarde será importante a maneira como a 'granu- lação' material do metal é tratada, evidenciada ou escondida.

Há, logicarnente, um limite empírico aquCm do qual as reações que uma dada galáxia expressiva suscita no destinatário já não são corroboráveis: aquém de tal limite existe ainda estímulo, mas não mais significação. Tanto que essa presença 'opaca' dos materiais, fugindo a qualquer análise semiótica, permitiu falar de uma não-signicidade da obra de arte, ou, mais precisamente, da sua 'presença' ou "astanza" (Brandi, 1968), enquanto outros foram obrigados a distinguir entre informação semântica e "informação estética" (Moles; 1 958)59.

mentos conceituais. Essa possibilidade deve ser eliminada, numa perspectiva semiológica coerente, através da postulação daquilo a que chamaremos o idio- leto estético.

5 9. Verificam-se aqui, porém, casos frequentes de estimulações progra- madas. O autor não sabe exatamente o que produzem certas galáxias microestru- turais. mas pode prevê-lo, e por isso trabalha como se existisse uma correlação sígnica.

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Toma-se claro, contudo, que se estas microestruturas escapam à análise, é-se autorizado a falar do 'não-sei-quê' estético que reporta a definição da arte às tautologias mencionadas em 3.7.1.

Felizmente, como dizíamos, muitas disciplinas mais ou menos explicitamente impostadas semioticamente previram métodos de medida para essas microestruturas, pela fórmula de Birkhoff para medir a relação entre ordem e complexidade às indagações micro- estruturais de Bense; os cérebros eletrônicos capazes de analisar uma imagem mostraram a que níveis de precisão se pode chegar quando se transforma em algoritmos as relações microestruturais; os osciladores eletrônicos analisaram, produziram e reproduziram cientificamente diversos sons (muitas vezes desconhecidos do ouvido humano), b asean- do-se em fórmulas que levavam em conta componentes espectrais. Matizes tonais, intensidade de cores, consistência e rarefação dos materiais, sensações táteis, associações sinestésicas, todos os traços ditos 'suprassegmentais' e 'musicais' que atuam também na expres- são linguística, a série inteira dos níveis inferiores da comunicação, todos são hoje objeto de pesquisa e definiçiio. Alhures, já Hjelmslev havia advertido que seria perigoso distinguir muito dogmaticamente elementos gramaticais e elementos extragramaticais, assim como hoje se dissolve a barreira entre uso intelectivo ou referencial e uso emo- tivo da linguagem. Traços fonológicos outrora descritos como 'enfá- ticos' ou 'expressivos' (c f. Trubeckoij, 1939, IV.4) foram posterior- mente organizados em sistemas de oposições descritíveis.

3.7.4. A hipercodificação estética: a expressaõ

Não é por acaso que, partindo do problema da consistência material do sinal do texto estético, estamos aos poucos chegando a falar de disciplinas que não estudam diretamente fenômenos esté- ticos e que já encontramos como ramos da teoria dos códigos.

A razão disso C que existe uma conexão muito estreita entre a ulterior diferenciação da ocorrência concreta de um dado signifi- cante estético e a ulterior segmentação do plano inteiro da expressão de um sistema semiótico.

Em outras palavras, a experiência estética, revelando que na matéria que põe em jogo existe um espaço em que individuar subfor- mas e subsistemas, sugere que os códigos de que parte poderiam ser submetidos a segmen tação sucessiva.

A pertinentização da matéria da ocorrência significante exige a pertinentização de todos os aspectos do continuum expressivo que até agora foram considerados 'material hipossemiótico'.

Assim, a experiência estética se bate, por assim dizer, pelos direitos civis de um continuum segregado, e a obra de arte logra aquela promoção da matéria inerte que o deus de Plotino, com todo o seu poder emanativo, nunca conseguira redirnir.

Após haver experimentado uma nova pertinentização da matéria obtida do significante estético, deve-se reconsiderar o sistema expres- sivo inteiro, para ver se ele pode ser submetido, na sua globalidade, a uma posterior mise en forme.

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Por conseguinte, o diagrama à Hjelmslev delineado em 2.2.3 deverá ser reescrito como segue:

Figura 46

Afirmara Hjelmslev que a matéria permanece, a cada vez, como substância para uma nova forma, precisando apenas que esta poste- rior segmentação deveria ser a tarefa de uma disciplina não-linguís- tica (como, por exemplo, a física). Vemos agora que esta segmentação posterior é ainda de pertinência semiótica.

A proporção que a semiótica se desenvolve, o continuum toma-se cada vez mais segmentado e a experiência estética proporciona uma oportunidade particularmente preciosa para este processo de 'com- preensão' da organização micromaterial.

O primeiro resultado dessa operação é uma subsequente cultu- ralização da matéria e, portanto, uma subsequente convencionalização dos processos de produção sígnica; desse modo, chega-se a uma ope- ração de hipercodificações sucessivas,

Uma das conseqüências imediatas para a estética e a crítica artística é que muitos fenômenos descem do grau dos fenômenos 'criativos' e de 'inspiração' para serem restituídos à convenção social.

Mas um estudo do gênero torna-se importante mesmo para o processo inverso, pois que só na medida em que os fenômenos de con- venção são reconhecidos como tais é que será fácil individuar criati- vidade, inovação e invenção ali onde elas se verificam realmente?

conteúdo

expressão

60. Esse estudo dos procedimentos e das instituições, bem como dos descartes inventivas, constitui o que a escola de Praga denomina poética: "A tarefa fundamental da poética consiste em responder a esta pergunta: que é que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte?. . . A poética trata de proble- mas de estrutura verbal, exatamente como a análise da pintura se ocupa da estru- tura pictórica. . . Em suma, muitos traços da poética pertencem não apenas à ciência da linguagem, mas à teoria dos signos no seu conjunto, isto é, à semió- tica geral" (Roman Jakobson, "Lingüística e poética", em Saggi di linguistica generale, cit., pp. 181-182) .

continuum

unidade

sistema

sistema

unidade

continuum sistema

con tinuum sistema

continuum etc. I

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TEORIA DA PRODUÇÃO SÍGNICA

3.7.5. A hipercodificação estética: o conteúdo

Um aprofundamento da organização microestrutural do plano da expressão envolve inevitavelmente um aprofundamento da orga- nização do plano do conteúdo. De forma particular, é submetido a revisão cognoscitiva o continuum semântico. Ao olhar uma obra de arte, o destinatário é obrigado, na verdade, a questionar o texto sob o impulso de uma dupla impressão: enquanto percebe um SURPLUS DE EXPRESSÁO (que ainda não consegue analisar completamente), ele percebe vagamente também um SURPLUS DE CONTEÚDO. Este segundo sentimento parece nascer do impacto do surplus expressivo, mas surge também quando o surplus expressivo não atinge os níveis de consciência.

Em Eco (1968), propunha-se a análise de um conhecido verso de Gertrud Stein:

a rose is a rose is a rose is a rose

que à primeira vista nada mais oferece que um excesso de normalidade e redun- dância. Não só as regras do código lingiiístico são respeitadas, como na verdade são reiteradas, quase pelo temor de que a mensagem, em sua simplicidade tau- tológica, não esteja suficientemente clara.

Todavia, é exatamente esse excesso de redundância que se desvia da norma e induz à suspeita de que a mensagem seja muito mais ambígua do que parece. A sensação de que, a cada ocorrência, a palavra significa sempre uma outra.coisa, transforma a mensagem num texto: porque aqui se está desviando de vários subcódigos, do botânico ao simbólico-alegórico, oferecendo uma fór- mula que não corresponde a nenhuma das suas normas definidoras. O excesso de redundância, neste ponto, se instala mesmo ao nível de conteúdo, e os dois excessos conjugados produzem um incremento de informatividade: em cada caso a mensagem, apresentandese como semanticamente AMB~GUA, impõe uma atenção interpretativa que a toma AUTO-REFLEXIVA.

Daqui por diante, o orgasmo abdutivo do intérprete pode desencadear-se: apelos alegóricos e iconológicos se acumulam para simplificar-se na aparente opacidade do asserto, e toda a tradição poética é posta em questão.

O verso converte-se em obra aberta (cf. Eco, 1962). Ele comunica muito e muito pouco. Parece impermeável à abordagem

semiótica, e todavia gera os seus múltiplos sentidos exatamente com base no livre desencadear-se de mecanismos semióticos.

3.7.6. O idiole to estético

Por outro lado, a impressão de impermeabilidade é apenas um dos efeitos, e n%o um dos mecanismos internos do verso. Primeiro que tudo, o texto 6 aberto a PROVAS DE COMUTAÇÕES: basta mudar uma palavra para que todas as outras percam sua função con- textual, como se num tabuleiro de xadrez um peão fosse substituído por uma terceira torre. Mas, se há SOLIDARIEDADE CONTEXTUAL, deve haver REGRA SISTEMÁTICA.

Isto significa que o texto estético deve possuir, em modelo reduzido, as mesmas características de uma língua: deve haver no texto mesmo um sistema de mútuas relações, um desenho sem'iótico que paradoxalmente permite oferecer a impressão de a-semiose.

O texto estético é como uma partida esportiva jogada por mui- tas equipes ao mesmo tempo, cada uma das quais segue as regras de

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um esporte diferente. Pode então acontecer que quem joga o futebol passe a bola a quem joga bola-ao-cesto, e que ambos os jogadores executem os movimentos desviando-se das regras do seu jogo. O pro- blema está em saber se o modo pelo qual o futebolista se desvia das re- gras do futebol tem alguma relação com o modo pelo qual o jogador de basquetebol se desvia das regras do joga de bola-ao-cesto; e se a falta cometida pelo primeiro não sugere, além de implicar, a falta come- tida pelo segundo, colocando-o de alguma forma numa nova perspec- tiva estratégica, e ambos legitimando a ocorrência. Com efeito, o texto estético parece inter-relacionar mensagens diferentes de modo que: (i) muitas mensagens, em diferentes planos de conteúdo, são orga- nizadas ambiguamente; (ii) essas ambigüidades não se verificam por acaso, mas segundo um desígnio identificável; (iii) os artífices, tanto normais quanto desviantes, de uma mensagem exercem uma pressão contextual sobre os artífices das outras mensagens; (iv) o modo pelo qual as normas de um sistema são oferecidas por uma mensagem é o mesmo que aquele em que as normas de outros sistemas são ofere- cidas por outras mensagens. Tudo isso considerando que, pelo que ficou dito em 3.7.3 e 3.7.4, a noção de sistema refere-se também às microestruturas materiais.

Em cada nível e para cada mensagem, as soluções são efetua- das segundo um sistema homólogo, e cada desvio nasce de uma MA- TRIZ DESVIACIONAL.

Uma vez, pois, que se estabelece no texto um HIPERSISTEMA de homologias estruturais, como se em cada nível atuasse um mesmo modelo estrutural, o texto estético adquire o status de uma SUPER- FUNÇAO SÍGNICA que relaciona correlações.

Naturalmente, isto lhes permite em grau máximo a caracterís- tica da au to-re flexividade, já que essa reordenação estrutural consti- tui um e talvez o mais importante dos conteúdos que o texto veicula.

Por outro lado, a nova matriz desviacional assim instalada impõe MUTAÇÕES DE CÓDIGO mesmo fora do texto, quando menos porque evidencia a possibilidade da própria mutqão. como este 'novo código' potencial gerou um único texto e foi 'falado' por um único emitente, representando no contexto cultural uma sorte de enclave inovador, falou-se a propósito (Eco, 1968) de IDIOLETO ESTÉTICO para designar a regra que governa todos os desvios do texto, o dia- grama que as toma mutuamente funcionais.

Como um mesmo autor pode aplicar a mesma regra a muitas obras, vários idioletos estéticos produzem por abstração crítica ou por média estatística um IDIOLETO DE CORPUS (ou estilo pessoal). Já que um dado idioleto, se aceito por uma comunidade cultural, produz imitação, maneirismo, jogos de influências mais ou menos explícitas e conscientes, falar-se-á de IDIOLETO DE CORRENTE ou DE PER~ODO HISTÓRICO.

Enquanto age sobre a sociedade produzindo novas normas, o idioleto estético pode funcionar como JUIZO METASSEMIÓTICO que provoca MUTAÇÃO DE C Ó D I G O ~ ~ .

61. O idioleto estético não é um código que govema uma só mensagem, mas um Çódigo que govema um só texto, e portanto muitas mensagens perten-

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TEORIA DA PRODUÇÃO SÍGNICA

Os idioletos da obra, do corpus, da corrente ou do período formam uma hierarquia de competência sotopos tas e de execuções identificáveis em diver- sos níveis 'molares' (no sentido de que se pode ver como execução de uma competência não só a obra isolada, mas também o panorama inteiro da arte de um período, como quando se fala de uma civilização como execução complexa da competência 'barroca'). Ou seja, o idioleto estético produz 'encastoamentos' de regras de hipercodificação (um certo tipo de calembours já não é hoje consi- derado como desvio do inglês, mas como puro 'Finneganian' . . .).

A individuação crítica de um idioleto estético não é tão fácil como a sua postulação teórica; de fato, ela parece plenamente realizável, no estado atual das pesquisas de semiótica aplicada, quando nos encontramos diante de obras de arte altamente estandardizadas, em que a regra recorre em cada nível em termos extremamente simples e evidente&.

Mas, mesmo quando o crítico consegue isolar o idioleto no curso de um texto altamente complexo, seria ingênuo pensar que ele já possua a 'regra gerativa' da obra, ou a fórmula para produzir outra do mesmo gênero (ou, o que é ainda mais difícil, da mesma eficácia estética).

No máximo, quando fosse identificado com precisão algorítmica, o idie leto (e só para certos tipos de produção sígnica) poderia permitir a formação de um texto absolutamente idêntico ao seu modelo. Quanto, pois, aos idioletos de corpus ou de penodo, não se trata senão de esquemas muito gerais que devem ser incorporados em novas substâncias. A diferença entre tal esquema e uma obra concreta é a mesma que existe entre um código e suas possíveis mensa- gens; o idioleto de corpus é assim uma espécie de receita do tipo "para fazer uma obra definível como barroca é preciso recorrer aos seguintes artifícios. . .". Em suma, mesmo quando um idioleto de obra seja identificado no máximo grau, permanecem infinitos matizes, ao nível da pertinentização dos níveis inferiores do continuum expressivo, que nunca serão completamente resolvidos, porque muitas vezes nem o autor está consciente deles. Isto não significa que não são analisáveis, mas sim que sua análise é destinada a aprofundar-se de leitura em leitura, assumindo o processo interpretativo o aspecto de uma aproximação infinita.

Raros são os casos em que o conhecimento do idioleto permite cria- ções satisfatórias, e isto acontece quando o imitador percebe o idioleto enfati- zando-o, e produz um pastiche ou uma paródia. Não raro o bom pastiche (veja-se Proust) constitui uma página de ótima crítica estilística, porque evidencia os pontos nodais ou caricaturiza os pontos periféricos de um texto, ajudando a perceber-lhe os artifícios reguladores.

O mais das vezes a interpretação do texto estético é uma contínua 'pr* cura do idioleto perdido', em que se acumulam abduções, confrontos, com- lações arriscadas e rejeitadas, juízos de pertinência e estranheza. . . Este pro-

centes a sistemas diversos. Por conseguinte, a obra de arte é, segundo a defi- nição dos formalistas russos e das correntes derivadas, um SISTEMA DE SIS- TEMAS (cf. Jakobson & Tynianov, 1927; Wellek & Warren, 1942).

62. Em meu ensaio "La critica semiologica", in Maria Corti & Cesare Segre (organizadores), I metodi attuali della critica in Italia, Turim, E.R.I., 1970, propôs-se polemicamente que de crítica semiológica se pode falar só para as obras de alto índice de estandardização. Isto, naturalmente, em contraste com as muitas provas dadas por vários semiólogos, que afrontaram com inegável sucesso textos bastante complexos e de alto valor artístico. Contudo, naquela oportunidade não se pensava apenas na aplicação de métodos semióticos à crí- tica de arte, mas à indagação semiótica propriamente dita sobre a estrutura interna de um idioleto estético. Objetivo que nos parece antes um temzinus ad quem de toda indagação e crítica semiológica, e não uma realidade inteira- mente adquirível. Talvez porque individuar totalmente um idioleto estético (ainda que o idioleto deva ser postulado para compreender o fato de que a obra funciona) é como individuar e descrever o Campo Semântico Global: uma em- presa que, se fosse bem sucedida, bloquearia a própria vida da semiose. Portanto, a semiótica pode postular idéias reguladoras sem pretender que a elas corres- pondam descrições definitivamente satisfatórias.

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232 TRATADO GERAL DE SEMIOTICA

cesso conduz a três dos resultados mencionados em 3.7.1: os códigos existentes são submetidos a revisão, a relação entre sistema do conteúdo e estados do mundo é posta em causa, um novo tipo de interação conversacional se estabelece entre emitente e destinatário.

3.7.7. Experiência estética e mudança de código

Peirce só logrou identificar um dos momentos da tensão abdu- tiva com a interpretação de um trecho musical (como se viu em 2.14.12). E esta constante tens30 abdutiva requerida pelo texto esté- tico é a que mais pode ser confundida com um sentimento impre- ciso, a que os estudiosos de estética deram as mais variadas denomi- nações (prazer, gozo, 'fulfilmen t', sentimento da cosmicidade, intui- ção do inefável, plenitude, etc.), sempre, porém, definindo-o como forma de 'intuição'. Observa-se, contudo, uma preguiça filosófica no etiquetar como "intuição" tudo o que requer uma análise dema- siado aprofundada para ser descrito com suficiente aproximação. Imagina-se, assim, estar em comCrcio com o Todo quando simples- mente se está diante de uma complexidade estrutural que resiste, certo, a análise, mas não se lhe escapa. Pudesse o idioleto ser expli- citado metalingüisticamente, sem resíduos, e a interpretação do texto estético não seria mais que uma. operação de correta decodificação. Mas, numa estrutura multinivelar pelas conexões labirínticas, as dene tações se transformam em conotações e cada elemento não se detém para seu interpretante imediato, mas dá inicio a uma 'fuga semió- sica' (a força organizadora do texto deve, pois, introduzir 'barras de grafite' para disciplinar a reação em cadeia, igualmente incon- trolável, que se verifica nesse 'reator nuclear semiótico' ). A tensão abdutiva move-se a partir do interior dessa fuga semiósica, mas exata- mente para encontrar o idioleto que a disciplina.

Nesse processo o texto estético, mais que suscitar apenas 'intui- ções', proporciona um INCREMENTO DE CONHECIMENTO CON- CEITUAL.

Ao obrigar a reconsiderar os códigos e suas possibilidades, ele impõe uma reconsideração da linguagem inteira em que se baseia. Mantém a semiose 'em alheamento'. Assim fazendo, desafia a orga- nização do conteúdo existente e, portanto, contribui para mudar o modo pelo qual uma cultura %ê' o mundo.

Por conseguinte, é precisamente o tipo de texto de que tantas vezes se falou que exige a "suspensão da incredulidade", que esti- mula a suspeita de que a organização do mundo a que estamos habi- tuados não é definitiva.

O que não equivale a dizer que a obra de arte 'diga a Verdade'. O que ela faz é simplesmente pôr em questão as verdades adquiridas, convidando a uma nova análise dos conteúdos.

Se, pois, os textos estéticos podem mudar nossa visão do mundo, não será de pouco interesse tê-los presentes naquele ramo da teoria da produção sígnica que estuda a adequação entre proposições e esta- dos do mundo.

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TEORIA DA PRODUÇÃO SÍGNICA

3.7.8. O texto estético como ato comunicativo

Enfim, o texto estético apresenta-se como modelo de relação 'pragmática'. Ler um texto estético significa a um tempo: (i) fazer INDUÇÕES, isto é, inferir regras gerais de casos isolados; (ii) fazer DEDUÇÕES, ou seja, verificar se o que foi hipotizado num certo nível de termina os níveis subseqüentes; (iii) fazer ABDU ÇÕES, vale dizer, pôr à prova novos códigos através de hipóteses interpretativas. Nele trabalham, pois, todas as modalidades de inferência.

A compreensão do texto baseia-se numa dialética de aceitação e repúdio dos códigos do emitente, e de proposta e controle dos códigos do destinatário. Se a forma mais usual de abdução consiste em propor códigos hipotéticos para desambiguar situações não suficientemente codificadas, então a abdução esté- tica representa a proposta de códigos que tomem o texto compreensível. O destinatário não sabe qual é a regra do emitente e tenta extrapolá-Ia por dados desconexos da experiência estética que está fazendo. Pode acreditar que inter- preta corretamente o que o autor quis dizer, ou pode decidir-se a introduzir conscientemente novas possibilidades interpretativas. Mas, mesmo assim fazendo, nunca trai completamente as intenções do autor, e estabelece uma dialética entre fidelidade e liberdade. De um lado, é desafiado pela ambigüidade do objeto; de outro, é regulado pela sua organização contextual. Nesse movimento, o destinatário elabora e robustece dois tipos de conhecimento, um acerca das possibilidades combinatórias dos códigos a que se refere, outro sobre as circuns- tâncias e os códigos de períodos artísticos que ignorava. Assim, uma definição semiótica da obra de arte explica por que no curso da comunicação estética ocorre uma experiência que não pode ser nem prevista nem totalmente deter- minada, e por que essa experiência 'aberta' é tomada possível por algo que deve ser estruturado em cada um dos seus níveis. ,

A definição semiótica do texto estético provê, pois, o modelo esíruíural de um processo não estruturado de interação comunicativa.

Ao destinatário é solicitada uma colaboração responsável. Deve ele intervir no sentido de preencher os vazios semânticos, de reduzir a multiplicidade dos sentidos, de escolher seus próprios percursos de leitura, de considerar vários ao mesmo tempo - ainda que mutua- mente incompatíveis - e de reler o mesmo texto mais vezes, sempre controlando pressuposições contraditórias.

O texto estético torna-se assim fonte de um ato comunicativo imprevisível, cujo autor permanece indeterminado, ora sendo o emi- tente, ora o destinatário que colabora na sua expansão s e m i ~ s i c a ~ ~ .

63. Seria Útil, portanto, tentar retraduzir em termos de interação esté- tica todos os aportes de uma teoria dos 'speech acts'; por exemplo, Searle (1969) - de um lado - e as estéticas da interpretação, de outro (cf. Luigi Parey son, Estetica-Teoria della fomatività, 1 a ed., Edizioni di Filosofia, 1954, particularmente o capítulo sobre a interpretação), pondo-os em contato com as atuais estéticas da 'textualidade', que no fundo se originam da entrevista de Barthes (1963a) a Te1 Quel, para quem a obra de arte é uma forma que a história passa o tempo a preencher. Corrigiremos esta última afirmação assim: a obra de arte é um texto que é adaptado por seus destinatários de modo a satisfazer vários tipos de atos comunicativos em diversas circunstâncias his- tóricas e psicológicas, sem nunca perder de vista a regra idioletal que a rege. O que vem a ser a tese exposta, em forma ainda pré-semiótica, em Opera Aperta (Eco, 1962).