juliana salles machado
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mulheres,plantaseredesdetrocanodeltaamaznico
julianasallesmachado
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Lugares de genteMULHERES, PLANTAS E REDES DE TROCA NO DELTA AMAZNICO
Juliana Salles Machado
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social,Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como partedos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em AntropologiaSocial.
Orientador: Carlos Fausto
Rio de Janeiromaro de 2012
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LUGARES DE GENTE:MULHERES, PLANTAS E REDES DE TROCA NO DELTA AMAZNICO
Juliana Salles Machado
Orientador: Carlos Fausto
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao emAntropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio deJaneiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulode Doutor em Antropologia Social.
Aprovada por:_______________________________
Presidente, Prof. Carlos Fausto
_______________________________Prof. Moacir G. Soares Palmeira
_______________________________Profa. Renata de Castro Menezes
_______________________________Profa. Dbora Lima
_______________________________Profa. Fabola A. Silva
Rio de Janeiromaro de 2012
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Machado, Juliana Salles.
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico/Juliana Salles Machado. - Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional/ PPGAS,2011.
Orientador: Carlos Fausto
Tese (doutorado) UFRJ/ Museu Nacional/Programa de Ps-graduao emAntropologia Social, 2011.
1. Sociedades ribeirinhas da Amaznia. 2. Mulheres e Plantas. 3. Redes deTroca. 4. Paisagem. 5. Etnobotnica.
I. Fausto, Carlos (Orientador). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,Museu Nacional, Programa de Ps-graduao em Antropologia Social. III.Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico.
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RESUMO
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
Juliana Salles Machado
Orientador: Carlos Fausto
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao emAntropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio deJaneiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulode Doutor em Antropologia Social.
Para os ribeirinhos da Ilha Caviana, no delta Amaznico, a paisagem um lugar social e
guarda a memria da relao entre o passado indgena e o presente
ribeirinho. Busquei decifr-la atravs das concentraes de rvores teis,
como as usavam, como as plantavam e as mantinham e, finalmente, por
que o faziam. Esta tese trata da relao entre as plantas e as pessoas.
Plantar faz parte de um conjunto de prticas, desde a obteno do vegetal
da floresta at sua transformao em planta no ambiente domstico. Aqui a
floresta habitada por seres encantados e mes no-humanas dos lugares,
seres capazes de ativar um processo de transformao do humano para
aquele que o encantou. Nessa instabilidade da condio humana, as plantas
assumem um papel fundamental, pois elas oferecem a cura desse encanto,
a reverso desse processo, isto , a possibilidade de permanncia de sua
existncia. Atravs da seleo e plantio as mulheres transformam espaos
em lugares de gente a partir da troca de plantas e remdios entre parentes,
vizinhos e amigos. Troca um ato de cuidar, que reafirma os laos sociais
entre humanos e no-humanos engajados em relaes recprocas enquanto
os vincula a lugares especficos, reforando seu sentimento de
territorialidade e pertencimento na ilha. O curar em Caviana uma
ferramenta importante e compartilhada entre as mulheres numa rede de
trocas; essa rede tem como funo manter sempre vivo o saber da cura, o
saber das plantas, e assim garantir a permanncia de sua famlia e,
consequentemente, dos filhos de Caviana.
Palavras-chave: manejo ambiental; plantas e mulheres; rede de trocas; cuidar e cura;Ilha Caviana; Amaznia.
Rio de Janeiromaro de 2012
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ABSTRACT
Places of people: women, plants and exchange networks on the Amazon delta
Juliana Salles Machado
Orientador: Carlos Fausto
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao emAntropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio deJaneiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulode Doutor em Antropologia Social.
For the riverine of Caviana Island, on the Amazon delta, landscape is a social place andkeeps the memory of the relation between the indigenous past and theriverine present. I sought to decipher it through the concentrations ofuseful trees, how they used them, how they planted and maintained themand, finally, why they did it. This thesis deals with the relationshipbetween plants and people. Planting is part of a set of practices, fromobtaining the vegetal within the forest until its transformation into plant inthe domestic environment. The forest is inhabited by enchanted beings andnon-human mothers of places, beings capable of activating a process oftransformation of the human to the one who charmed him. In thisinstability of the human condition, plants play a key role because theyprovide the healing of this spell, the reversal of this process, ie thepossibility of permanence of their existence. By selecting and planting thewomen transform spaces into places of people through the exchange ofplants and medicines among relatives, neighbors and friends. Exchange isan act of caring, which reaffirms the social bonds between humans andnonhumans engaged in reciprocal relations while binds them to specificplaces, reinforcing their sense of territoriality and belonging within theisland. Healing in Caviana is an important tool shared among women in anexchange network; this network has the function of always keeping alivethe knowledge of healing, the knowledge of plants, and thus ensure thecontinuity of their family and, hence, of the "Caviana sons".
Key-words: environmental management; women and plants; exchange networks; caringand healing; Caviana Island; Amazon.
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s mulheres de Caviana
minha me, Malu
s mulheres da minha vida,Zoraide e minha filha Camila.
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AGRADECIMENTOS
So inmeras as pessoas que contriburam para a realizao dessa tese. Nesses cincoanos, sete moradas, nas quais muitas pessoas me acolheram, agradeo atodos e em especial:
no Rio...Agradeo ao Carlos, meu orientador, por aceitar me orientar, uma estranha no ninho,
pela pacincia ao longo de todo o trabalho e pelo cuidadoso trabalho deleitura.
Ao Moacir e Renata, que me acompanharam desde a primeira qualificao, por suassugestes e crticas.
todos os professores do programa, que atravs de suas aulas me inspiraram a refletirsobre minhas prprias convices, especialmente Carlos Fausto, LygiaSigaud (in memorium), Moacir Palmeira e Bruna Franchetto. Aos amigosdo PPGAS que tornaram essa jornada muito mais prazerosa, em especialSilvia e Ana Amlia.
Tia Celina e Tio Tunico, por me acolherem de forma to carinhosa. Pelos jantaresdeliciosos e conversas maravilhosas e pelo imenso prazer de suacompanhia.
em Belo Horizonte...Aos queridos amigos Andrei e Vanessa por deixarem tantas boas lembranas em nossa
vida mineira.Ao Marquinho, por sempre me socorrer com seus lindos mapas.
em Sampa, minha eterna casa...Entre os amigos, minhas constantes inspiraes: Edu, Fabola e Kica. Confraria de Textos, e em especial a Helena, pela cuidadosa reviso e incentivo.Na famlia, difcil dizer a importncia de todos... Ao Lucas, eterno companheiro, pela
inspirao, dedicao e fora, todos os dias. Camila, cuja vida surgiu nopercurso dessa tese e que me fez entender a incondicionalidade do amormaterno. Ao pequeno Antnio, recm-chegado ao mundo que desde muitocedo compartilha comigo esta ltima etapa. minha me, por tudo. Porpermitir que eu pudesse me ausentar tanto tempo, pela cumplicidade e peloacolhimento, Muito Obrigado. Ao meu pai, pela confiana, inspirao esegurana. Ao Ro e Stella pela constante presena nos melhoresmomentos da vida. Zo, pelo carinho de sempre, pela dedicaodespretenciosa e sem questionamentos.
em Londres e em Paris...Ao Stephen Shennan, por me orientar e abrir as portas do Institute of Archaeology,
UCL. Ao Stephen Nugent, pelo incentivo e valiosos conselhos, manythanks.
gueda e Deni, pela acolhida carinhosa, merci.
E em Caviana, todos os filhos de Caviana que me receberam com caf, banana, aa e muito carinho.
Dona Tereza, que me encantou. Seu Adolfo, pela confiana. Daria,minha companheira. A Edgar e Firmo por me acompanharem sempre. ASeu Roberto, meu apoio constante e de onde tudo comeou.
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Ningum entra num mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece j no se o mesmo, assim como as guas, que j sero outras. O fluxo das coisas
a prpria essncia do mundo.
Herclito de feso, filsofo grego, Sc. V AC.
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ndice
Introduo 1 1. Metodologia de pesquisa 222. A antropologia das populaes no-indgenas da Amaznia293. Paisagem feita memria 354. Estrutura da Tese 40
Captulo 1: Paisagem, Tempo e Transformao 43
1.1 O passado feito presente48
1.2 As primeiras pesquisas 50
1.3 Sobre continuidades e reocupaes 65
1.4 A narrativa histrica dos filhos de Caviana 71
1.5 Tempo e transformao 83
Captulo 2: Quando me entendi: a gente de Caviana 86
2.1 A ilha Caviana 90
2.2 A rea de pesquisa 96
2.3 O ritmo da vida nas guas 102
2.4 A prtica econmica e a subsistncia compartilhada 111
2.5 Os grupos domsticos e as casas 127
2.6 A esfera da f: os santos e as festas catlicas 142
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2.7 A gente, os filhos de Caviana 150
Captulo 3: As mulheres e as plantas 155
3.1 As mulheres e as plantas 159
3.2 Das visitas s trocas 191
3.3 As plantas: familiarizar para cuidar 204
Captulo 4: Um olhar sobre as plantas e a troca 213
4.1 Anlise dos dados etnobotnicos 219
Captulo 5: Plantas que curam: um olhar para o outro 247
5.1 Os outros 253
5.2 A gente que cura, as plantas da cura 262
5.3 As doenas e perturbaes 271
5.4 A feitiaria humana 281
5.5 As plantas e os lugares de gente 283
Captulo 6: E do que nos falam as plantas? 287
- Os caminhos do cuidar 289
Referncias Bibliogrficas 300
Anexos 320
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Lista de Figuras
CapaTereza, Joo Brs, Caviana, 2010. Foto: Juliana Salles Machado.
Introduo:
Figura abertura Introduo: Chegando no trapiche do Joo Brs Foto: Juliana Salles Machado.
Captulo 1: Paisagem, Tempo e TransformaoFigura abertura Captulo1: Fotos dos filhos de Caviana. Foto: Juliana Salles Machado.Figura 1.1: Foto de Satlite da ilha Caviana. Fonte: Google Earth 2011.Figura 1.2: Exemplo de moradia ribeirinha nas reas florestadas da ilha. Foto Juliana Machado.Figura 1.3: Exemplo de moradia ribeirinha na mar baixa nos campos naturais da ilha. Foto Juliana
Machado.Figura 1.4:Mapa histrico de C. Nimuendaju sobre a disperso de grupos indgenas Arawak. Nimuendaju,
C. 2008 [1926].Figura 1.5: Escavao de Curt Nimuendaju em 1925, ilha Caviana. Fonte: Barreto e Machado 2001.Figura 1.6: Escavao de Curt Nimuendaju em 1925, Rebordello, Caviana. Fonte: Nimuendaju 2004.Figura 1.7: Prancha com cermicas policromas coletadas por Nimuendaju. Fonte:Nimuendaju 2004.Figura 1.8: Prancha com cermica Aru identificada por Meggers & Evans em 1948 em Caviana. Fonte:
Megers & Evans 1957.Figura 1.9: Stios Arqueolgicos localizados na ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito.Figura 1.10: Vista do Teso Rebordello, com detalhe de urna funerria e stios arqueolgico, 2006. Foto:
Juliana Machado
Captulo 2: Quando me entendi: a gente de CavianaFigura abertura captulo 2: o por do sol no trapiche do Joo Brs. Foto: Juliana Salles Machado.Figura 2.1 Mapa com indicao da rea de pesquisa na ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito.Figura 2.2: Mapa da ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito.Figura 2.3: Entrada do igarap Taxipucu, Caviana. Foto: Juliana Salles Machado.Figura 2.4: Vista do igarap Pracutuba na mar alta com campo natural e floresta ao fundo. Foto: Juliana
Salles Machado.Figura 2.5: Mapa com grupos domsticos e demais locais citados no trabalho na ilha Caviana. Mapa:
Marcos Brito.Figura 2.6: Exemplos de grupos domsticos e casas na ilha Caviana. Foto Juliana Salles Machado.Figura 2.7: Casa de Adolfo e Tereza Figueiredo no Joo Brs e missa catlica na igreja da comunidade
Frei Crescncio. Fotos: Juliana Salles Machado.Figura 2.8: Exemplos de embarcaes em Caviana. Fotos: Juliana Salles Machado.Figura 2.9: Exemplo de casa no igarap Taxipucu, ilha Caviana. Foto: Juliana Salles Machado.Figura 2.10 Vista do terreiro do Joo Brs no fim da estao chuvosa. Foto: Juliana Salles Machado.Figura 2.11: Vaqueiros e sede de uma fazenda (abaixo) nos campos naturais de Caviana. Fotos: Juliana
Salles Machado.Figura 2.12: Pesca de peixe em Caviana: acima ( esquerda) curral, armadilha de pesca e ( direita)
arpo de pesca; abaixo ( esquerda) pesca com anzol e ( direita) com rede. Fotos: JulianaSalles Machado
Figura 2.13: Pesca de camaro em Caviana: acima e abaixo a esquerda, lanceando camaro, pesca comrede de arrasto na margem do rio Amazonas; abaixo a esquerda, matapi, armadilha depesca. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.14: Acima, barco de passageiros e abaixo, barco de pesca ambos de Roberto e seus filhos. Fotos:Juliana Salles Machado.
Figura 2.15: Acima, grupo domstico do igarap Taxipucu, com casa de Roberto e Igreja de NossaSenhora de Nazar a direita; ao meio esquerda, casa de Adolfo no Joo Brs e direita casade Constncio no Igarap Soc; abaixo exemplos de casas, esquerda no Soc e direita noigarap Pocot. Fotos: Juliana Salles Machado.
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Figura 2.16: Acima, exemplos de trilhas importantes, esquerda no Joo Brs, direita no Pocot; abaixo esquerda, exemplo de terreiro no Joo Brs e direita terreiro sendo construdo no entorno deuma casa nova. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.17: Acima, exemplos de roas sendo formadas prximo ao igarap Soc; ao meio roas debanana cercadas, esquerda no Turzinho e direita no Taxipucu; abaixo direita, roa debanana sem cerca na mata no Turzinho e esquerda, exemplo de roa recentementeabandonada no Soc. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.18: Acima esquerda e abaixo, canteiro de Tereza no Joo Brs; acima direita, canteiro naPrainha e ao meio direita canteiro nos fundos da casa no Pocot. Fotos: Juliana SallesMachado.
Figura 2.19: Acima esquerda, terreiro no Igarap Taxipucu, direita no Turzinho; ao meio, exemplosde canteiro em outro grupo domstico do Taxipucu, esquerda e na prainha, a direita;embaixo, contraste com vegetao de mata em trecho sem casas no igarap Taxipucu. Fotos:Juliana Salles Machado.
Figura 2.20: Coletnea de imagens de santos e altares no interior de diversas casas em Caviana. Fotos:Juliana Salles Machado.
Figura 2.21: Imagens da Igreja de So Sebastio no Joo Brs e das missas dominicais da comunidade.Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.22: Imagens da Igreja de Nossa Senhora de Nazar no Igarap Taxipucu e da ladainha emhomenagem a santa. Fotos: Juliana Salles Machado.
Captulo 3: As mulheres e as plantasFigura abertura captulo 3: esquerda, Tereza e seus canteiros no Joo Brs e a direita, o preparo do
alimento no Taxipucu por Cristiane. Foto: Juliana Salles Machado.Figura 3.1: Objetos do cuidar Acima esquerda, Dica tranando a tala e direita objeto para cobrir as
canoas; abaixo esquerda, Walica fazendo um pote cermico; ao meio direita, Augustatecendo uma rede de algodo e abaixo direita artefatos para fiar, como fusos de osso, cestos ealgodo Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 3.2.1: Tranados de tala de arum feitos por Dica. Foto: Juliana Salles Machado.Figura 3.2.2: Tranados de tala de arum feitos por Dica. Foto: Juliana Salles Machado.Figura 3.3: Produo cermica de Walica no Ubuutuba, 2006. Foto: Juliana Salles MachadoFigura 3.4.1: Desenhos feitos por Maiara no Ubuutuba, 2006. Acima esquerda, o processamento do
aa; Acima direita, tranando a palha; abaixo, a oleira. Desenho: MaiaraFigura 3.4.2: Desenhos feitos por Maiara no Ubuutuba, 2006. Acima, oleira tirando barro; abaixo, o rio e
a floresta. Desenho: MaiaraFigura 3.5: Croqui da casa de Tereza no Joo Joo Brs com indicao dos locais de plantio. Desenho:
Juliana Salles Machado.Figura 3.6: Vista da casa do Joo Brs. Foto: Juliana Salles Machado.Figura 3.7: Os canteiros de Tereza, Joo Brs. Foto Juliana Salles Machado.Figura 3.8: Os canteiros de Dica (acima) e Marli (abaixo) no Soc. Foto Juliana Salles Machado.Figura 3.9: Acima e esquerda, a coleta e o processamento para consumo domstico do aa e direita a
secagem dos caroos para posterior uso como adubo nos canteiros. Foto Juliana SallesMachado.
Figura 3.10: Exemplos de troca de plantas de remdio entre mulheres ribeirinhas de Caviana. Fotos:Juliana Salles Machado.
Captulo 4: Um olhar sobre as plantas e a trocaFigura abertura captulo 4: Final de tarde no grupo domstico de Roberto no Taxipucu. Foto: Juliana
Salles Machado.Figura 4.1: Exemplos de mulheres em entrevista sobre as plantas em seus terreiros e canteiros, Caviana.
Fotos: Juliana Salles Machado.Figura 4.2: Exemplos de reocupao de stios arqueolgicos por famlias ribeirinhas. Acima: cemitrio
indgena (detalhe de fragmentos cermicos de urnas funerrias) sob cemitrio histrico e atual;abaixo esquerda, urna funerria indgena ao lado de trilha usada pelos ribeirinhos; abaixo direita, saque de urnas funerrias arqueolgicas por estrangeiros em rea prxima ao terreiro deuma famlia ribeirinha. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 4.3: Exemplos de homens nos barcos de mdio porte usados para o comrcio de produtos emercadorias na ilha e nas cidades prximas. Fotos: Juliana Salles Machado.
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Figura 4.4: Exemplos de homens, mulheres e crianas nas canoas, chamadas localmente de cascos oumontaria, transporte mais utilizado no interior e margens da ilha. Fotos: Juliana SallesMachado.
Captulo 5: Plantas que curam: um olhar para o outroFigura abertura captulo 5: Tereza luz do lampio. Foto: Juliana Salles MachadoFigura 5.1: Acima, cobras grandes sendo flechadas ao sairem da armadilha construida dos Humanos
(apud Vidal 2007); abaixo, foto do banco que representa a cobra Kadaykahu (apud Vidal2007). Fonte Vidal 2007.
Figura 5.2: Tereza benzendo criana doente com planta de remdio. Fotos: Juliana Salles Machado.
Captulo 6: E do que nos falam as plantas?Figura abertura captulo 6: Pr do sol no Taxipucu. Foto: Juliana Salles Machado.Figura 6.1: Remos inacabados de Caviana, com detalhes dos motivos possivelmente atribuidos a
representao da cobra, gravados no cabo. Fotos: Juliana Salles Machado.Figura 6.2: Kuahi marca do banco do Jacar (apud Vidal 2007). Fonte: Vidal 2007.
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Lista de Grficos
Captulo 2: Quando me entendi: a gente de CavianaGrfico 2.1: Grfico com nmero de casas por igarap na rea de pesquisa, Caviana (2008-2010).Grfico 2.2: Grfico com rede familiar na rea de pesquisa, Caviana (2008-2010).Grfico 2.3: Grfico com formas de cultivo na rea de pesquisa, Caviana (2008-2010).Grfico 2.4: Grfico com a variedade de animais criados nas casas ribeirinhas da rea de pesquisa.
Captulo 4: Um olhar sobre as plantas e a trocaGrfico 4.1: Grfico com presena de plantas por local de implantao.Grfico 4.2: Grfico com variedade de plantas por reas de plantio.Grfico 4.2.1: Detalhamento das casas com maior variedade de plantas em canteiros.Grfico 4.3: Presena de roas nas casas.Grfico 4.4: Grfico com variedade de plantas por local de implantao.Grfico 4.5: Grfico com uso geral das plantas.Grfico 4.6: Grfico com uso das plantas por lugar de plantio.Grfico 4.7: Grfico com uso de plantas com origem desconhecida.Grfico 4.8: Origem das plantas que fornecem matria prima.Grfico 4.9: Origem das plantas de remdio.Grfico 4.10: Grfico com distribuio do uso de plantas por famlia e gnero.Grfico 4.11: Grfico indicando doadores de alimentos.Grfico 4.12: Grfico indicando doadores de remdios.Grfico 4.13: Grfico com distribuio do uso de plantas doadas por mulheres.Grfico 4.14: Grfico com distribuio do uso de plantas doadas por homens.
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Lista de Tabelas
Introduo:Tabela I.1: Tabela com questionrio sobre economia e assentamentoTabela I.2: Tabela com questionrio sobre as plantas
Captulo 1:Tabela 1.1: Tabela com stios arqueolgico localizados na ilha Caviana cadastrados no IPHAN at 2006.
Captulo 2:Tabela 2.1: Tabela de oposies em Caviana: a cidade na percepo ribeirinha.
Captulo 4:Tabela 4.1: Tabela com legenda da provenincia das plantas.
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Lista de Anexos
Anexo1: Narrativa Caviana de Alcindo Abdom texto integral.Anexo 2: Questionrio sobre economia utilizado nas casas ribeirinhas da rea de pesquisa.Anexo 3 Diagrama genealgico geral da rea de pesquisaAnexo 4: Tabela com sntese dos dados etnobotnicos coletados.Anexo 5: Tabela com indivduos entrevistados, casas e dados socioeconmicos.
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Introduo:
Figura abertura Introduo: Chegando no trapiche do Joo Brs Foto: Juliana Salles Machado.
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Juliana Salles Machado
Introduo
o navegar os igaraps da ilha Caviana, na regio deltaica do rio
Amazonas, o que se v em volta uma enorme floresta. H mais de uma dcada trabalhando
na regio amaznica, poucas vezes tinha visto uma vegetao to exuberante. A primeira
impresso era a de adentrar um ambiente ainda preservado das chocantes aes humanas que
eu havia presenciado h poucos anos no entorno da cidade de Manaus. Apesar de meu
conhecimento acerca da intensidade da modificao na paisagem amaznica pela ao
humana desde os tempos pr-coloniais (Bale 2006a, 1998, 1994, 1989; Bale & Erickson
2006; Brondzio 2004. Brondzio et al. 1994; Heckenberger 2005, 2003; Heckenberger &
Neves 2009; Peteresen et al 2001; Posey 2008, 1998; Posey & Bale 1989; Roosevelt 1991;
Schaan 2004; Neves 2010, 2009, 2007, 2005, 1999; Deneven 2001; Lentz 2000; Oliver 2001),
minha real percepo de que essa enorme floresta no estava isenta desta ao se deu
gradativamente, junto com o reconhecimento das formas pelas quais se deu essa interferncia.
Agrupamentos de rvores da mesma espcie em meio variedade da mata se destacavam
como antigos assentamentos. Palmeiras denunciavam o manejo humano. As pessoas que ali
viviam conheciam a diversidade da floresta, no como um espao nico e sim por seus
incontveis lugares significativos ligados por caminhos, histrias passadas e atuais. A floresta
escondia uma infinidade de relaes significativas manifesta no prprio cotidiano dos
ribeirinhos, cuja vida se constri junto com esses lugares.
Esta tese trata da relao entre as plantas e as pessoas. O manejo ambiental praticado
pelas populaes no-indgenas da Amaznia j vem sendo amplamente discutido como
modelo de sustentabilidade e exemplo de flexibilidade econmica (Bale 1989, 2006b;
Brondzio 2004, 2006; Brondzio et al 1994; Lima 2006, 2004, 1999; Lima e Ferreira 2001;
Murrieta et al 1999; Parker 1983; Posey 1998. Posey & Bale 1989; Raffles 2002, 1999;
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
Slater 2002). No entanto, pouco se fala sobre o significado desse manejo para os prprios
ribeirinhos, que certamente ultrapassa sua importncia econmica. Como essas populaes
entendem o cultivo e a manuteno de espcies vegetais e, afinal, por que o fazem? Com que
critrios escolhem seus assentamentos e suas plantaes? A lgica econmica pode nos
explicar muito da insero dos ribeirinhos no mercado e de sua relao com as cidades, mas
ser essa a nica razo para o manejo da floresta?
Uma de minhas hipteses iniciais era a de que esse manejo representava uma forma de
continuidade com as populaes indgenas (Arruti 2007; Nugent 1993, 2006; Batista 1991;
Wagley 1967; Galvo 1979, 1975; Silva 1996; Schaden 1963,1949; Maus 1999; Loureiro
2002; Meggers 1957; Nimuendaju 2004; Hartmann 2000). A relao entre as populaes
ribeirinhas e os grupos indgenas serviu como pano de fundo s discusses sobre as chamadas
sociedades caboclas da Amaznia h pelo menos 50 anos, como visto nas obras clssicas de
Wagley (1957) e Galvo (1979). No entanto, os elementos de continuidade to enfatizados
por esses autores, foram cedendo progressivamente terreno relao dessas populaes com o
sistema colonial (Chipnick 1991; Bakx 1986; Harris 1998, 2005, 2000; Lima 1999; Nugent
1993; Pace 1997; Rodrigues 2006) e com as influncias africanas (Boyer 1999; Prandi 2001).
Como arqueloga, durante muitos anos observei casas de ribeirinhos sendo construdas em
cima de stios arqueolgicos. Quando precisvamos de colees de referncia, as primeiras
pessoas a procurar sempre eram os ribeirinhos, que, dentro de suas casas, reutilizavam potes e
panelas indgenas, sabiam a localizao das antigas aldeias e muitas vezes nos surpreendiam
com indicaes sobre a funo especfica de cada lugar ou objeto. Esse conhecimento
generalizado e o interesse dos ribeirinhos pelos grupos indgenas que os antecederam
reforavam minha hiptese de que a relao entre o passado indgena e o presente ribeirinho
ainda era muito significativa para eles.
Por meio de uma observao mais detalhada dos stios arqueolgicos e das casas dos
ribeirinhos na ilha Caviana, um fator me chamou particular ateno: a presena das mesmas
espcies vegetais nos dois lugares. Uma nova perspectiva tinha sido aberta para mim: quis a
partir de ento entender o que eram essas concentraes de rvores teis para aquela
populao, como as usavam, como as plantavam e as mantinham e, finalmente, por que o
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Juliana Salles Machado
faziam. Para dar conta dessa nova realidade que se apresentava diante de meus olhos, busquei
sistematizar os dados sobre os tipos e a localizao das plantas usadas pelos ribeirinhos. Ao
documentar a riqueza dessas plantas, me dei conta da importncia de cada uma delas para as
pessoas da ilha. Uma importncia que extrapolava sua condio de item de subsistncia,
integrando o territrio da memria, do parentesco e do sobrenatural.
Meu objetivo, ento, passou a ser o de entender o significado do plantar para os
ribeirinhos. Plantar faz parte de um conjunto de prticas que vo desde a obteno de uma
muda ou semente na floresta, sua transformao em planta no ambiente domstico, a troca das
mudas entre parentes e amigos e a preservao dessa riqueza conhecida e selecionada. Como
veremos no decorrer da tese, o ato de plantar reflete um ato de cuidar mais profundo, que
inclui o cuidar de pessoas. Como veremos principalmente nos Captulos 3 e 5, a cosmologia
ribeirinha repleta de mes que tm o papel de proteger os seus filhos, tais como as mes-
do-mato (Alencar 2002; Boyer 1999; Galvo 1975; Silva 1996; Maus 1999; Slater 2002,
1994; Wagley 1957; Prandi 2001 e, para um exemplo de pajelncia Maranhense, ver Pacheco
2004) e, mais particularmente em Caviana, as mes-dos-lugares. Estes seres no-humanos
possuem poderes capazes de afetar os humanos atravs de flechas invisveis, aparies e
feitios ou encantos. Os sintomas mais comuns so o aparecimento de doenas que vo
deixando os humanos fracos e magros, podendo at faz-los morrer. O ato de morrer , nesse
processo, uma transformao do ser humano atingido para se tornar semelhante quele que o
encantou. Nesse processo de instabilidade da condio de humano, as plantas assumem um
papel fundamental, pois elas oferecem a cura desse encanto, a reverso desse processo, isto ,
a possibilidade de permanncia de sua existncia enquanto humano.
A cura atravs das plantas s possvel por que os vegetais pertencem a esse mundo
no-humano, possuindo em si poderes relacionados aos agentes encantadores. Trazer um
vegetal desse mundo para o interior da casa, para a proximidade e reconhecimento dos
parentes um ato de familiarizao de seus poderes exteriores. Assim o uso dos vegetais nas
curas pelas mulheres se d por meio do uso de poderes exteriores. O curar em Caviana uma
ferramenta importante e compartilhada entre as mulheres numa rede de trocas; essa rede tem
como funo manter sempre vivo o saber da cura, o saber das plantas, e assim garantir a
permanncia de sua famlia e, consequentemente, dos filhos de Caviana.
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
Nesta Introduo, exponho inicialmente a metodologia de pesquisa adotada na tese.
Essa explicitao importante como ferramenta de anlise e tambm porque pode tornar mais
clara a situao emprica da pesquisa. Em seguida, apresento um breve histrico da literatura
sobre os ribeirinhos da Amaznia, esclarecendo as razes de certas discusses sobre esse
objeto e situando este trabalho num contexto antropolgico mais amplo. No entanto, cabe
ressaltar que as ideias que sustentam esta discusso esto dispersas em diferentes reas do
conhecimento, na antropologia1 e sua relao com a histria
2 e na (etno)arqueologia
3, mas
tambm na etnobotnica e nos estudos mais interdisciplinares de manejo ambiental4 e
paisagem5. Esses ltimos tiveram um papel fundamental, pois fizeram com que eu voltasse
meu olhar para a importncia das plantas na vida ribeirinha. Mais do que isso, ampliaram
minha compreenso sobre a percepo nativa das mltiplas temporalidades presentes na
paisagem. Finalmente, concluo essa introduo com uma breve sntese da estrutura da tese.
1. Metodologia de pesquisa
A ilha Caviana fica no extremo norte do estado do Par, no delta do rio Amazonas.
majoritariamente habitada por comunidades ribeirinhas na sua poro oeste e por poucos
vaqueiros e fazendeiros nos campos naturais a leste, onde esto as fazendas de gado. As
1 Para as principais referncias que usei nesta pesquisa ver: Latour 2005; Leach 1996; Graeber 2001; Levi-
Strauss 1989; Leroi-Gourhan 1971; Fausto 2008, 2007, 2001, 2000; Basso 1988; Behar 1986; Brubaker e Cooper
2000; Champaigne 1975; Fortes 1969; Bourdieau 1996; Geertz 1967; Goffman 1967; Descola 2001; Elias 1965;
Malinowski 1975; Viveiros de Castro 2002; Durkheim 1989; Evans-Pritchard 2005; Strathern 2004, 1988; entre outros. 2 Para as principais referncias que usei nesta pesquisa ver: Bensa 1998; Heckenberger 2001; Rosaldo 1980;
Sahlins 1981, 1985; Santos-Granero 1998; Steward et al 2003; Thomas 1989; entre outros. 3 Para as principais referncias que usei nesta pesquisa ver: Silva 2000, 2003; Nelson 1991; Lemmonier 1986,
1992; Neuport 2000; Pfaffenberger 1992, 2001; Polisits 1995; Schiffer & Skibo 1992, 1997; Schiffer 2001,
1972; Skibo e Schiffer 2001; Torence & Van der Leeuf 1989; Zedeno 2008. 4 Para as principais referncias que usei nesta pesquisa ver: Ellen 2006; Bale 2006a, 2006b. 1998, 1994, 1989;
Bale & Erickson 2006; Crumley 1994, 1995; entre outros. 5 Para as principais referncias que usei nesta pesquisa ver: Aldenfereder 2006; Arhem 1998; Ashor et al 1999;
Dove e Carpenter 2008; Lentz 2000; Flint & Morphy 2000; Hirsch & OHnalen 1995; Kuchler 1993; Ingold
2001, 2000; Buchler & Melion 1991; entre outros.
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Juliana Salles Machado
comunidades ribeirinhas da ilha so hbridos ps-coloniais de ocupaes europeias
(portuguesas e francesas), indgenas (provavelmente associadas a famlia lingustica Arawak)
e, minoritariamente de africanos ou afrodescendentes. O acesso a Caviana difcil, devido
turbulncia das guas do rio Amazonas nesse ponto do delta. Para chegar ilha, necessrio
sair de barco de Macap e fazer a travessia de um canal, o que leva aproximadamente 12
horas em seu ponto mais prximo. Outra alternativa, sair do norte da ilha de Maraj, cujo
acesso se d por pequenos avies particulares ou por alguns dias de barco pelo interior dessa
ilha desde a cidade de Belm. No entanto, tambm nesse trecho, necessrio cruzar o
chamado canal perigoso, no qual a turbulncia das guas bastante intensa, fazendo com que
essa alternativa seja pouco usada. A grande extenso da ilha Caviana, sua implantao em
meio ao delta e seu rpido processo de transformao interna (como o assoreamento e a
sedimentao de seus rios e margens) requerem um profundo conhecimento do trecho da
navegao, sendo muitas vezes necessrio algumas paradas ao longo do trajeto para esperar a
pororoca passar, ancorando os barcos em reas mais distantes.
Selecionei uma comunidade na ilha, a Frei Crescncio, para uma investigao mais
intensa e sistemtica (no caso da coleta de dados etnobotnicos e das entrevistas). Essa
comunidade fica na poro central da ilha e foi selecionada por ter o maior nmero de
moradores antigos da regio, alm de uma vegetao nativa preservada, permitindo um modo
de vida ribeirinho no necessariamente associado pecuria ou ao comrcio intenso com a
cidade. Vivem ali cerca de 236 indivduos, dispersos em aproximadamente 50 casas ao longo
de 10 igaraps e nas margens da ilha. Pelo menos um morador ou moradora de cada casa da
comunidade foi entrevistado, mas escolhi trs grupos domsticos para analisar mais
minuciosamente: o de Adolfo Figueiredo, lder da comunidade e com maior status poltico e
econmico; o de Roberto Figueiredo, irmo de Adolfo e conhecido como marreteiro, que faz
o comrcio de bens entre os ribeirinhos e tambm entre fazendeiros e a cidade; e o de
Constncio Ferreira, pertencente a uma famlia com uma intensa produo de roas e plantio.
Inicialmente, minha pesquisa centrou-se no ponto de vista masculino, pelo fato de meus
principais colaboradores serem homens, mas, no decorrer do estudo, as mulheres foram
assumindo o papel central, tornando-se minhas principais fontes de informao e pesquisa.
Como pesquisadora vinda do sudeste, vinculada a uma universidade federal, eu fui
vista muitas vezes como uma estrangeira, comumente associada ao governo. No entanto, essa
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
viso foi atenuada com o passar dos anos. Tambm minha condio feminina era ambgua,
vinda de fora eu era apresentada aos lderes homens da ilha, devido principalmente ao meu
conhecimento do mundo exterior ilha e de poltica em geral. No entanto, com as minhas
repetidas idas a ilha ao longo dos anos e com a percepo dos ribeirinhos do meu interesse
pelas plantas, a esfera feminina me foi sendo apresentada gradativamente. O adoecimento de
Adolfo, meu principal interlocutor nos primeiros anos, me levou a uma maior proximidade
com sua esposa, Tereza. Essa interao, aliada a meu esforo pessoal em participar das
atividades cotidianas da casa, permitiram uma mudana na viso dos ribeirinhos sobre mim.
Em pouco mais de dois anos, a ambigidade de minha presena foi diminuda, apesar de
persistir de maneira menos bvia at o presente. Pude ser recebida como de casa, como
filha, como amiga, e, finalmente, como parceira na troca das plantas. mim foram atribudas
atividades domsticas e cerimoniais, como nas missas dominicais. Pude acompanhar os
banhos de rio no final da tarde e as conversas ntimas na cozinha j na escurido da noite. No
entanto, como no poderia deixar de ser, nunca deixei de ser diferente, de transitar entre os
homens e em muitos casos de ser vista como fonte de oportunidades, seja de conexo com o
restante do pas, como nas cartas e telefonemas a parentes perdidos cujo paradeiro era
desconhecido das famlias, seja como alvo de solicitaes das mais diversas, como o conserto
de culos, a instalao de telefones e rdios, entre inmeros outros pedidos.
Minha pesquisa estendeu-se por seis anos, dos quais quatro realizei pesquisas de
campo. Minha primeira etapa de campo ocorreu antes de meu ingresso no Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional (doravante PPGAS) e serviu como
uma etapa inicial de levantamento para melhor definir meu problema de pesquisa. Aps meu
ingresso no doutorado, obtive uma bolsa CAPES com durao de quatro anos. Ao longo desse
perodo, tive diversos financiamentos para a realizao das etapas de campo, a saber: em
2006, obtive financiamento do NuTI; em 2008, do CNPq e Farperj (bolsa CNE); e em 2009 e
2010, o Auxlio-campo PPGAS, Museu Nacional, UFRJ. Cada etapa de campo durou de 30 a
40 dias. Tambm obtive financiamentos para a participao em congressos nacionais e
internacionais oriundos de Auxlio-evento PPGAS e da Wenner-Gren Foundation via
Association of Social Anthropologiss of the UK (ASA). Durante esses anos de pesquisa, fui
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Juliana Salles Machado
me duas vezes, experincia que certamente direcionou meu olhar para a esfera feminina da
ilha e ajudou na minha insero entre as mulheres de Caviana.
Talvez seja importante esclarecer um pouco sobre a construo de meu objeto de
pesquisa. A ilha Caviana chamou minha ateno h quase uma dcada atrs, quando me
deparei com urnas funerrias de grande apelo esttico em algumas colees de museus
europeus, como o de Goteborg na Sucia. Apesar da riqueza de cores e suas formas
antropomorfas, pouco se sabia (ou ainda se sabe) sobre seu contexto de origem. Os aspectos
formais e decorativos apresentam semelhanas com s urnas marajoaras (como o uso do
vermelho, preto e branco para compor tramas geomtricas e zoomorfas que ornamentam um
corpo feminino), mas tambm com as figuras sentadas das urnas Marac, encontrados no sul
do estado do Amap, e a ainda com a cermica Arist, presente na regio norte do mesmo
estado6. Em Caviana tais semelhanas formal e decorativa se articulavam para compor urnas
funerrias ainda pouco estudadas. Apesar dessa curiosidade inicial, apenas alguns anos mais
tarde vim saber da existncia de uma produo cermica local contempornea no associada a
um comrcio intenso, como atualmente ocorre na ilha de Maraj e arredores de Belm.
Em 2006 quando apresentei meu projeto de doutoramento ao PPGAS buscava
justamente esse dilogo entre o passado e o presente, estudando a produo cermica atual da
ilha no cotidiano ribeirinho e comparando-a s cermicas arqueolgicas atribudas regio.
Minhas expectativas foram um pouco frustradas j no primeiro campo quando percebi que
havia apenas duas oleiras atuantes na ilha. Mas, fascinada pela regio e pelo manejo
ambiental praticado pela comunidade ribeirinha, continuei minha pesquisa em Caviana. Nesse
momento, meu olhar se voltou ao manejo ambiental dos ribeirinhos nas reas de ocupaes
mais antigas, como os stios arqueolgicos. Para entender como isso ocorria, resolvi coletar
listas de plantas e usos de cada uma cujas variveis foram baseadas nas pesquisas e
metodologias de Ellen (2006), Bale (2006), Messer (1979) e Trujillo & Gonzalez (2011).
Nessa tarefa percebi a variedade de locais manejados e a existncia de algumas associaes
entre espcies de plantas, locais de plantio e uso. Resolvi ento sistematizar minha coleta de
dados atravs de questionrios e aplic-los aos moradores de cada casa. Durante esse processo
o conhecimento das mulheres sobre as plantas se destacou, em especial a memria sobre a
origem de cada planta e a identificao do nome de quem lhes dera cada muda. Tal
6 Para uma das poucas descries da cermica chamada Caviana ver Rostain 2011.
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
detalhamento fez com que eu inclusse em meus questionrios informaes sobre a origem
das mudas (Anexo 7).
O objeto de minha pesquisa foi, portanto, sendo construdo conforme as informaes
me eram apresentadas em campo. Apenas nos ltimos dois anos pude ter um recorte mais
claro de estudo, enfocando a relao das mulheres com as plantas e o papel das redes de troca.
No entanto, foi somente no ltimo ano de pesquisa que pude ter acesso a como as plantas
curam e relao entre o mundo dos humanos e os no-humanos.
Exceto no levantamento preliminar, em 2006, em todas as outras etapas da pesquisa
adotei a observao participante. As comunidades ribeirinhas em geral e especificamente em
Caviana falam portugus, minha lngua nativa, utilizando algumas palavras indgenas para
identificar objetos e lugares. Ao longo da pesquisa fiz diversas entrevistas e algumas delas
foram filmadas. Vrias filmagens foram utilizadas na documentao e no registro etnogrfico,
alm da plotagem de pontos com GPS, croquis de reas domsticas e reas de plantio e
documentao fotogrfica. Em todas as etapas de campo houve registros escritos (depois
editados e sintetizados em relatrios de campo) e documentao audiovisual, tambm editada
para cada etapa de campo. Alm das entrevistas, utilizei questionrios, sobretudo para obter
informaes sobre economia, genealogia, dados etnobotnicos e histrico dos padres de
assentamento. Apresento abaixo os itens analisados nos questionrios (Tabela I.1 e I.2), cuja
tabela se encontra em anexo (Anexo 2 e 7):
A partir dos dados genealgicos que me foram apresentados fiz uma listagem de
nomes, os correlacionado aos demais dados socioeconmicos disponveis. Todos os
indivduos arrolados na tabela do Anexo 8 encontram-se tambm nos diagramas genealgicos
(Anexo 9), que indicam suas relaes de parentesco. Para os indivduos e famlias
entrevistados, listei no Anexo 8 o nmero de casas correspondentes. Para as entrevistas foram
contadas e visitadas 50 casas, mas h mais na ilha, pois nem todas foram includas na amostra
da pesquisa. Selecionei uma rea de pesquisa coincidente chamada comunidade Frei
Crescncio, amostra analtica que engloba algumas casas e grupos de casas para melhor
compreender a sua localizao, o uso de seu espao interno, bem como os usos individuais e
coletivos das plantas.
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Juliana Salles Machado
QUESTIONRIO 1: ECONOMIA E ASSENTAMENTO
ITEM VARIVEL 1 localizao de cada indivduo nas redes de
parentesco
identificao nos diagramas
genealgicos
2 sexo feminino ou masculino
3 nmero de identificao da casa alfa-numrico
4 nome do lugar onde fica a casa nominal
5 tipo de assentamento margem alagada de igarap
margem seca de igarap
costa da ilha
campo natural
6 forma de agrupamento das casas configurao de casas mais de trs
casas grupo domstico at trs casas
casa isolada
7 roas presena ou ausncia
8 terreiros presena ou ausncia
9 canteiros presena ou ausncia
10 uso de reas abandonadas presena ou ausncia
11 criao de animais gado
porcos
galinhas
patos
12 pesca consumo domstico
venda
13 posse de embarcaes canoa
barco pequeno
barco mdio
barco grande
14 atividades rentveis/ remunerao remunerao mensal
venda de produtos da roa
venda de pescado
atividade mista
Tabela I.1: Tabela com questionrio sobre economia e assentamento
Durante as visitas, observei cada casa e fiz uma entrevista estruturada e outras no
estruturadas sobre as plantas dos canteiros, terreiros e roas e os possveis usos de reas
abandonadas. Essas informaes resultaram num banco de dados que serviu de base para a
estatstica descritiva e uma sistematizao dos usos das plantas na ilha Caviana. Na tabela do
Anexo 10 apresento os itens observados na aplicao de um segundo questionrio. Neste, o
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
foco era a relao das plantas com as mulheres, a partir de dados sobre as reas e prticas de
plantio, seus usos e origem. Enquanto no primeiro questionrio, as respostas eram dadas por
representantes femininos e/ou masculinos de cada casa, neste ltimo, os dados eram na sua
grande maioria fornecidos exclusivamente pelas mulheres. Seguem abaixo os itens
observados (Tabela I.2):
QUESTIONRIO 2: AS PLANTAS
ITEM VARIVEL 1 nmero de identificao da planta alfa-numrico 2 nome nativo da planta
nominal
3 espcie botnica
nominal
4 famlia
nominal
5 habitat
rvore
arbusto
erva
palmeira
6 atos de proteo7 sobre a planta ausncia ou presena
7 atos de cultivo ausncia ou presena
8 categoria de uso (variveis combinveis):
alimento
remdio
comercial
ornamento
madeira
matria-prima
construo
ferramenta
processamento de alimentos
fibra
mltiplos usos
9 fator de reutilizao ausncia e presena
10 origem da planta8
nominal
11 descrio de uso descritivo
Tabela I.2: Tabela com questionrio sobre as plantas
7 So consideradas aes de proteo os cuidados com as mudas como as cercas de proteo contra animais, o
corte seletivo das plantas do entorno, a retira de das ervas daninhas, a adubao, a poda etc. 8 Esse item ser apresentado com os resultados da estatstica descritiva encontrada no Captulo 4.
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Juliana Salles Machado
Ao longo de meu estudo, como disse acima, trs casais se tornaram meus principais
interlocutores: Adolfo e Tereza Figueiredo; Roberto e Maria Augusta Figueiredo e Raimunda
dos Santos Batista (Dica) e Constncio Ferreira. Apesar de os dois primeiros serem parentes,
pertencem a grupos domsticos separados, tm diferentes status e esferas de atuao na
dinmica social da rea de pesquisa. Ao final de meu trabalho, Tereza se tornou minha
principal interlocutora. Nenhum de meus colaboradores foi pago, os nicos assistentes pagos
foram os pilotos do barco, normalmente um dos filhos de Roberto, que um dos poucos
ribeirinhos que tinha uma embarcao disponvel para meu uso durante a pesquisa.
Tendo situado o contexto da pesquisa, volto-me agora para as discusses
antropolgicas acerca das populaes ribeirinhas.
2. A antropologia das populaes ribeirinhas da Amaznia
As populaes ribeirinhas da Amaznia foram muitas vezes vistas como legados de um
processo colonizador predatrio frente grupos indgenas tidos como naturais da terra9. Esse
processo, que teria ocorrido entre os sculos XVIII e XIX, estaria relacionado integrao
dos amerndios sociedade brasileira e criao de uma nova categoria de pessoas e
cultura (Harris 2006:88). Chamadas de sociedades caboclas, elas ficaram fora da noo de
outro amaznico, assim como ficam at hoje margem da dita civilizao. Mesmo no sendo
explcito, esse discurso ainda subjaz antropologia amaznica, na medida em que essas
populaes so frequentemente preteridas pelos estudos acadmicos.
A imagem da cultura cabocla que fora consolidada a partir de meados do sculo XX, em
acordo com seus propositores Charles Wagley (1957) e Eduardo Galvo (1975), se
expressava na vida isolada em unidades familiares, geralmente nas vrzeas dos rios, igaraps
e lagos, numa pequena agricultura familiar combinada com a pesca e a caa (Murrieta et al.
2006:19; Nugent 1993, 2006). Nesta perspectiva, estariam sujeitos adaptao ambiental
tornando-se acomodados s demandas econmicas externas (Harris 2006:88). Este modo de
9 Para mais discusses sobre o tema, ver Nugent (1993, 2006); Adams (2006); Galvo (1979, 1975); Harris
(2005); Lima (1999) e Lima & Alencar (2001).
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
vida teria posteriormente se cristalizado dentro de uma realidade a-histrica (Murrieta et al.
2006:19; Nugent 1993, 2006) um dos temas da literatura para o qual eu gostaria de chamar a
ateno (para crtica a abordagens a-histricas, cf. Nugent 1993, 2006). Sendo fruto de um
complexo processo histrico de colonizao europeia na regio, da mistura de pessoas,
crenas e ideologias diversas, tais populaes no possuam um passado pr-colonial ao qual
podiam ser atribudas diretamente. Aliado isso, a viso de uma Amaznia como natural,
isenta de sociabilidade (Nugent 1993:5), reforava a ideia de um estado de ser atemporal.
Perante a literatura, tais ideias acabaram por legar aos ribeirinhos uma posio passiva frente
sua trajetria, sem histria, oprimidos por um ambiente inspito e subordinados s
oscilaes comerciais externas (Nugent 1993, 2006).
Para melhor compreender esses processos histricos de embates, cooperaes e
miscigenaes entre populaes indgenas locais, escravos africanos, afrodescendentes e
europeus e sua repercusso nas populaes atuais, no podemos selecionar apenas parte desse
passado, conferindo privilgio a um ou outro vnculo. Dizer que o caboclo um constructo do
processo colonial no nos exime de compreender esse processo. Muito se falou sobre a
relao das populaes ribeirinhas com a sociedade nacional e sua vinculao com o passado
colonial europeu. No entanto, negar o passado indgena dessa populao dita cabocla tem o
mesmo peso de negar a influncia europeia ou africana na sua constituio. No se trata de
buscar uma continuidade, mas de saber quais so as continuidades que se encontram nessa
populao, isto , qual a memria que se construiu e se constri localmente, seja no discurso
ou na prtica dessas populaes ribeirinhas.
Se afastando gradativamente do determinismo ambiental, na dcada de 1990, a noo
de caboclo comea a ser modificada para a de um agente com a capacidade de interferir e
transformar o ambiente onde vive. As pesquisas acadmicas, de maneira geral, tm conjugado
abordagens ecolgicas e econmicas. Encontramos uma variedade de trabalhos que buscam
incluir nas anlises o contexto social, econmico e poltico mais amplo (Chipnick 1991; Lima
2006, 2004, 1999; Murrieta & WinklerPrins 2006; Murrieta et al. 1999) e tambm aqueles
que enfatizam a historicidade dos processos de manejo ambiental e transformao ecolgica,
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Juliana Salles Machado
resultando nas conhecidas florestas culturais10
(Raffles 2002, 1999; Harris 2005, 2000,
1998; Lima & Alencar 2001). Dentre as abordagens ecolgicas, nos ltimos anos diversos
autores enfatizaram o uso da terra e dos recursos naturais pelas populaes amaznicas e sua
relao com questes de gerenciamento poltico e ambiental (Adams et al. 2006; Brondzio
2004; Lima 2004; Chipnick 1991; Siqueira 2006). J as abordagens econmicas reforam, por
um lado, a ideia de uma Amaznia conectada por comrcio, crdito, migrao, trocas,
conflitos e busca de commodities e, por outro, um grupo de pessoas fora do alcance do estado,
envolvidas numa economia informal (Brondzio 2004; Nugent 1993; Lima 2006).
Atualmente, a invisibilidade da posio sociopoltica e identidade cultural dos
ribeirinhos (Nugent 1993, 2006; Boyer 1999; Chipnick 1991; Rodrigues 2006; Oliveira 1991;
Adams et al 2006; Harris 1998; Lima 1999; Lima & Alencar 20001; Loureiro 2002 para
uma viso mais geral sobre o tema da invisibilidade e identidade ver Brubaker & Cooper
2000) tornaram-se objeto de discusso acadmica, ainda que em nmero muito reduzido,
conforme afirmam Adams et al (2006) na introduo de seu livro:
A formao da identidade cabocla tem lugar no interior de processos
definidos mais pelas externalidades (transformaes econmicas globais)
do que pelas comunidades culturais locais (Leonardi 1999; Nugent
1993). O contexto de violncia e de dominao, no qual sua identidade
foi forjada, fez com que o caboclo construsse uma identidade de
oposio (Harris 1999; Slater 1997). Na opinio de Harris (1999), por
viver numa lgica de curto prazo e longe dos centros de poder, o caboclo
combina a oposio e a indiferena em sua relao com os patres,
tentando evitar, ou pelo menos diminuir, a dominao atravs de uma
vida social aparentemente anrquica. O fato das sociedades caboclas no
possurem antepassados pr-capitalistas evidentes (se ns no
considerarmos a sua descendncia indgena como uma continuidade), ao
contrrio das sociedades camponesas tradicionalmente tratadas pela
antropologia, tem dificultado ainda mais uma abordagem histrica
(Nugent 1993, 1997). (...) Reconhecer a significncia das sociedades
10 Para estudos com populaes indgenas, cf. Bale (2006a; 2006b; 1998; 1994; 1989); para estudos com
populaes caboclas, cf. Raffles (2002; 1999).
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caboclas requer consider-las como sociedades inseridas neste contexto
de mudanas histricas, e sujeitas mesma dinmica que incorporou
outras periferias no mbito dos sistemas poltico-econmicos
capitalistas (Brondzio & Siqueira 1997; Murrieta et al 1999; Nugent
1993; Schmink 2003). (Adams et al. 2006:17)
No h uma denominao consensual para essas pessoas com modo de vida semelhante
que habitam as margens dos rios amaznicos, que por vezes so chamados de caboclos. O
termo sociedades caboclas recentemente ganhou fora com a publicao de Adams et al.
(2006), obra que representa o estado da arte dos estudos sobre o tema. O uso do termo retoma
uma denominao usual entre a populao amaznica, silenciada devido sua conotao
negativa ( uma categoria relacional, no um termo de auto-designao, usado pelos
habitantes das cidades amaznicas para falar de pessoas do interior, e de acordo com Lima
(1999), essa categoria estabelecia um valor inferior aquele que o proferia, como mais
atrasado, iletrado, inculto). Recentemente, entretanto, foi sendo reformulada por autores locais
em uma tentativa de valorizao regional. J o uso de ribeirinhos, apesar de histricamente
tambm ter uma associao com uma posio de subordinao social (patro/pequeno
produtor), ela mais vaga do que quela mencionada para caboclos. O uso desta designao
feito por autores como Harris (2005, 2000) e por essa autora (Machado 2010, 2009), entre
outros, se deve no apenas a referncia geogrfica de suas moradias ao longo dos rios e
igaraps, mas, principalmente, por marcar a relao que as pessoas e comunidades tm com
esses corpos de gua, que assumem uma importncia central na sua organizao social. A
opo pela utilizao desse termo, a meu ver, nos afasta da dubiedade interpretativa que
caboclo pode acarretar (focando na dicotomia campo-cidade) e nos leva a pensar a relao
que essa populao constri com a paisagem. Em minha pesquisa, o uso do termo se tornou
ainda mais forte, uma vez que aceito pela populao local, apesar de no ser utilizado e nem
ser uma auto-denominao. Outra referncia encontrada sociedades tradicionais (para
crtica, ver Brondzio 2004), utilizada nos discursos polticos como uma forma de inserir essas
populaes em polticas pblicas (Chipnick 1991). Nugent se refere ainda a camponeses
histricos (Nugent 1993, 2006) com o intuito de inseri-los em uma discusso sobre o
campesinato na Amaznia, rea onde tal abordagem pouco trabalhada. A utilizao de uma
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Juliana Salles Machado
referncia temporal nesse caso se deve, segundo o autor, a uma aluso a trajetria histrica
particular dessa populao em relao aos camponeses do nordeste brasileiro, estes ltimos
intensamente tratados na literatura. Outros termos como pequenos produtores (Brondzio
2004) e pescadores (Lima 2006; 2004), so usados pelos autores para marcar a insero
econmica desse grupo no mercado nacional e internacional. Seus estudos focam a economia
domstica, ou economia da casa, como um fator importante de organizao social. Lima os
define como populaes tradicionais e para o contexto de Mamirau apresenta a seguinte
descrio: moradores de uma unidade de conservao de uso sustentvel, engajados em
prticas de conservao, ou ainda ao fato de se tratar de uma populao regional, amaznida,
com longa histria de convivncia natural (Lima 2006:145).
Devido, em grande parte, a seu carter hbrido (no sentido tnico mistura entre europeus,
ndios e africanos) e flexvel (tanto no sentido econmico devido diversidade de suas
atividades e flutuaes intensas de seu comrcio, quanto religioso, relacionado a um
catolicismo popular bastante aberto) uma das discusses que permeiam o conceito de caboclo
na literatura se ele passvel de ser categorizado (Lima 1999; Boyer 1999; Chipnick 1991;
Rodrigues 2006; Harris 1998). Parte dessa literatura aponta para uma sada interessante: a
unidade desta categoria residiria em sua prpria flexibilidade; sua intersticialidade sendo o
lcus mesmo de sua unidade (Chipnick 1991; Harris 2006; Rodrigues 2006). No entanto, a
prpria ideia de intersticialidade implica em categorias discretas prvias. Dizer que essas
sociedades so intersticiais , portanto dizer que elas no se encaixam plenamente em
nenhuma categoria, mas que ao mesmo tempo elas carregam em si todas elas11
. Assim, o
chamado caboclo amaznico ndio, branco e negro, tudo ao mesmo tempo (Lima 2006;
Harris 1998; Rodrigues 2006; Chipnick 1991; Boyer 1999). Contm em si, portanto aspectos
das tradies indgenas mais antigas, particularidades afro-brasileiras e europias da poca da
colonizao e as mais diversas inovaes atribudas modernidade ocidental. No entanto,
apesar desse hibridismo, elas so vistas mais como resultado da conquista europeia, do que
das sociedades locais, ou ainda como testemunho[s] da influncia nociva da civilizao
(Adams et al. 2006:16). Ainda que simplista, essa viso amplamente difundida. Mas, como
ressaltam Adams et al. (2006:16) e outros, h que se ter em mente que os prprios outros
11
Aqui nos referimos tanto a categorias tnicas (ndios, branco e negro) quanto econmicas, como camponeses e
pescadores e vaqueiros, entre outras discusses, conforme pode ser visto em Chipnick 1991; Harris 1998,
Rodrigues 2006 e Lima 1999.
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
originais [os grupos indgenas amaznicos] so eles mesmos resultados do processo histrico
da colonizao e, portanto, que a continuidade existente entre as identidades indgenas e as
identidades caboclas muito mais complexa do que normalmente considerado.
A flexibilidade e a heterogeneidade econmica das sociedades ribeirinhas, j destacadas
por Lima (2006, 2004), Castro (2006), Brondzio (2006, 2004), Harris (2006), Nugent (1993)
e outros, est pautada na diversidade da explorao de recursos de pesca, caa, plantio (com a
coexistncia de atividades intensivas e extensivas) e manejo ambiental. Para Harris (2006,
2005, 2000) eles so expresses de uma abertura ao externo, ao outro e um atestado de sua
habilidade de negociar as condies do presente. Segundo esse autor esse presentismo,
ou domnio do presente, inclui o entendimento do passado como descontnuo em relao ao
presente, uma amnsia entre geraes, uma carncia de identidade grupal consolidada em
torno de memrias sociais ou de um mito de origem e assim por diante (Harris 2006:84).
Lima e Alencar (2001) tambm vo ao mesmo sentido, reforando o constante enfrentamento
de descontinuidades temporais que compem o modo de vida ribeirinho. Entre estas,
destacam-se a dinmica ambiental das vrzeas com intensos e rpidos processos de
sedimentao e eroso, e econmicos, relacionados, em grande parte, aos ciclos do comrcio,
como o boom da borracha, da juta e mais recentemente do aa. A capacidade dessas
sociedades em se reconstruir atravs dessa viso cclica de boom e estagnao (Harris
2006:89, para uma discusso mais detalhada sobre os efeitos dos ciclos econmicos na
Amaznia sobre as sociedades ribeirinhas ver Nugent 1993), seria para Harris um forte
indicador de que essas sociedades no seriam resduos coloniais, mas um produto do presente.
Presente este de mltiplas facetas, como nos mostra Nugent (2006:43): as muitas
diversidades de formas de amazoneidade de possibilidades caboclas so uma proteo
contra a tendncia de reificao de uma categoria estereotipada e intermediria de caboclo,
residindo vagamente entre o ndio precariamente situado e o cidado plenamente modernizado
do futuro. A situao agora vista de maneira inversa do que proposto anteriormente
(Wagley 1957; Galvo 1975), isto , para autores como Harris (2006, 2000) as sociedades
ribeirinhas estariam pautadas na negao de um passado colonial e indgena. Mas essa
negao no se faz de maneira simplista, mas atravs de uma combinao da essncia (tempo
de residncia para reivindicar direitos fundirios, ou tradio) com a transformao histrica
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Juliana Salles Machado
(sucesso reprodutivo e, de modo mais geral, modernidade). Ao invs disso, existem
continuidades e convergncias, assim como descontinuidades e resistncia. A reunio
resultante um presente ambivalente (Harris 2006:105). Estou de acordo com Harris e Lima
& Alencar sobre os ribeirinhos serem um produto do presente, no entanto, no acredito como
proposto por Harris (2006:105), que as novas possibilidades possam dissolver o passado. O
pouco interesse na conservao do passado, como foi apontado pelo autor, ocorre de fato no
discurso, mas, pelo menos no contexto de Caviana, o passado um importante elemento na
criao de um sentimento de pertencimento entre os ribeirinhos e subjaz tanto nos aspectos
materiais como ideolgicos. Ao contarem histrias do passado, elas esto sim relacionadas ao
presente, como quer Harris, mas isso no as faz menos eficazes como vnculo com o passado.
Realmente trata-se de um presente ambivalente, mas que no se faz baseado na negao de
um passado, mas incorporando-o e reconceitualizando-o. O exemplo amaznico de Caviana
nos mostra que sua prtica no presente tambm uma forma de continuidade com seu
passado. Os dados etnogrficos obtidos na ilha indicam que o intenso manejo ambiental, a
troca de espcies vegetais, as escolhas tecnolgicas e aquelas relacionadas aos locais de
moradia, bem como a forma de utilizao dos recursos naturais esto ligadas memria de
um passado indgena pr-colonial e colonial, que, se no est no discurso, compe a prtica
diria da vida ribeirinha.
3. Paisagem feita Memria
Uma das discusses tericas importantes para o desenvolvimento dessa tese foi quela
concernente paisagem. Permeando diversas disciplinas, o(s) conceito(s) de paisagem serviu
como pano de fundo para as mais diversas abordagens sobre a relao entre humanos e
ambiente. Nessa relao gostaria de enfatizar a importncia da temporalidade e como ela foi
vista nos estudos sobre paisagem. Segundo Knapp & Ashmore (1999:21), paisagem a
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
arena a partir e atravs da qual memria, identidade, ordem e transformao social so
construdas, atuadas, re-inventadas e mudadas12
. Assim, segundo os mesmos autores:
quaisquer que sejam nossas vises tradicionais, agora se torna claro
que paisagem no exclusivamente natural nem totalmente cultural:
uma mediao entre as duas e uma parte integral do habitus de
Bourdieu, as prticas sociais cotidianas dentre as quais as pessoas
vivenciam o mundo em volta delas. Alm do habitus, no entanto,
pessoas ativamente ordenam, transformam, se identificam com e
memorializam paisagens ao morar nelas. O ambiente se manifesta
como paisagem apenas quando as pessoas criam e vivenciam espaos
como um complexo de lugares. O senso de lugar das pessoas e seu
envolvimento com o mundo em volta delas so invariavelmente
dependentes de sua prpria situao social, cultural e histrica13
(Knapp & Ashmore 1999: 21). 14
O termo paisagem (landscape) tido muitas vezes como sinnimo de meio ambiente,
dissociado da sociedade humana e concebido como repositrio de recursos necessrios para
obteno e manuteno da subsistncia dos grupos humanos. Nesse sentido, aparece como
sinnimo de espao, como terra (land), composta por componentes biticos e abiticos, com
estrutura e transformao prpria, decorrente de uma dinmica interna a qual os homens
tentam se adequar e domesticar (Zedeno 2008; Zedeno & Bowser 2009).
12 The arena in which and through which memory, identity, social order and transformation are constructed,
played out, re-invented, and changed (Knapp & Ashmore, 1999:21) 13 Whatever our own traditional views, it is now clear that landscape is neither exclusively natural nor totally
cultural: it is a mediation between the two and an integral part of Bourdieus habitus, the routine social practices
within which people experience the world around them. Beyond habitus, however, people actively order,
transform, identify with and memorialize landscape by dwelling within it. The environment manifests itself as
landscape only when people create and experience space as a complex of places. Peoples sense of place, and
their engagement with the world around them, are invariably dependent on their own social, cultural, and historical situations (Knapp & Ashmore 1999: 21). 14 Para mais sobre o tema, ver tambm David & Thomas (2008:35-36). Segundo David & Thomas (2008: 35-
36): para entender a paisagem deve-se delinear seus meios de engajamento, a maneira que entendida,
codificada e vivida na prtica social e cada um desses, assim como a prpria paisagem, tem histria14, o
engajamento se d e definido pela maneira que damos significado cultural para a localizao de nossa
existncia14 (2008: 36).
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Juliana Salles Machado
A partir dos anos 1970, contudo, o conceito de paisagem passou a ser abordado na
antropologia e na arqueologia sob um novo ngulo. Os temas tratados eram principalmente
relacionados s estratgias econmicas e suas dinmicas inter-regionais, aos determinantes
econmicos dos padres de assentamento, aos impactos ambientais e limitaes na produo
agrcola, bem como aos processos demogrficos e organizao social complexa em
determinados contextos regionais (David & Thomas 2007). O enfoque recaa, portanto, nos
impactos humanos e nas interaes com o entorno fsico. Tais abordagens levaram a uma
compreenso mais ampla dos processos de formao da paisagem, incluindo abordagens
interdisciplinares de fauna e flora e desenvolvimentos relacionados com um aumento da
sofisticao dos procedimentos estatsticos, esse ltimo principalmente na arqueologia (David
& Thomas 2008; Aldenfereder 2006; Ashmor et al 1999; Zedeo 2008; Zedeo & Bowser
2009).
Esta abordagem, porm, passava ao largo da noo de lugar significativo (meaningful
place), atrelado a um sentido de um estar significativo em um lugar (meaningful
emplacement) (Zedeo 2008). A partir de trabalhos como os de Ian Hodder (1982) na
Inglaterra, comea-se a ver que o registro arqueolgico sinalizava no tanto humanos
biologicamente adaptados, mas pessoas sociais interagindo que se engajavam com seu
entorno de diversas maneiras, incluindo prticas simblicas. Paisagens ento deixaram de ser
paisagens ambientais para serem de fato paisagens sociais, mudana conceitual semelhante a
que ocorreu com o conceito de paisagem utilizado na antropologia (David & Thomas 2008;
Kuchler 1993; Ingold 2001, 2000; Lentz 2000; Arhem 1998; Dove & Carpenter 2008; Flint &
Morphy 2000; Hirsch & OHanlen 1995; Kuchler & Melion 1991).
A partir de um levantamento realizado por Ashmore & Knapp (1999), podemos ver
como a ideia de paisagem foi sendo re-definida na dcada de 1990. Assim por exemplo, para
Crumley (1994) a nfase dada na relao estabelecida entre humanos e ambiente. Essa
nfase em seu carter relacional tambm foi dado por Johnston (1998), para quem no
possvel estabelecer uma resposta definitiva para o que paisagem, pois se trata antes do que
ela pode ser, reiterando que a paisagem constituda contextualmente. Temos, portanto, que a
paisagem no apenas um ambiente sobre o qual os humanos atuam e transformam, mas o
prprio resultado dessa interao. Tal percepo levou diversos autores a voltarem seus
olhares para as formas cotidianas de ocupao em busca de compreender a relao humano-
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
ambiente como um recurso culturalmente significativo (Barrett 1994). Um dos autores que
tornou essa viso mais aceita entre os antroplogos e arquelogos foi Ingold (2000) atravs do
que ele chama de dwelling perspective. Nessa perspectiva:
paisagem constituda como um registro duradouro e um
testemunho das vidas e trabalhos das geraes passadas que nela
moraram, e ao fazer isso, deixaram l alguma coisa delas mesmas.
[] Perceber uma paisagem , portanto, um ato de trazer tona uma
lembrana, e lembrar no tanto uma questo de buscar uma imagem
interna, guardada em nossas mentes, mas se engajar perceptualmente
com um ambiente, que em si impregnado com o passado15
(Ingold
2000:189).
Apesar da literatura sobre as sociedades ribeirinhas ter como base a relao entre elas
e o ambiente, ela o faz majoritariamente de um vis econmico, priorizando ora sua relao
com a sociedade nacional (Nugent 1993) e/ou sua insero no mercado (Lima 2004, 2006),
ora o manejo ambiental enquanto prtica economicamente sustentvel (Brondzio 2004,
2006). Meu intuito aqui , do contrrio, priorizar o significado social e simblico dessa
relao. Ao fazer isso, como nos mostra a literatura sobre paisagem acima mencionada,
focalizarei a construo de uma identidade ribeirinha e de sua memria por meio da
manuteno de prticas cotidianas, de seu repertrio material, do processo tecnolgico de
produo de objetos, das prticas de manejo ambiental, da troca de plantas e partilha
alimentar, bem como do conhecimento do meio em que vivem.
A construo da paisagem em Caviana tambm a construo de sua memria e esta,
por sua vez, est intrinsecamente relacionada manuteno e produo das redes de
15 landscape is constituted as an enduring record of and testimony to the lives and works of past generations
who have dwelt within it, and in so doing, have left there something of themselves. (...) To perceive a landscape
is therefore to carry out an act of remembrance, and remembering is not so much a matter of calling upon an
internal image, stored in the mind, as of engaging perceptually with an environment that is itself pregnant with
the past (Ingold 2000:189).
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Juliana Salles Machado
parentesco16
. A importncia do parentesco no uso dos recursos naturais entre populaes
ribeirinhas foi analisada por Lima (2006, 2004), que concentra seus estudos na economia
domstica da Reserva de Desenvolvimento Sustentvel de Mamirau, no Alto Amazonas.
Para a autora, o pertencimento a um grupo local, a incluso nas comunidades rurais, que
permite s pessoas o usufruto dos recursos naturais do territrio ocupado (Lima 2006:147).
Lima ressalta a constituio de uma relao entre o parentesco (por afinidade e
consanginidade) e o espao local a partir do que chama de comunidade de parentes. Esta
comunidade detm o direito de realizar atividades produtivas em um territrio comum (Lima
2006:148). Tambm Futemma refora o papel chave que as redes sociais tm no acesso aos
recursos naturais; em seu estudo, como no anterior, as relaes de parentesco e vizinhana
teriam um papel fundamental na manuteno desse acesso e integridade da comunidade
(Futemma 2006:237). Ela conclui que as regras de uso e acesso aos recursos florestais e ao
solo variam conforme as caractersticas econmicas do recurso (subsistncia ou comercial) e
o grau dos vnculos sociais entre as unidades domsticas (parentes de primeiro e segundo
graus, compadres e conhecidos), incluindo-se a relao entre os donos de terra e os sem-terra
(Futemma 2006:258).
Nessa relao entre as redes sociais, parentesco e o manejo de recursos ambientais,
busco chamar especial ateno para o papel das mulheres. H poucos estudos de gnero em
sociedades ribeirinhas; entre eles, destacam-se os trabalhos de Motta-Maus (1993) e
Murrieta & WinklerPrins (2006), este ltimo exercendo uma influncia decisiva no
direcionamento desta pesquisa. Murrieta & WinklerPrins (2006:278) trabalhando na Ilha de
Ituqui, no Baixo Amazonas tratam da relao das mulheres com o ambiente fsico, dando
especial ateno aos jardins e quintais. H uma vasta literatura sobre jardins e quintais em
contextos diversos, no entanto, conforme nos chama ateno os autores, ela em grande parte
focado nos aspectos ecolgico-funcionais e utilitrios destes espaos (Murrieta &
WinklerPrins 2006:278). Num enfoque mais abrangente, esses autores mostram como:
o cultivo de flores e outras plantas no apenas a manifestao do senso
esttico feminino, nem somente uma estratgia econmica
complementar, mas tambm, fonte de significados e prticas nas quais
status, conflitos e aspiraes so constantemente negociados e
16 Para uma relao semelhantes em contextos indgenas da Amaznia ver Gow 1995.
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
manipulados entre os gneros. Assim, os jardins e quintais vo alm de
uma simples incorporao da condio feminina em Ituqui, e acabam
funcionando como ferramentas eficientes de negociaes intra e
interunidades domsticas nas quais sobrevivncia econmica, diferenas
de gnero, status social e emoes desempenham papis fundamentais.
(...) a prtica motivada por memrias e acontecimentos sociais,
entrelaando concomitantemente importantes domnios sociais,
ecolgicos e tcnicos. (...) O fluxo de informaes e a confluncia de um
mapa afetivo que aumenta as alianas sociais e as relaes tambm
desempenham um papel importante (Murrieta & WinklerPrins 2006:290-
291).
Em Caviana, percebi que, mais que afetividades estritamente atinentes ao universo
feminino domstico, a relao entre as plantas e as mulheres, explicitada pelo plantio de
canteiros suspensos e terreiros, faz parte de uma rede maior de trocas e apoio mtuo. Ao
longo do texto, procuro mostrar como tais prticas criam um sentido de territorialidade
(Zedeo 2008; Zedeo & Bowser 2009) ao mesmo tempo em que reforam seu pertencimento
em suas famlias, comunidade e na prpria ilha, e assim, constroem sua memria17
.
4. A estrutura da tese
Esta tese tem um eixo diacrnico, quando enfatizo a percepo dos ribeirinhos da
historicidade e da humanizao das paisagens, e tambm sincrnico, quando procuro
compreender a vida ribeirinha por meio de sua relao com as plantas. Nesta Introduo,
sintetizei a discusso acerca da antropologia das populaes ribeirinhas da Amaznia,
17 Para uma literatura sobre memria e paisagem ver Knapp & Ashmore 1999; David & Thomas 2008; Fausto &
Heckenberger 2007; Gow 1995; Heckenberger & Franchetto 2001; Hirsch & OHanlon 1995; Kuchler 1993;
Kuchler & Melion 1991; Steward & Strathern 2003; Ucko & Layton 1999; Zedeo 2008; Zedeo & Bowser
2009.
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Juliana Salles Machado
apresentando um pequeno histrico das pesquisas sobre os chamados caboclos amaznicos
para inserir minha pesquisa nessa linha de discusso e pensar como a abordagem do manejo
ambiental, a partir de uma perspectiva de seus significados para as mulheres de Caviana, se
aproxima e se diferencia de outras abordagens.
No Captulo 1, Paisagem, tempo e transformao, apresento a dinmica de ocupao
da ilha. Optei por resgatar as informaes da arqueologia e discuti-las frente histria oral
dos ribeirinhos em Caviana. Foi importante enfatizar a temporalidade da paisagem em
Caviana, posto que ela pensada e incorporada pelos ribeirinhos atravs da reocupao de
certas reas que so re-conceitualizadas e, como veremos adiante, tidas como lugares de
gente.
No Captulo 2, Quando me entendi: a gente de Caviana, trato da vida dos ribeirinhos
na ilha, de sua relao com o ritmo das guas e suas formas de agregao. Optei por focalizar
a estrutura social da vida ribeirinha, atravs principalmente de suas aes cotidianas, contudo
tambm trato de maneira sucinta as festas catlicas e os grupos de trabalho.
Enquanto o Captulo 2 enfatiza a esfera pblica da comunidade, cujos discursos so
normalmente masculinos, o Captulo 3, As mulheres e as plantas, enfatiza o papel das
mulheres na formao de coletivos, envolvendo humanos e no-humanos, por meio de sua
relao com as plantas. Esse captulo contempla a maior parte da etnografia realizada na ilha,
apresentando as visitas a parentes e a troca de plantas entre as mulheres.
No Captulo 4, Um olhar sobre as plantas e a troca, a etnografia apresentada
anteriormente d lugar ao levantamento das espcies de plantas encontradas em cada uma das
casas visitadas, seus locais de plantio e a associao que suas donas fazem com seus doadores.
Obtidas atravs de entrevistas, essas informaes foram quantificadas para dar uma viso
mais clara de que plantas so trocadas, em que situaes e por quem.
Tendo mapeado qualitativa e quantitativamente a troca de plantas, chegamos ao
Captulo 5, Plantas que curam: um olhar para o outro, em que enfatizo as concepes
cosmolgicas das populaes ribeirinhas, sobretudo a relao entre humanos e no-humanos,
que em grande parte mediada pelas plantas.
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
Nas consideraes finais, encerro com algumas reflexes sobre como a relao entre
os humanos e as plantas, a transformao da paisagem e a constante afirmao de
territorialidade que integram um processo de (re)criao de uma memria local.
Ao longo de toda a tese, as citaes de obras em ingls foram por mim traduzidas. As
verses originais se encontram nas notas de rodap.
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Captulo 1Figura abertura Captulo1: Fotos dos filhos de Caviana. Foto: Juliana Salles Machado
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Juliana Salles Machado
1
Paisagem, tempo e transformao
ilha Caviana fica no estado do Par, na regio do delta do rio
Amazonas, entre a ilha de Maraj e a costa sul do estado do Amap (Figura 1.1). Est
implantada numa rea de extrema turbulncia de guas, onde a forte correnteza do rio
Amazonas se encontra com a presso martima contrria, acarretando eroses,
desbarrancamentos, sedimentao e pororocas recorrentes e intensas. A ilha recoberta por
uma rea de floresta, em sua parte sudoeste, uma regio de campos naturais leste e uma
regio de campos alagveis, tambm conhecida como regio dos lagos, no seu interior e face
norte. A dinmica dramtica dessa paisagem que se transforma muito rapidamente tem forte
consequncia na vida dos moradores.
Caviana habitada por comunidades ribeirinhas e fazendeiros. A grande maioria dos
ribeirinhos vive na parte sudoeste da ilha, beira-mar18
e s margens de igaraps de mdio e
grande porte, em meio a uma vegetao de mata (Figura 1.2) e se dedica a pesca, coleta de
produtos da floresta e o manejo ambiental. Parte deles, no entanto, trabalha como vaqueiros
na poro leste em fazendas de gado e bfalo que se concentram nos campos naturais da ilha.
Nesta rea, grandes fazendas cobrem os horizontes descampados, recortados apenas por
poucos retiros afastados entre si dentre as pastagens (Figura 1.3). Poucos fazendeiros vivem
na ilha; a maioria mora em Belm, Chaves ou Macap e anualmente visitam sua propriedade.
A maior parte dos estudos acerca das populaes ribeirinhas na Amaznia pauta-se na
relao dos humanos com o meio que os circunda. Na apresentao de seu livro, Wagley
18
Beira-mar o termo local usado para se referir aos lugares da ilha situados margem do rio Amazonas. Por ser uma regio onde esse rio muito largo e se encontra com o mar, a viso do horizonte a partir de suas
margens se assemelha da costa brasileira, sendo possvel em alguns locais ver algumas ilhas mais prximas.
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Figura 1.1: Foto de Satlite da ilha Caviana. Fonte: Google Earth 2011.
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Figura 1.2: Exemplo de moradia ribeirinha nas reas florestadas da ilha. Foto Juliana Machado
Figura 1.3: Exemplo de moradia ribeirinha na mar baixa nos campos naturais da ilha.
Foto Juliana Machado
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
(1957:2) descreve esse objetivo [...] em sentido amplo, o livro um estudo sobre a adaptao
do homem a um meio tropical.19
Essa vinculao dos ribeirinhos com o meio ambiente
perpassa quase toda a literatura sobre o tema, mesmo aquela que adota outras abordagens
tericas. Dentre estas, vemos essa relao a partir de outras perspectivas tais como a de ritmo
de vida em Harris (1998, 2005), a de relao econmica (Nugent 1993; Lima 2006) ou a
das formas de manejo (Brondzio 2004), como mencionamos na Introduo.
Neste trabalho, retomo a mesma temtica, enfatizando, porm, dois aspectos da
relao entre os ribeirinhos e a paisagem: seu carter histrico e seu significado para as
pessoas no presente. A relao de continuidade entre os grupos indgenas e as populaes
ribeirinhas foi mencionada por autores como Wagley (1957) e Galvo (1979), sobretudo no
que toca s tcnicas agrcolas e ao conhecimento da floresta: [...] a vida econmica no vale
evidentemente primitiva e estagnante. A maior parte das tcnicas agrcolas usadas na
Amaznia foi herdada dos indgenas nativos agricultura de coivara20
(Wagley, 1957:4).
Em um momento posterior, deixou-se de explorar a continuidade histrica entre os
grupos indgenas e as comunidades ribeirinhas e passou-se a procurar compreender os
ribeirinhos no mbito colonial e na sua atual insero no mercado nacional (Nugent 1993;
Harris 2005; Brondzio 2004; Lima 2006; Murrieta et al. 2006; entre outros). Neste estudo,
proponho um outro olhar sobre o manejo ambiental praticado pelos ribeirinhos, buscando
entender a histria como um processo inerente ao presente, que vivido e constantemente
reconstrudo pelas pessoas em seu cotidiano.
Neste primeiro captulo, recupero os dados conhecidos do processo histrico da ilha,
principalmente em tempos pr-coloniais e coloniais. O objetivo dessa exposio fornecer
dados para sustentar a ideia de um passado feito presente, com a qual trabalho ao longo de
toda a tese, e pela qual busco refletir sobre como os ribeirinhos se representam e se pensam no
mundo a partir se suas concepes nativas de tempo. Ser filho de Caviana, como discutiremos
no prximo captulo, no implica apenas ter nascido na ilha, mas ter vivido l implica, pois,
19 [...] in a large sense, the book is a study of the adaptation of man to a tropical environment (Wagley 1957: 2). 20 [...] the economic life of the valley is clearly primitive and stagnant. The agricultural techniques used in
Amazonia are mainly those inherited from the native Indians, fire or slash-and-burn agriculture (Wagley, 1957:4).
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Juliana Salles Machado
em conhecer as curvas de seus rios, identificar suas rvores e, por meio delas, pensar seu
passado, seu presente e seu futuro. No se trata, portanto, de um meio que os circunscreve,
mas de um conjunto de relaes efetivamente construdas entre humanos, plantas, animais e
lugares, no sentido mais amplo do conceito de paisagem. O manejo ambiental praticado
intensamente pelos ribeirinhos hoje tambm uma forma de construo da memria e de
afirmao de uma continuidade e est necessariamente imbricado nas relaes de parentesco
dos ilhus.
1.1 O passado feito presente
A paisagem de Caviana parece ter sido sempre muito dinmica. Pelo menos o que
nos indica a histria oral da ilha e a toponmia das suas reas internas, que ainda designam
suas partes como ilhas independentes, como Ilha Nova e Ilha da Prainha ambas na sua poro
leste. O padro de assentamento dos stios arqueolgicos tambm pode ser um indicador desse
intenso dinamismo, pois os stios identificados esto todos implantados no alto dos tesos
antigos, atualmente recobertos por uma vegetao de mata. No h nenhum stio nas reas de
campos naturais, o que pode indicar que essas reas tenham sido anteriormente cursos dgua,
seja como rios, igaraps ou lagos. Os ribeirinhos se referem s terras secas e altas da ilha
como tesos de ndio, atribuindo-lhes uma formao antrpica. Tal formao no foi
comprovada, mas encontra precedentes na ilha vizinha, a ilha de Maraj, so os chamados
tesos marajoaras estudados mais profundamente por autores como Meggers & Evans
(1996), Roosevelt (1991), Schaan (2004).
Apesar de se encontrar em uma macro-regio importante para a compreenso dos
modelos antigos de ocupao da Amaznia, a ocupao pr-colonial da ilha Caviana foi
pouco estudada21
. As evidncias arqueolgicas existentes indicam pelo menos duas ocupaes
indgenas pr-coloniais, uma possivelmente mais antiga, leste, e outra mais recente, que se
21 Para modelos de ocupao da Amaznia, ver, entre outros Heckenberger 2005; Meggers & Evans 1996, 1957; Roosevelt 1991; Heckenberger & Neves 2009.
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amaznico
estende at o perodo colonial, no centro-sul, mais prximo ilha de Maraj. Ambas foram
sugeridas por Curt Nimuendaju (2004, 2000), que fez escavaes na ilha ainda nos anos 1920.
Duas dcadas depois, dados de escavaes de Meggers & Evans (1996, 1957)
corroboraram a ocupao colonial e pr-colonial mais recente de Caviana, atribuda s
populaes in