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Luciana Bajarunas-Veit nasceu em 1976 na cidade de São Paulo, Brasil, e lá permaneceu até 1998. É casada e tem um filho. De lá para cá viajou pelo mundo e residiu na Alemanha durante dois anos, nos Emirados Árabes Unidos durante quatro anos e na Rússia durante quase três anos. Atualmente ela ainda reside no exterior. A autora fala Inglês, Alemão e Francês e também estudou um pouco de Russo e Árabe. Além de se dedicar à literatura, Luciana B. Veit também escreve crônicas semanais. Suas obras literárias publicadas: “A Pérola da Arábia” “Mozart e Catarina”

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LUCIANA B. VEIT

A Rússia Começa Aqui

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Em relação ao livro imprimido "A Rússia Começa Aqui" por Luciana B. Veit, o layout do mesmo foi modificado para melhor se

enquadrar com o conceito do eBook.

A Rússia Começa Aqui

© 2007/2008 by Luciana B. Veit All rights reserved

Todos os direitos reservados à autora.

Published by:

Luciana B. Veit [email protected] www.lucianabveit.com

Printed by:

Lulu Enterprises Inc. 860 Aviation Parkway

Suite 300 Morrisville, NC 27560

United States of America

ISBN 978-3-00-025898-5

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Ao meu marido e ao meu filho, que através do amor e da

paz interior que me proporcionam, possibilitam que eu possa crescer continuamente através dos meus escritos.

Aos meus pais, que me ensinaram desde muito cedo a

sempre andar com a cabeça erguida.

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Nota da Autora Embora tenha vivido em Moscou durante quase três anos

entre 2003 e 2006 e tenha passado por várias das situações educativas e tocantes, mas também chocantes que o personagem fictício Alice e seu círculo de conhecidos passarão nesta obra, “A Rússia Começa Aqui” não se trata necessariamente de um espelho do meu tempo por lá.

Fora as óbvias personalidades e personagens históricos mencionados neste livro como Putin, Pushkin ou Tchekov por exemplo, o nome de qualquer personagem por mim criado será uma mera coincidência com nomes de pessoas reais. No entanto, todas as marchas e protestos desta obra apresentam de fato um fundo verdadeiro e não fictício.

Ao longo dos meses que precisei para trabalhar neste livro, jamais tive como objetivo fazer uma lavagem cerebral em ninguém. Meu único objetivo foi e continua sendo de mostrar a atual verdade tanto bela quanto fera de Moscou e arredores.

Quem conhece, confirmará. Quem não conhece, aprenderá. E para os que vivem essa realidade de olhos fechados, talvez passarão a enxergar melhor a silenciosa e viciosa tolerância da grande parte da sociedade russa perante a discriminação e a xenofobia exercida por ultranacionalistas podendo ser skinheads, políticos, oligarcas ou até donas de casa.

Pergunto-me se haverá um grandioso dia quando aqueles que não andam na linha desenhada pelo Kremlin não precisarão mais temer voltarem para suas casas somente por serem, pensarem ou agirem de uma maneira distinta e justa.

Sei que abrir os olhos para a autêntica Rússia hoje é mais difícil do que se parece por conta da onda de anti-americanismo, quando é fácil bater palmas para aquele que ousa enfrentar o xerife do mundo, mas cuidado! A Rússia nunca foi e continua não sendo um país romântico ou um país aberto. Seu povo é revestido de aço, de sofrimento, de orgulho e de desconfiança, porém esse mesmo povo também carrega dentro de si grandes intelectuais e artistas, o sentimento de compaixão e um considerável amor pela humanidade.

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A Rússia precisa de muito trabalho focalizado, mas o meu grito nesta obra é claro demais: Que a liberdade, a tolerância e a justiça ainda encontrem seus lugares na essência do grande urso russo adormecido!

Adormecido, porque no dia em que esse urso russo despertar e se der conta que todo o seu povo é seu aliado, ele decolará mesmo sem asas. E no dia em que o povo russo se der conta de que pode fazer uma diferença no mundo começando já dentro de suas fronteiras, e que nem todos os estrangeiros são conquistadores maquiavélicos, ele talvez aprenda a sorrir.

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“Não se deve amar a pátria-mãe mais do que um ser

humano.” Friedrich Dürrenmatt

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LUCIANA B. VEIT

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Prólogo Outono de 2005. De repente ele não disse mais nada, mas só apertou o

passo. Zema não estava se sentindo confortável com a situação por ter deixado suas obrigações no clube de jazz para trás só para ter uma escapada romântica com seu mais novo namorado. Programas selvagens como fazer amor em pleno bosque nos arredores de Moscou, no escuro e no ar fresco de outono não excitavam-na.

— Para onde está me levando, Serguei? — ela pergunta com a voz trêmula, quase inaudível.

Serguei não respondeu. Dotada de nariz, lábios e silhueta finos, Zema era uma

mulata atraente, resultado de uma mistura de negros de seu país de origem, Tanzânia, com europeus. Ela contava trinta e dois anos de idade e tinha orgulho de carregar seu diploma russo de pedagoga no bolso e de falar Inglês perfeitamente. Embora tivesse um cabelo pixaim na altura do queixo, Zema tinha um corte arrepiado muito moderno, por conta das duas mexas loiras na parte frontal.

Zema respirou fundo e sentiu seu coração palpitar. Repetiu então a pergunta, mas Serguei praticamente latiu de volta:

— Fique quieta e venha comigo! Zema não podia dizer que conhecia Serguei como a

palma de sua mão, porque o relacionamento deles ainda era muito recente. Porém o que ela pôde perceber, é que algo estava muito errado ali. Zema então largou a mão de Serguei, parou, olhou em sua volta e não viu ninguém, entretanto ouviu

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passos e risadas vindo em sua direção. — Escute Serguei, seja lá o que você tenha preparado

terá que ser cancelado, porque eu não vou continuar! Esse lugar me dá calafrios. Me faz lembrar daquele episódio quando eu e uma amiga estávamos caminhando no bosque de dia e um mendigo se aproximou, perguntando se podia cortar meu dedo indicador. É claro que entramos em pânico e...

— Já falei para fechar a boca! — grita Serguei visivelmente inquieto.

Ele espiou em seu relógio e, como Zema, ouviu passos apressados a poucos metros de onde estavam. As risadas haviam cessado.

— Serguei, o que está acontecendo aqui? — Zema pergunta apavorada.

Como um piscar de olhos, Zema percebeu um vulto vindo por atrás de si e depois sentiu a pancada na cabeça com algum objeto de madeira. Caída no chão, ela procurou levantar a cabeça vagarosamente, mas antes que conseguisse fazer isso, levou um chute no estômago de uma segunda pessoa. Uma terceira pessoa retirou sua jaqueta com brutalidade naquela escuridão do bosque, segurou seus braços para trás e amarrou-os com uma corda.

Meu bom Deus! — Zema pensou, já tendo decodificado o que estava para acontecer, após ter reconhecido várias cabeças carecas e tatuadas ao seu redor. As botas pretas tinham todas cadarços brancos.

— Por que demoraram tanto? Achei que tinha mudado de idéia, Serguei — falou uma mulher que acabara de colocar um trapo com cheiro e gosto de graxa na boca de Zema, que estava prestes a ficar inconsciente com os ocasionais chutes que levava nas costas e no estômago.

Loira platinada, de cabelos curtíssimos, mas não raspados, um tanto miúda, mas de fortes expressões faciais, talvez até por conta da maquiagem exagerada ao redor dos olhos azuis, Olga ainda aguardava uma explicação de Serguei.

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— Estamos aqui, não é? Então não faça nenhuma pergunta idiota!

O sangue do nariz de Zema começou escorrer por cima da fita adesiva que prendia o trapo em sua boca.

Vendo Zema jogada no chão, o esbelto Serguei resolveu fazer a primeira coisa decente em sua vida. Não poderia mais esconder seu arrependimento por ter tido enganado-a e trazido-a até ali.

— Soltem-na! A gangue que contava naquele instante quatro homens e

uma mulher vestidos com camisetas, calças e jaquetas de couro pretas, ficou surpresa com o tom.

— Solta-la? Ouviu isso, Sasha? Ora Serguei, nós nem começamos — respondeu Olga dando um puxão extra no cabelo crespo de Zema.

Sasha, um dos membros da gangue que estava fumando um cigarro sem pressa e que ainda não tinha se sujado de sangue, saiu por detrás de uma árvore. O visível chefe da gangue tinha muitos piercings: no nariz, nas sobrancelhas e no lóbulo da orelha esquerda. De nariz largo, pele oleosa e uma careca raspada e tatuada com dois relâmpagos paralelos acima da orelha direita, até lembrava o perfil de Serguei. Os dois já eram amigos de longa data.

— Tem algo para dizer, Serguei? — indaga Sasha com calma.

Serguei olha para Zema, que estava chorando, e resolve se libertar desse peso de seus ombros, da imagem de uma pessoa que ele havia deixado de ser pouco antes de conhecer essa estrangeira achocolatada.

— Eu estou cansado de viver minha vida odiando os inimigos que no fundo do peito não tenho. Já não sou mais nenhum adolescente em busca de aventura, Sasha. Sou e sempre serei skinhead por convicção, alguém que não se deixa ditar nenhuma regra, usa roupas transadas, escuta boa música e que não põe a mão em vodca, só em cerveja. No entanto, não

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quero mais saber de racismo. Nazi-skin é uma palavra que apaguei do meu dicionário. Por isso te peço para soltar Zema.

Zema fica agitada e por isso leva mais uma bofetada no rosto de um outro membro da gangue.

Sasha continua olhando nos olhos de Serguei, estudando-o.

Olga fica impaciente e diz: — O que aconteceu no mercadinho entre a negra e eu

naquele dia em questão foi mais do que poderia aguentar, Serguei. Quando naquela tarde você foi me buscar após meu expediente, vi como reagiu quando esse lixo humano te devolveu os 10 rublos que tinha deixado cair na escadaria. Você ficou fascinado! — ela grita histérica. — Fascinado!

— Não sabe o que está dizendo, Olga. — Ah, não? E o que é isso agora? Se não queria vê-la

sangrar até morrer, por que trouxe-a até aqui? — Para tentar fazer vocês entenderem que ela não é

inimiga de ninguém. Nem ela e nem os outros estrangeiros. — Está passando dos limites, Serguei. O ar que ela

respira me falta. Não posso viver assim e eu também não posso aceitar que você simplesmente não dê mais a mínima para a nossa ideologia de pureza de fé e pureza de sangue. Você sempre foi de acordo que relacionamentos inter-raciais são nada mais do que uma blasfêmia — diz Olga, já perdendo o controle de si. — Você enlouqueceu, Serguei, e a culpa é dela, a culpa é dela, a culpa é dela...

Olga passou a agir como uma alucinada. Se virou para Zema e enquanto repetia a sua frase, lançava chutes ligeiros no estômago da sua vítima sem piedade.

— A culpa é dela e eu não posso e nem vou viver assim. Morte aos inimigos!

Serguei olha para Sasha desapontado, empurra Olga para o chão e tenta soltar as mãos de Zema que continuavam amarradas. No instante em que consegue finalmente solta-la, soube instantaneamente que esse seria seu último suspiro.

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Serguei leva um forte pancada nas costas e cai. Sasha se aproxima dele e comenta friamente, como se não fosse mais humano:

— Os inimigos da pátria merecem morrer, mas traidores como você, merecem sofrer. Acaba de implorar para ser executado.

Sasha deu início ao ato de terror que no fundo do peito desejou nunca ter que cometer um dia, surrando com um bastão de baseball seu melhor amigo, o co-fundador da Bieloe Gospódstvo, ou Supremacia Branca. Sasha não permitiu que ninguém da gangue se intrometesse, já que tudo isso era muito pessoal, mas não cessaria a surra até que Serguei perdesse seus sentidos e morresse ali mesmo.

Como estava acostumada a vibrar com cada crime violento, a gangue silenciou-se pela primeira vez.

Passados alguns instantes, Serguei já não causaria mais problemas.

Com as mãos tremendo e pingos de sangue de seu melhor amigo manchados em seu rosto, Sasha caminha em direção a Zema, segura-a pelos cabeços crespos e fita-a por um longo instante a dois centímetros de distância. Zema estava sem reação por ter sido testemunha de tamanha monstruosidade.

Por que tanto ódio? — perguntou Zema em pensamento, enquanto olhava para Serguei com os olhos umedecidos.

— Sabe por que está neste bosque, tchorny? — Sasha pergunta. — Está aqui agora porque nem deveria ter pensado em embarcar no avião que te traria para a Rússia. Para piorar sua situação, teve a coragem de ofender uma patriota e de contaminar o sangue de um respeitado soldado russo, como Serguei. Vai pagar por isso!

Olga se coloca por detrás de Zema e segura sua cabeça para trás. Um novato da Supremacia Branca rasga a calça e a calcinha de Zema com uma faca, afastando em seguida suas pernas com brutalidade.

Todos estavam agora ao redor da vítima. Já toda

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arrepiada, e não somente devido as frias folhas úmidas caídas no chão, Zema sabia o que estava prestes para acontecer e pediu a Deus para que lhe tirasse a vida naquele instante. Só que Deus não estava presente ali.

— Não se excite ainda — diz o novato. — Nossos planos são outros.

Os membros da gangue esfolaram as genitais de Zema surrando-a por baixo, sem piedade e sem pressa.

Pouco antes de perder seus sentidos, Zema decidiu desafiar Olga. Ela simplesmente a fitou nos olhos e sorriu. Sorriu porque sabia dos sentimentos que Olga tinha por Serguei. Mas acima de tudo, Zema fez questão de fazer Olga compreender, que apesar de sua situação momentânea, era por ela que Serguei havia morrido. Por ela. Ela havia transformado-o numa pessoa melhor.

Inconformada com o atrevimento, Olga cospe no rosto ensanguentado de Zema. Louca para dar continuidade nos atos daquela madrugada, ela por fim diz num tom maléfico e agitado:

— A Rússia começa aqui!

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Capítulo 1 Inverno de 2004. Esperando na fila, ou pelo menos o que parecia ser uma

naquele confusão de gente se espremendo a alguns passos do controle de passaportes no aeroporto Sheremetievo, Alice observou cada rosto ao seu redor: velho, novo, cansado, excitado. Certamente sua feição pertencia ao último grupo. A viagem de Frankfurt até Moscou não tinha durado mais do que três horas, mas aqueles que viajam frequentemente sabem que a viagem em si inicia-se muito antes de se chegar no aeroporto.

— Sandór Molnár! — corrigia a pronúncia de seu nome um jovem e alto rapaz com traços leste-europeus. Continuando a responder as perguntas da fiscal:

— Vim da Hungria para estudar. Não, não há nada de errado com o meu visto...

Alice e seu marido desviaram a atenção do jovem húngaro para o cubículo de aço e janelas de vidro a frente, porque seriam os próximos a serem atendidos pela fiscal russa de uns quarenta anos, usando a saia do seu uniforme exageradamente curta e justa.

Ronald segurou tanto o seu, quanto o passaporte de Alice nas mãos e se dirigiu até a fiscal.

— Blá, blá, blá, blá! — disse ela em Russo num tom desagradável, com seu olhar longínquo e desinteressado.

— Do you speak English? — Alice perguntou. Com um Inglês nada fluente, a fiscal finalmente responde: — Um de cada vez! Queira voltar para fila! — Mas essa é minha esposa! — Ronald retrucou.

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A fiscal não se deu o trabalho de repetir o recado. — Vá primeiro, querida! — sugeriu Ronald,

inconformado. Certamente a fiscal não tinha tido a chance de ter em

mãos muitos passaportes brasileiros por causa da forma de como estudou o passaporte de Alice.

— Alice Ferreira Schmidt? Onde está o visto? — a fiscal perguntou completamente perdida entre as páginas verdes claras, recheadas de carimbos.

Alice resgatou seu passaporte das mãos da fiscal e abriu na página correta do visto de residência, juntamente com o cartão de chegada que havia preenchido ainda no avião. A fiscal fez várias perguntas desagradáveis, como se estivesse lidando com alguma refugiada, e somente após quase dez minutos de interrogatório, resolveu liberar Alice com um carimbo que marcava oficialmente sua chegada na Rússia, isto é, antes de ter arregalado os olhos interessadíssima em todos os outros carimbos desse passaporte tão exótico.

Só falta me perguntar sobre o atestado da vacina contra a febre-amarela! Que absurdo! Não estou vindo de nenhuma selva! — Alice pensou.

Passados alguns minutos, já com as bagagens devidamente acomodadas no carrinho, Alice e Ronald procuraram no meio da multidão pelo motorista da empresa.

A multidão era composta basicamente por motoristas de táxi e mulheres russas: altas, magras, com longas unhas postiças de cores cintilantes, vestindo calças jeans azul-clara apertadíssimas, botas de salto brancas, casacos e chapéus de pele.

Após ter acenado para o motorista da firma que segurava uma plaquinha improvisada com o nome dos dois passageiros, Ronald se virou para Alice e disse:

— Que horror! Se já não fosse quase uma hora da madrugada, diria que essa fiscal invocada precisaria mudar de profissão.

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Alice e Ronald ainda não imaginavam que as boas-vindas da fiscal tinham sido até bastante calorosas.

Passadas três horas presos num tráfego desesperador, Alice e Ronald estavam quase chegando no hotel, em pleno centro da cidade.

No caminho até lá, eles atravessaram uma ponte sobre o rio Москва, ou simplesmente Moskva1, e contemplaram do banco traseiro do carro os muros vermelhos e as torres majestosas do Kremlin. Até puderam ver a mais alta cúpula da catedral de São Basílio, escondida por detrás do belíssimo prédio do Museu da História Russa, de frente a agitada Rua Tverskaya. Também não poderiam ter deixado de observar os legendários Ladas lado a lado com os últimos modelos de carros de luxo alemães.

Ronald estava suando frio de nervosismo e durante o trajeto, perguntou várias vezes ao motorista o motivo do engarrafamento no meio da noite. Ele respondeu que Moscou não precisava de um motivo fora do comum para explicar seus engarrafamentos.

— Como podem ver, a neve é fresca. Os caminhões em serviço não conseguem dar conta da limpeza das ruas e das avenidas. Resultado: os motoristas acabam estacionando no meio da rua mesmo e isso se torna uma bola de neve. Ninguém mais se importa com regras de trânsito e muito menos com os policiais — explicou ele num Inglês correto, porque havia sido motorista da ONU durante muito tempo.

No hotel, o hall de entrada era menos glorioso que sua fachada externa. Haviam alguns bouquets de flores acomodados ao lado dos jogos de sofá vermelhos, que por sua vez se apoiavam sobre um piso de granito escuro, vestidos por alguns tapetes orientais. Por detrás do balcão uma jovem recepcionista acolheu Alice e Ronald da maneira mais seca possível, mas pelo menos procurou não ser grosseira. 1 Moscou, do Russo.

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Uma vez no quarto, Alice e Ronald olharam ao redor e ficaram um tanto decepcionados com a minúscula cama de casal, coberta com uma colcha da mesma cor azul escura das cortinas. O banheiro estava limpo, mas apresentava fungos nos azulejos brancos, o que era um resultado típico de má manutenção, além da nojenta cortina de nylon que cobria a ducha de dentro da banheira.

— Esse não deveria ser um hotel cinco estrelas, Ron? — perguntou Alice, enquanto enxugava seus cabelos negros após uma ducha rápida, observando seu próprio rosto pálido e seus olhos azuis-turquesa no espelho embaçado do banheiro.

Irritado ele respondeu, fazendo malabarismo para não tropeçar nas malas abertas no chão:

— Sim, deveria! Amanhã mesmo reclamarei na firma sobre a maneira de que estão nos recebendo. Nem mesmo cabides tem no armário! Onde irei pendurar meus ternos?

— Calma! O container com nossos móveis deverá chegar em uma semana, não é? Além do mais, estamos exaustos. Quanto aos cabides...

Antes que Alice pudesse terminar a frase, alguém bate à porta. Ronald foi obrigado a morder a língua ao notar que um funcionário do hotel trazia consigo meia-dúzia de cabides, se desculpando pelo erro da camareira.

Ronald e Alice se entreolharam e logo começaram a rir. Alice correu para o armário e disse em voz alta:

— Adoraria comer uma salada mista e beber uma xícara de chá.

— O que está fazendo? — ele perguntou. — Ora, se há um microfone lá dentro como era regra

durante o comunismo, os escutas irão anotar meu pedido e logo um funcionário estará trazendo a minha comida.

Ronald não riu dessa vez e refletiu por algum tempo. — Se quiser comer mesmo, é melhor pegar o telefone e

ligar para o serviço de quarto.

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Capítulo 2 Sandór Molnár, um jovem húngaro de vinte e poucos

anos, alto, magro, cabelos curtos, lisos e castanhos, olhos vivos, pele branca e nariz avantajado, resolveu fazer seus estudos universitários na Rússia porque além de falar Russo, o fator financeiro também falou alto, já que seguir os estudos universitários de boa qualidade na Rússia era algo que ele ainda poderia se permitir, ao contrário da Grã-Bretanha, França ou Alemanha.

Assim como os outros estudantes estrangeiros, Sandór pisou em Moscou com muitos sonhos, pouca roupa e muitos livros e dicionários, mas procurou evitar pensar nos preconceitos que certamente lhe cruzariam o caminho nessa nova fase de sua vida. Por ter estudado Russo em sua infância, Sandór acreditava que de um certo modo saberia muito bem como evitar os choques culturais, como desmistificar os mitos e talvez até como escavar grandes verdades esquecidas, praticamente mortas e enterradas.

Com 12 milhões de habitantes Moscou não poderia ser comparada com a cidade natal de Sandór, porque Budapeste contava meros 2 milhões de cidadãos. Mas ainda assim, aqueles que estão acostumados com cidades grandes, acabam se saindo melhor no início em uma selva de pedra como Moscou ou Nova Iorque do que aqueles acostumados com cheiro de grama recém-cortada e a cumprimentar pelo nome o padeiro diariamente.

Sandór Molnár aterrissou em Moscou com a cara e a coragem e estava mentalmente preparado para tentar se habituar o mais rápido possível.

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Com um mapa da cidade em uma mão e sua mala de tamanho médio na outra, Sandór caminhou uns dez minutos da estação de metrô até encontrar sua mais nova moradia. Ele estava com fome, com sede, com os dentes batendo de frio e com seus ossos doloridos pela exaustão por causa da viagem em si e por ele não ter dormido bem na noite anterior pela tamanha excitação.

Naquele instante o que Sandór mais queria era finalmente chegar, comer algo rápido, beber uma demorada xícara de chá preto com mel e limão e colocar os pés para cima.

Seu apartamento se situava em um prédio caindo aos pedaços, que sem fugir à regra dos demais de seu estilo, possuía um sistema de segurança automático na entrada, onde a senha para a porta frontal se modificava uma vez por mês. Sandór foi obrigado a aguentar firme do lado de fora por um tempo indeterminado até que alguém aparecesse, porque a senha que tinha recebido via e-mail de seus mais novos colegas já não era mais atual e ele ainda não dispunha de um aparelho celular.

Finalmente um colega africano, com quem ele dividiria o apartamento além de mais dois estudantes, chegava da rua bastante apressado e tenso.

— Não devia ficar dando mole na rua numa hora dessas, meu amigo. Está pedindo encrenca? — perguntou Moisés, olhando ao seu redor claramente preocupado.

Sandór não havia entendido a natureza do comentário, mas devido seu estado de exaustão, preferiu quebrar sua cabeça em uma outra ocasião.

A entrada do prédio não era nada acolhedora. O piso de granito cinza era tão frio quanto as paredes descascadas verde-água.

Enquanto esperavam pelo elevador, Moisés e Sandór se apresentaram propriamente.

— Moisés Bombata. Estudo Engenharia Química, mas não sei se vou aguentar até o fim. É muita pressão...

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Sandór empurrou manualmente a porta de metal do elevador com fechadura tripla e disse:

— Pressão, hein? Seguir estudos universitários é isso mesmo, mergulhar nos livros e esquecer do resto.

Quando chegaram no sexto andar, Moisés olhou Sandór nos olhos com uma expressão triste, mas procurou sorrir.

— Irá descobrir antes do que imagina a que estou me referindo. Mas agora, seja bem-vindo ao seu novo lar!

Moisés abriu a porta e encontrou seu compatriota nigeriano assistindo televisão de quatorze polegadas, enquanto um estudante chinês havia adormecido no sofá por detrás de um livro, de boca aberta e com os óculos pendurados na ponta do nariz.

Sandór apoiou sua mala no chão e estendeu sua mão para...

— ... Jackson Adeleke! O prazer é todo meu — disse sorrindo. — Se você ignorar o problema com a água no banheiro, souber cozinhar em um fogão de duas bocas e fazer uso tanto da pia, quanto da geladeira pré-históricas, não terá problemas aqui. Pelo menos entre nós.

Sandór não pôde deixar de perceber alguma coisa não-dita no ar, mas não quis fazer perguntas naquele instante.

Um vento frio entra pelo vidro quebrado da janela e sopra os cantos descolados do papel de parede. O chinês reclama, ainda de olhos fechados:

— Quando vamos finalmente fazer uma vaquinha para consertar isso? Não quero morrer congelado aqui.

— Trouxe dois agasalhos quentes. Pode usar um deles, se quiser — disse Sandór.

O chinês não reconheceu a voz e logo abriu os olhos. — Ah, é claro! Bem-vindo! Sou Likun Bao — se levantou,

ajeitou os óculos sobre o nariz e se apresentou, apertando a mão de Sandór. — Como foi a viagem de Budapeste até aqui?

— Tranquila, mas cansativa. Moisés colocou três latinhas de cerveja sobre a mesa e

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todos se acomodaram. — E então? O que posso esperar de Moscou? — Sandór

pergunta. Moisés e Jackson se calam, mas Likun se sente no dever

de responder. — Estudar na Rússia pode ser uma das experiências

mais gratificantes da vida, mas só se a pessoa for capaz de se adaptar. Primeiro você tem que entender como o metrô funciona e ganhar uma idéia geral das lojas e dos mercados de bugigangas piratas. Tem que visitar um ponto turístico de cada vez, torcer o pescoço para cada russa de pernas longas que passar na sua frente, e depois disso, voltar para seu objetivo principal, que é estudar. Mergulhar de corpo e alma nas pilhas de lição de casa mesmo com o nariz pingando do seu primeiro resfriado russo mal-curado. Importante é jamais desistir de tentar decifrar a alma russa.

Sandór deu um belo gole na cerveja e comentou: — Não me parece nada mal. Jackson começou a estralar os dedos de nervosismo e

não aguentou mais ficar ali calado. — Tentar decifrar a alma russa? Likun, você falou bonito,

só que esqueceu de algumas dicas de ouro. Jackson se dirigiu para Sandór: — No metrô, procure se sentar no primeiro vagão, logo

atrás do motorista, porque isso inibirá alguns encrenqueiros. Deixe sempre um generoso espaço vazio ao seu redor, porque as chances de ser esfaqueado diminuem. É claro que se esses delinquentes quiserem te matar mesmo, apertam o gatilho, mas aí não tem escapatória mesmo, não é? Fora isso, ande sempre com seus documentos originais em mãos, esteja permanentemente em estado de alerta, escolha seus futuros amigos sabiamente e não se sinta tranquilo em ambientes quietos, porque isso em uma cidade como Moscou é perigo na certa. Mas acima de tudo, não dê ouvidos às provocações e muito menos confie na milícia! Esqueci de alguma coisa,

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Moisés? Antes que Moisés pusesse responder, Jackson

prosseguiu com seu pequeno monólogo: — Ah, sim. Não consigo parar de me perguntar o motivo

do governo russo nos acolher, já que tem mesmo o intuito de nos matar.

Moisés olhou para o rosto pálido de Sandór e se virou para Jackson:

— Bom, acho que você e o Likun deram as boas-vindas ao nosso novo amigo aqui.

Likun ainda disse: — Chama isso de boas-vindas, Moisés? Sandór não terá

tantos problemas como nós, porque ele até parece ser russo. Não chamará tanto a atenção na rua.

— Torço para que esteja certo, Likun. — respondeu Jackson.

— Mas o que é isso aqui? – pergunta Sandór. – Uma selva?

Jackson, Moisés e Likun se calaram, consentindo. — Ouvi as dicas do Likun e do Jackson. Mas quais são

as suas dicas, Moisés? Moisés refletiu para não se tornar repetitivo referente as

dicas dos seus dois outros amigos, mas achou que se fizesse um pequeno resumo daquilo que os dois haviam acabado de dizer, daria o seu recado:

— Você não precisa entender a alma do povo russo para sobreviver aqui, mas sim entender a alma e o ritmo da cidade. Aprenda e nunca esqueça que em Moscou as pessoas não acham que sorrir valha a pena. Infelizmente essa é uma prática contagiosa! Os residentes da capital, sendo eles moscovitas de nascença, de coração ou por obrigação, não tem pena de ninguém porque ninguém tem pena deles. Talvez isso se dê pelo fato de ainda se acharem vitimas da humilhação internacional pela qual passaram nos anos noventa. E para terminar, você só será respeitado se demonstrar uma personalidade forte.

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— Nós, estrangeiros, já provamos ter fortes personalidades só por termos vindo até aqui, e ainda sim não somos respeitados — replica Jackson.

Sandór havia ouvido todas as dicas com o máximo de sua atenção, mas por já não ter mais energias nem mais para entrar debaixo do chuveiro, só comentou:

— Estou grato pelas dicas e avisos, mas agora eu só quero comer algo e ir dormir. Saibam que estou preparado para encarar o que der e vier.

Após ter devorado um sanduíche de atum, Sandór finalmente jogou a mala no chão de seu minúsculo quarto, se acomodou na estreita cama de ferro com ruídos e pensou sorrindo: Bem, aqui estou!

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Capítulo 3 Justamente no dia da chegada do container com os

móveis no apartamento na parte sudoeste de Moscou, logo a mais verde e a mais cobiçada da cidade, Ronald teve que fazer sua primeira viagem de negócios.

— Lembre-se do perigo de voar sobre a Rússia, meu amor — Alice sugeriu.

— Que ótimo me dizer isso agora! — respondeu Ronald apreensivo, antes de se despedir de sua esposa.

Um dia mais tarde, enquanto Alice desempacotava algumas caixas de papelão em meio a confusão de empacotadores indo e vinho com os móveis, Ronald já se encontraria do outro lado do país, mais precisamente em Khabarovsk.

Por telefone, Ronald contou para Alice que lá ele havia sido levado para uma pensão de madeira simples, porém de ambiente familiar, bem no meio do bosque. Um colega da firma havia explicado que esta pensão era de longe muito melhor do que os poucos hotéis na cidade. E de fato, tudo parecia estar na mais perfeita ordem, apesar dos -36°C.

— De frente à entrada lateral encontrará a facilidade que procura — explicara a dona da pensão, uma senhora de dentes amarelados, vestido negro largo no corpo e lenço na cabeça, quase um retrato fiel de uma boneca matriushka.

De bexiga cheia, assim que abriu a porta da casinha de madeira que abrigava somente o vaso sanitário e uma pia, Ronald segurou seu impulso para vomitar, porque claramente alguém com muita vodca na cabeça havia confundido o chão com o vaso. Mas Ronald ainda continuava desesperado para se

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aliviar. Ele então saiu do cubículo e olhou em volta, resolvendo rapidamente se esconder atrás de uma árvore, abaixar as calças deixando suas nádegas brancas e peladas ao vento do inverno rigoroso russo e fazer aquilo que tanto precisava fazer.

Passado esse episódio, Ronald telefonou no dia seguinte, o terceiro e último da mudança, enquanto Alice almoçava ao lado dos empacotadores, rodeada por algumas caixas de pizza espalhadas pelo chão.

— Por incrível que pareça, Alice, estou me sentindo bem — ele disse. — Nunca bebi tanto álcool em minha vida, mas ainda posso dizer que consigo trabalhar. Os russos bebem vodca acompanhando o jantar e não só como aperitivo. É considerado mal-educado beber sem brindar e se servir sozinho, e dependendo daquilo que for dito, a pessoa deverá ainda virar o copo inteiro em sinal de apreciação.

— Conseguiu pelo menos sentir o gosto da comida, Ron? — Ah sim. De vez em quando intercalamos a vodca com

o kvas, que é um suco vermelho feito de frutas do bosque e pão. — Ah, o kvas eu já conheço. Tem em qualquer quiosque

por aqui, como blínis e os pirogues, que são aquelas tortinhas salgadas, sabe? Ontem à noite estava olhando as vitrines do shopping center Gum só para mudar de ares e senti uma leve fome. Sentei-me em um Café e pedi simplesmente uma sopa de legumes. Pensei que assim não engordaria nenhuma grama, mas assim que a sopa chegou, o garçom colocou delicadamente um colherzinha de ervas por cima dela e um colherão de creme smetana. Meu Deus! Teria sido melhor se tivesse pedido logo uma fatia de bolo de chocolate!

— Os russos comem demasiadamente gordo e doce para aguentarem o inverno e o alto consumo de álcool — explicou Ronald.

— Mas mudando de assunto — continuou Alice — ouvi dizer que um vento forte da Sibéria estará alcançando Moscou em breve.

— Então comece a se preparar psicologicamente,

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querida. Enquanto o tão esperado frio radical não chegava, Alice

tentou se ocupar, procurando por ajuda doméstica. Se cadastrou no Clube Internacional das Mulheres e até participou do primeiro encontro.

Uma vez por mês, expatriadas em Moscou se encontravam para passarem uma manhã agradável. Fora isso, elas organizavam círculos de literatura, passeios guiados, aulas de ioga, mantinham uma associação de caridade e lutavam pelos animais de rua, principalmente aqueles que tinham sido largados pelas suas ex-famílias. Elas também ajudavam as recém-chegadas, como Alice, a se orientarem nessa caótica metrópole. Foi através desse clube que Alice encontrou Zema, uma empregada doméstica com ótimas referências que já havia trabalhado até na embaixada americana.

Todos os passeios e Cafés ocupariam Alice no início, só que ninguém poderia viver só de museus ou de encontros sociais. Um dia, Alice decidiu enfrentar de carro as ruas de Moscou para melhor se orientar. Era importante saber como chegar na embaixada brasileira ou alemã, ou ainda conhecer a localidade exata dos hospitais onde se falava outros idiomas além do Russo no caso de uma emergência.

Dirigir em Moscou não era tarefa fácil, onde raramente virar a esquerda era permitido com um policial a cada esquina só aguardando alguém fazer uma bobagem para poder ganhar sua gorjeta. Mas ainda sim, Alice soube que se pretendia se adaptar em Moscou, deveria se adaptar a cada rua e a cada esquina moscovita.

O trânsito de Moscou já era uma história a parte. O estrangeiro que se aventurasse pelas Ulitsas e Prospekts era visto como corajoso. Rotina era congestionamentos colossais, motoristas agressivos, algumas regras de trânsito que não faziam sentido algum para a grande maioria dos estrangeiros e ainda por cima Ladas enferrujados atrapalhando a circulação. Ruas bloqueadas pela milícia sempre que algum membro do

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gabinete do presidente estava a caminho acompanhado por uma delegação de seguranças também faziam parte do jogo, e três anéis rodoviários confundiam ainda mais os recém-chegados quanto à lógica nada coerente dos russos. O infeliz que cometesse o erro de entrar em um desses anéis sem-querer, pagaria caro por isso, só podendo desfazer o erro muitos, muitos quilômetros adiante.

Numa dessas tardes geladas e confusas, Alice estava suando frio procurando pelo nome de uma determinada rua, só que pelo fato de seus conhecimentos da escrita cirílica ainda estarem se estabelecendo em sua mente, toda vez que conseguia decifrar as três primeiras sílabas do nome da rua, já estava bem longe dela.

Pois bem, ainda estressada, Alice virou numa rua à direita onde era proibido. Um policial lhe parou imediatamente. Ela observou-o vindo em sua direção e notou que ele estava sorrindo. Mas é claro, se tratava da hora da gorjeta! Após ter feito de conta que leu os documentos de Alice, inclusive a carta internacional de motorista, o policial enfim disse:

— Brasilia? Pelé? Alice sorriu educadamente para não estrangulá-lo, já que

sendo brasileira e tendo dado a volta pelo mundo diversas vezes, estava farta de ouvir sempre a mesma coisa.

O policial estava vestido com seu uniforme cinza, com seu chapka (chapéu russo de pele) e com um colete verde florescente. A pele rosada do frio e os olhos apertados do policial se fixaram nos olhos de Alice. Ele explicou o que ela havia feito de errado e que precisava ser punida pelo ato. Sem cerimônias, Alice abriu sua carteira e ofereceu uma nota de 500 rublos, o que corresponderia aproximadamente a 15 euros. O policial achou pouco e pediu mais. Além da nota de quinhentos, Alice ainda tinha duas notas de 10 e algumas moedas. O policial por fim pegou a nota de 500 e uma de 10, e deixou a outra nota de 10 com as moedas. Finalmente Alice foi liberada.

— Daváitie, diêvushka!

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Um pouco nervosa com o episódio, Alice resolveu voltar imediatamente para casa para renovar suas energias.

Deixando a versão russa do Arco do Triunfo na Kutosovsky Prospekt para trás, já podia avistar seu complexo residencial. Kutosovsky Prospekt era de fato a avenida mais bonita e mais imponente em toda Moscou com suas doze faixas de trânsito, seis de cada lado. Os prédios bem cuidados respiravam a história lado a lado dos arranha-céus espelhados e as boutiques de designers de renome internacional e restaurantes refinados que atraiam os novos ricos. Mas isso não era tudo: teatros, museus como a versão moscovita da Batalha de Borodino, com Napoleão enfrentando o general Kutusov2 (daí o nome da avenida), e o belíssimo Parque da Vitória, dedicado ao Exército Vermelho e seus triunfos... Essa também era a avenida pela qual o presidente Putin3 passava diariamente para chegar no Kremlin. Talvez isso explicasse o tamanho cuidado.

No portão do seu complexo residencial, Alice apresentou um cartão de identificação com a chapa do seu carro imprimida nele. Na garagem, Alice caminhou para o elevador ainda nada acostumada com os carros ali estacionados: Mercedes de vários modelos, BMWs, Jaguares, Bentleys, Hummers e até Maybachs!

Eram tantas as portas de mesma cor dentro da garagem que Alice conseguiu se perder em duas ocasiões. Se perguntou o motivo delas não serem devidamente sinalizadas e logo descobriu que a resposta era simplesmente por medidas de segurança.

Em seu andar só haviam três apartamentos. Cada um tinha no mínimo duzentos e cinquenta metros quadrados e custavam uma verdadeira fortuna por mês, mas felizmente era a 2 Príncipe Mikhail Illarionovitch Golenishchev-Kutuzov (*16 de setembro de1745. †28 de abril de 1813). Comandante de campo russo que teria salvado seu país de Napoleão. 3 Wladimir Wladimirowitch Putin (*7 de outubro de 1952 em São Petersburgo). Político russo e o segundo presidente da Federação Russa de 26 de março de 2000 até 2008. Ex-espião e ex-chefe da KGB. Atual primeiro-ministro.

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firma de Ronald que se importava com esses detalhes. Alice se lembrou do episódio de quando ainda estava a

procura de um lugar para morar na capital russa. Foram dois dias entrando e saindo dos imóveis e, passando sem querer na frente de uma das raras casas térreas na cidade, Ronald perguntou brincando se este imóvel não estaria disponível. O agente imobiliário se virou para ele do banco da frente do carro e respondeu sem cerimônias:

— Tenho certeza que se vocês realmente quiserem morar lá, haverá um jeito. Só teriam que oferecer mais ao proprietário do que o inquilino atual. Asseguro-lhes que na semana seguinte o atual morador já estará na rua, independentemente dos contratos assinados.

Essas são as regras daqui então — Alice pensou se sentindo um tanto desconfortável só de imaginar a situação.

No entanto os Schmidts não podiam reclamar por terem tido a sorte de encontrar um imóvel de alto nível, que custaria para a firma o valor máximo de que estaria disposta a pagar.

Esse complexo residencial dispunha de salão de festas, alguns escritórios, farmácia, mercadinho-socorro, casa de câmbio, um grande playground, jardins, clube de esportes e até uma clínica para mães e filhos, com direito a ambulâncias de plantão.

Haviam câmeras de vigilância e seguranças por toda a parte, inclusive guarda-costas de alguns oligarcas residentes ali, circulando com suas metralhadoras em plena luz do dia e se dando o direito de bloquear o elevador quando necessário.

Na oitava tentativa de cumprimentar em Russo os seguranças e as moças da limpeza que viam-na diariamente, Alice desistiu porque ninguém jamais se dava o trabalho de responder, nem mesmo com um aceno, ou um piscar extra de olhos.

A vizinha de parede parecia ser dona de algum bordel de luxo, pelo frequente entra-e-sai de belas mulheres e homens bem vestidos de lá. Eles também não respondiam ao seu

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cumprimento. Mas um certo dia, a outra vizinha, uma russa carregando seus trinta e poucos anos nos ombros, perguntou no corredor em Inglês, se Alice era a estrangeira que morava de frente ao seu apartamento. Alice anuiu.

— Uma hora dessas você tem que vir tomar um café — sugeriu a vizinha.

Devidamente acomodada no novo apartamento, era hora de procurar por alguma ocupação, e é claro que aprender a língua russa seria prioridade, principalmente para alguém que como Alice, ganhava seu dinheirinho ocasionalmente fazendo algumas traduções de Português, Espanhol, Inglês e Alemão.

Maria, a secretária de Ronald, havia organizado para que Alice visitasse duas universidades em Moscou que ofereciam cursos intensivos de Russo.

Na data marcada, Alice chegou na primeira universidade no centro da cidade pronta para deixar uma boa impressão. Por se tratar de um imenso estabelecimento, haviam diversas portas, e como mandava a regra, nenhuma sinalização, pelo menos nenhuma que ela pudesse compreender.

Alice resolveu seguir uma grande massa de estudantes e logo se encontrou na que só poderia ser a entrada principal. Assim que passou pela porta giratória espremida entre quatro mocinhas lindas, mas de cabelos oleosos e peles fedorentas, notou paredes descascadas em tom amarelo-ouro, o chão escuro e úmido da neve suja trazida pelos pés dos estudantes, um cheiro desagradável de prédio velho em más condições e por fim uma aglomeração de jovens de frente a um segurança.

Se tratava de um controle de documentos. Lá os estudantes também eram obrigados a passar pelo raio-X e a abrirem suas mochilas para inspeção.

Meu Deus! Será que entrei no prédio certo ou acabei terminando na entrada de alguma penitenciária? — Alice pensou.

Quando chegou a sua vez, Alice explicou para o segurança em Inglês que precisaria ver a fulana X, responsável

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pelos cursos de línguas. De repente tudo parou: ninguém mais se mexeu ou disse nada com um alien a poucos metros de distância deles. Mesmo na atual Moscou, onde os nativos se deparavam diariamente com estrangeiros (até mais do que desejavam) eles não conseguiam se livrar daquela sensação estranha de ter seu espaço invadido por alguém de fora.

Com muito furor e explicações detalhadas para o segurança, Alice passou por longos corredores, subiu dois lances de escada, virou à direita, depois à esquerda, e então mais três lances de escada e, já curta de fôlego assim que achou que tivesse chegado na seção correta, Alice se surpreendeu com um último lance de uma estreita escada que dava para um curto e escuro corredor de portas escuras e minúsculas salas de aula. Essa era a seção direcionada para os estrangeiros, ou seja, a pior de todo o prédio.

Perguntou pela fulana X e assim que a russa magra e alta de no máximo trinta anos de idade chegou, Alice sorriu para cumprimentá-la.

— Olá. Sou Alice Schmidt. Deve ter conversado com a Maria sobre mim.

A fulana X não respondeu, muito menos sorriu. Alice esticou o braço para poder dar a mão num ato educado e sutil, mas a fulana X olhou suas mãos com nojo, como se estivessem cobertas de lama. A fulana X escondeu suas mãos dentro do bolso do cardigan e depois Alice não soube mais o que dizer. Ela não tinha se banhado na hidromassagem durante quarenta minutos, se perfumado com Chanel N°5 e ainda se vestido com um jeans de marca italiana e blusa de lã vermelha de cashemere para ser tratada como uma refugiada que nunca havia degustado um tomate na vida.

A fulana X explicou em pouquíssimas palavras que a primeira aula começaria em quinze minutos e que mandaria a fatura diretamente para a firma. Após tal tratamento, Alice se recusou a permanecer ali. Inventou uma dor de estômago e voltou revoltada para casa.

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Até que ela estava disposta a se engrupar com os russos, mas fazia questão de manter sua dignidade, já que uma coisa não tinha relação alguma com a outra.

Alice imaginou a vida dos coitados que vinham dos países mais pobres estudar na Rússia. Vinham porque gostariam de estudar na Europa, e a Rússia ainda gozava a merecida fama de ter brilhantes cabeças.

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