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Poesia Revoltada

Poesia RevoltadaEcio Salles

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Copyright 2007 Ecio Salles COLEO TRAMAS URBANAS curadoria HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES projeto grco CUBCULO POESIA REVOLTADA produo editorial LARISSA DE MORAES e ROBSON CMARA reviso BRUNO DORIGATTI reviso tipogrca BRUNO DORIGATTI

S163p Salles, Ecio de Poesia revoltada / Ecio Salles. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007. il.;.-(Tramas urbanas; 3) Anexo Inclui bibliograa ISBN 978-85-7820-000-8 1. Hip-hop (Cultura popular jovem) - Brasil. 2. Rap (Msica) Aspectos sociais - Brasil. 3. Msica e juventude - Aspectos sociais Brasil. 4. Poesia de protesto. 5. Movimento da juventude. I. Ttulo. II. Srie.

07-4022.

CDD: 305.2350981 CDU: 316.346.32-053.6(81)

22.10.07

22.10.07

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TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA Av. Ataulfo de Paiva, 658 / sala 401 Leblon Rio de Janeiro RJ CEP: 22440 030 TEL: 21 2529 6974 Telefax: 21 2239 7399 [email protected] www.aeroplanoeditora.com.br

Nas tantas periferias brasileiras periferia urbana, periferia social se reforam cada vez mais movimentos culturais de todos os tipos. Os mais visveis talvez sejam os de alguns segmentos especcos: grupos musicais, grupos cnicos, grupos dedicados s artes visuais. Mas de idntica importncia, embora com menos visibilidade, a produo intelectual que cuida, alm de questes artsticas, de temas histricos, sociais ou polticos. A coleo Tramas Urbanas faz, em seus dez volumes, um consistente e instigante apanhado dessa produo amplicada. E, ao mesmo tempo, abre janelas, estende pontes, para um dilogo com artistas e intelectuais que no so originrios de favelas ou regies perifricas dos grandes centros urbanos. Seus organizadores se propem a divulgar o trabalho de intelectuais dessas comunidades e que pela primeira vez na nossa histria, interpelam, a partir de um ponto de vista local, alguns consensos questionveis das elites intelectuais. A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso pas, apia essa coleo de livros. Entendemos que de nossa responsabilidade social contribuir para a incluso cultural e o fortalecimento da cidadania que esse debate pode propiciar. Desde a nossa criao, h pouco mais de meio sculo, cumprimos rigorosamente nossa misso primordial, que a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. E lutar para diminuir as distncias sociais um esforo imprescindvel a qualquer pas que se pretenda desenvolvido.

Agradecimentos

Agradeo a pessoas que participaram direta ou indiretamente da realizao deste livro. A todas elas devo, por diferentes razes, a concretizao deste projeto. Reitero o agradecimento a Claudia Matos, minha orientadora poca do Mestrado, na UFF, cujos comentrios e crticas fortaleceram o texto que escrevi. A Heloisa Buarque de Hollanda, incentivadora de primeira hora, leitora atenta e agora, minha editora. Ilana Strozenberg, que leu os originais e deu sugestes preciosas. Jos Junior, Tekko Rastafri e todos do Afro Reggae. Ier Ferreira, pelas fotos e tudo o mais. Meus irmos Erlon e Edwiges de Salles. Air, Bragga, Chico, Ment e toda a galera da Nao; Celso Athayde, MV Bill e a galera da CUFA; Daniel Guimares, Jlio Frana, Srgio Bugalho; Def Yuri; DJ TR; Elisa Ventura, Christine Diegues e todos da Aeroplano Editora; George Ydice; Gog; Jalson de Souza; Jos Marmo; Leonardo Lichote; Manoel Ribeiro; Nino Brown; Omar Salomo; Racionais: Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KLJ; Rosana Heringer; Rossana Rodrigues; Santuza Naves; Snia Torres; Tatiana Roque; Thade e DJ Hum.

minha me, Mari, que me deu meu caminhar, Ao meu amor, Daniele, que nele me acompanha me Nini, que lhe trouxe ax.

Sumrio11 13 19 24 36 54 72 88 124 140 168 211 217 222 Apresentao DJ Raffa Prefcio Omar Salomo Prembulo Cap.01 Cap.02 Cap.03 Cap.04 Cap.05 Cap.06 Cap.07 Anexo A poesia revoltada: rap, hip-hop e rappers Rap: cultura popular, arte margem Rap e contranarrativa Um seno: da legitimidade do rap A palavra armada Da ginga do samba marra do rap Poesia Revoltada: a Nao no-cordial O som negro do gueto: a senzala contra a casa-grande

Referncias Bibliogrcas Legendas e crditos de imagens Sobre o autor

Apresentao O que erudito e o que popular na cultura brasileira nos dias atuais? Ser que no meio popular no existe o erudito? Onde o hip-hop se enquadra em nossa cultura? Ecio Salles arma:Temos de um lado a cultura popular, dispondo de grande pblico e prestgio nos diversos meios de comunicao; de outro, a cultura das elites, restrita a pequenos crculos de iniciados, quase sempre ressentidos de sua escassa visibilidade.

O rap no nem ser em sua forma atual uma cultura de elite, seja ela dominante ou pensante. Mas , isto sim, uma forma vlida de manifestao cultural que, como todas as outras, tem sua elite, formada por seus expoentes, seus melhores artistas e seguidores. No entanto continua, mesmo depois de trs dcadas, a mais erudita das expresses populares. Pelo preconceito da sociedade e pela fraca exposio na mdia, ca restrita a poucos. E sua peculiaridade reside a: ele ao mesmo tempo popular e erudito. Ecio escreve com brilhantismo e competncia sobre assuntos que, na maioria das vezes, so relatados de modo equivocado por aqueles que se dizem profundos conhecedores da cultura hiphop. O rap forte aliado na armao de identidades especcas, visto sua apropriao pelas elites e o sampling, acusado de necrolia artstica, tm sido os alvos preferidos.

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Contra essa corrente, temos rappers se valendo da palavra e de sua voz como arma que fala pela favela, buscando no passado brasileiro parentescos capazes de legitimar o seu modo de expresso. Este livro nos leva a uma profunda reexo sobre o papel essencial que tem o hip-hop nas comunidades brasileiras, e nos conta como alguns legtimos representantes o eternizaram atravs de suas poesias urbanas. Raffaello Santoro (Dj Raffa)

Tticas de Guerrilha

Tenho a impresso de que setenta por cento dos prefcios so encomendados na porta da grca, para ontem. O livro a caminho do prelo, a mudana de idia e o pedido. Para ontem, se possvel. Felizmente, esse curto prefcio comeou a ser escrito uns anos atrs. A tese Poesia Revoltada: rap, raa e cultura brasileira recm-defendida pelo Ecio me foi entregue pela Heloisa Buarque de Hollanda. Eu trabalhava na Aeroplano na poca, e a tese acabou me servindo de bibliograa para um trabalho da faculdade sobre hip-hop. Lembro ainda de assistir, na seqncia, a uma palestra do Ecio no PACC-UFRJ, sobre o tema. Mas eu j conhecia o Ecio de antes, do Afro Reggae. Ainda moleque, em 1997, fui para Vigrio Geral com meu pai e Bernardo Vilhena na inaugurao do Centro Cultural do Afro Reggae. No ano seguinte, Ecio publicou um poema meu no jornal do grupo na edio que comemorava a primeira turn deles pela Europa. Felizmente, comecei esse texto alguns anos atrs. O Ecio comeou faz tempo sua histria com o rap, o hip-hop, e toda essa cultura da margem cultura inquieta, de misturas, de aluvio e que de revoada se mistura com a gua revolta da chuva. E ca aquela tontura de no entender muito bem de onde tudo isso saiu. A favela era ento pra mim um espao, de algum modo, comum.

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Poesia Revoltada

Focalizo o trabalho de rappers que se posicionam claramente como porta-vozes das comunidades pobres que os viram nascer e motivaram a sua arte. Racionais MCs, MV Bill, Gog. So Paulo, Rio de Janeiro, Braslia. O rap politizado mostra a face. A face da favela e a devolve para a favela. Com os favos recheados de mel e os dentes carregados de veneno, da vida cansada. A favela abre seus espaos, (..) a favela como um espao possvel de construo de uma outra perspectiva sobre a prpria favela, sobre a cidade, talvez sobre o mundo at. A voz que emerge da favela em busca de voz. Ser uma espcie de mediador entre a favela e a sociedade de maneira geral. De uma favela que transborda de verdade e realidade, rasgando as mentes plsticas a caminho de suas casas de plstico. E os rappers, verdadeiros mensageiros, estabelecem um vnculo entre arte, cultura e o cotidiano de suas comunidades. O que Ecio faz destrinchar a trincheira e nos mostrar a fora e solidez desta manifestao artstica impregnada de uma realidade que a tantos tanto incomoda. Arte de conjunto, que se alia, que dialoga com outras artes seja no gratti, no break, no vdeo. Que viva e explode, e questiona e briga. Transforma-se e se contradiz, porque nada sempre igual pois se adapta para continuar lutando. O rapper pe em relevo a fala dos que no falam, e se esfora em fazer-se entender pelos seus da melhor maneira possvel. Por isso, procura interessadamente refazer os laos com a vida, com a realidade que o cerca. Ecio realiza um trabalho cirrgico, disseca corajosamente a carcaa viva e mutante do rap, sem medo de ser mordido no processo, pois o processo lhe natural. Como canta MV Bill:Vamos fazer uma longa viagem/ (...) na vida dura/ Na vida simples. Na vida triste/ De muitas pessoas que como ns/ Vivem s margens da sociedade. Vivem sem voz, acuadas e oprimidas/ Vamos fazer uma longa viagem/ Numa cidade que segue sofrendo/ Que sofre vivendo e que chora sorrindo e sangra sem choro.

Prefcio

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Ecio Salles est em vantagem. Tem uma viso privilegiada do processo, sem estar de fato no processo. Mas tambm sem o distanciamento assptico do colonizador. Ecio tem conhecimento de causa e se utiliza dele com habilidade. Conhece a favela. Conhece os meandros acadmicos. Sabe fazer as conexes. Sem tentar domar a besta, a ilumina de tal forma que nos faz pensar sobre toda a cultura brasileira. A gente vive se matando irmo/ Por qu?/ No me olhe assim/ Eu sou igual a voc, MV Bill questiona e incita. Atravs dos rappers, Ecio nos apresenta o surgimento de um novo discurso sobre a identidade brasileira. Uma fala imperativa, direta. preciso estar atento, consciente (MV Bill). O valor da mensagem. Ecio Salles traa um reexo atual do Brasil real marcado pelo crescimento da misria, declnio da educao e sade, avano do desemprego, proliferao das favelas, preservao de preconceitos e discriminaes herdadas da escravido, tudo isso gerando o recrudescimento da violncia, a violncia do Estado, representada pela fora policial, e a oriunda do crescimento do narcotrco instaurou um clima de guerra,(...) cuja resposta mais virulenta veio das favelas. Um espao que troca a mandinga, o gingado, pela constncia industrial dos projteis. O punhal trocado pelo fuzil. O samba posto de lado porque camisa de seda no segura bala. A primeira faz bum, a segunda faz t/(...)/ minha palavra valeu um tiro, eu tenho muita munio (...)/ o rap venenoso uma rajada de PT (Racionais MCs). Atravs do rap, Ecio nos apresenta a imagem de um pas em cacos. Cacos de vidro.

Omar Salomo

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PrembuloEu moro no p do morro que ca ao lado de uma favela to perto que eu acho que eu fao parte dela. Trecho de Raa Brasileira, de Z do Cavaco, Mathias de Freitas e Elaine Machado

s vezes so enviesados os caminhos que nos levam ao nosso destino. No nal da dcada de 80 ouvi, no lme Faa a coisa a certa, de Spike Lee, um rap que me impressionou muito: Fight the power, do Public Enemy. No incio da dcada de 90 fui surpreendido por um disco, emprestado por um amigo, do grupo Racionais MCs. Foram duas experincias que se reetiram positivamente em mim. No descansei at que tivesse adquirido os dois discos Fear of a black planet, do Public Enemy, e a Antologia B.O., dos Racionais. Mais tarde, conheci outros grupos e artistas de rap. De uns gostei mais, de outros, menos. De qualquer forma, o rap era apenas um estilo de msica que me interessava. No passava por minha cabea um dia escrever sobre o tema. Isso comeou a mudar no nal de 96, foi quando travei o contato mais prximo com o Grupo Cultural Afro Reggae, instituio na qual ingressaria no ano seguinte.

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A prpria histria do Afro Reggae em si interessante e guarda alguns pontos de contato com certos aspectos da cultura hiphop, ou pelo menos de uma certa cultura hip-hop. O trabalho que o grupo vinha realizando em favelas do Rio de Janeiro naquela poca Vigrio Geral, na Zona da Leopoldina, j encostando em Caxias, e no Complexo Cantagalo-Pavo-Pavozinho, em Ipanema, Zona Sul da cidade j comeava a se destacar como importante forma de mobilizao de processos de cidadania e transformao social atravs da arte. Eu comecei como revisor do jornal publicado pelo grupo, o Afro Reggae Notcias. Depois, em 97, passei a integrar a equipe editorial do peridico. Mais tarde, essa equipe seria desfeita por diferentes razes, e eu permaneceria, agora como editor do veculo. O fato de trabalhar no Afro Reggae, de conviver com os integrantes do grupo, seus parceiros, seu ambiente, provocou duas mudanas substanciais em meu modo de ver o mundo. O primeiro dizia respeito minha relao com o espao das favelas. O segundo, minha relao com a cultura popular. Nasci e cresci em Olaria, um bairro do subrbio da Zona da Leopoldina, bem no local onde o asfalto comea a subir o morro. O Morro do Alemo, no caso. No tempo de minha infncia at a adolescncia, ningum o chamava de Complexo, como nos acostumamos a fazer hoje. Chamvamos cada localidade por seu nome: Morro da Esperana (ao p do qual minha casa e parte da minha vida ergueram seus alicerces); Morro da Baiana; Nova Braslia; Fazendinha; Morro do Adeus... So dezesseis ao todo, hoje reunidas sob o estigmatizado epnimo de Complexo do Alemo. O curioso que o tal alemo que deu nome ao local um antigo sitiante que acabou perdendo as terras para as famlias que foram subindo as encostas e construindo os primeiros barracos era, na verdade, polons, segundo algumas verses para a fundao da comunidade, ou holands, segundo outras. A favela era ento para mim um espao ao qual, de algum modo, eu pertencia. Espao de aventuras, porque a molecada

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da minha poca impunha desaos, como subir at o cume do morro, de onde se podia ver o bairro de Inhama, ou at as pedras no lado desabitado, pra caar coruja viva (tarefa na qual sempre fracassei redondamente). Era tambm o espao onde z amizades, conquistei amores (e algumas decepes) e cultivei histrias. No s no Alemo, mas tambm em Acari outra comunidade famosa, personagem do belo livro de Marcos Alvito1 onde moravam parentes que freqentvamos bastante. Tambm na Rocinha, onde minha me tinha uma grande amiga, cujo lho ajudou a construir parte da minha casa em Olaria e se tornou bom amigo da famlia. Ainda bem garoto, eu gostava de visit-lo e avistar, meio de longe, verdade, as rodas de samba nas curvas sinuosas da favela, que, naquela poca, era considerada a maior da Amrica Latina. Entretanto, nunca tinha percebido a favela como um espao onde fosse possvel a construo de uma outra perspectiva sobre a prpria favela, sobre a cidade, talvez at sobre o mundo: a favela como sujeito de transformao social. No a estigmatizada: da misria, da violncia e das guerras de faco, que ganhava as capas de revista e folhas de jornal. Tampouco a idealizada: espao improvvel da revoluo armada ou da pobreza feliz e conformada, dona da razo de descumprir deveres (pagar contas, impostos etc.) por no ter acesso aos direitos. Com meu trabalho no Afro Reggae, aprendi a descobrir a favela como um espao mltiplo e criativo, capaz de converter a precariedade em potncia transformadora. E, de certa forma, passei a me sentir ainda mais ligado a esse mundo. Quanto minha relao com a Cultura Popular, creio que o aspecto mais relevante foi a passagem de um ponto de vista de curioso apaixonado, que desde sempre foi o meu em relao a esse universo, ao de personagem, de algum modo atuando na histria, interagindo ativamente com o reino da arte. O que me tornou ainda mais curioso. Ainda mais apaixonado. Talvez por1 Alvito, Marcos. As cores de Acari. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.

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isso, diante de minha falta inata de talento para a msica (ou o teatro, ou a dana), tenha me tornado pesquisador. Esse movimento, por vias inesperadas, tambm foi devido minha relao com o Afro Reggae. Em 1997, tinha desistido da faculdade e, um ano depois, me deparei com um mundo to fascinante e to repleto de possibilidades, que decidi reetir sobre ele. De certa forma, sinto que esse era um modo de mostrar gratido pela descoberta e pelas razes que a ela me conduziram. Ao mesmo tempo, a opo por estudar essas manifestaes da cultura popular era uma maneira de reatar pontos mal resolvidos de minha trajetria, considerando que nunca tinha sentido com preciso qual o meu papel naquele contexto. Dessa forma, paradoxalmente, foi o fato de trabalhar numa associao visceralmente jovem e popular que me reconciliou com a universidade. Fez-me perceber novas potencialidades do trabalho acadmico. Novas para mim, que no as havia percebido antes. Foi assim que, aps me formar na UERJ, em 1999, participei da seleo para o Mestrado em Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense. Aprovado, comecei o curso com o entusiasmo de um adolescente. Mas tambm com grandes preocupaes. O tema que me instigava a produo de hiphop no Brasil e suas articulaes com a questo da identidade nacional era bem pouco ortodoxo e eu j previa problemas. De fato, preocupava-me a adequao do tema disciplina, depois s linhas de pesquisa e, nalmente, como encontrar a orientao adequada. Superados os problemas, em 2002 conclu a pesquisa, que havia priorizado sobretudo o perodo compreendido entre o nal da dcada de 90 e incio da seguinte. justamente o resultado desse trabalho que agora se desdobra na publicao deste livro, com algumas modicaes a m de amenizar um pouco a sua inexo acadmica. Desde ento, alguns aspectos da cultura hip-hop se modicaram, com maior ou menor intensidade. De qualquer forma, sempre me deixando a certeza de que uma reexo sobre o assunto,

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por mais consistente que seja, necessariamente provisria. Mal terminei de escrever este trabalho, todos os rappers ou grupos de rappers que estudei lanaram novos discos, trazendo novas questes, aqui e ali contradizendo, ou pelo menos problematizando, concluses a que eu tinha chegado. De todo modo, o fato que todos eles, certamente, ainda lanaro outros lbuns, trazendo mais uma vez novos ingredientes para a discusso. Da mesma maneira, tambm de mim se possa dizer o mesmo. Aps concluir o trabalho, outras informaes, experincias ou acontecimentos zeram com que eu amadurecesse, e em alguns casos at repensasse algumas das questes que aqui abordadas. Isso importante, uma vez que s acredito no trabalho intelectual se movido por inquietao e curiosidade. a partir da que dou os primeiros movimentos na direo do tema da pesquisa, das teorias e das metodologias a serem empregadas. Por isso, parece-me inevitvel que ainda outras mudanas venham a acontecer, tanto no contexto do hip-hop quanto no da teoria ou no da minha forma de ver o mundo. O que est impresso neste volume um olhar parcial sobre um caso e um momento especco da cultura popular. Um momento em que, nesse campo, se conquistava uma posio estratgica para os debates que se seguiro a respeito de raa, racismo, identidade, nao e da prpria cultura. Outros casos e momentos viro, certamente. Espero estar l, a m de prosseguir nesse tenso, intenso dilogo.

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CAP.01

A poesia revoltada rap, hip-hop e rappers.

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rap, hip-hop e rappers.

O rap sempre esteve aqui, desde quando Deus falou com Ado, Moiss e os profetas. Ele cantava rap para eles. (...) Mesmo Shakespeare j rimava e cantava rap na sua poca. Assim, o rap sempre esteve aqui. Afrika Bambaataa

Do Bronx estao So Bento De modo bastante sinttico, pode-se dizer que o rap uma forma de expresso musical criada em meados dos anos 70, nos Estados Unidos, embora suas razes remetam a uma movimentao musical j presente no nal dos anos 60 As razes do rap remontam pelo menos ao m dos anos 1960 e aos Last Poets, um coletivo de jovens negros militantes que puseram sua raiva em rimas e percusso (Cachin, 1996: 16). De forma bastante resumida, pode-se dizer que tudo comeou quando um velho costume dos jovens da Jamaica, o toastie (falas ou canes improvisadas sobre uma base instrumental), foi transplantado para Nova York pelo DJ jamaicano Kool Herc. Tambm contriburam para a gnese e o desenvolvimento do rap as atuaes dos DJs Grand Master Flash e Grand Wizard Theodor e as idias musicais inovadoras de Afrika Bambaataa. Este ltimo, um ex-membro de gangue de rua do Bronx, remixou a faixa Trans-Europe Express, da banda de msica eletrnica alem Kraftwerk, dando luz Planet Rock, a composio que

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marcaria o incio de uma revoluo musical. Naquele momento, entretanto, o rap era sinnimo de entretenimento era o som que embalava as grandes festas que, a partir de 1976, tomaram conta do Bronx, bairro negro de Nova York. Anos depois, j no incio da dcada seguinte, aparece o rap de carter politizado. How we gonna make the black nation rise?, gravado em 1980, um dos primeiros exemplos de rap a assumir uma postura militante e politicamente engajada. Esse estilo desviava-se consideravelmente das idias pacistas propostas inicialmente por Bambaataa, mas mostrou-se muito signicativo para a populao afro-americana naquele momento. Poucos anos depois, surge o Public Enemy, grupo que teve grande importncia, porque representou um novo momento para o rap no s nos Estados Unidos, mas tambm no Brasil. Com um discurso muito mais politizado e trazendo certa sosticao no tocante explorao de novas possibilidades sonoras, o Public Enemy inspirou inmeros rappers, entre os quais os includos neste livro. No Brasil, o rap se consolidou no nal da dcada de 80. Os primeiros rappers aqui surgiram de equipes de breakdance que se encontravam no centro de So Paulo, primeiro na Praa Ramos, em frente ao Teatro Municipal, depois na rua 24 de maio e, nalmente, na Estao So Bento do metr paulistano, que acabou se tornando uma espcie de santurio do hip-hop no Brasil. Thade e DJ Hum, que integravam a equipe de breakdance Back Spin, participaram da primeira coletnea de rap a obter repercusso nacional, intitulada Hip-hop cultura de rua, em 1988, que vendeu mais de 25 mil cpias (Rocha; Domenich; Casseano, 2001: 51). Cerca de uma dcada depois, o fenmeno Racionais MCs tornou a linguagem de artistas que se reivindicam negros favelados conscientes conhecida em todos os grandes centros urbanos do pas, seduzindo inclusive uma parcela signicativa da classe mdia no Rio de Janeiro, cidade que podemos considerar uma espcie de termmetro cultural do Brasil.

A poesia revoltada - rap, hip-hop e rappers

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Esse sucesso, at porque se construiu revelia da grande mdia, atraiu a ateno de diversos setores da sociedade como a prpria mdia, as grandes gravadoras, os intelectuais. Na verdade, muita gente se surpreendeu com o fato de grupos surgidos em favelas paulistas, com uma linguagem politizada e virulenta, tornarem-se referncia para sua gente e, ao mesmo tempo, trilhas sonoras de carros importados circulando pelos bairros nobres dos principais centros urbanos do pas.

O rap e o hip-hop O rap parte de uma realidade maior: a cultura hip-hop. O termo foi estabelecido por Afrika Bambaataa, em 1978, e fazia referncia a uma forma de danar, popular poca, que consistia em saltar (hop) e movimentar os quadris (hip). O hip-hop tornou-se, ento, uma forma de organizao sociocultural que envolve o rap (MC e DJ), dana (break) e artes plsticas (grafti). Sem falar em uma indumentria especca da qual bons, roupas e tnis esportivos so o destaque que, no mundo inteiro, estabelece a moda hip-hop.MC (Mestre de cerimnias): o termo adaptao do ingls master of cerimony. O MC aquele que fala enquanto a msica tocada. Devido ao fato de, no Rio de Janeiro particularmente, o termo MC ter sido primeiramente associado cultura funk, preferi utilizar neste livro a designao rapper. DJ (Disc-Jockey): originalmente, o DJ era o animador de um programa musical em rdio, aquele que selecionava os discos, determinava sua ordem de passagem e seu encadeamento. Em meados dos anos 70, tornou-se, graas evoluo tecnolgica dos meios de reproduo e extenso dos processos de manipulao da matria sonora, um criador completo. O par DJ/MC (ou rapper) constitui a espinha dorsal do rap.

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Breakdance: dana de passos quebrados e robticos que vai desenvolver-se ao sabor da contoro dos breaks1 entre e dentro das msicas, consistindo na execuo de passos que tentam imitar a maneira sincopada com que a msica rap se apresenta (Contador & Ferreira apud Pimentel, 1999: mimeo). Muitos passos dessa forma de dana, surgida em nais dos anos 60, representam protestos contra a Guerra do Vietn. Alguns simulavam os movimentos dos soldados norte-americanos que retornavam mutilados, outros aludiam a equipamentos utilizados no conito. o caso de um giro de corpo, executado com a cabea apoiada no cho e as pernas para cima, de forma a mimetizar as hlices dos helicpteros que atuaram na guerra. Grafti: Basicamente, pinturas feitas, na maioria das vezes com tinta spray, sobre as mais variadas superfcies: muros, laterais de trens, painis... Alguns autores remetem aos desenhos feitos nas paredes das cavernas pelos primeiros homens as primeiras manifestaes do grafti. Na dcada de 70, ele apropriado pelos negros e latinos dos guetos novaiorquinos, que exercitavam suas habilidades pintando seus nomes (a escritura de nomes nas paredes conhecida entre os grateiros como tag) e personagens em vages de trem e metr, paredes de linhas frreas, prdios abandonados, becos. Com isso, zeram do grafti um veculo ecaz de sua indignao.

Os rappers Para no me perder no labirinto de informaes que o assunto escolhido me disponibiliza, proponho um recorte muito claro: minha reexo partir da anlise das letras dos raps, embora no me furte a eventualmente considerar tambm o ritmo e a melodia (incluindo a, naturalmente, o aproveitamento de tecnologias sonoras) e, sobretudo, a voz/performance na execuo das composies de, basicamente, trs rappers.1 Break beats: parte das msicas em que a batida ganha relevo. Esta fundamentada no recorte e repetio, s vezes alterao de velocidade, de uma clula rtmica escolhida pelo DJ.

A poesia revoltada - rap, hip-hop e rappers

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So eles: Racionais MCs (SP); MV Bill (RJ) e Gog (DF). Foram escolhidos to somente em virtude de serem, na minha opinio, expressivos o suciente para representar um tipo de rap que selecionei, e terem consolidado uma carreira, de certo modo, no restrita a um crculo fechado. Em suma, todos eles comungam algumas caractersticas relevantes para o encaminhamento a que me propus: so afro-brasileiros e se reivindicam como tais; nasceram em comunidades pobres de grandes centros urbanos do pas (So Paulo, Rio de Janeiro, Braslia); seus trabalhos conseguiram projeo nacional e gozam de notvel reconhecimento por parte de um pblico que transcende as fronteiras de suas comunidades; todos se sentem, segundo pude notar, parte de um movimento ou de uma cultura comum, que se dene por recorte racial e posicionamento poltico. Esses rappers tambm tm em comum o fato de que na contramo do que tem sido destacado com relao a outras manifestaes da msica popular negra preferem no sorrir em pblico, nem danar ou cantar com o que se julga ser o suingue tpico dos negros. Em resumo, alegria e descontrao no so esperveis num show desses artistas ou grupos, pelo menos no como acontece numa apresentao, por exemplo, de Gabriel O Pensador, no universo do rap, ou do grupo Negritude Jr., fora dele. Hoje em dia no possvel falar num estilo nico de rap. H rappers que insistem na frmula DJ e MC, e outros que preferem atuar acompanhados por bandas; h aqueles que condenam de forma veemente as drogas, e aqueles que as defendem fervorosamente (o grupo carioca Planet Hemp, por exemplo). Isso nos permite imaginar categorias nas quais pudssemos estabelecer estilos de rap diferentes entre si. Quero deixar claro que meus comentrios referem-se a uma modalidade especca de rap. Nem sempre o que direi sobre esta servir para as outras. Passo a discriminar as que considero como principais. O funk Miami, notadamente no Rio de Janeiro, foi muito confundido com o rap. Talvez porque, quando surgiu nos morros cario-

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cas, os funkeiros se autodenominassem MCs e as msicas que cantavam fossem denominadas raps. O nome refere-se ao fato de os DJs de funk utilizarem quase sempre o beat criado naquela cidade dos Estados Unidos, por isso denominado Miami bass. O gangsta rap se caracteriza pela batida mais pesada. As letras tratam de crimes, drogas, violncia, prostituio, conitos entre gangues. O nome tem origem numa corruptela do termo gangster, e o mundo violento que cantam a expresso de uma realidade brutal: em 1997, dois dos maiores representantes desse gnero Notorious BIG e Tupac Shakur foram assassinados a tiros por causa de brigas de gangues. No Brasil, o gangsta no se difundiu muito. Os exemplos mais conhecidos esto em Braslia, onde grupos como o Cirurgia Moral assumem alguns aspectos do estilo. H tambm o rap gospel. Como o nome indica, esse gnero voltado para a religiosidade. No Brasil em contraste com os Estados Unidos, onde grande parte dos rappers so muulmanos os grupos ou rappers gospel dedicam-se gloricao de Jesus Cristo. Em muitos casos, no se trata de uma adeso s religies crists, catlica ou protestantes. O que lhes interessa a pregao dos ensinamentos de Cristo, que reinterpretado como um homem negro, que pregava ideais semelhantes aos dos rappers atuais. Aqui focalizo especicamente o trabalho de rappers que se posicionam claramente como porta-vozes das comunidades pobres que os viram nascer e motivaram a sua arte, caso dos j citados Racionais, MV Bill, Gog. Este o que chamarei aqui de rap politizado. Embora se possa dizer o mesmo de outras vertentes, acredito que o rap com o qual decidi trabalhar o mais consciente do seu papel poltico junto a suas comunidades. Cabe salientar que, neste ponto, os prprios rappers fazem questo de se diferenciar das duas primeiras modalidades que apresentei: do funk Miami, porque o consideram alienado; do gangsta, porque o consideram gloricador da violncia. Quanto

A poesia revoltada - rap, hip-hop e rappers

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ao rap gospel, a diferena reside apenas na nfase que este coloca na pregao da palavra de Cristo; a forma esttica e os pontos de vista poltico-sociais so parecidos, seno idnticos. Em suas composies, os rappers priorizados aqui problematizam uma idia, ainda hoje hegemnica, de Brasil multirracial, fundado na miscigenao pacca e cordial das diversas raas. O conceito de democracia racial a base de uma idia de nao que, desde o sculo XIX, embora s sistematizada de maneira orgnica no sculo seguinte, tem sido elaborada cuidadosamente de modo a evitar o conito, a manter as diferenas e os desnveis razoavelmente controlados. O discurso do rap, porm, questiona duramente essa idia. O contexto social objetivo em que surge a favela capaz de nos fornecer elementos para a compreenso dessa radicalidade. Elementos que nos permitem entender o porqu de o rap norte-americano, uma linguagem enfaticamente no-cordial, ter sido acolhido entusiasticamente no pas do suingue.

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CAP.02

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Captulo

ar, cultura popul arte margem

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ar, cultura popul arte margem

r, ultura popula c arte margem

A histria das artes no uma nica histria, mas, em cada pas, pelo menos duas: aquela das artes enquanto praticadas e usufrudas pela minoria rica, desocupada ou educada, e aquela das artes praticadas ou usufrudas pela massa de pessoas comuns. Eric Hobsbawn

Segundo o Dicionrio de relaes tnicas e raciais, o vocbulo rap pode ser denido da seguinte maneira: Termo que deriva da gria para fala e refere-se ao gnero meio falado, meio cantado que se tornou a traduo musical da experincia afro-americana das dcadas de 1980 e 90 (Cashmore, 2000: 475). O fundamental Dicionrio Groove de Msica lacnico em relao ao verbete: Estilo de msica popular dos negros norteamericanos, consistindo de rimas improvisadas, interpretadas sobre um acompanhamento rtmico; teve origem em Nova York, em meados dos anos 70. J Olivier Cachin, em Loffensive rap, explica que a palavra rap, antes de vir a designar a arte de falar em rimas sobre uma base rtmica, existe h muito no vocabulrio americano: take the rap (pagar pelos outros); dont give me this rap (no me venha com esse papo furado) so expresses correntes(Cachin, 1996: 14). Ao que uma matria do caderno Mais!, da Folha de So Paulo, acrescenta que a palavra rap tem muitos signicados em ingls. Ela remete tanto expresso pancada seca quanto idia de criticar duramente (14 de outubro de 2001).38

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Realmente, quando surgiu, o rap chamou a ateno pelo fato de ser uma msica muito mais falada que propriamente cantada. No entanto, assinalar dessa maneira a origem do termo, realando aspectos do timo h muito vigentes na lngua inglesa falada nos Estados Unidos da Amrica, negligencia um dado importante, uma vez que acaba omitindo a verso das ruas, divulgada entre os prprios hiphopers, para denir o rap: rhythm and poetry. Por outro lado, esse argumento, por si, no impede uma diculdade inicial: pode-se considerar o rap como arte? E como literatura? Deixando de lado qualquer pretenso em demonstrar de maneira denitiva o grau de artisticidade ou mesmo literariedade do rap, algumas palavras talvez sejam necessrias, a m de tornar sucientemente clara a minha compreenso sobre o rap e o espao que ele ocupa em nossa cultura, inclusive no mbito literrio. evidente que o rap, sendo literatura, no o em sentido estrito e, diga-se de passagem, mesmo o reconhecimento do status de msica lhe dicultado. Portanto ser necessrio levantar inicialmente algumas formas de entendimento do rap em diferentes estudos. Parece-me evidente a necessidade de lanar mo de recursos transdisciplinares para um melhor entendimento da cultura nesta passagem entre sculos, e em que perde um pouco o sentido, conforme propuseram os Estudos Culturais, a separao entre culto, popular e massivo. Entendo o rap como parte da cultura popular brasileira em uma nova fase, que enfrenta os desaos do fenmeno denominado globalizao e os avanos tecnolgicos que permitiram a criao de uma nova e formidvel forma de fazer arte, bem no corao do ambiente urbano brasileiro. Essa nova forma surge justamente no momento em que reinam a incerteza e a disperso de sentidos, e no qual parece que a cultura das elites como a conhecemos entra em choque com os novos media e com a moderna tecnologia, em outras palavras: no momento em que a arte culta como tal declina.

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No surpreende que muito poucos se preocupem com um tema cujo mero enunciado resulta irrisrio em meio a esse clima: o lugar da arte e da cultura culta na vida social, reclama Beatriz Sarlo (2000: 8). Por outro lado, Silviano Santiago, em uma argumentao at certo ponto prxima da crtica argentina, tambm identicava que, nos dias de hoje, relaes amorosas e gratuitas, entre objeto de arte e leitor, se tornam relaes objetivas e industriais, entre mercadoria e consumidor (Santiago, 2000: 7). De fato, esse problema no tem sido ignorado nos debates acadmicos de uns anos para c. Ainda assim, restam questes a serem consideradas. Sobretudo quando a abertura a novas perspectivas de abordagem dos fenmenos artsticos passa a ser relacionada a uma suposta queda no padro de qualidade da reexo crtica em geral. Em outras palavras: voltar a ateno para os fenmenos culturais de massa, como o rap, o rock, programas de televiso etc., signicaria um rebaixamento da crtica. O triunfo da indstria cultural, borrando a fronteira entre cultura e consumo, teria, dessa maneira, inviabilizado a discusso. O fato de haver uma cultura popular e massiva implica, naturalmente, que aquilo que no se inclui nesse campo seja qualicado com a rubrica: de elite ou erudita. Se assim, de fato no h o que discutir. Temos de um lado a cultura popular, dispondo de grandes pblico e prestgio nos diversos meios de comunicao; de outro, a cultura das elites, restrita a pequenos crculos de iniciados, quase sempre ressentidos de sua escassa visibilidade. Mas at que ponto a questo no est, de um lado a outro da discusso, to contaminada de preconceitos que alguns detalhes importantes so elididos, impedindo de sada uma compreenso menos compartimentalizada dos modos de existncia de uma e outra? Anal, no de hoje que a cultura popular e a erudita ou culta tm manifestado pontos de contato e entrecruzamentos que vo formando a nossa imaginao comunitria.

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Por outro lado, a expresso cultura popular, como anotou Marilena Chau, de difcil denio. A prpria histria do conceito revela a oscilao de acordo com objetivos, tendncias, vale dizer, ideologias de determinadas pocas. De qualquer modo, interessa-me particularmente o vis pelo qual a lsofa desenvolver sua argumentao, propondo a cultura popular como expresso dos dominados, entendendo-a no como uma outra cultura ao lado (ou no fundo) da cultura dominante, mas como algo que se efetua por dentro dessa mesma cultura, ainda que para resistir a ela (Chau, 1994: 24. Grifo da autora). Nstor Garca Canclini prope um entendimento semelhante, ao postular que o povo que produz as suas prprias formas de representao e reelaborao simblica de suas relaes sociais (Canclini, 1983), em um processo que est sempre se reatualizando. Como entendia o autor, a preocupao no que diz respeito ao popular deve ser menos com o que se extingue do que com o que se transforma. Enm, o popular no se dene a partir de uma essncia previamente estabelecida, mas pelas estratgias instveis com que os prprios setores subalternos constroem suas posies (Canclini, 1998: 23). Tais estratgias, por sua vez, indicam a forma atravs da qual os pobres estabelecem reaes ao movimento vertical e homogeneizador da cultura de massas que, orientada pelo mercado, mostra-se indiferente s especicidades de cada diferente comunidade. Onde o mercado buscou impor, como explica Milton Santos, uma cultura domesticada, surge tambm a possibilidade [...] de uma revanche da cultura popular sobre a cultura de massas (Santos, 2001: 143-144), na medida em que se difunde atravs dos recursos que originalmente pertenciam cultura de massas. bem o caso do rap, um modo de fazer arte arquitetado no corao da decadncia urbana, a transformar os produtos tecnolgicos, que se acumularam como lixo na cultura e na indstria, em fontes de prazer e poder (Rose in Herschmann, 1997: 192).

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Arte em estado vivo Richard Shusterman denomina arte em estado vivo as formas expressivas da cultura popular, inclusive o rap (Shusterman, 1999: 12 et passim). O autor investe um esforo enorme para discutir a validade desse estilo como arte (como eu gosto desse gnero de msica, tenho um interesse pessoal em defender sua legitimidade esttica (1999: 144)) e refutar as noes preconceituosas que o relegam a lixo cultural.1 Para Shusterman, o rap no apenas faz a crtica de um determinado modelo socioeconmico, ele tambm questiona uma concepo de arte e esttica que se afaste da realidade, ou que constitua nichos de saber e, portanto, de poder inacessveis a uma populao que, na verdade, seja porque no saiba, seja porque no se interesse, no l. Esses rappers repetem constantemente que seu papel enquanto artistas e poetas inseparvel de seu papel enquanto investigadores atentos da realidade e professores da verdade (Shusterman, 1999: 160), notadamente os aspectos da realidade e da verdade omitidos ou distorcidos pelos livros de histria ocial e pela mdia. Rappers como os que estudo aqui trabalham suas composies a partir de contedos que tm, de fato, muito de investigao da realidade e busca da verdade. No toa que a sigla MV, no nome do rapper MV Bill, designa nada menos que mensageiro da verdade. No entanto, a sua investigao da realidade e a prosso de verdade na qual investem, no raro ultrapassam o objetivo de investigar a realidade e proferir a verdade, congurando-se como algo que vai alm do relato de circunstncias do dia-a-dia das periferias. A meu ver, eles estabelecem um1 A arte popular no tem gozado de tamanha popularidade junto aos lsofos e tericos da cultura [...]. Quando no completamente ignorada, indigna at de desdm, ela rebaixada a lixo cultural, por sua falta de gosto e reexo (Shusterman, 1999: 99). Ou ainda: O rap um dos gneros de msica popular que mais se desenvolve atualmente, mas tambm um dos mais perseguidos e condenados. Sua pretenso ao status artstico submerge numa inundao de crticas abusivas, atos de censura e recuperaes comerciais (Shusterman, 1999: 143).

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vnculo entre arte, cultura e o cotidiano de suas comunidades, o qual implica uma recuperao de aspectos do fazer artstico h muito superados na histria da cultura ocidental. Anal, na Antigidade poesia e msica eram inseparveis (Dufrenne: 1969, 64), assim como a vida e a arte. Richard Shusterman trabalha com raps que reivindicam textualmente o seu reconhecimento como arte (o exemplo que analisa uma msica do grupo estadunidense Stetsasonic: Talkin all that jazz: You criticize our method/ of how we make records/ you said it wasnt art,/ so now were gonna rip your apart p. 191). O seu mtodo consistir em opor as bases de denio artstica do rap quelas estabelecidas pela cultura ocidental, sobretudo a partir do advento da modernidade. O rap , no entender do autor, uma manifestao artstica tpica do ps-modernismo. Ele reconhece os questionamentos que ainda hoje so lanados ao conceito de ps-modernismo, mas indica alguns aspectos que o deniriam apesar de ser possvel identic-los, com certa nuana, em obras de arte modernas e, no mesmo passo, incluiriam o rap em seu bojo: a tendncia mais para uma apropriao reciclada do que para uma criao original nica, a mistura ecltica de estilos, a adeso entusistica nova tecnologia e cultura de massa, o desao das noes modernistas de autonomia esttica e pureza artstica, e a nfase colocada sobre a localizao espacial e temporal mais do que sobre o universal ou o eterno (Shusterman, 1999: 145). J o lsofo francs Christian Bthune, em Le rap une culture hors la loi, arma o seu entendimento do rap como arte, na medida em que a sua abordagem do assunto prioriza a dimenso esttica.2 Ao propor que o rap pe em cena uma manifestao artstica2 Na nota de advertncia tese que defende em seu livro, Christian Bthune explica: Conforme um uso da linguagem losca, eu utilizo os termos potica e esttica de acordo com sua etimologia. O domnio do potico refere-se ao ponto de vista da fabricao das obras (de , fabricao), o domnio do esttico (de , sensao) refere-se ao ponto de vista do sujeito que percebe as obras e conseqentemente as julga (Bthune, 1999: 5). A traduo dessa e das demais citaes de todas as obras consultadas na lngua francesa so de minha autoria.

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legtima, Bthune demonstra como a sua matria sonora, para efetivamente se realizar, depende da combinao de diversos procedimentos manuais e tecnolgicos, os quais por sua vez dependem de um material sonoro previamente gravado para garantir a execuo da performance. O rap manifesta um aspecto ldico da obra que, por sua reduo normativa ao original considerado como sagrado, o discurso dominante sobre a obra de arte tentava desde ento descartar (Bthune, 1999: 11). O olhar do lsofo sobre a cultura hip-hop permite uma avaliao menos preconceituosa sobre uma produo potica que, em ltima instncia, tenta armar-se no cenrio onde vrios discursos conitam, aproximam-se, repelem-se, entrecruzam-se. E mais, permite a valorizao da msica rap como jogo um jogo, todavia, muito srio, como tentarei mostrar. Bthune nota que os estudos que se dedicam exclusivamente aos condicionamentos histricos ou implicaes sociolgicas do rap acabam, de um modo ou de outro, por elidir da discusso a perspectiva propriamente esttica, como se se tratasse implicitamente de um aspecto secundrio, mesmo negligencivel (1999: 15). O autor vai orientar o seu interesse no rap na direo daquilo que ele tem de criao cultural, e no apenas como epifenmeno vinculado s condies desastrosas da vida urbana e condio de prias econmicos e sociais em que se encontram determinadas comunidades, sejam os guetos negros estadunidenses, as banlieues francesas ou as favelas no Brasil. Certamente, o rap o reexo de uma violncia, de uma penria e de um desespero ligados s discriminaes de toda ordem engendradas pelas diculdades de nossa poca, mas no mnimo ele o , ousemos diz-lo, da mesma maneira que podia s-lo a tragdia grega diante da crueza de uma existncia devotada fatalidade de um destino inexorvel, ou o romance do sculo XIX confrontado s mesquinharias de uma burguesia assenhorando-se sem pudor da melhor fatia do bolo (Bthune, 1999: 15). Quanto s semelhanas apontadas por Bthune entre o rap e formas anteriores de expresso artstica preciso estabelecer

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certas nuances. H uma diferena bsica, que, a meu ver, est no ponto de vista. Nem a tragdia grega, nem o romance do XIX embora fossem muitas vezes obras populares de grande receptividade traziam em suas respectivas pocas a voz dos principais excludos, mas, na melhor das hipteses, a voz de includos que, s vezes, falavam por aqueles. J o rapper, ao contrrio, pe em relevo a fala dos que no falam, e se esfora em fazer-se entender pelos seus da melhor maneira possvel. Por isso, procura interessadamente refazer os laos com a vida, com a realidade que o cerca. No possvel ignorar que o surgimento ou a difuso do rap se deu em decorrncia das tenses provocadas pelos contrastes sociais nos Estados Unidos e nos demais centros urbanos do mundo os prprios rappers qualicam a sua apario como um efeito colateral do sistema Eu sou apenas um rapaz latino-americano/ apoiado por mais de cinqenta mil manos/ efeito colateral que seu sistema produz... (Racionais MCs: Captulo 4, versculo 3). Por outro lado, como explicitou Bthune, deixar de lado os mritos estticos que inegavelmente possui seria grave injustia. Insisto nisso porque perceptvel, em cada rap, um procedimento que denuncia o trabalho exaustivo por trs da composio: a escolha das bases, dos samplers, a preferncia por uma determinada dico. Alis, possvel dizer que num primeiro momento o rapper cativa rtmica e melodicamente a conana do ouvinte; no entanto a nalidade , mais explicitamente que em qualquer outra forma expressiva cantada, cativ-lo, atravs do texto/performance, para um engajamento. Esse aspecto do rap contraria a concluso a que chegou Enzo Minarelli, de que o poema orientado para a denncia de um desequilbrio social, para incitar ao, no encontra hoje proslitos (Minarelli in Menezes, 1992: 123). O rap, no entanto, certamente devido s fortes tenses sociais que caracterizam a sociedade brasileira, mostrou-se capaz de concretizar aquilo a que Minarelli chama a pequena-grande utopia que quer a poesia a servio da luta social (idem, ibidem).

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Literatura menor e contraliteratura Buscando uma maneira mais objetiva de perceber as discutveis noes de literatura popular, marginal, proletria etc., Deleuze e Guattari propem o conceito de literatura menor. Trata-se, a meu ver, de um conceito capaz de avalizar o estatuto do rap no interior da cultura brasileira. Segundo a argumentao dos autores, a primeira caracterstica de uma literatura menor passa pela lngua: uma literatura menor no a de uma lngua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma lngua maior (Deleuze & Guattari, 1977: 25). Poderamos falar do rap como uma literatura menor? Creio que sim. Anal, de acordo com a primeira caracterstica, no tenho dvida que os negros, de qualquer parte do mundo, que fazem rap so tambm autores menores, que inclusive se expressam numa lngua peculiar, marcada pelos traos de um modo negro de ser. Ressalte-se ainda que aqui estamos falando de uma minoria no em termos absolutos, mas uma minoria poltica, os negros e pobres; o que nos leva segunda caracterstica. Esta refere-se ao fato de, nas literaturas menores, tudo se tornar poltico. Se nas grandes literaturas a relao entre os diversos casos individuais formam um bloco nico, nas literaturas menores o caso outro: seu espao exguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado poltica (Deleuze & Guattari, 1977: 26). No rap, pode-se detectar essa caracterstica tanto por sua constante enunciao de uma identidade disruptiva quanto pelo carter combativo das falas e das atitudes dos rappers, voltados contra uma ordem social que consideram racista e opressiva. A terceira caracterstica est relacionada ao fato de, numa literatura menor, tudo adquirir um valor coletivo: o que o escritor sozinho diz j constitui uma ao comum (Deleuze & Guattari, 1977: 26). Ora, para o rap a coletividade um dos quesitos mais importantes de seu impulso criador e militante. Tudo o que fala ou faz tem como objetivo o bem geral da comunidade da qual

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faz parte, entendida no sentido mais abrangente de toda a comunidade negra e pobre. Neste ponto possvel estabelecer uma aproximao entre o rapper e o antigo sambista malandro. Ao comentar sobre a questo da parceria no samba dos malandros, Claudia Matos observa que sua voz nunca totalmente individual, nunca uma voz isolada. Assim, sua individualidade no reside no fato de no ter parceiros, mas de no os ter xos. Seu parceiro potencial [...] a comunidade inteira (Matos, 1982: 75). A nfase na especicidade de cada favela demonstra essa faceta do hip-hop. Por esse motivo, MV Bill e os demais rappers politizados, quando se propem a representar a comunidade, fazem-no com um forte sentido poltico o de ser uma espcie de mediador entre a favela e a sociedade de maneira geral:MV Bill, falando pela comunidade (Tracando informao).

Sua voz, at porque solitria, denuncia mais essa lacuna na experincia social da favela. Neste mesmo rap, Bill expressa o teor poltico e, ao mesmo tempo, o grau de solido que decorre de sua opo num verso que considero excepcional:o raciocnio raro pra quem carente (Tracando informao).

Outro conceito que pode ser valioso para se pensar o rap o de contraliteratura. Segundo Bernard Mouralis, suscetvel de entrar no campo das contra-literaturas [sic] qualquer texto que no seja entendido e transmitido num determinado momento da histria como pertencente literatura (Mouralis, 1982: 43). Mouralis inclui neste campo tanto as literaturas orais quanto a cano, categorias a que, em certo sentido, o rap tambm pertence. Segundo o autor, o critrio de classicao dos textos como literrios s faz sentido na medida em que recorre noo de estatuto: H um estatuto de texto literrio e um estatuto de texto no-literrio. Sua reexo parte da identicao de um campo literrio que dene esses estatutos e que exclui todo um setor da produo (de textos), justamente esse que constitui o campo das contra-literaturas (Mouralis, 1982: 12-14).

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No so poucos os pesquisadores que pem em relevo a informao da oralidade presente no rap. Para Tricia Rose, a poesia rap, a um s tempo oral e letrada (Rose apud Bthune, 1999: 44), pode ser compreendida como parte do reino da literatura se levarmos em considerao que, como denunciou Paul Zumthor, o conceito de literatura, no fundo, faz referncia a um sistema de valores especializados, etnocntricos e culturalmente imperialistas. Segundo o autor, at o incio do sculo XX, toda literatura extra-europia era relegada a folclore pelos eruditos da mesma forma que o texto no escrito era desconsiderado como literatura (Zumthor, 1997: 25). Christian Bthune, por sua vez, considera que o fato de o rap incorporar-se tecnologia e apropriar-se de seus recursos confere oralidade uma nova fora, capaz de roar o escrito sem nele se dissolver, reorientando as estruturas de um pensamento h muito informado pela escrita em direo a uma psicodinmica da oralidade (Bthune, 1999: 44). ento por conta da tecnologia tanto do sampler quanto do registro de suas vozes em disco que os rappers podem viajar sem complexo entre o oral e o escrito, rompendo com a tradicional diviso dos gneros na qual insiste a cultura escolar (Bthune, 1999: 39). Por outro lado, o rap se localiza num espao denido por Paul Zumthor como o das oralidades segunda e mediatizada. A oralidade segunda procede de uma cultura letrada, se (re)compe a partir da escrita e no interior de um meio em que esta predomina sobre os valores da voz na prtica e no imaginrio; a mediatizada, (Zumthor, 1997: 37). O rap, contudo, se estabelece de maneira a confrontar os critrios dessa cultura letrada, o que um pressuposto bsico da conceituao de contraliteratura apontada por Mouralis.3 Portanto, pode-se dizer que o rap uma forma de expresso desterritorializada no somente em relao lngua na qual se expressa, mas uma vez que privilegia a voz no lugar da escrita 3 Quanto oralidade mecanicamente mediatizada, que quase sempre coexiste com as outras, esta se refere, como o nome indica, aos recursos tecnolgicos de reproduo e gravao da voz.

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desterritorializada em relao prpria literatura numa acepo mais ortodoxa. Finalmente, Paul Zumthor prope a questo fundamental:a noo de literariedade se aplica poesia oral?. Indiferente ao termo, o autor descarta o critrio da qualidade, por mostrar-se muito impreciso. Ento, defende a existncia de um discurso marcado, socialmente reconhecido como potico, dirigindo o foco desse reconhecimento para a recepo. Por esse critrio, a cano pode tambm ser reconhecida como objeto dos estudos literrios. poesia, literatura, o que o pblico leitores ou ouvintes recebe como tal, percebendo uma inteno no exclusivamente pragmtica: o poema, com efeito (ou, de uma forma geral, o texto literrio), sentido como a manifestao particular [...] de um amplo discurso constituindo globalmente um tropo dos discursos usuais proferidos no meio do grupo social (Zumthor, 1997: 40. Grifo meu).

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Sobre o sampling1 e a sncopaOs quatro primeiros pontos destacados por Richard Shusterman em sua caracterizao do ps-moderno (tendncia para uma apropriao reciclada, mistura ecltica de estilos, adeso entusistica tecnologia e desao s noes de autonomia) articulam-se, basicamente, prtica do sampling. Com efeito, o sampling a mais importante novidade formal trazida pelo rap. Apesar de no ser o nico gnero a utilizar o procedimento, o rap sem dvida o que explora em maior profundidade as suas possibilidades. O rap constitui efetivamente com a msica techno a primeira forma de expresso a utilizar de modo sistemtico as tcnicas de reproduo sonoras as mais sosticadas, no apenas para difundir suas produes, mas igualmente para elabor-las, tanto na sua forma quanto no seu contedo (Bthune, 1999: 10). tambm o sampling a maior vtima dos ataques daqueles que negam o valor do rap. Bthune d o exemplo de um percussionista de jazz que chegava a denunciar essa prtica como

1 Sampling a ao de selecionar fragmentos sonoros (samples) e inseri-los em um trecho da msica que o DJ est tocando ou gravando. O processo realizado atravs do sampler: mquina dedicada ou computador munido de um programa especial que registra qualquer som, permitindo sua posterior manipulao em outros contextos.

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necrolia artstica (Nelson apud Bthune, 1999: 52). Segundo essa linha de pensamento, a msica rap, resultado da colagem de vrios trechos pr-selecionados, no representaria uma forma autntica de arte, talvez porque a prtica do sampleamento desae as idias ortodoxas de originalidade e autenticidade a que a concepo ocidental de arte tem permanecido apegada. De acordo com Richard Shusterman, o rap emprega e adota de forma criativa sua apropriao como temtica, no intuito de mostrar que emprstimo e criao no so incompatveis (Shusterman, 2000: 150). Shusterman, portanto, prope um novo momento para a compreenso da arte como tal, um momento que, chamemo-lo ps-moderno ou no, o espao ideal para a ecloso do rap como nova e legtima forma de arte. Christian Bthune refora essa tese, mais uma vez rechaando a prioridade sociolgica na anlise do rap, postulando que a originalidade com que os rappers concebem o seu fazer artstico que os estimular a buscar um caminho que tambm esttico: os procedimentos criativos operados pelos rappers nos incitam a aprofundar suas implicaes numa perspectiva mais especicamente esttica (Bthune, 1999: 11). A intertextualidade revela-se uma prtica arraigada na prpria concepo da msica rap. De fato, se prestarmos ateno em cada letra e em cada fragmento sonoro de uma composio, perceberemos a presena de trechos de outras letras, de sonoridades alheias (pertencentes ou no ao universo hip-hop) um dos motivos de orgulho para um DJ , sem dvida, a sua coleo de LPs de vinil e, s vezes, de rudos gravados do prprio ambiente urbano: carros, sirenes, tiros colhidos no dia-a-dia da cidade. Cabe destacar que esse procedimento no novo. As tcnicas desenvolvidas pelos artistas ligados chamada poesia sonora msica eletroacstica, eletrnica e concreta j lanam mo de semelhantes recursos desde meados da dcada de 1950, graas ao advento da aparelhagem eletroacstica e ao desenvolvimento das tecnologias de gravao (Menezes, 1992: 11; Kostelanetz in Menezes, 1992: 81 et passim).

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Nicolau Sevcenko assinala o incio desse processo a partir de um evento que, para ele, dividiu a histria da msica e da dana em dois momentos distintos. Trata-se da turbulenta sesso inaugural da Sagrao da Primavera, de Stravinski, em Paris, no ano de 1913. A partir das mudanas desencadeadas nessa noite, segundo Sevcenko, ganharam flego os esforos de pesquisas voltados para outros perodos e outras culturas, em especial para as tradies da sia, da frica e das Amricas. A novidade trazida pelo rap nessa rea est, portanto, no uso inovador que far das tcnicas de gravao e reproduo sonoras, criando com elas um novo gnero musical. Gog, ao denir o rap como a luta do vinil contra a alienao da novela (Gog, 2000: o terror), pe em discusso o papel de sua arte no processo de engajamento na vida cotidiana. Para o rapper, a novela alienante porque desvia a ateno do ouvinte para um reino de fantasia, que o afasta inclusive de sua prpria identidade no caso aqui a de jovem negro, morador da favela , uma vez que os modelos oferecidos pela TV no representam o que seria o ideal sob o ponto de vista do rapper. Nesse caso, a intertextualidade me parece o exerccio de um dilogo, implicando o reconhecimento mtuo que d forma comunidade dos manos. Se, por um lado, cantar msicas de outros rappers uma prtica condenvel porque a atitude cover na viso dos rappers um indicativo de incapacidade em construir uma mensagem prpria, como explica Jos Carlos Gomes da Silva (1999: 31) , por outro, a citao (o sample) implica muitas vezes um duplo reconhecimento: primeiro, de que o rapper que cita admira o citado; segundo, de que se comunga de uma mesma realidade opressiva em toda a parte. Em outras palavras, compartilha-se uma identidade: A fora dos grupos de Rap [...] vem de seu poder de incluso, da insistncia na igualdade entre artistas e pblico, todos negros, todos de origem pobre, todos vtimas da mesma discriminao e da mesma escassez de oportunidades (Kehl, 1999: mimeo).

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Tim Maia, Bezerra da Silva e Jorge Benjor esto entre os artistas mais sampleados pelos DJs.2 O vinil, habilmente manuseado, traz tona a rica memria da produo de velhos ou novos pais ou irmos da msica negra do mundo, que mobilizaria a histria positiva do povo negro, geralmente escamoteada na perspectiva da novela. Por outro lado, o vinil tambm pode ressemantizar trechos de msicas que, a princpio, no teriam relao to direta com a msica negra em sentido estrito. No caso particular de Gog, h uma perceptvel adeso s melodias da jovem guarda Jerry Adriani e Paulo Srgio fornecem a base para mais de uma composio do rapper. Na faixa Prepare-se, do CD homnimo, inserido um trecho da cano Todos esto surdos, de Roberto Carlos:La lalalalalala [...]/ A muita gente se esqueceu que o amor s traz o bem (Gog: Prepare-se).

Nicolau Sevcenko diz algo notvel sobre o poder de recuperao de memria cultural da msica negra, presente no rap atravs do sampling. Referindo-se aos momentos em que o DJ assume o comando, trazendo tona os elementos de espontaneidade e inspirao criativa mgica contidos nas colees de LPs que os DJs perscrutam at encontrar o beat3 ideal. Isso signicaria que toda tecnologia acionada para dar uma ressonncia especial memria musical da cultura negra. Sevcenko, citando o crtico musical Greg Tate, completa o sampleamento um jeito de fazer com que todas as eras da msica negra se concentrem num nico chip (Sevcenko, 2001: 119). Cabe lembrar que, nem sempre, a citao feita por vias eletrnicas. Muitas vezes os rappers referem-se a versos de outros2 Os exemplos de fato no so numerosos, mas essa escassez revela um outro lado dos problemas enfrentados pelos rappers: muitos artistas no autorizam a gravao de samples de suas msicas sem o pagamento de vultosos direitos autorais (e s vezes, nem assim). 3 Beat: trata-se da batida, o ritmo, que o DJ utiliza em cada msica.

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companheiros, geralmente trechos que acharam, por alguma razo, relevantes. Um verso de Gog, muito conhecido entre os iniciados periferia periferia em qualquer lugar , por exemplo, citado, entre outros, pelos Racionais, no disco Sobrevivendo no Inferno, numa faixa intitulada exatamente Periferia periferia (em qualquer lugar). Assim como o dos Racionais para os manos daqui, para os manos de l uma espcie de frase recorrente quando um rapper quer se dirigir ao seu pblico mais dileto: os manos da periferia. O vinil, alm de ser a metfora da fora discursiva do rap e fonte de parte considervel dos samples, atua no sentido de mobilizar o corpo, uma vez que de onde emana, quase sempre, o som que embala o discurso do rapper. A atuao do corpo , indubitavelmente, uma marca importantssima da msica negra no mundo todo. Junto com as palavras, junto com o som, deve dar-se a presena concreta de um corpo humano, capaz de falar e ouvir, dar e receber, num movimento sempre reversvel, explica Muniz Sodr (1998: 67). No tenho dvida em armar que essa caracterstica da msica negra no mundo se revela tambm no rap:vou fazer voc mexer, o melhor que sabemos fazer (Gog, 2000: Na f).

Quando se fala de dana, de mover o corpo, no caso do samba, jazz etc., o grande elemento rtmico-estrutural em jogo a sncope. De fato tanto no jazz quanto no samba, atua de modo especial a sncopa, incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcao corporal (Sodr, 1989: 11). A explicao de Sodr a respeito desse elemento rtmico-estrutural, no entanto, insuciente para a sua inteira compreenso. Srgio Bugalho (2001), em entrevista concedida para este trabalho, lembra que a sncopa no exclusividade da msica negra. Na verdade, est presente na msica, mesmo a europia, h um tempo considervel. A m de explicar de modo convincente o diferencial que a msica negra trouxe para o conhecimento da sncopa, Bugalho comea propondo a compreenso do movimento musical como uma suces-

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so de apoios e impulsos. A partir da, dene a sncope primeiramente como um evento adstrito mtrica musical relativo ao momento da articulao do som sincopado e ao(s) momento(s) sobre o qual prolongado. Em outras palavras, a sncope seria a articulao de som (ou sons) durante o impulso e sua prolongao sobre o apoio, furtando, portanto, a articulao de um som que coincidisse com esse apoio. Desse modo, pode-se dizer que o momento que divide exatamente ao meio a durao do pulso sentido como um apoio secundrio. Isso posto, possvel pensar na sncope como o lugar de eleio para fazermos recair os acentos (sons mais fortes). Tudo isso leva concluso de que, no contraste entre o acento sincopado e o corpo que ouve e responde, acontece de o interesse da gestualidade recair sobre a liberdade de ocorrncia dos acentos em relao isocronia da sucesso dos apoios. Se considerarmos que a diferentes gneros musicais correspondem normalmente diferentes marcaes de movimentao corporal, concluiremos que a liberdade de movimentos nunca ser total. Mesmo assim, trata-se daquela liberdade no interior do tecido musical associada s idias de deslizamento, de deslocamento e de liberdade do corpo. Chega-se assim, como diz Bugalho, a uma obstinada insubordinao dos acentos aos apoios como uma das marcas do modo como a msica de origem africana interage na formao dos gneros musicais. Com isso quero dizer que a sncopa implica, no que diz respeito msica de maneira geral, uma quebra de princpios. Signica o exerccio da liberdade, pela musicalidade negra, em relao s amarras engendradas pelas regras clssicas do padro musical a que estamos habituados. Sugiro ainda que ela, pelo menos metaforicamente, representa o desejo de liberdade tambm na vida social, na qual os negros so continuamente estigmatizados por conta da cor da pele e outros traos fenotpicos, como se fossem prisioneiros da prpria negritude. Nas palavras de Paul Gilroy: Suas sncopes caractersticas ainda animam os

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desejos bsicos serem livres e serem eles mesmos revelados nesta conjuno nica de corpo e msica da contracultura (Gilroy, 2001: 164). Resguardadas as diferenas entre os estilos, do samba ao jazz, ao funk e ao rap, o que tentei demonstrar nesta passagem foi a estreita ligao da msica rap com o desejo de liberdade, tanto no sentido sociopoltico quanto no esttico, que permeia toda a histria da msica negra na dispora. Como armou Edouard Glissant: No nada novo declarar que para ns a msica, o gesto e a dana so formas de comunicao, com a mesma importncia que o dom do discurso. Foi assim que inicialmente conseguimos emergir da plantation: a forma esttica em nossas culturas deve ser moldada a partir dessas estruturas orais (Glissant apud Gilroy, 2001: 162). O antroplogo Hermano Vianna, respondendo a uma pergunta do jornal O Estado de So Paulo (5 de janeiro de 2001) sobre o poder de transformao da msica, disse que a msica no promete um mundo melhor [...] A msica instaura o mundo melhor no momento em que tocada/ouvida. Estou de acordo, mas os rappers querem ir alm no caminho dessa transformao. Mediante os recursos ao sampling e o engajamento do corpo no seu processo de realizao artstica, demonstram sua insubordinao ao conjunto de ajustamentos sociais e econmicos que os alijou do mundo melhor e os aprisionou no ltimo nvel da escala social. Percebe-se assim uma aproximao entre o dado esttico (a msica e a performance) e o dado social: a perpetuao, atravs do rap, de um elemento poltico na forma e no contedo da msica negra. Como espero ter demonstrado, a sncopa e o sampling so fenmenos da maior importncia para realizar o vnculo entre a msica negra e o desejo de liberdade, tanto no sentido propriamente artstico, quanto no social.

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O rap como contranarrativa Segundo Claudia Matos, uma caracterstica marcante dos antigos sambistas malandros dizia respeito ao fato de que, em suas letras, o sujeito fala com supostos interlocutores (Matos, 1982: 196). Este um trao que aproxima o rapper da esttica da malandragem. Assim como o malandro-protagonista do samba, o rapper tambm um narrador, e quase sempre a primeira pessoa do discurso. A natureza e o tom do dilogo que mudaram bastante:A gente vive se matando irmo/ por qu?/ no me olhe assim eu sou igual a voc (Racionais: Frmula mgica da paz).

Acrescento que o rap pode ser entendido como narrativa no apenas nos moldes tradicionais, mas, sob certos aspectos, tambm naqueles denidos por Walter Benjamin em seu estudo sobre a obra de Nikolai Leskov (Benjamin, 1995). Apesar de a maioria dos rappers designarem sua arte a partir de comparaes com o reino da informao jornalismo e ans4 , a prpria estrutura de sua narrativa implica a possibilidade de uma interpretao daquilo que explicado, dessa maneira agindo na conscincia de cada ouvinte (conforme Benjamin postula para a armao da verdadeira narrativa). Assim, se a linguagem jornalstica assume postura, digamos, neutra, ao relatar os fatos no que se mostraria incompatvel com o esprito da narrativa (Benjamin, 1995: 203) , o rap, quando faz, faz de maneira pedaggica, no apenas relatando o fato, mas tentando ensinar algo com ele.MV Bill est de volta tentando conscientizar vocs/ parando para pensar, botando a cabea no lugar/ [...]/ sem armas, unidos, sem violncia entre ns/ [...]/ entre irmos, informao necessidade/ apesar de ser uma letra pode se tornar verdade/ depende dela, depende dele, depende de mim, depende de voc (MV Bill: Atitude errada).4 Alm disso, Chuck D, lder do grupo Public Enemy, denominou o rap como a CNN dos negros. J uma das canes mais conhecidas de MV Bill, que acabou virando uma espcie de marca de sua atividade, intitula-se Tracando informao.

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Nessa narrativa, o que dito, da forma como dito, se enraza na histria de vida do ouvinte visado pelo rapper e, desse modo, sua experincia se tornaria compartilhvel, no s porque fala a partir de um ponto de vista comum, mas porque essa fala pode se tornar verdade. Cabe ao destinatrio concretizar o dito em fato. Assim, o episdio narrado atinge uma amplitude que no existe na [mera] informao (Benjamin, 1995: 203). O rapper nega a incomunicabilidade de experincias, atribuvel ao narrador ps-moderno (cf. Santiago, 1989). Na verdade, ele a evita desesperadamente a palavra que lana ao outro durante sua performance , antes de mais nada, um chamado: todos em frente, ao ataque, clama Gog em uma de suas composies (Mensagem positiva). No livro Introduo poesia oral, Paul Zumthor comenta que a performance a ao complexa pela qual uma mensagem potica transmitida e percebida, realizando um jogo de aproximao, de abordagem e apelo, de provocao do Outro, de pedido (Zumthor, 1997: 33). Por isso, proponho que, a despeito da opo dos prprios rappers, o rap v alm da linguagem jornalstica. Essa analogia, certamente, se d porque os rappers no consideram o seu trabalho co, mas informao. Todavia, a informao que eles transmitem comprometida com a transformao que esperam suscitar: o que fazem , de certa forma, dar conselhos A vida curta, procure alguma coisa boa para fazer/ parar de se matar, nosso inimigo outro, diz MV Bill (Atitude errada). Conforme explica Benjamin, a natureza da verdadeira narrativa envolve sempre uma dimenso utilitria. Consista num ensinamento moral, numa sugesto prtica ou numa norma de vida, o fato que o narrador um homem que sabe dar conselhos (Benjamin, 1994: 200). Os rappers, de certo modo, priorizam essa dimenso utilitria. Dar conselhos parece ser uma prerrogativa da qual se investiram, e que pretendem manter. Como percebeu Maria Rita Kehl no ensaio j citado aqui a voz do cantor/narrador dirige-se diretamente ao ouvinte, ora supondo que seja outro mano e ento avisa, adverte, tenta chamar conscincia ora supondo

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que seja um inimigo e ento, sem ambigidades, acusa e no que diz respeito s letras, trata-se de apelos dramticos ao semelhante, ao irmo: junte-se a ns, aumente nossa fora. Fique esperto, que consciente no faa o que eles esperam de voc (Kehl, 1999: mimeo). Tomemos como exemplo esta composio do Racionais:Mantenha distncia de dinheiro fcil/ de bebidas demais, policiais e coisas assim/ [...]/ [voc ser] um preto digno, e no um negro limitado (Racionais: Negro limitado).

MV Bill tambm procura alertar os manos quanto aos riscos do uso de drogas e lcool, lembrando um pouco o questionamento do rapper estadunidense Chuck D, no livro Fight the power: I attack drugs, including alcohol, because its a scourge that attacks the human family [...]. The effects on the black community have been even more deadly and devastating (D., 1997: 47). Diz o rapper brasileiro:Enquanto eu falo a verdade voc s pensa em beber/ [...]/ preciso unio, preciso informao/ para acabar, para acabar com a nossa destruio/ [...]/ MV Bill, adverte quem com a droga se mete/ acaba na vala/ boiando, otrio, furado, crivado de bala (MV Bill: Atitude errada).

V-se, pelos exemplos acima, que o rapper demonstra uma grande preocupao com os destinos de sua comunidade e de seu povo. Ressalte-se que o tempo imperativo dos verbos refora a idia de endereamento a um ouvinte especco, localizvel aquele a quem se destina o conselho, e que precisa se transformar para que todo o resto possa ser transformado. Nesse sentido, a mensagem do rap, a sua interpretao da realidade circunstante, vai alm da evidente dimenso pedaggica. Ela atingiria uma dimenso performativa, na medida em que se trata de uma interpretao que transforma o que interpreta. Como notou Christian Bthune, o rapper no fala da realidade,

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ele fala na realidade e, posto no corao da ao, transforma-lhe poderosamente a sionomia (1999: 47. Grifos do autor). Porm, possvel dizer que a mensagem ouvida? Que o conselho do rapper tem algum valor? Na minha opinio, o pblico do rap parece bastante disposto a ouvir. Basta dizer que, fora a ateno exigida para as letras por praticamente todos os rappers, muito comum, em eventos de hip-hop, haver um espao especco para debates entre convidados antes de a atrao principal entrar no palco (eu mesmo j participei de alguns, como palestrante ou como ouvinte, e posso dizer que a receptividade do pblico impressionante). Alm disso, tornou-se um hbito imprescindvel para muitos rappers incluir um discurso altamente politizado, sem msica, em suas apresentaes. Suponho que essa capacidade para ouvir correlata capacidade para falar, de que os rappers se investiram com muita autoridade.5 O ouvinte faz parte da performance, diria Paul Zumthor (1997: 241). E em sua anlise percebe-se que a recepo do ouvinte no necessariamente sempre idntica para todos. Devemos admitir que isso verdade. O rap, do mesmo modo que qualquer outra forma de expresso musical, pode ser assimilado como meio de informao e conscientizao ou simplesmente como entretenimento, sem contar que cada uma dessas maneiras de recepo pode se desdobrar em outras tantas. Mas isso no o ideal para as ambies do hip-hop. O poder da transformao, de que falam os rappers (Thade, inclusive, comps um rap com esse ttulo), tem por objetivo modicar, ou reforar, suas crenas, seu posicionamento poltico-social e sua identidade tnica. Assim como possvel pensar no rapper como uma espcie de narrador benjaminiano algum que recupera a faculdade de intercambiar experincias (Benjamin, 1995: 198) tambm se5 Em uma entrevista para a revista Showbizz, Mano Brown mostrava sua preocupao inicial com o silncio compenetrado do pblico durante a apresentao dos Racionais. No comeo eu estranhava, achava que eles no estavam curtindo. Depois que me contaram: Mano, eles prestam ateno na letra (Brown, 1998: 26).

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pode pensar que o ideal para o rap um pblico que recupere, seno invente, uma comunidade organizada com base em uma identidade comum e preocupada em garantir sua sobrevivncia num mundo que a ameaa. A sociedade brasileira atual marcada pelo crescimento da misria, declnio da educao e sade, avano do desemprego, proliferao das favelas, preservao de preconceitos e discriminaes herdadas da escravido, tudo isso gerando o recrudescimento da violncia, notadamente a violncia do Estado, representada pela fora policial, e a oriunda do crescimento do narcotrco instaurou um clima de guerra, sobretudo contra os chamados excludos, cuja resposta mais virulenta veio das favelas. Foi essa situao que reforou os laos comunais de uma parcela da juventude negra no Brasil. A imagem que a mantm unida atende pelo nome de hip-hop: a gerao dos manos da periferia, algo que Maria Rita Kehl chama de frtria. O tratamento de mano no gratuito. Indica uma inteno de igualdade, um sentimento de frtria, um campo de identicaes horizontais, em contraposio ao modo de identicao/ dominao vertical, da massa em relao ao lder ou ao dolo (Kehl, 1999: mimeo). Com isso, pode-se pensar o rap como uma narrativa de oposio s prerrogativas impostas pela organizao opressiva da sociedade na qual seus artces esto inseridos. Em resumo, trata-se de uma contranarrativa, de um mtodo especco para armar sua identidade (constantemente negada) e recontar sua histria sob um ponto de vista prprio, avesso s distores e omisses da histria ocial. Sob outro prisma, essas novas formas de expresso artstica tomam a frente do debate de consolidao de um projeto nacional que ainda no foi concludo. Entre elas, quero sustentar que o rap a que leva mais longe as possibilidades de uma atividade esttica que, mais que entreter ou mobilizar a indstria cultural, quer pensar politicamente o seu prprio destino e o de sua comu-

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nidade e seu povo, isso tudo no mbito da narrativa mais ampla (essa comunidade imaginada chamada Brasil) a partir da qual e contra a qual constroem a sua. Creio mesmo ser possvel inscrever os textos produzidos pelos rappers, normalmente estigmatizados e marginalizados no meio acadmico, numa srie literria altamente prestigiada, embora no imune a preconceitos, que inclui textos de Alencar (e antes) a Joo Ubaldo (e depois), entre tantas outras narrativas que levantaram uma hiptese de Brasil que vem at hoje povoando o imaginrio da nao. Antonio Candido percebeu que a nossa crtica naturalista, prolongando sugestes romnticas, transmitiu por vezes a idia enganadora de que a literatura foi aqui produto do encontro de trs tradies culturais: a do portugus, a do ndio e a do africano. Mas notrio que ndios e africanos transplantados s tiveram inuncia decisiva no folclore, na literatura escrita atuaram de maneira remota (Candido, 1987: 165). Ora, se no comeo a literatura mostrou-se prerrogativa de um grupo social exclusivista, hoje o rap revela-se uma produo literria resultante, em algum grau, desse desencontro. Curiosamente, em sintonia com o que Candido armou sobre a literatura brasileira do sculo XIX (Candido, 1997: 26-8), o texto dos rappers decididamente empenhado e igualmente comprometido com o sentimento de misso. Acontece que, desta vez, o empenho se d no sentido de trazer de novo vida as vozes que foram rasuradas no curso da histria:Meus amigos pretos velhos que no voltam mais/ ancestrais seguidos de bravos guerreiros/ faziam o Brasil inteiro se curvar diante de tal bravura/ s para a todo custo defender aquele lugar/ que alis se chamava Palmares/ [...] Tenho orgulho e bato no peito/ sou descendente de Zumbi/ grande lder negro brasileiro/ por nossa liberdade enfrentou exrcitos inteiros [...]/ Sabe quem eu sou? afro-brasileiro! Me diga quem voc! (Thade: Afro-brasileiro).

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legitimlegitimidade do rap

CAP.04

Um seno: da legitimidade do rap

midade

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Jos Ramos Tinhoro arma que o mercado de msica popular no Brasil foi, desde os anos 60, dominado por modismos comerciais e estrangeiros, como o reggae e o funk [...], o break, o rap e o hip-hop. Graas a esse domnio, lamenta o autor, as criaes ligadas a constantes culturais regionais passaram a constituir [...] uma atividade clandestina dentro do pas (Tinhoro, 1999: 341-2). O argumento de Tinhoro , aparentemente, bastante difundido entre um amplo setor da intelectualidade no Brasil. Ele no leva em conta porm, o fato de praticamente todos os modernos ritmos, sobretudo os mais populares (e isso inclui o samba, evidentemente), nas Amricas e talvez alhures, serem igualmente o resultado de inumerveis cruzamentos, inuncias, misturas. Certamente, esse processo continua movendo a cultura, gerando novos fenmenos. O rap, portanto, pode ser pensado como uma nova maneira atravs da qual os negros brasileiros, sobretudo os residentes nas reas pobres dos centros urbanos do pas, possam propor uma esttica radicalmente nova e apropriada ao seu propsito: armar uma identidade e uma histria prprias, apesar de haver no poucas divergncias em relao legitimidade dessa tentativa. O questionamento em respeito legitimidade do rap como forma de msica brasileira tem sido levantado com repetida insistncia. Anal, segundo algumas vozes nossas contemporneas, o rap no passa de importao da cultura norte-

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americana, no tendo validade no Brasil, onde o samba assumiu legitimamente o papel de ser a voz dos excludos e, o que seria ainda melhor, num sentido integracionista. Alba Zaluar, por exemplo, no acredita no potencial transformador do hip-hop, segundo ouvi da prpria numa palestra, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 1999. Nei Lopes, notrio defensor da causa negra, numa declarao revista Showbizz, disse o seguinte sobre o posicionamento racial do Racionais: Briga entre raas no Brasil soa como imitao de americanos. Hoje a armao da negritude passa por outros caminhos (Showbizz, junho de 1998: 29). Segundo essa perspectiva, ao contrrio de outras manifestaes musicais negras, o rap traria de fora um dio e uma atitude segregacionista vale dizer, uma revolta que no combinariam com o ambiente social brasileiro, nada teriam a ver com a relativamente amistosa relao racial em nossos centros urbanos e, ainda por cima, abriria mo da famosa manemolncia, do suingue tipicamente brasileiro. Nada tenho a opor a essa caracterstica. Pelo contrrio, considero-a uma qualidade admirvel. O problema que, em nome da preservao a todo custo das caractersticas tropicais desse pas, sufoquem-se as vozes dissonantes, sempre em razo de uma suposta fuga aos princpios organizadores de nossa sociedade: o tropicalismo (Freyre), a integrao racial, a alegria natural do povo. H, ainda hoje, uma persistncia do discurso que Claudia Matos havia identicado como as fbulas do Brasil pobre, mas alegre, unido, ativo, o paraso tropical, o Deus brasileiro, tomando por vezes coloraes chauvinistas e quase xenfobas... (Matos, 1982: 47). Apesar de, aqui e ali, perceberem-se mudanas, o lugar comum sobre o brasileiro pobre que parece ter a capacidade de sorrir e se divertir mesmo na maior misria ainda raramente questionado. Entre os que pem essa herana em xeque esto, sem dvida, os rappers. A sua narrativa em nada lembra as conjeturas idealizadas de parte da intelectualidade nacional, que via nas realizaes dos artistas oriundos de favela uma demons-

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trao de valor e no sucesso do samba em se rmar como ritmo nacional, a prova irrefutvel do carter no segregador da cultura e da sociedade brasileiras. No entanto, a globalizao, gostemos ou no, mais que uma palavra da moda. Conforme entendeu Said, em parte devido ao imperialismo, todas as culturas esto mutuamente imbricadas; nenhuma pura e nica, todas so hbridas (Said, 1995: 28). Em sentido semelhante, mas referindo-se especicamente cultura negra, o socilogo Paul Gilroy formulou o conceito de atlntico negro, que diz respeito s inmeras manifestaes culturais da dispora africana cujas razes no se concentrariam num ponto nico, mas, como rizomas, estariam dispersadas numa rede descentralizada de os que se entrecruzam. A partir desse conceito, Gilroy mostra como o processo de racializao do negro e do branco, que garantiu de certa forma a escravido e a subseqente discriminao racial, foi gestado nos uxos internacionais que transitaram pelo Atlntico. Em oposio s abordagens nacionalistas ou etnicamente absolutas, o autor pretende desenvolver a sugesto de que os historiadores culturais poderiam assumir o Atlntico como uma unidade de anlise nica e complexa em suas discusses do mundo moderno e utiliz-la para produzir uma perspectiva explicitamente transnacional e intercultural (Gilroy, 2001: 57). Hermano Vianna percebeu bem que o atlntico negro, no apenas um novo rtulo para um fenmeno antigo. tambm uma nova maneira de entend-lo (Vianna, 1999: 6). Anal, o conceito desaprisionou os estudos a respeito das diversas manifestaes culturais negras da idia de razes. Idia a que o rap sempre se mostrou refratrio. Ele rejeita as noes de autenticidade, pureza e originalidade, revelando-se uma forma esttica hbrida por natureza e transnacional de nascena. Todavia, em determinadas condies essa caracterstica no impermevel ao assdio de posturas contraditrias, como veremos a seguir.

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Partido-alto, repente, rap Recentemente, no Brasil, pesquisadores do rap e mesmo alguns rappers, talvez acusando os golpes desferidos pelos nacionalistas culturais, tm feito um movimento no sentido de propor o parentesco do rap brasileiro com o samba ou o repente nordestino. Spensy Pimentel, por exemplo, armaria que: As tradies orais africanas, que no Brasil ao longo da histria se diluram na miscigenao [...], na segregao americana permaneceram nesses 500 anos para desembocar no rap. Os griots, contadores de histria que carregavam na memria toda a tradio das tribos africanas, preservaram suas tcnicas em versos passados de pai para lho (como os romances medievais conhecidos ainda hoje no Nordeste, ou os repentistas, emboladores, cantadores e todas as outras categorias de poetas populares no Brasil) [Pimentel: 1999]. No se trata de um movimento muito simples. Apesar de os jogos verbais tpicos da cultura negra estadunidense, como as dirty dozens, que pesquisadores como Shusterman armam estar na origem do rap, guardarem muitas semelhanas com, por exemplo, o repente do Nordeste brasileiro, que Cmara Cascudo dene como a resposta inesperada e feliz, aturdindo a improvisao do adversrio (Cascudo, 1984: 670) durante os desaos entabulados entre cantadores, h um problema no resolvido. O desao disputa potica, cantada parte de improviso e parte decorada, entre os cantadores um gnero que Cascudo situa como de origem portuguesa. S haveria sinais de sua presena na frica como resultado da inuncia rabe, cujo inuxo visvel tambm na msica dos cantadores sertanejos do Brasil (Cascudo, 1984: 287-88). Isso no impediu que o gnero se popularizasse entre negros escravos no Brasil, ali pela metade do sculo XIX. Alguns, alis, zeram muito sucesso. o caso de Incio da Catingueira. Orgenes Lessa, que realizou um estudo comparativo entre dois poetas negros da segunda metade do sculo XIX, ainda na poca da escravido (Luiz Gama e o mencionado Incio), dizia que para

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alm do fato de serem negros ou mestios, libertos ou escravos os poetas eram a alegria, o desabafo, uma espcie de vingana do povo. Contudo, no havia em seus versos, uma vez que eram ainda escravos e muitas vezes participavam das pelejas sob o olhar dos senhores, indcios de revolta ou denncia. As palavras de Lessa sobre Incio e os cantadores de seu tempo poderiam, na verdade, referir-se tambm ao rap mas nunca quele que considero politizado, uma vez que este prdigo em discutir princpios. Para o autor, os cantadores mantinham uma guerra de papo que no punha princpios em causa, mas gurava inimigos que eram mortos ou dominados para agrado do povo igualmente oprimido, mas incapaz de esboar qualquer reao (Lessa, 1982: 3). Alheios a debates tericos dessa natureza, alguns rappers, notadamente os adeptos do chamado free style (raps feitos de improviso), tm reivindicado o parentesco do rap com o repente nordestino. o caso de Thade, que no seu CD Assim caminha a humanidade (Trama, 2000) gravou uma faixa, intitulada Desao no rap embolada, na qual faz um rap em ritmo de desao, pelejando com Nlson Triunfo. Figura mitolgica da cultura hip-hop brasileira, Nlson foi o primeiro danarino de break do pas e preserva at hoje a aura de pioneirismo que o dignicou. Thade no ca atrs, considerado o primeiro rapper a gravar um disco no Brasil. O confronto mediado por Chico Csar, que anuncia o incio: o rap embolada/ o rap e o repente rebentando na quebrada/ Duelo de tits, ateno irmos, irms / Acenderam o pavio, Nlson fez o desao e Thade aceitou / Vai comear a disputa, vale tudo nessa luta/ Coco, hip hop, soul.

Thade provoca e Nlson Triunfo no faz por menos (a ttulo de informao, conste que Nlson famoso no s pelos passos de dana como pelo enorme cabelo estilo black power, que lhe valeu o apelido de homem rvore):

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Thade comea:Quem no conhece Nelso, aquele cara comprido,/ magro parece um palito e com o cabelo/ [...]/ t ligado que ele do nordeste / minha rima vai mostrar que eu tambm sou cabra da peste/ vou me transformar em tesoura, cortar o cabelo dele/ e pr debaixo do tapete com uma vassoura / eu vou at o m dessa batalha/ vai ser difcil superar a minha levada / no verso eu fao a treta/ te dou um n de letra/ abro e eno o microfone na tua cabea/ [...]/ voc no me assusta/ ento cresa e aparea.

Nlson Triunfo responde:Se voc vier pra cima, vai cair na sua rima / nem Deus que t l em cima vai poder te segurar/ [...]/ homem pra bater em mim/ se nasceu, no se criou/ e se criou j levou o m/ eu curto Luiz Gonzaga, o meu pas tropical/ conheo o bem e mal e o som