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Caderno Virtual de Turismo E-ISSN: 1677-6976 [email protected] Universidade Federal do Rio de Janeiro Brasil de Miranda Mendonça, Teresa Cristina; Albertino de Moraes, Edilaine; Maciel, Maria Angélica Turismo e pesca nas Reservas Extrativistas Marinhas de Arraial do Cabo (RJ) e da Prainha do Canto Verde (CE): possibilidades e limites de complementaridade Caderno Virtual de Turismo, vol. 13, núm. 3, diciembre, 2013, pp. 372-390 Universidade Federal do Rio de Janeiro Río de Janeiro, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=115429356006 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Caderno Virtual de Turismo

E-ISSN: 1677-6976

[email protected]

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Brasil

de Miranda Mendonça, Teresa Cristina; Albertino de Moraes, Edilaine; Maciel, Maria Angélica

Turismo e pesca nas Reservas Extrativistas Marinhas de Arraial do Cabo (RJ) e da Prainha do Canto

Verde (CE): possibilidades e limites de complementaridade

Caderno Virtual de Turismo, vol. 13, núm. 3, diciembre, 2013, pp. 372-390

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Río de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=115429356006

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Caderno Virtual de Turismo – Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p.372-390, dez. 2013 372

issn 1677 6976 | www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno

Turismo e pesca nas Reservas Extrativistas Marinhas de Arraial do Cabo (RJ) e da Prainha do Canto Verde (CE): possibilidades e limites de complementaridade

Tourism and fishing in Marine Extractive Reserves of Arraial do Cabo (Rio de Janeiro) and of Prainha do Canto Verde (Ceará), Brazil: possibilities and limits of complementarity

Turismo y pesca en el Reservas Marinas Extracto del Arraial do Cabo (Rio de Janeiro) y del Prainha Canto Verde (Ceará), Brasil: posibilidades y límites del complementariedad

Teresa Cristina de Miranda Mendonça < [email protected] >Doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ), Professora titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Nova Iguaçu, RJ, Brasil.

Edilaine Albertino de Moraes < [email protected] >Doutoranda em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG, Brasil.

Maria Angélica Maciel < [email protected] > Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Professora titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Nova Iguaçu, RJ, Brasil.

Formato para citação deste artigo

MENDONÇA, T. C. M.; MORAES, E. A. de; COSTA, M. A. M. Turismo e pesca nas Reservas Extrativistas Marinhas de Arraial do Cabo (RJ) e da Prainha do Canto Verde (CE): possibilidades e limites de complementaridade. Caderno Virtual de Turismo. Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p.372-390, dez. 2013.

cronologia do processo editorial

Recebimento do artigo: 08-ago-2013 Aceite: 26-nov-2013

REALIZAÇÃO APOIO INSTITUCIONAL PATROCÍNIO

ARTIGO ORIGINAL

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Turismo e pesca nas Reservas Extrativistas Marinhas

Resumo: O presente artigo busca refletir as possibilidades e os limites do desenvolvimento do turismo e da pesca em Reservas Extrativistas Marinhas, a partir das experiências em Arraial do Cabo (Rio de Janeiro) e na Prainha do Canto Verde (Ceará). A questão norteadora parte de um cenário de investimentos em turismo de sol e praia no país, e dos discursos dominantes de um modelo de desenvolvimento “ecologicamente viável”, que enquadrou os “ecos” no turismo. O artigo reflete também questões relacionadas ao uso múltiplo da água para turismo e pesca e à criação de Reservas Extrativistas no bioma marinho-costeiro. Metodologicamente, o artigo se baseia em pesquisa exploratória que permite a aproximação com o fenômeno investigado em ex-periências de projetos de pesquisa empírica. Dentre as principais notas de pesquisa, identificam-se relações entre turismo e pesca nos espaços litorâneos, no qual a força do turismo, comparativamente com o contexto da crise pesqueira, implica novas configurações socioespaciais para atender ao novo ator que chega, o turista.

Palavras-chave: Turismo; Pesca; Reserva Extrativista Marinha; Arraial do Cabo; Prainha do Canto Verde.

Abstract: : This paper aims to reflect on the possibilities and limits of the development of tourism and fish-ing in Marine Extractive Reserves based on the experiences in Arraial do Cabo (Rio de Janeiro) and Prainha do Canto Verde (Ceará) in Brazil. The guiding question is part of a scenario of investments in the tourism of sun and beach in the country, and the dominant discourses of a development model “ecologically feasible. The research also imbues the analysis of issues related to the multiple use of water in coastal environments, for tourism and artisan fishing and the creation of Extractive Reserves in the marine biome. Regarding the methodology, the article is based on exploratory research, allowing the approximation with the phenomenon investigated in experiments of empirical research projects. Among the main research notes it is possible to identify relationships between fishing and tourism in coastal areas, where the strength of tourism, compared with the context of fisheries crisis, demand new socio-spatial configurations to suit the new actor introduced: the tourist.

Keywords:Tourism; Fishing; Marine Extractive Reserve; Arraial do Cabo; Prainha do Canto Verde.

Resumen: Este ensayo refleja las posibilidades y límites del desarrollo del turismo y la pesca en las Reservas de Extracción Marina, de experiencias en Arraial do Cabo (Rio de Janeiro) y en Prainha do Canto Verde (Ceará), Brasil. La parte de análisis de un escenario de inversiones en el turismo de sol y playa del país, y de los discursos dominantes de un modelo de desarrollo “ecológicamente viable “, que puso los” ecos “en el turismo. La investigación también impregna el análisis de las cuestiones relacionadas con el uso múltiple del agua en ambientes costeros, el turismo y la pesca, y la creación de las Reservas Extractivas en el bioma marino. Meto-dológicamente, el artículo se basa en una investigación exploratoria que permite la aproximación al fenómeno investigado en experimentos de proyectos de investigación empírica. Entre las principales notas de investiga-ción, identificamos las relaciones entre la pesca y el turismo en las zonas costeras, donde la fuerza del turismo, en comparación con el contexto de la crisis de la pesca, implica nuevas configuraciones socio-espaciales para adaptarse al nuevo actor que llega el turista.

Palavras clave: Turismo; Pesca; Reserva de Extracción Marina; Arraial do Cabo; Prainha do Canto Verde.

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Turismo e pesca nas Reservas Extrativistas Marinhas

Introdução

No Brasil, ao longo das últimas décadas, populações pesqueiras litorâneas têm sido permeadas por uma nova lógica econômica ditada, muitas vezes, pela introdução do turismo. Apesar da importân-cia da pesca artesanal1 ser reconhecida, no cenário mundial e nacional, pelas questões envolvidas de trabalho, segurança alimentar e produção em escala de pescado, sua prática, por si só, não tem sido mais capaz de sustentar a renda de muitas famílias pescadoras. Isto porque, vive-se, neste início de século XXI, um crescente declínio da pesca artesanal, em função da precarização social dos pesca-dores artesanais e dos conflitos envolvendo uso múltiplo da água se sobreposto no mesmo território (SOARES, 2012). São exemplos de uso múltiplo da água em disputa com a prática da pesca artesanal: o turismo, a pesca industrial, a alocação de empreendimentos, a criação de áreas protegidas, a cres-cente poluição de estuários e rios, entre outros. Neste artigo, destacam-se a questão de inserção do turismo em territórios onde a pesca artesanal está presente há mais de um século, e do processo de criação de Reservas Extrativistas Marinhas.

A relevância dada aqui ao turismo se justifica por este ser representado por um complexo sistema de produtos, serviços e infraestrutura turística, bem como pelos impactos das atividades nos lugares, tanto do ponto de vista físico quanto sociocultural. As operações ligadas ao turismo vêm se apro-priando gradualmente dos espaços e dos lugares dos moradores locais. Não obstante, os lugares ao serem influenciados de forma mais direta por suas potencialidades paisagísticas começam a ter uma nova funcionalidade e se transformam em um lugar vivenciado por motivos de ócio, lazer, recreação e turismo.

Segundo Diegues (2001), o potencial de regiões favoráveis ao desenvolvimento de atividades econômicas em escala, como o turismo, tem impulsionado o surgimento de relações conflituosas causadas por graves problemas de ordem social e espacial, tais como expulsão de moradores, confli-tos de posse e uso da terra e degradação de recursos naturais.

Os ambientes litorâneos são exemplos que marcam a estratégia utilizada para a comercialização de diversos destinos turísticos brasileiros para diferentes públicos. Neste caso, as populações extra-tivistas das zonas costeiras, que têm na pesca artesanal a sua principal fonte de alimento e renda, são as mais vulneráveis e afetadas por impactos derivados de atividades humanas nos ecossistemas marinhos (CARNEIRO et al, 2012), como acontece com os efeitos gerados pelo turismo sobre o uso e apropriação do espaço terrestre e aquático.

A expectativa de um cenário promissor para os investimentos no denominado turismo de sol e praia no país e dos discursos dominantes sobre a perspectiva de um modelo de desenvolvimento

“ecologicamente viável” enquadrou os “ecos” no turismo de natureza, ecológico, ecoturismo. Neste sentido, questionam-se: Quais são as possíveis implicações dessa prática planejada ou não

no espaço “protegido”? Quais são as estratégias e compromissos assumidos para o desenvolvimento do turismo em áreas tradicionalmente pesqueiras? Como o turismo pode ser desenvolvido de forma associada à pesca artesanal? Sob essas provocações, o presente artigo busca refletir as possibilidades e limites da relação entre turismo e pesca em Reservas Extrativistas Marinhas. A definição deste objeto de estudo é com a intenção de se tentar gerar subsídios para a construção de práticas de gestão da sociobiodiversidade, sob o compromisso de mínimo impacto socioambiental e de participação social.

1 Prática de pescador profissional, feita de forma autônoma ou em regime familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte (BRASIL, 2009).

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Para tanto, a metodologia de pesquisa se constitui em exploratória com o objetivo de familia-rizar-se com o fenômeno investigado (GIL, 1999). As unidades de análise selecionadas para tal se referem às experiências das Reservas Extrativistas Marinhas de Arraial do Cabo (Rio de Janeiro) e da Prainha do Canto Verde (Beberibe – Ceará), no que diz a respeito ao desenvolvimento das atividades produtivas de turismo e pesca artesanal. As técnicas de pesquisa escolhidas para a coleta e análise de dados se baseiam em levantamento bibliográfico e documental e em experiências de projetos de pesquisa empírica sobre os casos tratados neste artigo.

A escolha da Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo se justifica por seu territó-rio ser considerado de alta importância biológica, em que se destaca o raro fenômeno marinho

“ressurgência”2 , que lhe atribui grande beleza cênica e faz com que o lugar seja conhecido como a “capital do mergulho”. Esta Unidade de Conservação foi criada contra a invasão de embarcações industriais e seus beneficiários vêm passando por mudanças de um modo anterior de vida pesqueira, pela introdução das atividades de turismo e petróleo e gás (CARNEIRO et al, 2012). Já a Prainha do Canto Verde é outro caso emblemático para essa reflexão diante da relação de complementaridade estabelecida entre turismo e pesca pelos moradores locais que lutaram pela criação de uma Reserva Extrativista para que lhe fossem assegurados os seus direitos históricos de acesso a terra, ao ambien-te marinho e aos recursos pesqueiros, diante das ameaças sofridas pelos processos crescentes de especulação imobiliária e consequente grilagem de terra, urbanização e turismo em massa na região (MENDONÇA, 2012).

Sob esta abordagem, o artigo está estruturado em três seções principais. A primeira seção proble-matiza o uso múltiplo da água, com enfoque no uso da água para fins turísticos. Na segunda parte, são analisadas as principais questões conceituais e de manejo sobre Reservas Extrativistas Marinhas, para orientar a interpretação dos casos pesquisados. E na terceira seção, são caracterizadas as duas Reservas Extrativistas supracitadas, considerando o seu contexto histórico, social e ambiental, bem como as possibilidades e as limitações da relação entre turismo e pesca nessas experiências.

Uso múltiplo da água e turismo

Conceituar e discutir o uso múltiplo da água não é uma tarefa fácil, já que esta é um elemento fun-damental para a garantia da sobrevivência dos seres vivos, mas também é usada em diversos rituais culturais e religiosos, em processos produtivos de uma série de atividades econômicas, resfriamento de máquinas, dentre outras situações. Neste caso, é inviável fazer uma listagem completa de todos os usos econômicos e sociais passíveis de serem estabelecidos, especialmente quando se trata de mananciais de água superficiais e subterrâneos. Mesmo assim, é possível apontar grandes categorias de usos da água, a saber: alimentação e higiene; produção industrial; geração de energia elétrica; ir-rigação; navegação; pesca; lazer e esportes; evacuação e diluição de esgotos; drenagem e controle de enchentes; luta contra incêndios; preservação do ambiente aquático e da paisagem (VARGAS, 1999).

Com relação ao uso da água para fins turísticos, nota-se que, em todas as épocas e lugares, os corpos hídricos sempre exerceram fascínio e possuem grande potencial de atratividade para a re-

2 É um fenômeno oceanográfico que consiste na subida de águas profundas, muitas vezes ricas em nutrientes, para regiões menos profundas dos oceanos, fertilizando as águas superficiais e criando uma rica cadeia alimentar (CAR-NEIRO et al, 2012).

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Turismo e pesca nas Reservas Extrativistas Marinhas

alização de práticas de lazer e de esportes. De acordo com Acerenza (2002) no apogeu do Império Romano havia movimentos significativos de pessoas durante o verão partindo de Roma para o cam-po e para lugares de veraneio à beira-mar. Além de visitarem templos, santuários e participarem de festividades, os romanos iam a lugares onde tinham a possibilidade de tomar banhos termais. Segundo Barbosa (2002), os romanos valorizavam a cultura, o lazer, o prazer e apreciavam a água e o mar. Mas com o colapso do Império Romano e o início da Idade Média, houve um abalo nas viagens de lazer na Europa e, especialmente, no uso da água para fins de recreação. O ressurgimento do balneário e o turismo de cura ocorreram em diversos pontos da Europa onde se desenvolveram muitos balneários no século XVIII, cujo objetivo essencial era o medicinal. A água era usada para banho e para beber, sendo que, nas décadas posteriores, os médicos, as classes mercantis e os profis-sionais passaram a reconhecer os efeitos benéficos do uso das águas com propriedades medicinais (URRY, 1996).

Deste modo, percebe-se uma relação estreita entre água e turismo na história da sociedade. E na realidade brasileira, o fenômeno não é diferente. Segundo a Agência Nacional de Águas (2005), a maioria dos brasileiros usufrui as férias e as horas de ócio em locais relacionados com a água, como praias, lagos, rios e estâncias hidrominerais. Sendo assim, são definidos três segmentos das práticas envolvidas: o turismo e lazer no litoral brasileiro; o turismo ecológico e a pesca; e o turismo e o lazer nos lagos e reservatórios interiores. Neste sentido, regiões que possuem recursos hídricos próprios para a balneabilidade verificam um processo de expansão das atividades econômicas relacionadas ao setor de serviços e ao atendimento das demandas de lazer das populações urbanas.

Cabe aqui ressaltar ainda que, o turismo está inserido em um processo histórico-cultural de bus-ca pelo prazer e descanso que fez com que, na década de 1960, surgissem os chamados três “S” do turismo: a busca pelo sun, sand and sex (sol, praia e sexo) (MENDONÇA, 2012). Destaca-se desta forma, a busca por sol e praia no litoral como principais fatores de atratividade para se “fazer” turis-mo, na contemporaneidade. Outro marco é que, com a criação do Ministério Brasileiro de Turismo, na década de 2000, os elementos sol e praia são direcionados às políticas públicas de turismo como segmento de mercado. Nas ações de planejamento e gestão do turismo, a orla marítima deve ser abordada como área de interação entre os fenômenos terrestres e marinhos, que abriga as praias e outros recursos naturais, e os principais equipamentos e serviços de suporte a diferentes atividades socioeconômicas, inclusive o turismo (BRASIL, 2008).

Sendo assim, percebe-se que o turismo que inspira deslocamentos aos espaços litorâneos, em que a pesca era referida como principal atividade econômica, tende a (re) configurá-los socioambiental-mente. Estes lugares eram configurados, essencialmente, por ranchos, barcos de pesca, ancoradou-ros, pequenos estaleiros, residências, entre outras manifestações que variavam conforme a dinâmica cultural de cada localidade. No limiar de um novo tempo, torna-se cada vez mais presente nesses espaços a iniciação de organização de outras atividades, estabelecimentos e ocupações ligadas ao comércio e ao turismo.

No período pós II Guerra Mundial, caracterizado pela crise pesqueira (decorrente da redução da pesca artesanal cooptada pela elevação da pesca predatória em escala industrial), a paisagem litorâ-nea foi transformada gradativamente no principal recurso a ser explorado como uma nova forma de geração de emprego e renda para e pelas populações pesqueiras. A natureza preservada, de ele-vada atratividade, começou a ser vista, portanto, como uma “mercadoria” potencial a ser vendida e consumida pelo turismo, enquanto importante atividade de impulso a economia local (MENDON-

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ÇA, 2012). A proposta de mercado turístico em que a natureza se transfigura em commodity3 visa atender também aos sonhos dos imaginários urbanos, que ressignificam e transformam os recursos naturais renováveis em sonhos de consumo contemporâneos (IRVING, 2008).

Logo, a natureza em sua forma “protegida” possui forte apelo turístico. A noção de turismo pro-blematizada passa a ser então, associada às Unidades de Conservação 4 (UCs). Entende-se, segundo Ceballos-Lascuráin (2002), que essas áreas naturais protegidas legalmente constituem “atrativos”, tanto para quem vive em seu interior ou entorno, quanto para quem as visita, em busca de lazer, contemplação da paisagem, fauna, flora e vivência de elementos culturais.

E no caso do turismo em Unidades de Conservação, nas zonas costeiras e marinhas, a questão relacionada à apropriação da natureza como mercadoria no âmbito do turismo é central para a reflexão acadêmica e para o contexto atual de políticas públicas. Isso porque, no Brasil, diversos esforços5 vêm ocorrendo, com base em acordos internacionais6 , para a ampliação dessas unidades de conservação consideradas essenciais para a conservação do bioma marinho, para a manutenção da produtividade dos estoques pesqueiros e para a garantia dos direitos das populações tradicionais, como os pescadores artesanais.

No Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), a categoria de manejo de Uso Sus-tentável Reserva Extrativista (Resex) se destaca por ser considerada uma tipologia genuinamente brasileira e pelo uso do seu território ter sido concebido sob a lógica de integração sociedade e natureza, para a conservação dos recursos naturais e a proteção dos modos de vida e da cultura das populações tradicionais (MORAES, 2009). Considerando então que, as Resex são baseadas na economia extrativista, que orienta o uso múltiplo dos recursos naturais, e prevê a visitação pública, são refletidos, na sessão adiante, sua gênese, definição oficial e instrumentos de gestão em espaços costeiros e marinhos.

Reservas Extrativistas Marinhas: originalidade, conceito e gestão

O movimento pela criação de Reservas Extrativistas nos espaços costeiro e marinho se inspirou na proposta de Resex desenhada no âmbito do Movimento Seringueiro, na década 1980, no Estado do Acre, em decorrência das suas reivindicações pelo fim da colonização nas áreas dos seringais e, pela concessão destas áreas às populações locais, para que pudesse ser mantida a atividade extrativista, a exemplo do que já acontecia nas terras indígenas. A formulação da proposta de Resex foi resultante de um panorama histórico de degradação do modo de vida dito tradicional e das pressões, cada vez maiores, sobre a floresta tropical amazônica (MORAES, 2009).

3 Sobre o processo de ressignificação do valor da água, transformando o seu valor de uso em valor de troca, ver Costa (2012).4 Espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais re-levantes, legalmente instituído pelo poder público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração do qual aplicam garantias adequadas de proteção (BRASIL, 2000).5 Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC-Lei 9985/2000 e Decreto 4340/2002), Plano Es-tratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP-Decreto 5758/2006), Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT-Lei 6040/2007), Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca (Lei 11959/2009)6 Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982), Convenção sobre Diversidade Biológica (1992).

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Assim, a Resex mesmo sendo formulada para atender às demandas específicas das populações amazônicas, sua criação não foi instituída somente na Amazônia brasileira. As Resex foram criadas também na região costeira. Dessa forma, a Resex ficou conhecida como “Resex da Amazônia”, com base em recursos florestais e “Resex Marinha”, em recursos pesqueiros (MORAES, 2009).

De forma semelhante ao que aconteceu com os seringueiros – como reivindicações pelo fim de pressões e ameaças ao modo de vida e a cultura do pescador, e ainda à própria integridade da biodi-versidade marinha, decorrentes dos processos crescentes de urbanização, de especulação imobiliária, de turismo e da pesca industrial - os movimentos sociopolíticos contribuíram para que o pescador artesanal tenha buscado a criação de Resex Marinha como uma forma de proteção socioambiental e de segurança dos seus direitos históricos de acesso ao mar e aos recursos pesqueiros, em uma rela-ção de equilíbrio entre povos e mares (CUNHA, 1992). Esse movimento pode se justificar também pelo que Almeida (2005, p.3) considera em relação as populações tradicionais estarem amarradas à natureza, “o seringueiro não se separa da árvore, a quebradeira não se separa da palmeira, o índio não se separa da floresta”. Logo, pode-se considerar também que o pescador não se separa da água.

Sendo assim, a Resex é definida como uma área protegida utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais. A visitação pública na área é condicionada ao atendimento dos interesses locais e do que está disposto em seu Plano de Manejo (BRASIL, 2000 e 2002).

Desde a criação da primeira Resex Marinha, em 1992, até 2013, foram criadas 20 unidades dessa categoria de manejo (ICMBIO, 2013). No entanto, muitos conflitos7 e problemas têm sido gerados durante o processo de criação dessas áreas, uma vez que, em vários casos, a participação de benefi-ciários e usuários diretos dos recursos vivos marinhos, tem sido negligenciada na tomada de deci-são. O que contradiz com a Instrução Normativa 3 do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (2007), em que determina a solicitação de criação de uma Resex ser encaminhada formalmente pela população tradicional ou sua representação ao órgão competente. Mas mesmo com a criação de uma Resex, muitas destas populações continuam sofrendo grande pressão, tensão e conflitos em função de outros interesses pela exploração desordenada dos recursos naturais, inclu-sive envolvendo turismo e pesca artesanal.

No sentido de viabilizar o desenvolvimento harmônico da economia extrativista e de ações de conservação da biodiversidade, toda Resex tem o compromisso de elaborar e implementar o plano de manejo, em que se estabelece o zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias a gestão da Unidade (Instrução Normativa 03, de 18 de Setembro de 2007). Este documento toma como base o acordo de gestão (que substitui o plano de utilização, plano de uso e acordo de pesca) que contém as regras construídas e definidas pela população tradicional beneficiária da Unidade de Conservação de Uso Sustentável e o Instituto Chico Mendes quanto às atividades tradicionalmente praticadas, o manejo dos recursos naturais, o uso e ocupação da área e a conservação ambiental, considerando- se a legislação vigente (Instrução Normativa 29, de 5 de Setembro de 2012). O plano de manejo deve

7 É importante esclarecer que conflito aqui não é entendido como um duelo entre o “bem” e o “mal”, assim como em Melo e Irving (2006), este faz parte do processo social, que admite situações de equilíbrio e desequilíbrio na implan-tação de Unidades de Conservação. Assim, para os autores, é importante que a análise social do conflito considere também a existência da pressão de forças para o alcance de equilíbrio.

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Turismo e pesca nas Reservas Extrativistas Marinhas

ser aprovado pelo conselho deliberativo, que representa a instância participativa da gestão da Resex. No caso das Resex, o conselho é composto por representantes de instituições governamentais e da sociedade civil, inclusive com maioria das populações extrativistas, e possui caráter deliberativo, substituindo a forma de gestão até então vigente, assumida apenas pelas associações comunitárias e pelo ICMBIO (Instrução Normativa 02, de 18 de Setembro de 2007).

No quadro de 20 Resex Marinhas, apenas uma tem plano de manejo e duas estão em fase de elaboração e aprovação. O acordo de gestão existe em duas delas. Em equivalência, apenas uma não dispõe de conselho gestor deliberativo (ICMBIO, 2013). Mesmo assim, a existência do conselho gestor não é garantia de participação efetiva das populações tradicionais envolvidas no processo de gestão. Em muitos casos, a organização de associações comunitárias é limitada e tem refletido no en-fraquecimento da atuação dessas populações nos processos de tomada de decisão na gestão da UC. Além disso, observa-se, segundo Costa (2013), que as Resex Marinhas dispõem de problemas, como: recursos humanos e financeiros restritos, infraestrutura física e tecnológica inadequada, sistema de fiscalização e monitoramento ineficiente e fontes de renda limitadas para as populações extrativistas.

Para minimizar ou solucionar estes problemas em prol de uma gestão efetiva de Resex Marinha, segundo Costa (2013), parece que um dos caminhos possíveis nesse processo seja, necessariamente, o fomento de interações entre sistemas sociais e ecológicos, envolvendo os regimes de apropriação e arranjos institucionais para o uso dos recursos comuns, com ênfase na atividade pesqueira. Neste sentido, MORAES et al (2008) interpretam que a Resex Marinha tende a representar um instrumen-to de gestão compartilhada dos recursos naturais de ecossistemas aquáticos, marinhos e costeiros, por buscar distribuir o poder decisório entre Estado e multiusuários.

Para dinamizar e efetivar o processo de gestão de Resex Marinha ressalta-se a criação da Comis-são Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (CONFREM), no final da década de 2000. A Comissão surgiu da necessidade de organização coletiva das populações extrativistas pesqueiras para a discussão comum de demandas, propostas, ações e estratégias priori-tárias para o fortalecimento dos instrumentos de gestão, sob os compromissos de participação social, de fortalecimento da produção extrativista e de valorização do saber tradicional. Com o apoio do ICMBIO, realizaram-se o “I Encontro Nacional das Reservas Extrativistas Costeiro-Marinhas”, no município de Bragança (PA), em 2009, e o “II Encontro Nacional das Reservas Extrativistas Costei-ros-Marinhos Federal”, na cidade de Arraial do Cabo (RJ), em 2012. Dentre os diversos temas e de-mandas sociais tratadas nas ocasiões, a pesca aparece de forma central e o turismo perifericamente, no sentido de priorizar diversas ações.

Arraial do Cabo (RJ): relação de conflito entre turismo e pesca

O município de Arraial do Cabo é reconhecido como um dos núcleos mais tradicionais de pesca artesanal do Estado do Rio de Janeiro, sendo esta mais que centenária. A população “cabista”8 tinha na pesca sua principal fonte de renda e reprodução social até meados da década de 1950. A partir da instalação da Companhia Nacional de Álcalis no município, para a exploração de mono-carbonato

8 O “pescador cabista” é originário de Arraial do Cabo e tem suas artes de pesca tradicionais, sobretudo a do arrasto de praia. A identidade cabista surge do conflito com os migrantes, em particular com pescadores de fora que passa-ram a usar outras artes de pesca em embarcações motorizadas (DIEGUES, 2007).

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de sódio (matéria-prima para a fabricação de vidro a ser aplicada em vários setores industriais), esta passou a ser a principal atividade responsável pela geração de emprego e renda aos moradores locais, juntamente com a pesca. Com o encerramento de sua operação em 2006, muitos ex-funcionários voltaram-se inteiramente para a pesca, que se encontrava em declínio, como forma de sobrevivência (CARNEIRO et al, 2012).

Outro marco histórico de Arraial do Cabo ocorreu a partir da década de 1970, com a construção da ponte Rio-Niterói, que facilitou o deslocamento para a região norte do Estado do Rio de Janeiro e impulsionou o desenvolvimento do turismo de veraneio. Em meados dos anos 1980, a região absor-veu os novos fluxos migratórios e, a partir de 1990, o turismo de sol e mar e de segunda residência intensifica e consolida a região como destino turístico (JULIAO e BARRETO, 2011). Sendo assim, o turismo se tornou uma alternativa de fonte de renda para a população local, representando junto à pesca grande importância econômica e social para Arraial do Cabo.

Com o crescimento dessas atividades produtivas, gerou-se adensamento urbano e, consequen-temente, pressão sobre os estoques pesqueiros pelo número crescente de pessoas atuando na pesca, além de invasões de embarcações industriais. Isso contribuiu para que a Prefeitura Municipal de Arraial do Cabo iniciasse as primeiras discussões, em conjunto com o Centro Nacional de Desen-volvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT/IBAMA), para tornar a área marinha protegida. Estas instituições realizaram um estudo de avaliação e viabilidade de uma Reserva Extra-tivista cuja área total seria exclusivamente de zona marinha. Como parte desse processo de tomada de decisão, um diagnóstico foi realizado para a identificação do perfil socioeconômico da população extrativista local (CARNEIRO et al, 2012).

Porém, para alguns pesquisadores, a pretexto de se preservar regimes tradicionais de apropria-ção dos recursos naturais em Arraial do Cabo, o processo de criação da Resex foi oriundo de uma agenda exógena, em atendimento a demandas de instituições operantes em níveis superiores sobre as instituições locais de pesca artesanal (MORAES et al, 2008; PROJETO RESSURÊNCIA, 2007). Os autores ainda interpretam que, na história das mudanças ocorridas na região, a iniciativa de criação da Resex Marinha operou por meio de ações normativas, em um processo decisório top down.

Mesmo assim, a Reserva Extrativista Marinha de Arraial do Cabo (Resex-Mar AC) foi criada em 1997, pelo Decreto Federal s/n, para orientar o uso racional e a conservação dos recursos naturais re-nováveis, tradicionalmente utilizados para pesca artesanal, pela população extrativista de Arraial do Cabo. Sua área compreende um cinturão pesqueiro entre a praia de Massambaba, na localidade de Pernambuca e a praia do Pontal, na divisa com Cabo Frio, incluindo a faixa marinha de três milhas da costa de Arraial do Cabo, com uma lâmina d’água no seu espaço físico de 56.769 há, conforme está disposto na figura 1. A criação da Resex buscou, de imediato, proibir a pesca predatória, como o arrasto de fundo com portas, o uso das redes de tresmalho e as embarcações de arrasto proibidas na região, e o desembarque dos barcos industriais (CARNEIRO et al, 2012).

Em termos de instrumentos de manejo e gestão, inicialmente, a Reserva dispôs de um Plano de Utilização, instituído pela Portaria 17/1999, mas, no entanto, está desatualizado. E após 13 anos da sua criação, o Conselho Deliberativo foi estabelecido, através da Portaria 77/2010, com a finalidade de contribuir com ações voltadas à efetiva implementação do Plano de Manejo dessa Unidade e ao cumprimento dos objetivos de sua criação. Porém, o Plano de Manejo Participativo ainda não foi elaborado (ICMBIO, 2013). Assim, esforços são ainda necessários com este objetivo, sobretudo para que os atores locais se tornem protagonistas no processo.

Apesar da Resex-Mar AC ter por objetivo assegurar a pesca artesanal como manejo sustentável, outras atividades são realizadas na área: atividade portuária, turismo, esporte náutico e pesquisa.

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Além disso, a zona costeira se insere na Bacia de Campos, onde são explotados 80% do petróleo e gás do Brasil. Devido às atividades (turística e portuária) que oferecem altos riscos antropogênicos, a sustentabilidade da Reserva tem sido um desafio constante (CARNEIRO et al, 2012).

No caso da pesca artesanal, a perda de sua função de reprodução social é um risco sempre pre-sente para um futuro incerto de Arraial do Cabo. Na estimativa de cerca de 1.500 pescadores pro-fissionais artesanais atuantes em sua área, a pesca artesanal compreende uma população tradicional estabelecida em um pequeno espaço de onde retiram os frutos da pesca para a sua sobrevivência. Neste espaço, constroem-se relações sociais e de trabalho que circulam ente os pescadores. Diante do domínio do uso e da manutenção desses espaços, é que se identificam a territorialidade destas populações que interagem e dialogam entre si, não só sobre a pesca propriamente dita, mas também sobre a sobrevivência das espécies, suas identificações com o ecossistema marinho, tais como: ca-racterísticas e classificação dos habitats onde pescam e dão nome aos mesmos, direção das correntes marinhas, ventos, marés, ciclos lunares, sazonalidade e migração das espécies, ciclo de vida das espécies, tipos de iscas utilizadas entre outros (CARNEIRO et al, 2012, p.25).

Figura 1. mapa oficial de localização e área da resex-mar ac. Fonte: iBama, 1997.

Quanto ao turismo em Arraial do Cabo, existe grande oferta de serviços de passeios de barco e de mergulho recreativo. Essas atividades têm sido muito importantes para a economia do município, fazendo com que muitos pescadores deixem sua profissão e passem a trabalhar em empreendimen-tos ligados ao turismo. Em razão do crescimento desta atividade, nas últimas décadas, Arraial do

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Cabo passou a ser conhecida como a “capital do mergulho” do Brasil, devido à beleza, transparência e luminosidade de suas águas, que favorecem a prática turística (CARNEIRO et al, 2012).

As operadoras de mergulho e os barqueiros prestam serviço no cais da Prainha dos Anjos, onde se faz também a maior parte do desembarque do pescado, além de serviços de ancoragem, de atra-cação de embarcações para o turismo e de meios de hospedagem. A procura de turistas por esses serviços chega a 90 mil pessoas no período do verão, tornando o setor o maior em arrecadação para o município. Verifica-se que cerca de 400 barcos de turismo, passeios, mergulho, transportando mais de duzentas mil pessoas ao ano, disputam lugares e usos de áreas de embarque e pesqueiros (CARNEIRO et al, 2012, p.26).

O turismo característico do lugar revela um turista, que se parece com aqueles “bandos” caracte-rizados por Irving (2009) como invasores de locais turísticos e que deles se apropriam e se afastam, com a mesma falta de cerimônia com que chegaram. As iniciativas que propõem mudança qualita-tiva nesse cenário são ainda muito incipientes, apesar de ter sido regulamentada a Portaria ICMBIO 119/2012, em que estabeleceu critérios e procedimentos para a autorização precária dos serviços de passeio náutico na Resex-Mar AC, durante o verão 2012/2013.

Isto se torna preocupante, pois pesquisas evidenciam que a rápida e a desordenada expansão do turismo no local vem comprometendo e alterando as condições espaciais, sociais, culturais e am-bientais da área urbana e marinha, inclusive em relação à possibilidade de permanência da pesca artesanal, uma vez que o crescimento exponencial da navegação de passeio vem impactando os cardumes e os habitats dos peixes recifais (CARNEIRO et al, 2012, p.26).

Portanto, pela presente pesquisa, parece que durante o processo de instituição da gestão desta Resex Marinha não foi priorizada a sensibilização e a mobilização de um diálogo entre lideranças e representantes dos pescadores e do setor turístico para a definição de possibilidades e limitações de convergência entre as atividades produtivas na área marinha protegida, bem como dos papéis e responsabilidades dos atores sociais em cena.

Diante dessa realidade, pode-se associar ao caso de Arraial do Cabo, com o enfoque na área ma-rinha protegida, o que Irving (2008, p.5) reflete sobre “ecoturismo em áreas protegidas”:

“quem está” [o pescador], cujo lócus atrai o imaginário coletivo, frequentemente está excluído e distante de sua própria autonomia no processo de tomada de decisão, inclusive para escolher o turismo como alternativa. E “quem vem” [o turista] não tem ainda um rosto e certamente conhece pouco o contexto social no qual se insere a natureza idealizada.

Pelo turismo ser considerado uma das principais atividades produtivas que acontece na área da Resex-Mar AC, segundo Carneiro et al (2012), esta pode representar uma alternativa potencial para a conservação da natureza e a melhoria da qualidade de vida da população local, incluindo o pescador, o que exige a participação efetiva dos envolvidos na distribuição equitativa dos benefícios socioeconômicos gerados e na definição do uso do espaço comum. Ademais, o planejamento de ações de minimização dos impactos socioambientais e de gestão compartilhada dos recursos pes-queiros parece que implica a elaboração de instrumentos efetivos disponíveis para a gestão da Resex Marinha, como o plano de manejo participativo.

Porém, é importante entender que o cenário é desafiador. A Resex-Mar AC foi criada há cerca de 20 anos após a grande “explosão” do turismo na região turística fluminense Costa do Sol. Por esta razão, o fluxo de massa já se caracterizava no lugar e os negócios ligados ao turismo já se considera-

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vam supervalorizados em comparação com a pesca. A transformação dos espaços característicos de uma vila pesqueira dá lugar a empreendimentos turísticos e a uma mão de obra que passa a atender ao novo ator social que chega, o turista. As novas configurações do espaço litorâneo ocupado pelos pescadores se caracterizam por seus barcos e apetrechos para a pesca serem divididos com turistas, barraqueiros, empresas de aluguel de barcos para passeio e banana boats e demais serviços turís-ticos; enquanto no mar atividades de passeios e prática de mergulho dividem espaço com barcos pesqueiros. Ao mesmo tempo, presencia-se um fluxo imigratório para a cidade motivado pela busca de oportunidades de emprego e renda, inclusive através do turismo, assim como pelo crescimento das cidades vizinhas Cabo Frio e Búzios.

Prainha do Canto Verde (CE): relação de complementaridade entre turismo e pesca

A localidade Prainha do Canto Verde é reconhecida, amplamente, como uma das comunidades de pesca artesanal mais organizada do Estado do Ceará. Seus moradores, que teve sua origem em 1860, realizam a pesca artesanal, em jangadas, como a atividade básica da economia local, sendo denomi-nados jangadeiros9 (MENDONÇA, 2004).

Populações pesqueiras, como a da Prainha do Canto Verde, possui uma relação estreita com o mar. Mas o elemento terra também é importante em seu modo de vida, uma vez que é o espaço de realização de trabalhos manuais artesanais como bordados, labirintos, rendas, além de pequenos plantios de subsistência.

Localizada no município de Beberibe, a Prainha do Canto Verde abrange uma área de 749 hecta-res com praia de aproximadamente 5 Km de extensão, tendo seus limites ao norte pela comunidade de Ariós e ao sul por Paraíso. Sua área apresenta dunas fixas e móveis, lagoas temporárias, planícies alagáveis, praia aberta com mar calmo e coqueiral, o que atrai muitos interessados. Porém, nos úl-timos tempos, o que mais tem atraído o olhar e a visita de um público diverso à Prainha do Canto Verde é a comunidade local e o seu modo de organização coletiva.

Com cerca de 1.100 moradores locais, o processo de organização comunitária na Prainha do Canto Verde foi incentivado pela questão da terra (MENDONÇA, 2004). A comunidade luta, há de mais de vinte anos, pela posse da terra contra grileiros e agentes imobiliários. Isso porque vive em uma faixa litorânea de elevado valor econômico, que envolve os principais destinos da região turística cearense Costa Sol Nascente: Porto das Dunas (Aquiraz), Praia das Fontes e Morro Branco (Beberibe) e Canoa Quebrada (Aracati).

O litoral cearense, na década de 1990, foi palco de diversos impactos socioambientais gerados, principalmente, pelas ações adotadas para o desenvolvimento do turismo no Estado, resultante do Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (PRODETUR), criado pelo governo fede-ral. As ações implementadas implicaram grandes transformações espaciais, culturais, econômicas,

9 Os jangadeiros são populações tradicionais marítimas que vivem no litoral nordestino, na faixa costeira entre o Ceará e o sul da Bahia. Eles utilizam o tipo de embarcação artesanal jangada. No Ceará, exercem uma pesca em “mar aberto”, principalmente, da lagosta, demonstrando um grande conhecimento da diversidade das espécies de pesca-do que capturam, conhecendo a sazonalidade, os hábitos migratórios e alimentares de um grande número de peixes (DIEGUES et al, 2000).

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sociais e ambientais, geradas pela especulação imobiliária, pela apropriação de terras dos pequenos grupos comunitários presentes na área, pelos conflitos de terra e pela privatização e degradação de espaços públicos (CORIOLANO, 2001). A paisagem também foi transformada pela chegada de veranistas, turistas e empreendedores turísticos, os quais introduziram padrões estéticos diferentes do padrão tradicional da arquitetura local, que passou a se caracterizar pelas segundas residências (prédios, mansões, muros altos), pelas cercas que indicam propriedade e marcos de grilagem da ter-ra e das construções designadas a empreendimentos turísticos (pousadas, hotéis, parques aquáticos, etc.) e das barracas estilizadas (LIMA, 2002).

Neste contexto, os antigos ocupantes das demais praias de Beberibe foram, gradativamente, as-saltados pela lógica mercantil do uso e ocupação do solo. Logo, o território usado pelos pescado-res, pequenos agricultores e artesãos que ali residiam se tornou alvo da cobiça de investidores que, ao contrário dos nativos, viram o território apenas como um recurso para reprodução do capital (MENDONÇA, 2004).

Em uma perspectiva diversa da maioria dos moradores da região, a comunidade da Prainha do Canto Verde decidiu enfrentar e resistir ao modelo de desenvolvimento que estava sendo imposto pelo PRODETUR no litoral cearense, em prol da garantia do direito de se manterem no lugar de origem. Sendo assim, o processo de organização comunitária local começou a se expressar com a criação da Associação dos Moradores da Prainha do Canto Verde, em 1989. A Associação passou a representar o núcleo central e norteador das atividades e a se estruturar por meio de conselhos comunitários de educação, pesca, saúde, cidadania e ética, para melhor atender às demandas locais.

A história de organização, luta e resistência dos moradores da Prainha do Canto Verde foi mar-cada pelo papel instituído pelas famílias. Movidas pela fé, buscavam sensibilizar e fortalecer o sen-timento de pertencimento a terra e os laços comunitários e afetivos para encorajar os moradores a lutar contra os agentes econômicos e políticos poderosos (MENDONÇA, 2004) 10 .

Apesar de algumas resistências ao “novo tempo”, os moradores locais perceberam que a chegada do turismo na Prainha do Canto Verde era inevitável, levando às primeiras discussões sobre o tema em 1993 e 1994. Desde então, o turismo foi pauta de discussão nas reuniões da Associação de Mo-radores, aparecendo como oportunidade de geração de emprego e renda complementar a pesca, e ocupação profissional para os jovens da localidade. Por outro lado, os moradores perceberam que a exploração do lugar por agentes turísticos externos os proporcionavam riscos ligados à prostituição, ao roubo e à venda de terras.

Por isso, foi construído o “Projeto Turístico Socialmente Responsável” da Prainha do Canto Ver-de, partindo da premissa básica de “ouvir a voz” dos moradores. Segundo Mendonça (2004, p. 108), os moradores se identificavam com a construção de um sistema diferente: “um turismo onde nós somos os articuladores, construtores, donos de empreendimento, organizadores e onde a renda e o lucro ficam dentro da comunidade, para melhorar a nossa qualidade de vida e não a dos outros”.

Neste contexto, a “Primeira Oficina de Turismo” ocorreu em 1994 e resultou na criação de um conselho de turismo e na identificação do desenvolvimento de dois tipos de turismo: o “Turismo dos Barão”, que seria aquele em que “Eles decidem e ficam com o lucro e Nós obedecemos e ficamos com o prejuízo” e “O Nosso Turismo”, aquele em que “Nós aprendemos. Nós decidimos. Nós man-damos. Ficamos independentes.”, intitulado turismo comunitário (MENDONÇA, 2004).

10 O marco da história de organização comunitária da Prainha do Canto Verde ficou conhecido como S.O.S. Sobrevi-vência, ocorrido em 4 de abril de 1993, quando 4 pescadores em uma jangada de 8 metros realizaram uma viagem de protesto ao Rio de Janeiro, durante 76 dias, conferida pela mídia nacional e internacional (MENDONÇA, 2004).

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Assim, o projeto de turismo da Prainha do Canto Verde foi influenciado por três elementos mar-cantes da vida no lugar: a garantia da posse da terra, a definição da propriedade e da gestão dos empreendimentos pelos próprios moradores, e o turismo como atividade complementar a pesca. Sob essas premissas, entende-se que o turismo na Prainha do Canto Verde se diferencia dos demais destinos do litoral cearense, por ter construído um modelo planejado e gerenciado pelas próprias populações pesqueiras, que contribui para a melhoria dos padrões socioeconômicos e o respeito e valorização da cultura dos “Povos do Mar”.

Como resultado, o projeto de turismo comunitário da Prainha do Canto Verde se tornou uma referência para outras populações pesqueiras que viviam realidades semelhantes, impulsionando a criação da Rede Cearense de Turismo Comunitário - REDE TUCUM (SILVA et al, 2008). Neste contexto, o turismo comunitário também foi entendido como uma estratégia de visibilidade da luta e resistência em defesa da terra.

Outra estratégia de resistência em defesa da terra vislumbrada pelos moradores da Prainha do Canto Verde foi à instituição de uma Unidade de Conservação na área, da categoria de manejo Re-serva Extrativista. Em 2001, a Associação de Moradores encaminhou ao IBAMA, que era o órgão competente na época, o pedido de criação de uma Reserva Extrativista na área ocupada tanto no ambiente terrestre quanto no marinho. Neste tempo, ocorreu a vitória da ação rescisória dos mora-dores da Prainha do Canto Verde contra a entrada de usucapião da área pela Imobiliária Henrique Jorge, pronunciado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 14/03/2006. No entanto, permaneceu a preocupação com a organização da ocupação do espaço e a forma de dar continuidade ao espírito de luta comunitária para a garantia de manutenção dos moradores no local herdado.

Após quase 10 anos, a Reserva Extrativista da Prainha do Canto Verde foi oficializada pelo decre-to S/N de 05/06/2009, proporcionando à população pesqueira o direito garantido de posse a terra firme e a parte de mar necessária para a prática da pesca artesanal. Caracterizada pelo bioma mari-nho-costeiro, a área decretada foi de aproximadamente 29.794 ha, dentre esses, 577,55 compõem a parte terrestre, conforme representada na figura 2.

Os instrumentos plano de manejo e acordo de gestão ainda não foram elaborados e aprovados pelo seu conselho gestor deliberativo, instituído pela Portaria 125/2010 (ICMBIO, 2013). Mas o conselho dispõe da Resolução nº 01/2011, em que estabelece procedimentos administrativos para autorização de construções de moradia e quarto de pesca; e da Resolução nº 02/2012, em que esta-belece procedimentos administrativos para o controle, regulação e ordenamento para o desenvol-vimento da atividade pesqueira artesanal dentro dos limites da Reserva Extrativista da Prainha do Canto Verde.

Apesar da maioria dos moradores locais terem apoiado a criação da Resex, observa-se, em 2012, a formação da Associação Independente dos Moradores da Prainha do Canto Verde e Adjacências (AIMPCVA) por integrantes dissidentes da Associação dos Moradores da Prainha do Canto Verde, que move uma ação ordinária contra o ICMBIO e a União, questionando a instituição da Resex em área continental, uma vez que, dessa forma, os moradores não podem mais fazer pequenas cons-truções ou reformas em suas casas, e nem vendê-las. A Associação Independente é apoiada por um empresário que entrou com uma ação de usucapião para legalizar 315 hectares de terra na Prainha do Canto Verde, que passou a provocar um conflito que divide os moradores, com a intenção de excluir a área terrestre da Resex (PRAINHA DO CANTO VERDE, 2012).

Porém, segundo a nota de apoio e esclarecimentos sobre a Reserva Extrativista Prainha do Canto Verde/CE, divulgada em 15 de março de 2013, a pesca artesanal e a relação com o mar são centrais

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para os moradores locais. Isso porque a vida comunitária acontece na terra, onde se constrói habi-tações e espaços coletivos; se realiza outros trabalhos, incluindo o de mulheres e jovens. Na terra, a comunidade vive os afetos, as relações familiares, o lazer, os encontros religiosos; e, nela, também, acessa os serviços públicos, como saúde e educação. A área de terra protegida também possibilita à comunidade conviver com o avanço do mar e outros eventos naturais como os movimentos das dunas, a partir da mudança de rota dos ventos. É na terra que as pessoas podem reconstruir as casas atingidas por esses fenômenos e formar novos núcleos familiares (PRAINHA DO CANTO VERDE, 2013).

Figura 2. mapa oficial de localização e área da resex prainha do canto Verde.

Fonte: IBAMA, 2007.

Sendo assim, a Associação dos Moradores da Prainha do Canto Verde esclarece que, “a maioria dos moradores estão felizes com a Resex e a garantia do uso da terra para eles e as futuras gerações e o direito de uso dos recursos na parte marinha da Resex. Só falta o Governo assinar o CCDRU

– Contrato de Concessão de Direito Real de Uso” (PRAINHA DO CANTO VERDE, 2012). Outro trabalho que corrobora a importância da Resex é o relatório técnico do ICMBIO (2011), que reco-menda desconsiderar a possibilidade de redução dos limites da UC na parte terrestre ou marinha, e sim ampliar os seus limites para proporcionar a sustentabilidade da comunidade em longo prazo. Então, pelo que parece, o processo de criação da Resex da Prainha do Canto Verde está regularizado e o órgão gestor está encaminhando as ações devidas para a sua consolidação.

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Portanto, pode-se considerar a criação da Resex da Prainha do Canto Verde como resultado de um processo histórico de participação, de luta e resistência dos Prainheiros. A Resex foi decretada 16 anos depois que a comunidade local começou a discutir a respeito de um projeto turístico, em um contexto de gestão local, caracterizada pela forte mobilização dos conselhos comunitários participa-tivos e consultivos, e que se baseia em uma relação de complementaridade com a pesca. A criação da Reserva Extrativista, tanto na área de mar quanto de terra, também garantiu o modelo de base comunitária, em que os moradores controlam as atividades turísticas, em todos os elos da cadeia produtiva local, em contraponto ao padrão convencional do turismo, que é bastante característico na região turística cearense Costa Sol Nascente.

Considerações Finais

A temática abordada neste artigo é motivada pelas diversas forças, oportunidades, contradições e ameaças que giram em torno da relação entre turismo e pesca em Unidades de Conservação, espe-cialmente Reservas Extrativistas Marinhas. Porém, pesquisas acadêmicas nessa linha temática são ainda incipientes, sobretudo, em termos de sistematização de um quadro de referências teóricas, metodológicas e práticas, em uma vertente crítica. Mas, de modo exploratório, este artigo permitiu tecer algumas considerações finais de alcance ao objetivo da presente pesquisa, a partir das experi-ências das Reservas Extrativistas Marinhas de Arraial do Cabo e da Prainha do Canto Verde.

A reflexão sobre o uso múltiplo da água e o turismo reforçou que, em geral, há sobreposição de uso, em um mesmo território, e que isso tem interferido decisivamente na vida de muitas popula-ções litorâneas, causando diversos impactos negativos. Identificou-se que muitas atividades produ-tivas tradicionais são desvalorizadas e desarticuladas, como a pesca, impulsionando a substituição da atividade pelas ligadas ao turismo. Contudo, para minimizar os impactos e conflitos gerados pela sobreposição de uso da água em ambientes costeiros, entendeu-se a necessidade de garantir iguais condições e direitos de participação e de poder de decisão relativas às questões de acesso e de uso dos recursos naturais terrestres e marinhos.

No caso de populações extrativistas beneficiárias de Resex Marinhas, interpretou-se que o pro-cesso e os objetivos de criação da UC, seja em terra ou mar, influenciam decisivamente a forma de relação das atividades de turismo e pesca. A experiência de Arraial do Cabo mostrou que, quando a criação é impulsionada por demandas oriundas de agentes exógenos, presencia-se uma relação de conflito, tensão e disputa. Ou seja, nesta situação, a pesca concorre com o turismo tido como estratégia de substituição. A experiência da Prainha do Canto Verde mostrou que, quando a criação é oriunda de uma decisão coletiva de um projeto endógeno (mesmo atualmente sem unanimidade sobre suas dimensões e demais demandas locais), presencia-se uma relação de complementaridade, protagonismo e legitimidade. Ou seja, neste caso, os pescadores defendem o turismo como ativida-de complementar.

Considerou-se ainda que, mesmo a criação das Resex sendo adotadas como estratégia de garan-tia dos recursos pesqueiros, no caso de Arraial do Cabo, e de resolução de conflitos territoriais, na Prainha do Canto Verde, ambos os casos ainda continuam enfrentando questões que ocorrem no mar (com a prática da pesca de mergulho, do turismo de mergulho e da pesca predatória) e em terra (com a disputa dos espaços para a criação de empreendimentos turísticos, expulsão de moradores, conflitos de posse e uso da terra e destruição de recursos naturais).

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Turismo e pesca nas Reservas Extrativistas Marinhas

A partir dos resultados das experiências pesquisadas, uma questão central ainda fica para pensar a relação entre turismo e pesca em Resex Marinhas. Até que ponto a criação de Resex Marinhas e a existência de instrumentos de manejo e gestão são suficientes para resolver os conflitos no mar e em terra e para garantir ou não a integridade das Resex Marinhas?

Um caminho para essa discussão deve ser a construção de práticas efetivas de gestão da sociobio-diversidade em Resex Marinhas que avancem na garantia de participação social, de fortalecimento da produção extrativista e de valorização dos saberes tradicionais, para o alcance dos seus objetivos básicos de criação e para a potencialização de uma relação equilibrada entre turismo e pesca.

Portanto, a análise da relação entre turismo e pesca em Reservas Extrativistas Marinhas deve considerar a dinâmica do crescente sistema de monopolização da economia, dos produtos e da comunicação, e das novas configurações sociopolíticas, intermediados pelo discurso civilizatório do turismo como “salvação” para as pessoas e lugares em detrimento a outras atividades produtivas, muitas delas tradicionais. Ou seja, revela-se a força de um discurso e de uma prática hegemônicos e civilizatórios que tendem a impulsionar e fortalecer o turismo como uma possibilidade de substitui-ção de atividades tradicionais, como a pesca.

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