e s c r i t o r - aelg.gal · coloca duas páginas em negro absoluto, e isto lembra-me os tem-pos...

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235 Nasceu em Cataguases , Minas Gerais , em Fevereiro de 1961. Formado em Comunica çã o pela Universidade Federal de Juiz de Fora ( MG ), passou por v á rias profiss õ es antes do jornalismo , que exerce actualmente em S ã o Paulo , onde mora . Publicou H i s t ó r i a s de Remorsos e Rancores ( contos , 1998), ( os sobreviventes ) ( c o n - tos , 2000, Men çã o Especial no Pr é mio Casa de las Am é ricas ), E l e s eram muitos cavalos ( romance , 2001, Pr é mio APCA de melhor romance de 2001 e Pr é mio Machado de Assis de Narrativa; j á tem vers ã o em italiano e franc ê s e sai em 2006 em Portugal e na Alemanha ) ; As M á scaras Singulares ( poemas , 2002), Os ases de C a t a g u a s e s ( ensaio , 2002), Mamma , son tanto felice ( r o m a n c e , 2005, em franc ê s para 2006), O mundo inimigo ( romance , 2005), AGÁLIA nº 83-84 / 2º SEMESTRE (2005): pp. 235 - 242 / ISSN 1130-3557 L U I Z R U F F A T O e s c r i t o r por Carlos Quiroga o anti-romance do operariado

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Nasceu em Cataguases , Minas Gerais , em Fevereiro de 1961.Formado em Comunicação pela Universidade Federal de Juiz deFora (MG), passou por várias profissões antes do jornalismo , queexerce actualmente em São Paulo , onde mora . Publicou H i s t ó r i a sde Remorsos e Rancores (contos , 1998), (os sobreviventes) ( c o n-tos , 2000, Menção Especial no Prémio Casa de las Américas), E l e seram muitos cavalos (romance , 2001, Prémio APCA de melhorromance de 2001 e Prémio Machado de Assis de Narrativa; já temversão em italiano e francês e sai em 2006 em Portugal e naAlemanha); As Máscaras Singulares (poemas , 2002), Os ases deC a t a g u a s e s (ensaio , 2002), Mamma , son tanto felice ( r o m a n c e ,2005, em francês para 2006), O mundo inimigo (romance , 2005),

AGÁLIA nº 83-84 / 2º SEMESTRE (2005): pp. 235 - 242 / ISSN 1130-3557

L U I ZR U F F A T O

e s c r i t o r

por Carlos Quiroga

o a n t i - r o m a n c e d o o p e r a r i a d o

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Nos seus primeiros livros decontos, Histórias de remorsos erancores e (os sobreviventes), falada gente pobre de Cataguases, olugar onde nasceu. No premiadoEles eram muitos cavalos vai paraSão Paulo, a cidade onde agoramora. A sua literatura necessitabeber da realidade directa maispróxima?

–Eu acredito na função políti-ca da Arte. Eu me abri para o mundoa partir da leitura de um livro e pensoque com outras pessoas possa ocor-rer o mesmo. Então, se puder modi-ficar, nem que seja um único leitor,me dou por satisfeito. A históriabrasileira sempre foi contada, a partirdo olhar privilegiado dos escritores,do ponto de vista da elite. Minha ten-tativa é de promover um olhar alter-nativo, uma visão de quem vivencioua realidade tendo que ultrapassarbarreiras e preconceitos comuns apessoas que são filhas do proletaria-do. Por isso, talvez, a escolha datemática esteja submetida a um pro-jeto político.

Especialmente nesse últimolivro, o delirante retrato de um diapaulista, feito em 70 unidades, usade ricas ousadias de conteúdo e

forma (há ementas, cartas, enume-rações, diplomas, e há vários recur-sos gráficos, tipográficos, etc.),numa adequação acertada, acho,dos olhares fragmentários à maté-ria relatada. No último quadro atécoloca duas páginas em negroabsoluto, e isto lembra-me os tem-pos de O Mono da Tinta, onde apli-car algo similar provocou algumadiscusão –e era uma revista decriação! Você não teve dificulda-des iniciais com o editor, nestesentido?

–Eu acabara de ter um livropremiado em Cuba, um prêmio queno Brasil é levado muito a sério.Portanto, quando entreguei os origi-nais de Eles eram muitos cavalos àminha então editora, apesar do sustoinicial provocado pela formatação,não tive grandes problemas iniciais.O livro, lançado em setembro de2001, logo ganhou importantesprêmios nacionais, teve uma segundaedição cinco meses depois, e hojeencontra-se na quarta edição e aedição francesa teve uma excelenterepercussão. De tal maneira, que,embora considerado “estranho” nocomeço, logo passou a ser motivo deestudos em universidades, e, atravésdo boca-a-boca, venceu aquela

ENTREVISTA

os dois ú ltimos agraciados com o Prêmio APCA de melhor ficção de2005). Luiz Ruffato participou , junto com outros escritores , noVIII Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas , cele-brado em Julho de 2005 em Santiago de Compostela , ocasião quelhe permitiu tomar contacto com a Galiza .

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primeira impressão. Penso que aforma da ficção tende a se adequarao assunto que o escritor quer tratar.No caso específico, a minha apreen-são de São Paulo é a mais fragmen-tária possível. Vivemos numa mega-lópole de mais de 18 milhões de habi-tantes, onde convivem uma riquezacondizente com os Estados Unidos euma pobreza asselhada aos piorespaíses africanos... Então, para darconta dessa realidade, precisei lançarmão de recursos outros, que não daficção tradicional. Daí a diversidadede linguagens...

Você acha que Eles… é o seumelhor livro ou que simplesmenteestá a ter melhor fortuna? Jogará afavor dele a maior agilidade e con-tundência, será isso preferível àmaior densidade dos I n f e r n o s… ,do ponto de vista do público?

–Sem dúvida alguma devo aminha visibilidade como escritor aEles eram muitos cavalos. A partirdele, pude até mesmo deixar o jor-nalismo, minha profissão primeira,para me dedicar exclusivamente à lit-eratura, um salto no escuro num paísde poucos leitores e menos aindatradição de escritor profissional. Mascreio que o meu projeto, se passa porEles eram muitos cavalos, não seesgota nele. E espero que o público eos especialistas concordem comigo.O conjunto dos dois primeiros vol-umes do Inferno provisório acaba dereceber o Prêmio APCA de melhorficção de 2005, o mesmo dado aoEles eram muitos cavalos, o que pode

significar uma carreira semelhante –meu desejo e minha angústia.

A vertigem visual, o ritmocortado de clip fílmico está muitoem harmonia, acho, com o mundourbano que retrata. Mas essa pre-ferência também está no M a m m a ,son tanto felice, onde as descriçõese retratos das 6 histórias descre-vem, com maior espaço e intimida-de, a mesma sociedade, mas agorana pequena cidade proletária. Seráesta fragmentariedade a principal“marca” estilística da sua narrativa?

–Quando pensei em me tornarescritor, uma das questões que mepus foi a seguinte: como tentar darum depoimento a respeito do Brasil apartir do ponto de vista dos traba-lhadores? Não poderia, por princípio,me utilizar da forma do romance,como conhecido, que é um instru-mento de apreensão e conformaçãoda realidade burguesa. Então, fui àhistória da literatura para tentarresolver o impasse. E, estudando,percebi que no mesmo momento emque o gênero romance nasce, flo-resce também o gênero anti-romance (que, talvez, na verdade,seja concebido até antes, se pen-samos no Dom Quixote, de Miguelde Cervantes). Assim, ao lado datradição do romance burguês, temosa tradição do anti-romance burguês,com Sterne, Xavier de Maistre,Machado de Assis, Joyce, Faulkner,Robbe-Grillet, Cortázar, Pérec...Assim, tentei beber nessas águas,transformando a própria forma de

Luiz Ruffato

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descrição da realidade em questiona-mento dela...

No Mamma, son tanto felice,que constitui o Inferno ProvisórioI, as narrativas têm protagonistasde origem italiana. Há umaintenção de análise, aplicada a essaZona da Mata em que decorrem ashistórias, especialmente centradana vida dos imigrantes de tal pro-cedência? Tem isso algo a ver comas raízes do próprio Luiz Ruffato?

–Sem dúvida. Mas, aqui, ositalianos que foram expulsos pelafome e pela miséria do seu país natal(principalmente por causa dosminifúndios ao Norte, caso dos meusfamiliares, e pelos latifúndios ao Sul),representam os imigrantes demaneira geral. Porque o Brasil é umpaís formado por imigranteseuropeus e asiáticos (e hoje latino-americanos), mas muito tambémpelos imigrantes internos. Logo apósa Segunda Guerra Mundial, o Brasil,por aderir com certa resistência aosaliados, ganhou uma usina siderúrgi-ca, início do processo de sua industri-alização. Mas, para garantir mão deobra barata para a elite paulista ecarioca, milhões de pessoas foramdeslocadas de suas regiões, particu-larmente do Nordeste e MinasGerais, deixando para trás não sósuas raízes culturais, mas principal-mente sua história. Porque pensoque, para o imigrante, pior de tudo ése afastar dos ossos de seus antepas-sados enterrados no cemitério.Porque ali está sua origem e seu

auto-reconhecimento. E quandovocê perde isso, perde também seustatus de ser no mundo. E é essa, naminha opinião, a pior tragédiabrasileira: a perda da identidade, aperda da história pessoal e coletiva.

Nas 12 histórias de O mundoi n i m i g o (Inferno Provisório II) ,continua apresentando relatos devidas que se cruzam. Acha queEles… e estes dois Infernos, ondeinclusive há reescritura de narrati-vas anteriormente publicadas, têmuma continuidade e constituemum conjunto?

–Sem dúvida. Quando comeceia escrever, já tinha um projetoembrionário do Inferno provisório,mas não sabia como executá-lo for-malmente. Publiquei dois livros,ditos de “contos” que eu chamava de“histórias”, e aí veio uma certa crise.Como resolver esse impasse? Então,escrevi o Eles eram muitos cavalos,que era uma tentativa de resolverimpasses formais e conteudísticos. Sóque esse “romance” acabou atro-pelando meu projeto do Inferno pro -visório. Ele foi então uma anteci-pação do que eu queria formalmente.Quatro anos se passaram, reescrevios dois primeiros livros, incorporei-osà “saga” do Inferno provisório epubliquei os dois primeiros volumesem 2005. E descobri que o Eles erammuitos cavalos seria assim como umaespécie de início –por ter me liberta-do das amarras formais do romancetradicional– e fim –por ser a con-clusão da pergunta que origina a

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minha obra: como chegamos ondeestamos? O Inferno provisório seráconstituído de cinco volumes e o Eleseram muitos cavalos seria assim umaespécie de “sexto volume”...

Quanto à reescritura assumi-da, tem uma intenção narrativaque não seja a efectividade domesmo projecto, que não seja oreaproveitamento para fazer cres-cer o panorama apresentado?Quer dizer, houve autores que aca-baram por fazer dos caprichos edi-toriais experiências de alta simbo-logia metaliterária, como oHerberto Helder com Cobra, cujosexemplares chegaram a ser bemdiferentes…

–No meu caso, o projetoliterário do Inferno provisórioacabou por atropelar e matar osmaus dois primeiros livros publica-dos. Então, para todos os efeitos,“Histórias de remorsos e rancores” e“(os sobreviventes)”, este, inclusivepremiado, não existem mais. Nãoserão mais editados. A reescritaserviu para adequar o projeto comoum todo. Há, por exemplo, umahistória de “(os sobreviventes)” quesomente será incorporada ao projetode Inferno provisório no quarto vol-ume. Minha intenção é, no final,publicar todos os cinco livros numúnico volume, com as histórias rear-ranjadas...

A etiqueta ‘Provisório’ tam-bém se refere à mobilidade do seutexto ou tinha outra intenção? OInferno narrado é provisório por-

que vai acabar ou porque aindapode se abordado doutro modo,ampliado, acrescentado…?

–Sempre penso no texto comoforma adequada a um conteúdoespecífico. Portanto, para dar contade um universo precário e provisório,lancei mão de uma forma precária eprovisória. Precária porque a vida éprecária nesse lado do OceanoAtlântico e abaixo da linha doEquador. E provisória porque a artecontemporânea tem essa caracterís-tica de work in progress... Comrelação especificamente ao “Infernoprovisório”, penso que o nosso infer-no é provisório porque o definitivo éa planície da mesmidade, enquanto oprovisório é esperança de que setransforme...

Nesse sentido, há uma coin-cidência mais ampla do que aestratégia estilística de preferênciafragmentária. Estou a referir-meao objecto mesmo da sua escrita. Ofriso social retratado, onde aconte-ce a injustiça, a vida humilde, mes-quinha, infernal. Quer ser o LuizRuffato o cronista do proletariadobrasileiro do século XXI, dos margi-nais e e pobres do nosso tempo?

–O Brasil é um país de umahierarquização social cruel. As possi-bilidades de ascensão social são mín-imas. E estudando a história da lite-ratura brasileira me defrontei comum curioso paradoxo: nós não temosna nossa história contemplado afigura do proletário. Isso, porque,além de termos tido um processo de

Luiz Ruffato

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industrialização relativamente re-cente, mesmo aqueles que nascem defamílias pobres tendem a esconderseu passado para ser melhor aceitospela elite cultural e econômica.Assim, tomei para mim a tarefa detentar contar a história brasileira doponto de vista de quem participoudela até agora apenas como atorsecundário. Por incrível que possaparecer, são muitas as represen-tações do imaginário da marginali-dade brasileira –desde a inauguraçãoda literatura brasileira– mas raros osrelatos que têm o operário como cen-tro da narrativa. Algo como oGerminal, do Zola, no Brasil é impen-sável... Assim, tenho trabalhado paradar voz a quem não a tem, para darvisibilidade a quem incomoda.

E a Poesia, que lugar ocupana sua dedicação, na sua preferên-cia de escrita?

–A poesia já foi o centro dasminhas preocupações. Comcei poeta,ou achando-me poeta, cheguei apublicar um livro, em 2002, As más-caras singulares, mas tenho tamanhorespeito pela poesia e pelos poetas,que achei melhor aprender mais... Apoesia acabou incorporada à minhaprosa e eventualmente pego-me emnamoro com ela em forma de poema.Penso que a poesia tem uma relaçãomais íntima com a Filosofia e a prosacom a História. A minha preocu-pação maior, no momento, é com aHistória. Mas, minha preferência,como leitor, é pela Filosofia...

Este Verão, quando o conhe-ci, lembro-me de ter-lhe ouvidodizer que se dava uma entrevistaera para falar de política, não deliteratura –e agora entendo mel-hor aquilo, após algum dos seuslivros! Em todo o caso, uma pre-gunta mais abertamente política:no Brasil lulista de hoje, as espe-ranças dessa sociedade que vocêretrata continuam em pé?

–Sim, acho que o artistaexpressa o que pensa no seu traba-lho. Quando posso falar para mais deuma pessoa, prefiro falar em política,que é a forma de expressão que podecotucar as pessoas a pensarem emvoz alta. A literatura é uma forma dediálogo em voz baixa, o artista e oleitor. Então, pensando politica-mente, em voz alta, acho que infeliz-mente o PT, partido que ajudei a criare por quem alimentei esperanças demudança –eu e milhões debrasileiros– não disse ao que veio,traiu os nossos ideais. Estamos indopara o último ano de mandato deLula da mesma maneira como ele seiniciou. Nada mudou e em algumascoisas houve mesmo retrocesso.Acho que foi um grande equívoco daesquerda brasileira e, o que é pior, asensação que me fica é que o desas-tre do governo de Lula vai repercutirdurante muitos anos em descrençados jovens em relação a possíveismudanças propaladas pela esquerda.

Também no reino daEspanha e mais especificamente naGaliza tivemos mudança política

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recente, e você já conhece algo dasociedade galega, em tensão (paramuitos inconsciente) entre talreino e a afirmação da nossa iden-tidade. Também nós temos agoraalgumas esperanças… Esperavavocê encontrar na Galiza o queencontrou? Que foi o que mais ochocou? Tem algum conselho ‘polí-tico’ para esta Galiza ainda algoesperançada?

–Eu confesso minha ignorân-cia. Desconhecia a riquíssimatradição galega. Mergulhei num uni-verso novo e percebi o quanto temosem comum, não só em relação à lín-gua, à cultura, mas talvez principal-mente em relação a ideais demudança, de afirmação de nacionali-dade, de luta pelo reconhecimentode um povo. O que mais me chocoufoi saber com que brutalidade foramsufocados aqueles que lutaram pelaafirmação identitária – mas aomesmo tempo fiquei impressionadocomo que esse desprezo pelos val-ores galegos serviu também para ali-mentar o orgulho pela cultura e pelaafirmação dessas diferenças. Achoque cada um à sua maneira tem quedar contribuições para as mudanças.E se existe algum conselho a dar,seria a de manter sempre acesa aesperança, com luta e afirmação.

Você é mineiro, e uma minhaamiga brasileira afirmava que osmineiros são muito parecidos comgalegos, a respeito dos outrosbrasileiros. Alguns tópicos de maisreservados, trabalhadores, etc.

Não sei se deu para observar pare-cidos.

–Creio que esses estereótiposnascem de observações concretas.Há algo no ar da Galiza que me lem-bra Minas: as montanhas, por exem-plo, e a cultura profundamentearraigada no povo e nas coisas, e oorgulho de saber-se galego (emineiro). Eu confesso que, emboranunca tivesse colocados os pés naGaliza, me senti profundamentegalego... Talvez isso responda demaneira sintética a questão...

Por falar em parecidos, o queacha do falar dos galegos –e gale-gas-, é para você muito diferentedo falar dos portugueses?

–Cada um com seus acentos, alíngua portuguesa que falamos,angolanos, moçambicanos, guine-enses, caboverdianos, timorenses,portugueses (do sul e do norte) orig-ina-se no galego. Portanto, no meucaso, compreendi perfeitamente ogalego –mas essa felicidade, quechamei de galeguia (galegria), dá umtom de suavidade muito particular.

Em Fevereiro de 2006 estaránas Correntes d’Escritas, esse rio deamizade da Póvoa do Varzim, e apre-senta depois a edição portuguesa deE l e s … em várias cidades. Acha nor-mal que os livros brasileiros devamaguardar outra edição em Portugal?Será que os portugueses não podemler a versão brasileira? Será queainda têm complexo de donos da lín-gua? Será só questão mercantil?

Luiz Ruffato

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–No meu caso, uma dasexigências para a publicação de Eleseram muitos cavalos, é que não hou-vesse uma “versão” portuguesa, masapenas, caso a editora sentisse neces-sidade, uma ou outra nota de rodapé.No Brasil, lemos os livros portugue-ses sem necessidade de “versão”, ape-nas adaptações ortográficas. Pensoque cada um dos povos colonizadospor Portugal tem dado contribuiçõespara o enriquecimento da língua por-tuguesa. No Brasil, muitos vocábuloschamados de “brasileirismos” são, naverdade, resquícios do portuguêsarcaico, que caíram em desuso naEuropa, mas continuaram a ser usa-dos no interior. Outros, foram refor-mulações e criações para dar contade uma natureza totalmente difer-ente e complexa. Não percebo xeno-fobia, mas evidemente há diferençasque têm que ser respeitadas.

Vou tentar concluir voltandoà literatura… Noutra parte vi quemencionava cinco mestres, autoresde cabeceira, Tchecov, Machado deAssis, Pirandello, Faulkner eGuimarães Rosa. Continua subscre-vendo? Reduziu ou amplicou alista?

–Esses autores são, digamosassim, nortes que persigo. Cada umdeles é um universo. Tchekov meconduz à compaixão pelos person-agens; Pirandello me ensina o absur-do da vida; Faulkner me indica oscaminhos do experimentalismo;Guimarães Rosa, a recriação da lín-gua. E Machado de Assis é tudo.

Agora, as minhas leituras englobamos mais diversos caminhos: da liter-atura contemporânea portuguesa(extremamente instigante) ebrasileira aos clássicos em todas aslínguas. Tudo me interessa.

Tinha ainda algumas outrasperguntas transcendentais, comosaber o seu número de pé ou inte-rrogá-lo sobre a sua posição a res-peito da camada do ozono, masnão resisto fechar com um toqueegotista: sabe que a data que vocêescolheu para retratar São Paulono Eles… coincide com o dia domeu aniversário? Menos mal quenão nos conhecíamos quando oeditou! Foi casual a escolha dessadata?

–Foi uma antecipação daamizade que haveria mais tarde.Disso não duvido...

Creio que vou apagar a últi-ma pergunta e a correspondenteresposta: a partir de agora direipor aí que o celebrado escritorbrasileiro Luiz Ruffato me apreciatanto que já me homenageou noseu grande livro Eles…, escolhen-do a data do meu aniversário parao memorável mergulho…! Enfim,quem me conheça não vai acredi-tar nada... Sou pouco de aniver-sários próprios, cada vez menos.Deixarei ficar tudo na mesma.Muito obrigado, Luiz, venha ver-nos em breve –e nos diga a data doseu aniversário, para devolver-lhea homenagem!

–4 de fevereiro...

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tenção é, no final, publicar todos os cinco livros num único volume, com as histórias rearranjadas...

O Inferno narrado é provisório porque vai acabar ou porque pode ser aborda-do ou ampliado doutro modo?—Sempre penso no texto como forma ade-quada a um conteúdo específico. Portanto, para dar conta de um universo precário e pro-visório, lancei mão de uma forma precária e provisória. Precária porque a vida é precária nesse lado do Oceano Atlântico e abaixo da linha do Equador. E provisória porque a ar-te contemporânea tem essa característica de work in progress... Com relação especifica-mente ao «Inferno provisório», penso que o nosso inferno é provisório porque o definitivo é a planície da mesmidade, enquanto o pro-visório é esperança de que se transforme...

Quer ser o Luiz Ruffato o cronista do proletariado brasileiro do século XXI?—O Brasil é um país de uma hierarquiza-ção social cruel. As possibilidades de ascen-são social são mínimas. E estudando a histó-ria da literatura brasileira me defrontei com um curioso paradoxo: nós não temos na nos-sa história contemplado a figura do prole-tário. Isso, porque, além de termos tido um processo de industrialização relativamente recente, mesmo aqueles que nascem de fa-mílias pobres tendem a esconder seu passa-do para ser melhor aceitos pela elite cultu-ral e econômica. Assim, tomei para mim a tarefa de tentar contar a história brasileira do ponto de vista de quem participou dela até agora apenas como ator secundário. Por incrível que possa parecer, são muitas as re-presentações do imaginário da marginalida-de brasileira — desde a inauguração da li-teratura brasileira — mas raros os relatos que têm o operário como centro da narrati-va. Algo como o Germinal, do Zola, no Bra-sil é impensável... Assim, tenho trabalhado para dar voz a quem não a tem, para dar vi-sibilidade a quem incomoda.

Também conhece algo a sociedade ga-lega, em tensão… Que foi o que mais o chocou? Tem algum conselho para esta Galiza ainda algo esperançada?—Eu confesso minha ignorância. Desconhe-cia a riquíssima tradição galega. Mergulhei num universo novo e percebi o quanto te-mos em comum, não só em relação à língua, à cultura, mas talvez principalmente em re-lação a ideais de mudança, de afirmação de nacionalidade, de luta pelo reconhecimento de um povo. O que mais me chocou foi saber com que brutalidade foram sufocados aque-les que lutaram pela afirmação identitária –mas ao mesmo tempo fiquei impressionado como que esse desprezo pelos valores gale-gos serviu também para alimentar o orgu-lho pela cultura e pela afirmação dessas di-ferenças. Acho que cada um à sua maneira tem que dar contribuições para as mudan-ças. E se existe algum conselho a dar, seria a de manter sempre acesa a esperança, com luta e afirmação.

Por falar em parecidos, o que acha da nossa fala?—Cada um com seus acentos, a língua por-tuguesa que falamos, angolanos, moçambica-nos, guineenses, caboverdianos, timorenses, portugueses (do sul e do norte) origina-se no galego. Portanto, no meu caso, compreen-di perfeitamente o galego — mas essa fe-licidade, que chamei de galeguia (galegria), dá um tom de suavidade muito particular.

O Estive em Lisboa também é o título que temos mais à mão, pois acaba de sair

na Quetzal portuguesa; para além de uma antologia pessoana que Ruffato preparou pa-ra a Alfaguara brasileira –e já vendeu mais de 25 mil exemplares desde 2006–, pois a Objectiva de Portugal edita com prefácio de Inês Pedrosa. O romance mais celebra-do, Eles eram muitos cavalos (2001, Prémio APCA, Prémio Machado de Assis, tradução a vários idiomas), saiu em Portugal em 2006 na Quadrante, um pequeno selo vitimado pelas convulsões editoriais do país, de ma-neira que não é fácil achar. Mas a carreira literária de Ruffato tinha arrancado antes:

publicou os livros de contos Histórias de Re-morsos e Rancores, 1998, e (os sobreviventes), 2000, este último Menção Especial no Pré-mio Casa de las Américas; seguiu-se o cita-do Eles eram muitos cavalos, de 2001, que su-pus a sua consagração na prosa; mas no ano a seguir edita poesia, As Máscaras Singula-res (poemas, 2002), e até ensaio, Os ases de Cataguases. A partir daí, começou a lançar o persistente projeto romanesco em que vi-nha trabalhando, o Inferno Provisório –nas-cido tetralógico e já agora pentalógico–, um retrato alargado da transformação da vida operária na cidade mineira de Cataguases, do que já temos os seguints títulos: Mam-ma, son tanto felice (2005), O mundo inimigo (2005) –ambos com Prémio APCA à melhor ficção de 2005–, Vista parcial da noite (2006), O livro das impossibilidades (2008). Isso para além de coordenar e organizar várias obras e antologias, especialmente conhecidas as relativas às «mulheres que estão fazendo a nova Literatura Brasileira» (2005). Ruffato é formado em Comunicação em Juiz de Fo-ra (MG), mas passou por várias profissões, a penúltima jornalismo, que exerceu em São Paulo. Nesta macrocidade acabou por mo-rar e virar-se só para a literatura –o que hoje não significa apenas fechar-se a escrever–.

Antes ao contrário, o Luiz prova nos últi-mos tempos que dedicação à escrita não é só em casa: escritor profissional tem agora mais exigências de deslocação? —Desde 2003, quando deixei o jornalismo pela literatura, tenho feito uma média de du-as a três viagens internacionais por ano e de-zenas de viagens pelo Brasil. Este ano mesmo já estive em Porto Rico, França e ainda irei à Argentina e Estados Unidos... E, no âmbi-to interno, de setembro até o fim do ano vi-

sitarei São João del Rey (MG), cinco cidades do interior de São Paulo, Curitiba (PR), Rio de Janeiro (três vezes) e Porto Alegre (RS)...

No Estive em Lisboa, editado agora em Portugal, a história apresenta-se como depoimento gravado e editorado: é uma estratégia narrativa (efectiva) ou tem mesmo fundamento nos trabalhos de preparação do livro?—Bom, isso é... um segredo! Na verdade, é uma estratégia narrativa... Como se trata de um texto na primeira pessoa, «citado» num fôlego único, como se tratasse efeti-vamente de um depoimento, achei que da-ria maior verossimilhança caso estipulasse junto com o leitor que o que se iria ler a se-guir era a história gravada de um imigran-te brasileiro perdido em Lisboa... Acho inte-ressante usar essas estratégias que tiram de prumo as certezas do leitor... Já havia feito isso de maneira mais radical num livro cha-mado De mim já nem se lembra...

O Serginho, protagonista mineiro que vai para Portugal com os sonhos do emi-grante, procede de Cataguases: a cida-de natal do Luiz, cenário dos primeiros livros, é um repositório inesgotável de memórias ou já se tornou estandar-te inevitável?—Na verdade, Cataguases não existe... Ou pelo menos a Cataguases que descrevo em meus livros... Eu levo para um lugar que cha-mo de Cataguases todas as experiências da memória coletiva, que são passíveis de se-rem encontradas por lá, mas que existem em diversos outros sítios do Brasil... Aliás, só assim, deformando a realidade de Cata-guases, foi possível transformar a cidade num lugar simbólico, que possa ser compreendi-do por alguém de regiões tão distantes co-mo a França ou os Estados Unidos... Quem, portanto, procurar na Cataguases onde nas-ci a Cataguases dos meus livros poderá, tal-vez, se decepcionar...

No premiado Eles eram muitos cavalos a paisagem urbana já é São Paulo, a cida-de onde agora mora. A sua literatura re-quer a realidade directa mais próxima?—Eu acredito na função política da Arte. Eu me abri para o mundo a partir da leitura de um livro e penso que com outras pesso-as possa ocorrer o mesmo. Então, se puder modificar, nem que seja um único leitor, me dou por satisfeito. A história brasileira sem-pre foi contada, a partir do olhar privilegia-do dos escritores, do ponto de vista da eli-te. Minha tentativa é de promover um olhar alternativo, uma visão de quem vivenciou a realidade tendo que ultrapassar barreiras e preconceitos comuns a pessoas que são fi-lhas do proletariado. Por isso, talvez, a es-colha da temática esteja submetida a um projeto político.

Especialmente no Eles, delirante retra-to de um dia paulista feito em 70 uni-dades, há atrevimentos de conteúdo e forma: ementas, cartas, enumerações, diplomas, recursos gráficos, tipográfi-cos. Até duas páginas em negro no úl-timo quadro. Aceitou bem o editor tan-ta ousadia?—Eu acabara de ter um livro premiado em Cuba, um prêmio que no Brasil é levado mui-

to a sério. Portanto, quando entreguei os ori-ginais de Eles eram muitos cavalos à minha então editora, apesar do susto inicial pro-vocado pela formatação, não tive grandes problemas. O livro, lançado em setembro de 2001, logo ganhou importantes prêmios na-cionais, teve uma segunda edição cinco me-ses depois, e hoje encontra-se na sexta edi-ção e publicado também na França, Itália, Portugal e Argentina, com excelente reper-cussão. De tal maneira, que, embora consi-derado «estranho» no começo, logo passou a ser motivo de estudos em universidades, e, através do boca-a-boca, venceu aquela primeira impressão. Penso que a forma da ficção tende a se adequar ao assunto que o escritor quer tratar. No caso específico, a mi-nha apreensão de São Paulo é a mais frag-mentária possível. Vivemos numa megaló-pole de mais de 18 milhões de habitantes, onde convivem uma riqueza condizente com os Estados Unidos e uma pobreza asselhada aos piores países africanos... Então, para dar conta dessa realidade, precisei lançar mão de recursos outros, que não da ficção tra-dicional. Daí a diversidade de linguagens...

Você acha que Eles… é o seu melhor li-vro ou que simplesmente teve melhor fortuna? Joga a favor dele a agilidade e contundencia, será isso preferível à maior densidade dos Infernos…, do ponto de vista do público?—Sem dúvida alguma devo a minha visibi-lidade como escritor a Eles eram muitos cava-

los. A partir dele, pude até mesmo deixar o jornalismo, minha profissão primeira, para me dedicar exclusivamente à literatura, um salto no escuro num país de poucos leitores e menos ainda tradição de escritor profissio-nal. Mas creio que o meu projeto, se passa por Eles eram muitos cavalos, não se esgota nele. E espero que o público e os especialis-tas concordem comigo. O conjunto dos dois primeiros volumes do Inferno provisório ga-nhou o Prêmio APCA de melhor ficção de 2005, o mesmo dado a Eles eram muitos ca-valos; o seguinte recebeu o Prêmio Jabuti de 2006 e o quarto volume esteve entre os 10 finalistas do Prêmio Zaffari-Bourbon... Além disso, o Estive em Lisboa e lembrei-me de ti (título em Portugal) ficou entre os 10 fina-

listas do Prêmio São Paulo de Literatura: o que pode significar uma carreira semelhan-te –meu desejo e minha angústia.

O ritmo cortado de clip fílmico está mui-to em harmonia com o mundo urbano que retrata. A preferência está também noutros livros dos Infernos…, a começar pelo Mamma, salvo haver maior espa-ço e intimidade, e deslocar a lente pa-ra a pequena cidade proletária —ain-da que a sociedade em foco coincide. É a fragmentariedade a sua principal «marca» estilística?—Quando pensei em me tornar escritor, uma das questões que me pus foi a seguinte: co-mo tentar dar um depoimento a respeito do Brasil a partir do ponto de vista dos trabalha-dores? Não poderia, por princípio, me utili-zar da forma do romance, como conhecido, que é um instrumento de apreensão e con-formação da realidade burguesa. Então, fui à história da literatura para tentar resolver o impasse. E, estudando, percebi que no mes-mo momento em que o gênero romance nas-ce, floresce também o gênero anti-romance (que, talvez, na verdade, seja concebido até antes, se pensamos no Dom Quixote, de Mi-guel de Cervantes). Assim, ao lado da tradi-ção do romance burguês, temos a tradição do anti-romance burguês, com Sterne, Xavier de Maistre, Machado de Assis, Joyce, Faulk-ner, Robbe-Grillet, Cortázar, Pérec... Assim, tentei beber nessas águas, transformando a própria forma de descrição da realidade em questionamento dela...

As personagens de origem italiana são numerosas. Há uma intenção de análi-se aplicada a essa Zona da Mata em que

decorrem as histórias, especialmen-te centrada na vida dos imigrantes de tal procedência? Tem a ver com as raí-zes do próprio Ruffato?—Sem dúvida. Mas, aqui, os italianos que foram expulsos pela fome e pela miséria do seu país natal (principalmente por causa dos minifúndios ao Norte, caso dos meus fami-liares, e pelos latifúndios ao Sul), represen-tam os imigrantes de maneira geral. Porque o Brasil é um país formado por imigrantes eu-ropeus e asiáticos (e hoje latino-americanos), mas muito também pelos imigrantes inter-nos. Logo após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil, por aderir com certa resistência aos aliados, ganhou uma usina siderúrgica, iní-cio do processo de sua industrialização. Mas, para garantir mão de obra barata para a elite paulista e carioca, milhões de pessoas foram deslocadas de suas regiões, particularmente do Nordeste e Minas Gerais, deixando para trás não só suas raízes culturais, mas prin-cipalmente sua história. Porque penso que, para o imigrante, pior de tudo é se afastar dos ossos de seus antepassados enterrados no cemitério. Porque ali está sua origem e seu auto-reconhecimento. E quando vo-cê perde isso, perde também seu status de ser no mundo. E é essa, na minha opinião, a pior tragédia brasileira: a perda da identi-dade, a perda da história pessoal e coletiva.

Nas 12 histórias de O mundo inimigo (In-ferno Provisório II) há de novo relatos de vidas que se cruzam. Existe entre Eles... e os Infernos –especialmente os dois primeiros, com reescritura de narrati-vas já publicadas– uma continuidade?

—Sem dúvida. Quando comecei a escrever, já tinha um projeto embrionário do Inferno provisório, mas não sabia como executá-lo formalmente. Publiquei dois livros, ditos de «contos» que eu chamava de «histórias», e aí veio uma certa crise. Como resolver esse impasse? Então, escrevi o Eles eram muitos cavalos, que era uma tentativa de resolver impasses formais e conteudísticos. Só que esse «romance» acabou atropelando meu projeto do Inferno provisório. Ele foi então uma antecipação do que eu queria formal-mente. Quatro anos se passaram, reescrevi os dois primeiros livros, incorporei-os à «sa-ga» do Inferno provisório e publiquei os dois primeiros volumes em 2005. E descobri que o Eles eram muitos cavalos seria assim como uma espécie de início –por ter me libertado das amarras formais do romance tradicional– e fim, por ser a conclusão da pergunta que origina a minha obra: como chegamos on-de estamos? O Inferno provisório será cons-tituído de cinco volumes (dos quais, quatro já lançados) e o Eles eram muitos cavalos se-ria assim uma espécie de «sexto volume»...

Quanto à reescritura assumida, tem intenção que não seja a efectividade narrativa? —No meu caso, o projeto literário do Infer-no provisório acabou por atropelar e matar os maus dois primeiros livros publicados. En-tão, para todos os efeitos, «Histórias de re-morsos e rancores» e «(os sobreviventes)», este, inclusive premiado, não existem mais. Não serão mais editados. A reescrita serviu para adequar o projeto como um todo. Há, por exemplo, uma história de «(os sobrevi-ventes)» que somente apareceu no quar-to volume do Inferno provisório. Minha in-

Do Brasil, RuffatoCarlos Quiroga

Luiz Ruffato (Cataguases, MG, 1961) é um dos nomes mais notórios na literatura brasileira da última década. Também o escritor brasileiro mais militante da «causa galega», desde que cá esteve pela primeira vez em Julho de 2005, convidado ao VIII Congresso da AIL. A última visita foi em Julho do ano passado, mas pelo meio também se «escapou» de Lisboa, quando escolhido no Projeto Amores Expressos a viajar para uma capital do mundo e narrar uma história de amor. O livro resultante da experiência, Estive em Lisboa e lembrei de você, até foi finalista do suculento Prémio São Paulo de Literatura ao Melhor Livro do Ano –com autores como João Ubaldo Ribeiro, Bernardo Carvalho, Chico Buarque, Ondjaki ou Raimundo Carrero–, este último vencedor final.