É proibido ficar só

É Proibido Ficar Só (CNEC) VI FETECAP 1

É Proibido Ficar Só

É Proibido Ficar Só

(Um círculo de cadeiras para o público e 8 cadeiras vazias. Entra a primeira personagem Maria

Mariana/Marimá cantando uma música francesa e se senta)

MARIA MARIANA Eu, Maria Mariana, confesso minha culpa, diante de Nossa Senhora

Aparecida, que é minha boa e dileta protetora, e também diante deste egrégio tribunal. O bom e

santo padre Carlos, meu confessor e conselheiro, sabe que sou a primeira a reconhecer:

MARIMÁ …Aí eu abria os olhos no meu quarto na Maison du Brésil, no movimento do meu

corpo alguma coisa caía no chão, eu estendia a mão para apanhar pensando que fosse um livro que

um tal de padre Tiago Koch, mas quem falou que era?

MARIA MARIANA ...Devo pagar meus pecados perante a Justiça de Deus e a Justiça dos

Homens, se bem que eu lutei, agarrei com São Judas Tadeu, fiz novenas, rezei ajoelhada em milho,

tudo para que São Judas Tadeu e a minha boa Nossa Senhora Aparecida não me deixassem cair em

tentação e me livrassem de todo mal, amém.

MARIMÁ ...Era um livrinho de capa vermelha chamado “Paris sem Gastar”, de Jacqueline

Boursin e que a Air France editou em português, aí eu falava comigo: Tirando onda de sonâmbula,

hein?

MARIA MARIANA Mas Nossa Senhora Aparecida houve por bem resolver que eu devia

capitular diante do demônio que vestiu a pele do cordeiro do Senhor que era meu irmão D.J., que

Deus o tenha, na sua infinita misericórdia.

MARIMÁ ...E via que tudo era um pesadelo: Não estava no Brasil coisa nenhuma: Estava em

Paris e me lembrava do Frei Xisto falando: “ Jesus é alegria, Marimá!”

( Entra a segunda personagem, a Mulher dos Gatos cantando “atirei o pau no gato” e se senta).


MULHER DOS GATOS Sou eu que mato os gatos, mas ele não sabe. Ele é gordo e ele usa

óculos tartaruga e os olhos dele são azuis e ele não sabe que sou eu que mato os gatos. Se ele

soubesse que sou eu que mato os gatos, ele não ficava assim comigo e nem ele punha mais vinho no

meu copo. Eu bebo vinho e fico achando que estou é sonhando: Fico vendo olho de gato e eu vejo o

olho do gato Tyrone Power e acho que estou é sonhando.

Quando ele chega perto de mim com a garrafa de vinho, eu sinto o perfume dele; ele é muito limpo

e ele é bem barbeado e é bom respirar o perfume dele. Eu respiro e penso no que a mãe ia falar se

me visse respirando o perfume de outro homem.

Daqui a pouco eu vou debruçar na janela. Vou ver uma lua e vou ficar lembrando que o Dico, meu

irmão foi devorado pelos índios.

Já matei 187 gatos. Mas ninguém sabe e ele também não sabe e eu continuo assoviando.

(Mulher dos gatos começa a assoviar e entra o terceiro personagem, Bulldog, cantando “I can’t stop

loving you” e se senta)

BULLDOG Eu quis fugir, mas aconteceu o que aconteceu com a blusa dela, pensei na Ava

Gardner, porque eu imaginava que aquilo só podia acontecer com Ava Gardner, e olhei sem

acreditar: Isabel estava no sofá, vi as cotovias e as sardas e eu tinha ficado 5 meses e 23 dias na

fazenda… Os aviões passavam, eu escutava aquele barulho de mosca voando, me sentia muito só,

ficava pensando: Que vestido Isabel está usando agora? E a vaca pecadora berrava um berro triste e

rouco como a voz de Isabel, fui sentindo uma vontade de chamar a vaca pecadora de My Love, e

vim embora… No terceiro dia depois que cheguei, a porta da sala abriu: Era Isabel, caminhou para

o sofá como a Ava Gardner e me olhou com aqueles olhos cor de trem de ferro andando, vi os

dentes de Isabel e senti um arrepio ao lembrar do que as seções de conselhos sentimentais estavam

publicando, mas o que eu fiz foi dar em Isabel os beijos que eu dava no travesseiro lá na fazenda,

depois ela me afastou e a pele dela estava vermelha como rubéola e ela se queixou da tal dor de

cabeça… Você precisa ficar sabendo tudo, você veio a esta praça encontrar Isabel como eu também

vim, numa 5 ª feira, sua sorte que eu não tive, foi você me pedir o fósforo e eu vi pelo seu olhar que

você esperava Isabel...

(Entra quarto personagem, Jesse, Cantando uma música em espanhol e se senta).


JESSE Muito bem, Dr. Jonas se não estou enganado …Claro que me lembro de você… Não é

fácil conseguir alguma instrução nesse lugar, mas estou tentando. Foi nesse ponto que errei…

Nenhuma instrução… Aprendi espanhol sozinho.

( Jesse começa a gritar palavrões em espanhol e entra quinta personagem, Gertrudes resmungando e

se senta).

GERTRUDES Agora eu tô sozinha. Totalmente só. Não tenho do que me queixar, eu sempre

quis estar sozinha. É, mas eu tinha um medo danado... Agora eu tô sozinha e não há motivo para ter

medo. Eu vou provar para todo mundo que eu posso conquistar alguma coisa.

Vou conquistar a minha solidão! Tem tanta gente só nesse mundo e ninguém enlouqueceu ou

morreu. Só eu que faço barulho. É até engraçado, só eu. Não há mais vagas para moças de fino

trato. Não há mais vagas pra ninguém. Nem pro Joaquim, se ele quisesse voltar. Não há mais vagas.

Disseram que isso aqui é uma gaiola; gaiola por que se eu não sou passarinho?! É, mas que parece,

parece...

(Entra a sexta personagem, Jane, cantando música de ninar e se senta).

JANE (COMO MULHER) Quando criança, eu tinha medo da morte. Eu achava que ela me

rodeava por todos os lados. Meu cachorrinho foi morto por um carro, mas isso ainda não foi o pior.

Papai e mamãe morreram num acidente de carro. A vovó obrigou-me a acompanhar o funeral. Pedi

e implorei para não ir, mas a avó foi implacável… Quando eles fecharam o caixão, eu sabia com

absoluta certeza que papai e mamãe iriam acordar lá dentro, na escuridão… Bem debaixo da terra.

Quando voltamos para casa depois do enterro, disse a minha avó que a odiava. Ela me deu duas

bofetadas e disse que devia deixar de ser histérica.

JANE (COMO AVÓ) Esse vestido aí, você não vai vestir hoje. É só para os domingos. Você

não vai conseguir fazer isso, minha querida. Me deixe ajudá-la. Você vai pintar os lábios? Não, isso

não, não deixo você se pintar enquanto morar em nossa casa. Coma o que está no prato. Você está

chegando atrasada novamente. Nunca mais vai aprender a ser pontual? Você é preguiçosa e

mimada. Se você continuar assim, seu avô e eu vamos mandá-la para um internato, e aí você vai

aprender mesmo a ter outras maneiras, mocinha. Nesta casa, mocinha, vivem pessoas decentes,

pessoas que têm tentado viver em pureza e com a verdade. Você terá que mudar sua atitude, se

quiser continuar a viver aqui comigo.Vou te ensinar a se comportar como gente. Que parvalhice é

essa? Pare de chorar. Eu não acredito nessas lágrimas. Você devia estar agradecida. Você já pensou

alguma vez em demonstrar gratidão?


JANE (COMO MENINA) Não me bata aí nesse lugar. Você não pode me bater na cara, eu não

admito.

(entra sétima personagem, Geneviéve, cantando “RONDA” e cai no chão).

GENEVIÉVE Ai,acode!… É labirintite. Antes que você me pergunte eu já vou logo dizendo: É

labirintite. E das bravas. É bom que isso aconteça. É bom que a gente se conheça assim. Que você

veja meu outro lado. Que veja logo que existe outro lado na nossa relação. É importantíssimo o

fator realidade no amor. (cai de novo). Ai, meu Deus, será que foi minha derradeira queda? Que não

vou mais conseguir me levantar? (enquanto tenta se levantar) Labirintite não tem cura, mas o amor

tudo pode. Claro que pode. O amor atravessa qualquer obstáculo. (firma-se em pé, descabelada)

Não. Não bebi tanto assim, a não ser que tenham colocado alguma coisa nesse drinque. Não sou

alcoólatra. Mas se fosse, você há de convir que não teria problema. E daí? Existe alguma coisa que

o amor não vença? (olha como se alguém dissesse alguma coisa) Alcoolismo? (ela dá uma

gargalhada zombeteira, desesperada, louca) Você… Você…(tenta controlar o riso histérico) Você é

um debochado, zombeteiro, crítico, impiedoso. Acertei? Um cínico, não é mesmo? Pode falar. Pode

assumir. Eu estou aqui na sua frente, descabelada, destruída, como uma fratura exposta. Você não

tem porque se esconder. Pode se mostrar. Eu já tinha reparado. Não me surpreende. E mais: vou até

aceitar. E mais: te amar. Te aceitar como você é, com essa sua cara de assassino, estuprador,

estelionatário, cafajeste.

(Entra oitavo personagem, Noivo, falando sozinho e se senta)

NOIVO Não, eu não quero falar de Else não. Else me traiu. O amante? Um tipo bonitão, cabelo

extraordinário, nada de caspa, nada oleoso. Os 32 dentes, lado a lado, inteiros. Uma ou duas cáries,

apenas. Unhas limpas. Como? Não, não vi melecas em seu nariz não.

Muito bem, eu a flagrei com o lindo sobre a pia do banheiro da casa que seria nossa quando

casássemos. Onde eu lavaria as mãos. Onde ela lavaria as mãos. Percebem? Onde ela lavaria as

mãos.

Imediatamente, com uma espátula, eu colhi o gosmento produto da traição dos dois e coloquei em

um potinho: secreções de um e de outro, misturadas. O maravilhoso amante, simpático até,

colaborou comigo, quando agressivo, gritei: “ Segura o potinho!”


MULHER DOS GATOS Ele é bem barbeado e é bom respirar o perfume dele e agora ele

também olha a lua e pergunta o que é que eu tenho. Digo que estou pensando no que ouve com o

Dico e ele diz: Ahhhhhhh! E depois? Eu pergunto.

Ele não sabe como fiz para matar Tyrone Power e põe mais vinho para mim e fala de uma mulher

gorda que quebrou uma corrente de São Judas Tadeu e morreu. E ele me conta como foi a morte e

eu fico ouvindo e pensando. E o que mais? Eu pergunto.

Ele me olha com uns olhos azuis e ele diz que ás vezes a gente tá vivo, mas a gente ta é morto, bem

morto...

JESSE Eles alegam que queimei o rosto de um sujeito enquanto ele dormia… Mas eu

pergunto… isso parece um comportamento típico da minha parte? (risos) Ratos… Eles se

contorcem, guincham… E também mordem se a gente não toma cuidado … Você me acha

violento? Eu não era violento há dez anos… Era louco… Mas vocês foram estúpidos demais para

perceberem… O que? Inveja? Deixa eu dizer uma coisa Doutor… Se você pagou pela sua educação

foi enganado. Acha que só porque tenho um olho ruim, sairia por aí trucidando as pessoas com os

dois olhos bons? Não é possível! Olha pra mim… Eu sou um catálogo dos erros da mãe natureza…

Por que nunca cortei a boca, nem abri buracos na cara de ninguém? Só vou dizer uma vez… Eu era

louco naquele tempo, mas não sou mais… Não havia nenhum motivo são para fazer o que fiz com

as crianças… Apenas… Eu não suportava mais… Tinha que pôr um fim… Em que?

Aos olhares… A observação… Durante todo o tempo, os olhares …Isso tinha que parar…

MARIA MARIANA O bom padre Carlos é testemunha de como eu repetia até meus olhos

cerrarem de cansaço uma meditação que o caríssimo padre Tiago Koch – SVD aconselha no seu

livro “O companheiro da Jornada”: “… tenho que lutar fortemente contra a minha rebelde

natureza”.

MARIMÁ E eu pegava o telefone e batia um fio para Lu, como não gostar de Lu? É o tipo da

mulher, eu falava no telefone: Ôi, neguinha, onde cês vão? Vem para cá, a gente te espera,

respondia a Lu, com aquela voz linda dela, e eu ia.

MARIA MARIANA ...Fui fraca, concordei e ajudei os planos de meu irmão D.J. de ir para

Paris, mesmo sabendo que lá é a Capital do pecado.


MARIMÁ Uma noite, era no Les Deux Magots, tava toda nossa turma, e o Luis que tinha

chegado do Brasil queria porque queria comer queijo de Minas, deu uma fossa na gente: cada um

foi falando em lingüiça, feijão tropeiro, frango ao molho pardo, mas tudo feito no Brasil, e

começamos a cantar samba: Foi uma glória;

MARIA MARIANA Meu irmão D.J. sempre foi um rebelde: Minha santa mãe, que Deus a

tenha e guarde, contava: D.J. dava chutes dentro dela antes do Senhor permitir que ele viesse ao

mundo, ele sempre foi rebelde; e logo que me falou dos planos cedi em colaborar, depois que

consultei meu guia espiritual, o bom e santo Padre Carlos.

MARIMÁ Aí chegou um cara com o papo mais furado tirando onda de Godard e disse que

queria falar com a Lu e foi falando para Lu em francês: Sou o Godard, vou te transformar numa

atriz mais famosa que a Ana Karina, que a Brigite Bardot e eu não sei mais quem, e D.J. virou pro

Antônio Geraldo e falou alto em português: “Esse cara tá engrossando”.

MARIA MARIANA Só que eu queria era atrair uma má ovelha ao pacífico e ordeiro rebanho do

Senhor, minha boa Nossa Senhora. Aparecida é testemunha de que nunca aprovei as ligações

clandestinas do meu irmão D.J. com a pobre Lu.

MARIMÁ E o Godard falava para Lu: te ponho no meu filme, a Lu nem tiu, aí D.J. começou a

dizer os maiores palavrões em português

MARIA MARIANA Bela e pobre Lu. E, de tanto pensar nela e no escândalo aqui no Brasil, eu

dizia a mim mesma que devia ir à Paris para evitar o mal; fingi que ajudava e, quando julgava estar

fraquejando, eu repetia sem fim a meditação aconselhada pelo caríssimo padre Tiago: “… Tenho

que lutar fortemente contra minha rebelde natureza”, dormia repetindo essas palavras…

MARIMÁ O Godard não manjava bulhufas, então D.J. ficou em pé e fez um discurso em

português xingando o Godard de tudo quanto é nome, cada um dava um aparte com um palavrão em

português, a gente rolando de rir, até o pobre do De Gaulle que não tinha nada com a história

ganhou palavrão…


BULLDOG Você ainda pode escapar, então escuta: um dia eu recebi um envelope, abri e era o

recorte de uma seção de conselho sentimental com a carta de uma mulher que usava o pseudônimo

de “Nau sem rumo” e falava que a filha Isabel mudava de cor quando estava apaixonada e os

homens deviam ter muito cuidado se ela ficasse com a cor de rubéola… Vendo a pele de Isabel,

pensei na tal carta, já ia fugir, então Isabel se sentou no sofá e as cotovias voltaram, eu quis amá-la

e ela falou com a voz de dona de escravos que em certas horas ela tem:

Hoje não…

Eu perguntei: Quando então?

Ela disse: Na sétima 5ª feira depois de Pentecostes…

E eu comecei a contar o tempo que faltava… E com você talvez tenha acontecido o mesmo, era

uma Isabel só de suspiros e de silêncios e de promessas, a voz sumida, jurando:

Na sétima 5ª feira depois de Pentecostes… Então, quando Isabel entrou, eu ia falar, mas ela fez um

ar de filha da gente e estava anoitecendo, me deu uma coisa: senti vontade de chamar ela de Bebel,

mas como pai faz, e alisar aquela cabeleira loura, mas como pai faz, e fazer uma porção de coisas

que pai faz, foi o que eu fiz, mas quando ela me abraçou já não era Bebel: era uma coelhinha do

“Playboy” e eu senti o coração dela batendo aqui, como se eu tivesse um outro coração, falei:

Sinto as batidas do seu coração…

E ela:

Eu também sinto as do seu…

Calou um pouco, depois falou:

Seu coração é meu e meu coração é seu…

E já era de noite, nós no escuro, a voz de Isabel enrouqueceu, ela disse:

Só falta uma semana…

Numa quinta–feira como esta, de noite, eu vim encontrar Isabel aqui nesta praça, cheguei cedo,

como você chegou, minha mãe estava trêmula, eu tinha calafrios e não imaginava o que ia

acontecer: que eu ia voltar aqui toda última 5ª feira do mês, porque todos voltam…Os que amaram

Isabel também são assim e se você olhar bem para cada um, se me olhar, vai descobrir alguma coisa

velha como a Guerra do Paraguai, mesmo que eu tenha este ar de 30 anos, e em todos nós falta um

pedaço, fuja: Isabel é antropófaga… Você vê que eu tenho mãos, olhos, boca, nariz, e você duvida,

mas é que comigo foi diferente, foi pior, muito pior do que você está imaginando, eu conto… Ela

chegou no Wolks que ela usa na última 5ª feira do mês, estacionou ali perto do Cine Alvorada, ela

desceu do Wolks e veio andando na praça, flutuava como a Ava Gardner, e quando entramos no

Wolks, eu perguntei:

Para onde nós vamos?

Ela disse:

Daqui a pouco você vai saber…

Fumou do meu cigarro, falou:

Agora você vai fechar os olhos e só vai abrir quando eu mandar…


GERTRUDES Eu vou me trancar nessa gaiola e daqui de dentro eu só vou ter ódio de todo

mundo. Pronto, agora estou segura. Que silêncio! Posso ouvir direitinho os barulhos lá de fora. O

elevador, a vizinha cantando, a água, passos, o elevador, o carro, ai, eu vou parar de ouvir esses

barulhos, porque é assim que se começa a enlouquecer. Eu é que não quero ficar louca. Eu quero

ouvir só o silêncio. Talvez o Alfredo apareça de casaca dourada. Quando ele gritar: - Rapunzel,

jogue suas tranças! Eu vou responder: - Sobe de elevador, Alfredo, hoje em dia não se usa mais

tranças.

JANE (COMO MENINA) Eu faço o que quiser, você não manda em mim. Você é uma velha

diabólica, é o diabo em pessoa. Eu te odeio e poderia até te matar. Eu sei que você me ama, eu sei

que você quer o melhor para mim. Eu peço desculpas a você. Desculpa. Eu sei que agi errado, eu

estou sempre errando. Eu vou ser a menininha da vovó, a queridinha da vovó. Podemos falar de

tudo, você e eu… na casa da vovó é tudo sempre tranqüilo… E seguro…

JANE (COMO MULHER) Posso ver todos os móveis, todos os pratos, posso ver o prato com

mingau e o reflexo da janela no encerado. A mamãe cheirava tão bem e suas mãos eram pequenas e

redondas com as pontas dos dedos achatadas… E tinha sempre as mãos quentes.

“Se você me fechar no armário eu morro. Eu vou ser boazinha, é só você não me fechar no

armário.”

MARIA MARIANA Você é preguiçosa e mimada!

MULHER DOS GATOS Que parvalhice é essa? Para de chorar! Eu não acredito nessas

lágrimas...

BULLDOG Você vai pintar os lábios? Não isso não, não permito que você se pinte enquanto

morar aqui nesta casa.

NOIVO Você está chegando atrasada novamente, nunca mais vai aprender a ser pontual. Você

pode imaginar gente que fecha uma criança com medo do escuro dentro de um armário? Não é de se

espantar?

JESSE Coma tudo o que está no prato...

GERTRUDES Você deveria estar agradecida, já pensou alguma vez em mostrar um pouco de


gratidão?

GENEVIÉVE Vou te ensinar a se comportar como gente, pára de chorar, eu não acredito nessas

lágrimas.

NOIVO Em seguida fomos os três ao laboratório, em seguida ao cartório, oficializar a traição.

Tenho todos os papéis, tudo legalizado.

Perdão?

O senhor pode repetir?

Entendi. Você aprova este último rompimento. Sei.

Não pela traição em si, que pelas novas leis é permitida; mas pela injusta concorrência.

O amante, infinitamente superior, em vários aspectos.

Sei. Amantes infinitamente superiores aos pares legítimos não serão permitidos. Somente aqueles

uma gota inferiores.

Compreendi, perfeitamente.

GENEVIÉVE É bom que tudo esteja acontecendo. Que a porcaria toda já surja logo de cara, no

primeiro dia. Quantos casamentos seriam salvos se a merda toda aparecesse logo, né cara? Para que

ninguém ficasse se iludindo, até que um belo dia, um grosso e escroto dia de podridão… (decidida)

Pois bem, lá vai : Tive câncer ósseo na canela. Tenho prurido anal crônico, há mais de cinco anos.

Tenho uma insônia desesperadora, tomo dois Valiuns por dia. Penso em homens vinte e quatro

horas por dia. Como que nem uma porca. Uma leitoa que sou. Não sei se você reparou: Sou

alcoólatra. (desafiadora) Tudo bem? Não me lembro de outros detalhes, mas na convivência diária

você vai notar, com esse seu jeito hediondo de perceber tudo o que o ser humano tem de pior; você

perceber que rôo as unhas, que escondo dinheiro debaixo do colchão e… (fica tonta, cambaleia.

Não cai. Respira fundo e vai caminhando até a mesa. Senta-se pesadamente, depois de algum

tempo, ela fixa o olhar nele, esperando uma reação). Não fique com essa cara, afinal estamos apenas

começando. É na lama que florescem os lírios. Você não me disse qual a sua cor preferida…


JESSE Eu costumava ir ao zoológico quando eu era criança… E eu via que as pessoas

observavam tudo que aqueles bichos faziam. Ficavam olhando, com aquelas expressões vazias,

estúpidas e os olhos esbugalhados… Em particular as crianças porque eram estúpidas demais para

entender melhor. E aqueles animais desgraçados olhavam de volta, andando de um lado pro outro,

dava para ver que eles queriam dilacera, estraçalhar aquelas pessoas… Aqueles olhos estúpidos

estavam por toda parte, ao meu redor, olhando, observando, o tempo todo. E quando fiquei adulto, e

via aqueles miseráveis parados, lambendo um picolé, com os olhos esbugalhados… Ah, Doutor, eu

não estava preso naquele tempo, então nada me impedia de fazer o que tinha que ser feito… Aquele

primeiro menino que peguei , eu o obriguei a me dar um beijo… Ele não queria, mas depois que

eu… Bom, ele acabou me beijando… Parece que despejei tudo… Bom trabalho, Doutor…

Enquanto eu viver, nunca vou saber como você me levou a falar assim… Se eu tivesse um chapéu,

tiraria para você, mas como não tenho…

MULHER DOS GATOS E eu sacudo a cabeça concordando e sinto o perfume dele.

A mãe bate na porta do chuveiro. A mãe tá sempre achando que a gente vai morrer no banheiro…

Eu abro a porta, enfio a cabeça, e escuto a mãe dizendo que a conta da luz subiu muito mês passado

e ela fala que entrei no chuveiro quando ela começou a rezar pela alma do Dico e ela já rezou 63

Padre-Nossos e 15 Ave-Marias e eu ainda estou no banho. Ela diz:

E no fim do mês, meu filho?

Eu digo:

Não tem galho, mãe, eu ganhei um dinheiro extra.

A mãe não sabe que sou eu que mato os gatos e a mãe ri e rindo a mãe fica mesmo muito bonita.

A mãe não sabe que eu já matei 188 gatos, com o de hoje, e a mãe ri e rindo ela fica mesmo muito

bonita.

E fico olhando a formiga e o Dico não vai falar nada e eu vou sentir que o Dico está falando um

porrilhão de coisa, e aí nós vamos estar mais pra lá do Aconcágua, estamos em maio, mas vai surgir

uma lua de julho e eu vou ver o clarão de Havana, o Dico vai me dar um cigarro aceso e eu vou

ficar fumando e olhando o clarão de havana, vai dar um troço e eu vou falar:

Dico!!!! eu quero me limpar de toda filhaputice que eu já fiz: sou eu que mato os gatos, Dico!, eu

sou o Jack, o Estripador de gatos, já matei 188 gatos, com o de hoje, mas o que me dá um troço é o

que eu fiz com o Tyrone Power, porque eu era amiga do Tyrone Power.

E quando eu cheguei perto do Tyrone Power, ele tava morto e sorria para lua, aí eu fiquei

lembrando do tempo que a gente ia ver os filmes do Vittorio de Sica no Cine Arte Palácio e

carreguei o corpo do Tyrone Power mais para lá, pras formigas não ficarem mordendo ele e fui para

casa e entrei no chuveiro e gastei três sabonetes Lux. ...


Mas agora, toda noite, O Tyrone Power aparece para mim: primeiro ele é um gato, depois ele ganha

formas humanas e eu vejo ele, e começa a cantar um hino, aí me dá uma coisa, eu fico querendo

voltar a ser como eu era antes destas coisas todas, mesmo que depois eu morra como aquela mulher

gorda morreu, sentindo as balas de metralhadora me furando, e eu vou olhar a estrela vespertina de

Caracas e eu vou achar que tudo ta feliz como se tivesse bebido Gim Tônica e eu vou morrer

pensando que minha alma é branca como a garça que voa mais para lá do Aconcágua.

MARIA MARIANA Eu repeti, repeti baixinho,: “ tenho que lutar fortemente contra a minha

rebelde natureza”, parecia escutar no fundo do coração a voz do santo padre Carlos; ganhei força e

fui à Paris levando aquela água benta brasileira que o santo padre Carlos tinha me dado, queria me

redimir e fui à Paris de D.J.

MARIMÁ Aquela Paris que é a tatuagem mais bacana que carrego comigo: naquela tarde eu

sabia que a Lu não tava trabalhando, aí fui lá no Hotel St. Michel para bater um papo, cheguei lá,

fui entrando.

MARIA MARIANA Pé ante pé , entrei no quarto, meu irmão D.J., que Deus o proteja, dormia,

e num milagre de Nossa Senhora Aparecida, eu escutava a voz do santo Padre Carlos: “ Caríssima

irmã, Maria Mariana, D.J. e Lu são as tentações” , então peguei o vidrinho com a água benta.

MARIMÁ Eu queria passar um susto no D.J. e na Lu jogando água benta neles, sou vidrada em

brincadeiras, então tava com um vidrinho de água oxigenada cheio de água gelada, mas não vi a Lu,

tava só o D.J. dormindo e aí…

MARIA MARIANA Comecei a borrifar com água benta conforme conselho do santo padre

Carlos todo o Quartier Latin: toda aquela Rive Gauche que era o maior símbolo do pecado e das

tentações; borrifei o Boulevard St. Michel e o Jardim du Luxembourg, borrifei bem a Sorbonne,

repetia: Paris é um pedaço de papel, rasga a toa, é frágil como o pecado, e fui borrifando; borrifei o

Sena, a Ile de St. Loius, um pombo voou ao ser molhado, rezei baixinho: “ Silêncio, minh’ alma,

nem queixa nem pranto”, e joguei a água benta nos cabelos de D.J.que dormia, nas mãos, na boca,

nos pés dele, segurei meu pecador irmão com estas mãos que Nossa Senhora Aparecida tornou

fortes, acordei ele: disse o que tinha de falar… E nem assim o pecado me abandonou.

GERTRUDES Quando ele chegar eu pego o meu punhal e dou 1, 2, 3 mil punhaladas nele. Eu


furo aquela casaca dourada ridícula todinha. Não desconfia que hoje em dia não se usa mais casaca?

Casaca dourada, hum. Pois sim! Fica aí estendido com a sua casaca dourada! E você, Lúcia, vai

encontrar o seu Alfredo no inferno! Menos uma. Agora é sua vez, Madalena. Com você vai ser

diferente, você vai ser enforcada. Sofre, põe a língua para fora, isso, assim, morre desgraçada…

Pronto! Joaquim, é você? Você voltou, Joaquim? Eu sempre achei que você ia voltar um dia. Tá

mais gordo, mais bonito. Quê? Esses corpos? Ah, fui eu que matei. Eu mesma. E não me arrependo.

O quê, Joaquim? Você acabou de chegar e já quer me entregar para polícia? Vem cá, vem? Vamos

matar a saudade. Assim. Vem. Isso. Você lembra que eu tinha vergonha de dizer “eu te amo” ?

Agora eu não fico vermelha nem nada. Eu te amo, Joaquim. Eu te amo! Agora vocês vão ficar todos

juntos. Todos comigo! Para sempre!

BULLDOG Saiu rodando no Wolks, rodamos muito, não sei para onde, sei que os trens

apitavam, e quando ela me mandou abrir os olhos, vi uma casa como aquelas dos filmes de

Hollywood, as luzes estavam acesas e não havia ninguém, mas eu pensava, ainda penso, que de

algum lugar, uns olhos me olhavam, Isabel pôs um vestido usado e ficou descalça, serviu o uísque e

perguntou o que eu queria jantar, e eu respondi, hoje eu sei que foi minha perdição: Suflê de

aspargos e Roast-Beef …E fomos conversando e bebendo, Ray Charles cantava, às vezes Isabel ia

na cozinha… Quando eu a beijava, ela dizia pra eu esperar a sétima lua cheia de Pentecostes,

tomamos banho numa banheira como aquela dos anúncios do sabonete Lever, Isabel apagou todas

as luzes e acendeu velas e nós jantamos, ela me chamava de Philip e eu a chamava de Elizabeth,

dançamos de rosto colado e apareceu a sétima lua depois de Pentecostes, navegamos num mar de

lençol, pele e lua, as estrelas enfiadas nos cabelos dela, senti que as mulheres começavam a morrer

e foi então que aconteceu… Se doeu? Na hora, não, depois eu engordei 20 kg e fiquei assim, como

você me vê, gordo como um bulldog, eu sou um bulldog e de noite eu não durmo: de noite eu

converso com os pirilampos e se a lua é loura como Isabel eu fico uivando…

NOIVO A próxima pessoa com quem eu me envolver deverá ser a definitiva.

Não poderei voltar atrás.

Sei, sei. Compreendo.

Mesmo se eu descobrir mais tarde que se trata de uma criminosa.


Será problema exclusivamente meu.

Sei.

Neste caso, optarei por ficar só.

MARIA MARIANA (canta)


MULHER DOS GATOS Aí eu fiquei lembrando do tempo que a gente ia ver os filmes de

Vitoria de Sica no Cine Arte Palácio.

BULLDOG Os aviões passavam, eu escutava aquele barulho de mosca voando, me sentia muito

só.

GERTRUDES Agora eu tô sozinha. Totalmente só.

JANE (COMO MULHER) Quando eles fecharam o caixão, eu sabia com absoluta certeza que

papai e mamãe iriam acordar lá dentro, na escuridão… Bem debaixo da terra.

GENEVIÉVE Eu estou aqui na sua frente, descabelada, destruída, como uma fratura exposta.

NOIVO Como?

Perdão?


É proibido ficar só.

Sei, sei, Compreendo.

MARIMÁ É proibido ficar só.

MULHER DOS GATOS É proibido ficar só.

BULLDOG É proibido ficar só.

GERTRUDES É proibido ficar só.

JANE É proibido ficar só.

GENEVIÉVE É proibido ficar só.

NOIVO É proibido ficar só.

TODOS É proibido ficar só.

FIM

É proibido ficar só

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