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7º volume da Coleção Memórias da Figueira

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PALAVRAS AO LEITOR

ELIO EUGENIO MLLER

E a vida continuaColeo Memrias da Figueira

Volume: VII

Editora AVBL

2014

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

MLLER, Elio Eugenio E a vida continua Coleo Memrias da Figueira

Volume: VII Elio Eugenio Mller -- Curitiba/PR. Editora AVBL, 2014. -- Bauru/SP

380p. il. 14,8 X 21 cm.

ISBN: 978-85-98219-55-4 1. Contos: Literatura Brasileira. I. Ttulo.

10-07-14 CDD-869.93

ndice para catlogo sistemtico:

1. Contos: Literatura Brasileira - CDD-869.93

Copyright - ELIO EUGENIO [email protected] - [email protected]

E A VIDA CONTINUAColeo Memrias da Figueira - Volume: VIIISBN: 978-85-98219-55-4Direitos reservados segundo legislao em vigor

Proibida a reproduo total ou parcial

sem a autorizao do autor.

EDITORA AVBL

www.editora.avbl.com.br

e-mail: [email protected]

E A VIDA CONTINUA

Coleo Memrias da Figueira

Volume: VIIO drama humano diante do flagelo

da violncia, das epidemias e da morte.

NDICE

AGRADECIMENTOS11

PALAVRA AO LEITOR12

- Uma visita ao Stio da Figueira13

- Lembranas da infncia em Panambi RS18

- Pracinhas brasileiros, afrodescendentes, (...)22

- Trazendo baila histrias ps a anistia (...)23

- O inconformismo de Ivo Baiano24

- Quando chega a tempestade26

- O meu papel de atalaia28

UM ATADE DIANTE DO SOBRADO31

- O atade devolvido cova33

- Taquari ajuda flagelados34

O FIM DA REVOLUO36

- Candinho em busca de paz37

- Os conselhos do Major Voges41

- Candinho conhece a Fazenda Campo Bom44

MORTE TRGICA DE MARIA WITT49

- Major Voges leva consolo para Candinho51

- O culto pela finada Maria Witt54

O CASAMENTO DE AMBROSINA57

- A morte desconcerta62

DIFICULDADES DO PASTOR LEMO66

- Terreno para novo cemitrio67

- Pastor Schlegtendal transferido69

O FUTURO DOS MARAGATOS 71

- Candinho quer reorganizar a sua vida72

A FORA POLICIAL DOS COLONOS74

- Um novo subdelegado para a Colnia76

A REPERCUSSO DE CANUDOS79

- As confidncias de Tenente Cardoso86

VOLTAM OS DRAMAS PARA CANDINHO90

- Capito Luna reaparece na Serra90

- Caquita abandona Henrique Baiano92

- Candinho no encontra sossego95

- A morte de Leonel Brando99

O CASAMENTO DE ANGELINA102

A MORTE RONDA CANDINHO105

- Conversa entre Candinho e Major Voges105

- Candinho havia sido o alvo109

- Candinho pede satisfao ao subdelegado112

ASSASSINATOS FORAM OCULTADOS117

- Ordens secretas para Cartrios117

- sombra da soluo de Canudos121

A VIL CILADA CONTRA CANDINHO126

- O novo plano para eliminar Candinho127

- A cilada na Noite dos Reis128

- Na vspera do Dia dos Reis130

- Candinho alegra-se com a homenagem132

- A morte de Candinho choca o povo136

- Autorizao para sepultar Candinho138

- Uma cruz de cerne140

UMA MORTE NO CANAVIAL143

- A execuo do Capito Feij143

- Dois velrios e dois enterros146

- CILADA PARA TONHO BAIANO147

FRANA GROSS AGORA O LDER DOS MARAGATOS149

- Sob a liderana de Frana Gross149

- As mortes de Jos e Joo Baiano150

- A Escolta de Extermnio153

- Os Cemitrios dos Maragatos155

- As vivas dos maragatos158

- O desespero de Poldia161

- Aribu reclama do subdelegado164

- Mano Jorge faz compras na Colnia166

- Um triplo assassinato169

- Triplo velrio e triplo enterro170

- Frana busca pertences dos filhos171

- Evases da rea de Trs Forquilhas172

BANDIDOS ATACAM A COLNIA175

- O ataque ao comerciante Jacoby Junior177

- Um subdelegado rpido para matar178

CASTILHISTAS PEDEM AJUDA DE DR. LUL MACHADO180

- Dr. Lul Machado liquida Luna e Crespo183

- Tenente Pedroso quer executar mais bandidos184

FRANA GROSS AMEAADO DE EXECUO187

- A morte de Henrique Baiano189

ONDE H FUMAA, HOUVE FOGO191

O FIM DE FRANA GROSS193

- Muito rancor contra os maragatos193

- O engodo do culto na Boa Unio194

- A cilada para Frana Gross196

- A agonia e morte de Frana Gross198

- O sepultamento de Frana Gross201

- A morte de Firmino Cndido202

NO SE PODE MAIS CONFIAR EM NINGUM205

- No se fala mais nisso!206

- Assassinatos foram ocultados208

- Onde estavam a Igreja e a Maonaria?209

EPIDEMIAS NA COLNIA DE TRS FORQUILHAS213

- A febre tifide no efetivo de Candinho213

- A cimbra de sangue em Trs Forquilhas214

POESIA: SAUDADE DE OCTAVIO BECKER218

NOVOS TEMPOS PARA A COLNIA DE TRS FORQUILHAS222

- A evangelizao dos brasileiros222

- A estratgia da evangelizao223

- A educao224

- A msica e o canto224

- A diviso da Comunidade em reas225

- A preparao de novas lideranas225

- Assistncia preferencial aos negros226

- A comemorao da Noite de Reis227

- A Banda de Msica228

- As sociedades de canto e corais228

- Torneios eqestres de Cavaleiros do Vale229

QUEBRANDO O MONOPLIO DE TRANSPORTE231

MAPAS233

- Mapa da violncia de 1891 a 1895233

- Mapa da violncia de 1896 a 1898233

- Mapa da Violncia Propriedades assaltadas234

- Mapa de evadidos e desaparecidos234

- Mapa das vivas de maragatos235

- Febre tifide no Esquadro Josaphat236

- Febre Tifide na Colnia de Trs Forquilhas236

- Cimbra de sangue na Colnia de Trs Forquilhas236

- Cemitrio Maragato do Josaphat 237

- Cemitrio do Passo do Josaphat237

A FORA REPUBLICANA DA COLNIA238

II PARTE247

HISTRIAS DE ALBERTO SCHMITT248

- Colaborador de Noite de Reis?248

- Quem foi Fernandes Bastos?257

- Beto Escrivo corrige distores262

O QUE ACONTECEU A RFOS E VIVAS?264

- Presente e passado quase se confundem266

- Onde est o meu irmo?269

- Visita ao padrinho Eugenio Bobsin270

- Revelaes de Joo do Nascimento272

MONARQUIA OU REPBLICA275

A MORTE DE ALBERTO SCHMITT279

- Alocuo Fnebre...280

HISTRIA DE CECLIO COELHO DA CRUZ286

- O menino do Passo da Cruz286

PAIS DESCONHECIDOS E CONHECIDOS292

A QUE OBRA EU ME PROPUS?296

- Os livros do registro eclesistico301

- Os livros do registro civil302

- Outras fontes de Pesquisa Primria302

- Sobre os federalistas de Torres303

- O dilogo dos tempos no resgate de nossa memria307

- O interesse pela histria307

III PARTE311

CONHECENDO A COLNIA DE TRS FORQUILHAS312

- Minhas primeiras impresses em 1969312

- Quem no gosta de rezar ou danar312

- Quem bebe das guas do rio Trs Forquilhas313

- Como num templo a cu aberto315

IV PARTE318

A MINHA JORNADA RELIGIOSA CASTRENSE319

- Avanando pela Via pia Brasiliensis319

- A influncia de Monsenhor Alberto322

- O Ministro, o Bispo e o Capelo327

- Capeles chefes do SARFA328

- Capeles chefes do SAREX328

QUE CAPELO SOU EU?330

- O capelo no tempo e no espao330

- O regime militar de 1964333

- A escurido da clandestinidade335

- Vinte e oito anos depois...337

- No fui delator...338

- Gratido pelas bnos recebidas

340

ELIO EUGENIO MLLER dados biogrficos -341

- UM PATRIMNIO INTANGVEL347

- Palavras do General DEZUIT347

- Outros oradores que tambm falaram349

CONCLUSO353

BIBLIOGRAFIA

355

FONTES DA HISTRIA ORAL358

- NOTAS EXPLICATIVAS362

- FIGURAS em E A VIDA CONTINUA365

- COLEO MEMRIAS DA FIGUEIRA APRESENTAO372

- De Ps e a Ferros373

- Sangue de Inocentes374

- Dos Bugres aos Pretos375

- Amores da Guerra376

- Face Morena377

- Os Peleadores378

- E a vida continua379

AGRADECIMENTOSAgradeo a Deus fonte da vida e de toda a boa inspirao, que me permitiu concluir esta obra de sete volumes da Coleo Memrias da Figueira. Que estas memrias possam servir como um instrumento para o estudo de nossas micros histrias, tantas vezes relegadas ao descaso e sirva para participar da tarefa na edificao do Reino de Deus sobre a terra.

Doris, minha esposa querida pelo permanente incentivo para este trabalho, como companheira valorosa ao longo de todos estes quarenta e cinco anos de nosso matrimnio. Doris ajudou-me a localizar e dar vida a muitos personagens do passado que ela conhecera, mas eu no. Muitos destes personagens so antepassados de minha esposa e que viveram esta saga relatada nesta Coleo Memrias da Figueira.

Professora Dra. Solange T. de Lima Guimares (a Sol Karmel) amiga e conselheira pela avaliao da obra e orientao inicial visando traar um fio vermelho para os relatos.

Ao publicitrio Rodrigo Sounis Saporiti, meu primeiro genro (pois era casado com a minha filha Cris e deu-nos os lindos netos Stephanie e Vincenzo), pela orientao na fase inicial visando a escolha do formato literrio para esta obra.

escritora Maria Ins Simes, Presidente da Academia Virtual Brasileira de Letras AVBL, pelo trabalho de confeco e layout da capa, pela correo e diagramao dos textos, que compem esta Coleo das Memrias da Figueira.

PALAVRAS AO LEITOR

Outra vez, estou diante da figueira, no Stio da Figueira em Itati RS, agora para o momento to esperado da redao final do livro E A VIDA CONTINUA, o 7 e ltimo volume da Coleo Memrias da Figueira.

O assunto central deste 7 volume o poder o fascnio e o pavor, que a morte exerce sobre a mente humana.

No bastassem as mortes produzidas pela violncia e por epidemias naquele final do sculo XIX, to forte como a morte so o luto, o desespero e a dor daqueles que perderam um ente querido.

Entendo que diante de tal constatao, esta obra literria a qual encerra a coleo de sete volumes, no deve e no pode ficar restrita s marcas e traumas produzidos pelas mortes e sentimentos fortes e profundos ocorridos entre 1897 a 1898, logo aps a anistia aos revolucionrios federalistas derrotados, e, que envolveu a perda de entes queridos, arbitrariamente assassinados. O livro se mostra pesado e um tanto macabro, mas no permitido silenciar sobre o ocorrido.

Assumi o propsito de mostrar que tambm existe uma luz no final do tnel. Existe algo mais poderoso do que a dor, o luto ou a morte... No estamos abandonados e nem ss, mesmo quando somos flagelados pelos males terrenos.

Mesmo a verdade que, mais cedo ou mais tarde, tudo o que nasce, tudo o que existe na face da Terra, ter que passar pela morte, ela vem apenas como inimigo derradeiro em nossa vida terrena, a ser vencido.

Enquanto ainda pudermos ver que flores nascem, que a terra se renova, que pessoas confiam em Deus e no Seu plano salvador, constatamos que a vida continua, apesar de todos os males que a ameaam.

O ttulo desta obra, E A VIDA CONTINUA, sinaliza para a nossa difcil realidade existencial e prope a importncia da f e da esperana, como forte expectativa confiando que, quem tem a palavra final, a vida.

Portanto, o ttulo foi escolhido de maneira proposital, para levar os leitores reflexo.

Uma visita ao Stio da FigueiraPara prosseguir nessa reflexo convido-os para que me acompanhem, mais uma vez, num rpido passeio at o Stio da Figueira.

Chegando l, procuro um lugar acolhedor sombra da centenria rvore. Ouo o suave sussurrar das folhas, agitadas pelo vento brando, que sopra do oceano e que vem trazendo um ar puro e gostoso.

A figueira, como sempre, revelou-se bem afinada com o meu pensamento e com as incertezas e dvidas que anuviavam minha mente, diante do desfecho doloroso da Revoluo Federalista, que ocorrera entre os anos de 1893 a 1895, conforme descrito no volume anterior de OS PELEADORES. Nesta obra teremos que ir at o ano de 1897, quase trs anos aps o final daquela revoluo e aps a anistia que havia sido concedida aos derrotados.

A figueira segredou: - Vejo-te inconformado com os fatos de 1898 e com o desfecho da histria que ento marcou o vale do rio Trs Forquilhas e regio serrana adjacente. O teu ntimo se revolta com os relatos sobre a crueldade e da desumanidade, revelados pelos vitoriosos castilhistas?

Tomado pela curiosidade e um tanto ansioso, questionei: - Querida figueira, o que voc conhece a respeito de morte, luto e dor? Voc passa uma existncia to tranqila e pacfica, banhando-se sob a luz benfazeja do sol ou se renovando com as chuvas dadivosas, de uma natureza to prdiga como esta do nosso vale?

A figueira se manteve silenciosa por um longo tempo... Um tempo que me parecia infindvel. Eu j ia concluindo que, quem cala consente ou concorda, quando, de repente, uma vigorosa lufada de vento, agitou os galhos dela, intensamente.

A figueira falou: - Insinuas que eu no sei o que a morte? Imaginas que eu no sei o que so luto e dor, ou a fora exercida pelo vazio e da solido que se abatem sobre o ser, quando uma irm ou irmo, ou uma me ou pai, so arrancados do nosso convvio?

A figueira no me deixou tempo para dizer alguma coisa e simplesmente continuou a sua fala: - Um dia ramos trs figueiras que viviam neste gramado, diante desta casa onde hoje tu e a Doris, e teus familiares moram e renovam suas foras. ramos trs figueiras brincalhonas, inocentes e ingnuas, que se divertiam com o tempo. A nossa maior alegria era de acolher criaturas humanas, aves e animais, que se deliciavam com a sombra que sabamos produzir, particularmente, em dias quentes e de muito sol. Tivemos uma infncia muito feliz... Com os nossos galhos nos tocvamos, fazendo travessuras ou carcias, experimentando o amor que une uma famlia e cujos integrantes se amam de fato. Juntos enfrentamos horas boas e horas difceis de sol e chuva, de bonana e temporais e de sofridas estiagens e de grandes enchentes do rio Trs Forquilhas. Vivamos a nossa vida como se o nosso convvio e a nossa existncia jamais acabaria... A figueira silenciou por um breve momento, pois a brisa gostosa, vinda do oceano, cessara. Mas nem tive tempo para reagir com alguma pergunta ou considerao, a respeito da conversa dela. A figueira voltou a falar, dizendo: - Lembro como se fosse hoje quando em 1952 os moradores do Stio da Figueira, os antepassados de Doris, decidiram que a minha irm atrapalhava e que no se desenvolveria adequadamente por estar plantada entre mim e a minha outra irm A figueira do meio de fato vivia abafada e sem perspectivas de conseguir receber os raios solares. Ouvi quando os moradores do stio disseram: < O desenvolvimento dessa figueira do meio est comprometido e ela ir definhar, e, alm do mais, queremos nesse local colocar um palanque para amarrar cavalos >. Naquele dia a minha irm menor foi eliminada... O tempo foi passando e no ano de 1966 uma tragdia se abateu sobre ns duas sobreviventes... Foi alardeado um acontecimento, que haveria de oferecer, para Itati, um grande passo para o progresso e para o desenvolvimento, pois que o lugarejo seria suprido com energia eltrica. Vieram homens de macaco, munidos de faces, serras e machados. Os moradores do Stio no estavam aqui para nos defender, pois haviam se mudado temporariamente a So Leopoldo. A primeira a ser atacada pelos desalmados funcionrios da empresa de energia eltrica foi a minha irm. Ela sofreu muito... Cortaram todos os seus fortes e lindos galhos, bem rentes ao tronco. Depois vieram para o meu lado, me examinaram por um tempo e ento passaram a cortar alguns de meus galhos, S cortaram os galhos de um lado do meu tronco. Felizmente o outro lado ficou intacto e notei que eu ainda conseguia respirar normalmente... Porm a minha irm no tinha mais galhos com folhas, para ter uma respirao adequada. Ela no tinha mais folhagem para ser agitada ao sabor do vento e no tinha mais como me tocar ou para brincar comigo...

FIGURA 01: Nos fundos, vista uma das trs figueiras. Diante da figueira vemos Justino Alberto Tietbhl, Diumer Schneider, Adolfo Voges dono do Stio da Figueira, Ldio Passos, Iarandu Chaves, Zaire Nunes, Perci Schmitt e Emlio Bobsin. Fonte: foto do arquivo da famlia Voges, 1942.

A figueira silenciou outra vez, tomada por reflexes talvez produzidas pelas tristes lembranas do passado. Mas ela continuou falando: - Quando os moradores deste meu stio retornaram de So Leopoldo, porque l no se adaptaram, encontraram aqui essa novidade dos postes de luz, dos fios fornecendo eletricidade e se alegraram muito. As residncias passaram a estar bem iluminadas s vezes at altas horas da noite. A vida em nossa localidade realmente mudou ao poder contar com os benefcios oferecidos pela energia eltrica. No primeiro momento os moradores do Stio da Figueira nem prestaram ateno para a minha irm que estava ali agonizante, sem poder respirar direito. A podrido comeou a avanar pelo seu tronco e se viam apenas alguns galhos magrinhos com poucas e fracas folhas.

Escutei esse relato cheio de suspense e finalmente reagi e comentei: - Amiga figueira, eu conheci a tua irm... Tenho uma foto, a cavalo, segurando a mo de Doris, posando diante do tronco tosco e ressequido, de tua irm figueira. A rvore confirmou minhas palavras: - Sim, conheceste a minha irm figueira, poucos meses antes dela morrer e, ser arrancada de vez do solo.Sim, eu pudera ver a agonia de sua irm, como ela se transformava em podrido e morte. Mas, naquela poca, eu no tivera olhos para uma figueira. O meu pensamento e toda a minha ateno estavam focados na Doris, minha namorada, depois noiva e mais adiante esposa e companheira na jornada existencial.

Olhei para a minha amiga figueira, essa extraordinria e incrvel sobrevivente. Observei agora com bem maior ateno as marcas e cicatrizes que ela carregava em seu corpo. Ela sentiu o meu olhar, e logo explicou: - As minhas feridas foram bem dolorosas e profundas e cheguei a temer que o meu fim tambm se aproximasse. O que me concedeu essa sobrevida e algum tempo mais de existncia foi o fato de eu me encontrar alguns metros a mais, afastada da linha pela qual os fios de energia eltrica tiveram que passar. J se passaram mais de cinquenta anos desde aquele dia trgico, mas no preciso contar sobre isso, pois s testemunha da minha existncia, desde ento at hoje...A figueira silenciou e colocou-se naquele mutismo vegetal, de quem j disse tudo o que precisava ser falado.Lembranas da infncia em Panambi RSO meu pensamento vagou de volta minha infncia. Eu me vi em minha terra natal, em Panambi RS, na distante poca de meu tempo de menino. Estava com onze anos de idade e trabalhava na Farmcia Hisserich como balconista, como agente de servios gerais e, muitas vezes, para sair de bicicleta em tarefas de muita responsabilidade fazendo a cobrana mensal de dbitos nas residncias de fregueses, trazendo, no final de cada jornada, altas somas em dinheiro que depois de contabilizadas eu tambm levava ao banco, para depsito.

Na condio de menino, com apenas onze anos, vivenciei uma situao, bem peculiar para aquela idade e, que haveria de me marcar profundamente. Fui despertado para conhecer a histria de um soldado que foi para a guerra, dentre muitos que no voltaram e de tantos que sobreviveram e voltaram com suas experincias, vivncias, traumas e cicatrizes.

Desde os meus primeiros dias na situao de empregadinho de trabalho infantil, me foi dado experimentar um contato muito prximo com a filha do velho farmacutico Carlos Hisserich e irm de Jorge, tambm farmacutico e filho do patro. A Emilia talvez tivesse na poca entre dezoito a vinte anos de idade. Era muito gentil e atenciosa e logo revelou uma grande preocupao comigo, eu era apenas criana, mas j realizando servios de muita responsabilidade. Um menino franzino, que crescia devagar e era considerado muito magro ou at magro em demasia. Emilia Hisserich um dia quis saber: - Menino, voc est se alimentando bem?

Respondi prontamente: - Claro que sim, pois em minha casa temos comida vontade. Nunca precisei ser levado a um mdico... Sou muito forte... - E fiz diante dela um gesto, dobrando o brao para mostrar os meus msculos, imaginando haver um vistoso bceps para ser admirado. Na verdade no existiam grandes msculos, mas simplesmente uns gambitos finos e magros, de ossos cobertos pela pele.

Emilia levou-me at o refeitrio da cozinha e ordenou que todas as manhs a cozinheira me servisse uma fatia de po com manteiga e um ovo estrelado, para dar reforo ao caf da manh. O mesmo procedimento tambm acontecia tarde, no horrio do lanche.

Essa deciso da patroa oportunizou para mim a possibilidade de vivenciar um pouco mais do cotidiano deles. Logo no princpio a minha ateno foi despertada para um curioso ritual que Emilia cumpria todos os dias. Enquanto eu estava ali em torno da mesa da cozinha recebendo um reforo para o caf da manh, observei que Emilia passava por mim, com trs florzinhas na mo, frescas, recm colhidas no jardim. Ela ia at a sala contgua onde eu podia ver um quadro emoldurado, mostrando o retrato de um soldado bastante jovem. Ela colocava as florzinhas num minsculo vasinho fixado naquela moldura do quadro. Depois ela passava a mo sobre o retrato, como se quisesse acariciar aquele rosto e lgrimas deslizavam pela sua face, marcando-a momentaneamente com sinais de grande tristeza. Ela pronunciava algumas palavras e depois unia as mos como que fazendo uma breve prece. No final ela enxugava as lgrimas que desciam de seu rosto moreno e lindo.

Um dia tomei coragem e me aproximei de Emilia, tocando levemente no seu brao. Ela baixou o rosto at o meu e deu-me um beijinho na testa. Com esse gesto criei coragem e perguntei: - Por que, todos os dias coloca trs florzinhas junto a esse retrato?

Emlia explicou: - Esse retrato do meu irmo que morreu no final da guerra mundial, na Itlia. Todos os dias eu chego diante do quadro dele, coloco as florzinhas, falo algumas palavras com ele e depois oro para que Deus cuide dele, no lugar onde ele agora se encontra.

FIGURA 02: Sargento Carlos Walter Hisserich 2 ROAu FEB. Foi motorista do 2 Regimento de Obuses Autopropulsado, no front da Itlia, durante a II Guerra Mundial. Morreu em 24.06.1945 em Marano, j aps o trmino da guerra quando at escrevera para a famlia anunciando o seu retorno. Naquele dia do acidente fatal, ele estava conduzindo militares para a rea porturia. O seu veculo passou sobre uma mina terrestre que explodiu. Fonte: Museu do Expedicionrio ANFEB.

Com muita curiosidade e pesar eu escutara o relato de Emilia. Em minha inocncia infantil a questionei: - Eu no gosto de v-la chorando de tristeza... Por que, a senhora, diariamente, vem sofrer diante desse retrato? Se o seu irmo est l no cu, junto de Deus, ele no est mais aqui, para que consigas falar com ele...

Emilia respondeu: - verdade, eu concordo que ele est no cu. Mas a saudade mesmo depois desses dez anos da morte dele ainda continua muito grande. Quando falo com o retrato dele e fao as minhas oraes, consigo depois ir trabalhar com alegria no corao. Eu prometi jamais me esquecer dele...

O que Emilia falara sobre alegria, era verdade, pois nunca a vira triste durante o horrio de trabalho, mas sempre com um grande sorriso no rosto, tratando os clientes com muita ateno e carinho. Todos gostavam dela, por causa dessa alegria espontnea que transcendia do seu semblante de modo contagiante. Tive a partir daquele dilogo a impresso de que ela buscava cultivar a sua f e renovar as suas foras, revelando que, apesar da morte que ceifara a vida do irmo, para ela o que importava mesmo era a vida.

FIGURA 03: Recolhendo um pracinha brasileiro ferido.

Charge de jornal, do tempo da guerra e que mostra um motoristano exerccio da sua tarefa. Fonte: gravura da internet.

O Sargento Carlos Walter Hisserich foi motorista do 2 Regimento de Obuses Autopropulsado, no front da Itlia, durante a II Guerra Mundial, sua morte ocorreu em 24.06.1945 na localidade de Marano, aps o trmino da guerra.

Naquele dia ele havia escrito a sua famlia anunciando o seu retorno.

Por ocasio do acidente fatal, ele estava conduzindo alguns militares para a rea porturia. O seu veculo passou sobre uma mina terrestre que explodiu e vitimou este motorista panambiense.Pracinhas brasileiros, afrodescendentes, integraram a FEBO Sargento Carlos Walter Hisserich era considerado afrodescendente,junto Fora Expedicionria Brasileira sua me fora uma mulher de descendncia africana e, deste modo, ele trazia na pele e nos traos fisionmico, nitidamente escrito sua identidade racial. Sua me, havia sido de cornegra, retinta, como diziam em Panambi RS. Ela se casara com o jovem farmacutico alemo Walter Hisserich. O Sargento Carlos Walter Hisserich falava fluentemente a lngua alem alm da lngua nacional e, por este motivo era muito valorizado pelos chefes militares.

Acredito que seria interessante que, algum dia, algum escreva toda a histria a respeito dos pais deste pracinha da FEB, que no retornou da Guerra.

Em rpidos traos escrevo: - Quando trabalhei na Farmcia, por volta de 1955, Emilia me contou sobre o motivo da unio do pai dela com a humilde e jovem afrodescendente, que servira de domstica em casas de imigrantes alemes de Neu-Wrttemberg, hoje Panambi RS. O resumo da histria este: O jovem farmacutico alemo, solteiro, h pouco tempo na localidade, ficou enfermo, com grave mal contagioso. Estava abandonado sorte, em sua casa, quando esta mulher afrodescendente constatando esta triste situao, se apiedou dele e lhe concedeu os cuidados necessrios. Restabelecido, o jovem farmacutico declarou ao povo de Neu-Wrttemberg: - A minha vida no mais me pertence. Agora a minha vida pertence a esta devotada mulher que de mim cuidou, na pior situao que se possa imaginar, pois correu o risco de tambm ser infectada. Ela me deu medicao e alimentos, me tirando de uma morte certa. Decidi me unir a ela pelos sagrados laos do matrimnio e viver com ela e para ela, at que a morte nos separe.Desta unio nasceram Carlos Waltero pracinha da FEB que pereceu na Itlia, Jorge que se tornou farmacutico e a caula Emilia.

Trazendo baila histrias ps a anistia aos federalistasDepois de relatar aos leitores a respeito do meu contato com a figueira e das lembranas de minha terra natal, volto a trazer baila a histria ocorrida em 1898, aps a Revoluo Federalista.

Contei, a cada novo volume lanado, o interesse de pesquisadores e estudiosos da micro-histria por mim enfocada. Nesta fase final, ao escrever de modo intenso relatos, casos e causos sobre a revoluo federalista, fui surpreendido com a visita do cineasta Paulo Tavares que, chegando ao Stio da Figueira, fez uma entrevista comigo, em forma de documentrio, registrado em um filmete.

FIGURA 04: Em Itati RS. O cineasta Paulo Tavares, direita, pesquisando para o projeto flmico "ltimo Terno", acompanhado por Juan Pablo, Egidio Tavares, alm do dono da casa, autor destaColeo Memrias da Figueira. Fonte: arquivo fotogrfico do autor.Sou atualmente tratado como sendo uma memria viva da histria do vale do rio Trs Forquilhas, talvez porque desde os primeiros dias, quando pisei neste vale escutei relatos sobre as mortes inaceitveis que teriam ocorrido nessa regio. Pessoas falavam baixo como segredando alguma coisa a respeito de um assunto proibido. Aparentavam serem prisioneiros de um passado mal resolvido e que projetava sombras escuras sobre o momento presente. Entendi que algum teria que dar ateno para essa situao e ajudar a espantar de vez os fantasmas dos crimes e atos nefandos que haviam sido cometidos e ocultados da justia, pelas autoridades, como se nada de mal tivesse acontecido.O inconformismo de Ivo BaianoA minha ateno foi aguada pelas palavras de inconformismo de Ivo Melo de Oliveira - o Ivo Baiano, as lembranas de Lidurino Barroso Menger, as historinhas de Octavio Becker. Em muitos relatos surgiam depoimentos num misto de vergonha, de medo e de sentimentos traumticos. Alguns procuravam esconder os vnculos de parentesco que tinham, com os eliminados como bandidos.

Ivo Baiano me surpreendia quando insistia:- Aconteceram assassinatos praticados depois de uma anistia concedida, e houve a prtica de injustia, no passado deste nosso povo, em 1898.

Sempre cauteloso procurei captar a confiana deles, desejando, como cura dalmas, lev-los a desabafar os sentimentos retidos, escondidos, abafados, durante tantos anos, e que passaram de uma gerao para outra.

Aos poucos, veio tona, uma triste histria de assassinatos mltiplos encobertos sob um manto de justia. Junto, veio tona tambm a angustia de mais de uma dezena de famlias que tiveram que chorar sua dor e de prantear seu luto s escondidas, para no serem estigmatizados como descendentes de bandidos vis e perigosos que, entretanto haviam sido colocados sob o manto protetor de uma anistia.

Algumas coisas eu jamais poderei revelar, pois me foram concedidas sob o sigilo da confisso. Outros relatos, porm foram transmitidos com a garantia de apenas no revelar o nome do depoente. No entanto, encontrei tambm pessoas que fixaram um prazo, um tempo definido, para revelar seus depoimentos. Mas, todos eles foram unnimes em solicitar que aguardasse o tempo certo, quando eles no estivessem mais nesta existncia terrena, para ento ser transmitida toda essa triste histria.

Devo a todos eles a minha gratido no s pelos dados fornecidos, como fonte da tradio oral, mas tambm pela coragem e disposio para revelarem suas histrias. Concedo destaque para Alberto Schmitt, Joo Nascimento, Eugenio Bobsin, Joo Jac Mauer, Ivo Melo de Oliveira, Vicente Pereira de Souza, dentre outros.

Quando chega a tempestadeA Sndrome do Ninho Vazio pode ocorrer em diferentes circunstncias e se aplica normalmente o termo para aquela hora quando os filhos j cresceram, estudaram, casam e saem para construrem o seu prprio lar. Para os pais a casa esvazia e nessa situao que tende a se estabelecer esta sndrome do ninho vazio.

Algo semelhante ocorre quando pessoas morrem e deixam um espao vazio no ambiente familiar e social.

Na Colnia de Trs Forquilhas, para as famlias federalistas, no foi exatamente uma sndrome, porm um trauma pela perda e do vazio nos lares onde chefes de famlias foram repentinamente arrancados do convvio familiar, assassinados e, na pior das hipteses, sob a alegao de serem bandidos e proscritos, procurados pela polcia.Estabeleceu-se naqueles lares um sentimento crnico de vazio ampliado por um clima de rejeio vindo da sociedade.

Entre os descendentes dos federalistas assassinados, surgiram casos de crianas e jovens descritos como temperamentais, e um tanto neurticos com dificuldades para o relacionamento social.

Quando chega a tempestade ela pode, portanto vir tambm na forma da perda de um ente querido, mais ainda quando de modo trgico e inaceitvel. Porm pode tambm vir atravs do flagelo de epidemias ou de catstrofes naturais, como foi o caso da enchente de 1897.

Nessas horas quando chega a tormenta avassaladora, quando os cus parecem desabar sobre a cabea de uma famlia, mais importante se torna a assistncia espiritual, as oraes, as preces e os encontros para o culto divino e o ouvir da Palavra de Deus.

Em Trs Forquilhas, enchente, epidemia e assassinatos vieram aos borbotes, quase juntos, entre 1895 a 1899, encerrando o sculo XIX para muitos com traumas e o vazio.

Em meio a isso tudo a VIDA CONTINUA e tende a chamar de volta a esperana e da expectativa por um futuro que volte a ser bom e feliz.

Como chamar de volta a esperana com a promessa de um novo comeo?

Surgiu uma letra, sem constar o autor que reza assim:

Mataram Candinho e todos os seus comandados.

Ser que liquidaram o homem?No!

Ele no se perdeu naquela cova do cemitriode Arroio Carvalho. Ele ficou na memria dos que

Conheceram, seguiram e admiraram.

E, naquela noite fatdica do seu Ultimo Terno de

Reis ele depositara toda a sua confiana no

Deus-Menino e, certamente, porEle foi acolhido,

para entrar no Reino Eterno de nosso Senhor.O meu papel de atalaiaPassei a me considerar, no vale do rio Trs Forquilhas, no papel da atalaia, para ser voz daqueles que no tem vez.

A minha pregao, a partir de 1970, passou a ser um alerta veemente contra o imprio da impunidade, da arbitrariedade policiale do desrespeito vida humana.

Sou de opinio que, quando ningum mais reage contra o abuso da autoridade, contra a arbitrariedade ento tende a se estabelecer na sociedade, uma situao semelhante quela vivida pelos colonos de Trs Forquilhas, no ano de 1898.

Nesta obra revelo como, em 1898, os assassinatos, de fundo poltico, haviam se tornado em uma rotina lgubre.

Por algum tempo, parecia que as mortes no conseguiam mais mexer com a sensibilidade, nem dos membros da Igreja.Por isto preciso que haja a voz de atalaia, que alerta.Somente assim se evita, que o tecido social e poltico de um povo venha a se degenerar ou a se desestruturar por completo.

Convido-os para voltarmos ao ano de 1898, no vale do rio Trs Forquilhas. Mostrarei o momento, onde a autoridade policial, os lderes polticos e as lideranas eclesisticas da Colnia de Trs Forquilhas, chegaram ao ponto mais baixo de suas atitudes, afrontando por completo todos os valores ticos e religiosos.

J em 1897, sem o menor constrangimento, montou-se um verdadeiro palco teatral, para assassinar pessoas.

Em 1898 chegaram ao disparate de montar cenrios, colocando como pano de fundo, a solene Noite de Reis da tradio catlica e, noutro caso, a realizao de um culto evanglico da tradio luterana e, noutros casos, simples ciladas traioeiras. Deste modo, tanto luteranos quanto catlicos viram-se comprometidos nas armaes de cunho religioso, que foram montadas no vale do rio Trs Forquilhas, por adeptos dessas duas associaes da f crist.

Temos que ter, porm, um pouco de cuidado, em particular, ao querer classificar eventuais erros atribudos aos que nos antecederam na vida. Para eles, na situao em que viveram, talvez aquilo que fizeram representasse no momento, o correto.

Outra grande dificuldade que eu tenho para lidar com o problema do perdo, para tais casos de assassinatos que ocorreram no tempo ps anistia, no seio de uma sociedade j em vias de pacificao plena.

Como reconstituir, o que foi destrudo, pela matana? O morto no pode mais dizer a palavra de perdo, ao seu agressor.

A vida terrena, de uma pessoa, no pode mais ser trazida de volta, depois de eliminada.

O que dizer de crimes premeditados, que ocorreram fora do contexto de uma guerra ou de uma revoluo, de personagens que j haviam sido colocados sob o manto protetor de uma anistia concedida, quando, em seguida, se elimina, com frieza, os mesmos?

Nesta situao lembro do grande telogo Dietrich Bonhoeffer, martirizado pela sanha nazista, que, esperando a morte na priso, em 1945, soube dizer: - De bons poderes estou cercado. - Onde na ltima estrofe da poesia ele afirma:

De bons poderes vemo-nos cercados,De pensamentos, para o bem voltados,Deus est presente noite e dia,Assim certa hoje a sua companhia.Destacamos ainda que no volume anterior, em OS PELEADORES falamos guisa deConclusoque precisamos conhecer o nosso passado, mesmo que no possamos mais reescrev-lo j que o que aconteceu se foi e virou histria.

Quando digo que precisamos conhecer o nosso passado mais no propsito de conseguirmos fazer as pazes com ele. Poder algum querer me dizer: - Aquele no foi meu passado. Foi o passado de avs, que vivenciaram aqueles acontecimentos ou deles participaram.

verdade, foi o passado deles, porm por extenso, transformou-se em nosso passado, pois somos herdeiros de nossos antepassados e podemos estar carregando tantas coisas que deles recebemos, desde os nossos genes ou quem sabe at ideais, crenas e o modo de lidar conosco, com os outros e com toda a natureza que nos cerca.

Fazer as pazes com o passado significa conhec-lo e entend-lo, para compreender um pouco mais das motivaes que levaram estes e aqueles a fazer o que fizeram e evitar que venhamos a sofrer em nossa vida, hoje, o que ocorreu no passado, seja como indivduo, como famlia ou na situao coletiva de comunidade ou sociedade.

ITATI RS, no Stio da Figueira, no dia 14 de janeiro de 2014.

Elio E. Mller

Membro da Academia Virtual Brasileira de Letras

UM ATADE DIANTE DO SOBRADO

- Pai, venha ver o caixo que a enchente trouxe e o largou diante da nossa casa, foi gritando o menino Alberto, enquanto corria sobrado adentro.

Christovam Schmitt, encostou a pena sobre o tinteiro para verificar o que estava assustando tanto o filho. Tambm Antonietta Voges Schmitt, a esposa do escrivo, veio apressada e postou-se ao lado do marido.

Christovam falou: - Isso a o caixo do velho pastor, que sepultamos h mais de dois anos, no Cemitrio do Passo...

FIGURA 05: O atade do pastor Voges foi trazidopela enchente e largado diante do sobrado.

Fonte: gravura do arquivo fotogrfico do autor.

O caixo estava intacto, pois havia sido confeccionado com a melhor madeira de lei e podia resistir por dezenas de anos ao do tempo. Afinal fazia apenas um pouco mais de dois anos que ocorrera o sepultamento.

A enchente que se abatera sobre o vale nos dias 22 a 24 de setembro de 1897 atingiu com grande fora o Cemitrio do Passo, revolvendo muitas sepulturas.Assim que as guas baixaram, totalmente, comearam a chegar pessoas da vizinhana. Falavam sobre a amplitude dos estragos sofridos em lavouras, casas e com a criao, gado, cavalos, porcos e galinhas.

O primeiro a aparecer foi o vizinho Christian Barata com esposa e crianas. Ele parou diante do atade do pastor e comentou: - Vejo que o nosso velho pastor saiu da sepultura para ficar novamente conosco...Christivam Schmitt ficou srio e reclamou: - Barata, no brinque com isso!Eberhardt explicou: - No estou brincando, pois sei que as coisas ficaram muito feias para ns. Apenas me veio mente a lembrana do nosso velho pastor e como ele se colocava ao nosso lado para nos confortar e animar nos momentos difceis.Depois de uma pausa Eberhardt continuou explicando: - A enchente carregou a minha casa. Apenas sobraram alguns esteios que ficam apontando para as alturas...O escrivo quis saber: - Se a tua casa foi carregada pela enchente como que vocs se salvaram?

Barata foi explicando: - Estive muito atento e notei que essa enchente prometia ser desastrosa. As guas revoltas comeavam a lamber a porta de minha casa, peguei a minha mulher e os meus filhos e fomos nos abrigar em nosso engenho de cana que ficava num ponto um pouco mais elevado. Eu tambm sabia que esse engenho era bem mais resistente que a casa. Isso foi a minha salvao, bem como da minha famlia. A correnteza das guas pegou direto sobre a casa que foi se desfazendo pouco a pouco. Tivemos que ficar olhando como todas as nossas coisas iam sendo carregadas, os armrios, as camas, as nossas roupas e os nossos mantimentos. Mas no estou me queixando, pois felizmente estamos aqui com sade e vivos...Christovam Schmitt ouvindo esse relato imediatamente convidou: - Vizinho Barata, entre e se acomode em minha casa que temos lugar sobrando.

Christina Becker Eberhardt, a esposa do Barata no esperou por um segundo convite e empurrando as crianas foi entrando casa dentro, dizendo: - Obrigado senhor Schmitt pela acolhida pois que as minhas crianas esto quase mortas de fome.

Christina, desde menina, conhecia muito bem aquele sobrado, e foi se encaminhando direto at a cozinha sendo seguida pela dona da casa. Ela estava aflita em busca de po e leite para amainar a fome dos pequenos e que se podia ver escrita no rosto deles.

O atade devolvido covaSomente no dia seguinte tornou-se possvel o acesso at o Cemitrio do Passo. O escrivo tinha pressa para devolver o caixo do pastor Voges para a cova.

Reuniram-se apenas os familiares e alguns vizinhos para realizar este servio.

Enquanto isso Peter Feck, o veterano da Guerra do Paraguai, que passara a residir nas imediaes da igreja, foi avisado que existiam inmeros ossos humanos espalhados pelos potreiros e alguns presos em meio a galhos de rvores. Ele encangou os bois em sua carreta e foi pacientemente localizando ossadas. Chegando perto do local onde estivera a casa do Barata em meio s laranjeiras encontrou a maior parte dos ossos, muitos presos em meio aos galhos das rvores.

Feck brincou, dizendo: - Quem diria que o Barata ao invs de laranjas um dia chegaria a colher ossadas de mortos.

Os ossos foram empilhados sobre a carreta e recolhidos ao Cemitrio do Passo. Com a ajuda de vizinhos, Peter Feck abriu uma vala comum e nela recolheu tudo o que fora coletado.

Christian Eberhardt que passara a auxiliar nesse servio falou: - Afinal de contas, estes so ossos de cristos, que merecem todo o nosso respeito!Os supersticiosos logo comearam a espalhar: - O pastor Voges voltou1 para enfrentar o novo pastorzinho arrogante que desprezou o trabalho e o sacrifcio dos antigos.

Taquari ajuda flagelados

Carlos Leopoldo Voges Neto, residente em Taquari, quando soube da enchente, de imediato, buscou ajuda de amigos para socorrer Trs Forquilhas.

Eis o teor do seu apelo: O abaixo assinado, profundamente consternado com a notcia da medonha catstrofe que assolou sua terra natal, a Comunidade de Trs Forquilhas, no municpio de Conceio do Arroio, vem confiando nos sentimentos generosos que caracterizam os habitantes desta terra; pedir um auxlio, para minorar a desgraada situao a que ficaram reduzidas muitas famlias desta localidade. Com as constantes chuvas durante o ms de setembro, j o rio Trs Forquilhas estava crescido, quando nos dias 22 a 24 do mesmo ms, desabou sobre a Colnia um medonho temporal, que dentro de 24 horas, reduziu quase todos os moradores das margens do rio misria; mudando o leito, destruiu casas, plantaes, engenhos, rompendo pelo cemitrio, tal foi o furor, que este desapareceu por completo. Os pobres moradores trabalharam durante dias, para encontrarem pela margem, os corpos desenterrados pela fora d'gua afim de dar-lhes novo abrigo no seio da terra. S por um milagrede Deus no houve vtimas, mas grandes nmeros de chefes de famlias estendem hoje as mos caridade pblica, pedindo po para os seus desalentados filhinhos, pois que apenas lhes restam as roupas do corpo. Em nome das vtimas e da comisso encarregada de angariar donativos, antecipo os meus eternos agradecimentos. Taquari; 20 de outubro de 1897. Assinam: Carlos Leopoldo Voges Neto, Jacob Arnt, Leandro Ribeiro, Maria D'Escovar, Leovegildo Coutinho da Silva, Max Wchter, Manoel Lautert, Otto Rezlach, F. Lautert Filhos e W. Wenauth. Foram angariados 98$000 ris. (Fonte: Documento do Arquivo de Carlos Frederico Voges Sobrinho)O FIM DA REVOLUONo dia 23 de agosto de 1895 havia sido declarada a cessao das hostilidades blicas quando, na cidade de Pelotas, foi assinado o armistcio, dando um fim Revoluo Federalista. Foi depois de trinta e um meses de lutas e um saldo de mais de doze mil mortos, sendo talvez a metade pelo mtodo da degola, praticada por ambos os lados.Trs dias aps o armistcio aparecera um estafeta na Serra, com um comunicado urgente destinado ao Major Baiano Candinho. Todos os oficiais rodearam o chefe. Eles estavam curiosos, para saber qual seria a nova misso para eles.Baiano Candinho, na ocasio, leu o comunicado. Era apenas um lacnico aviso: < O armistcio foi assinado, em Pelotas, no dia 23 de agosto de 1895. A Revoluo acabou. Deponham as armas e cada qual retorne para a sua famlia e propriedade. A ordem de paz para todos >.O efetivo do Esquadro Josaphat no queria acreditar na ordem recebida. Devia ser algum engano, pois eles estavam ali com a fora plena, em condies de continuar a Revoluo. Como haveriam de terminar com o movimento revolucionrio se a ditadura castilhista ainda no havia sido derrubada?Candinho teve que falar energicamente explicando que no existia mais nenhuma possibilidade de continuar a Revoluo, porque em muitos lugares os efetivos maragatos haviam sido totalmente destroados. Ordenou que todos retornassem para as suas casas e lavouras ou ao trabalho tropeiro ficando definitivamente extinto o Esquadro Josaphat e, em consequncia os Pelotes Trs Forquilhas e Serrano.

Baiano Candinho, o comandante do Esquadro Josaphat, ele mesmo tambm desejava ir, agora, em busca da paz, para um lugar onde houvesse a possibilidade para reorganizar a vida familiar, para cuidar da criao dos filhos em companhia de sua companheira Maria Witt.Candinho decidiu retornar para o Alto Josaphat, recebera um tentador convite do Coronel Batista, para ser o capataz de uma das fazendas que este seu amigo possua no Cima da Serra. Candinho bem sabia que a sua esposa Maria Witt muito sofrera, nas diferentes situaes da Revoluo, com a vida errante do vaivm indo do Baixo Josaphat ao Alto Josaphat e vice versa. A famlia merecia receber ateno especial.

Candinho em busca de paz

Candinho soube que o seu amigo, padrinho de casamento e compadre Major Adolfo Felipe Voges permanecia agora muito mais tempo na Fazenda de Campo Bom, localizada na rea do Alto Josaphat.

Major Voges e Bina Rosina j havia constatado, fazia muito tempo, que ficar no vale do Rio Trs Forquilhas tornara-se arriscado, para aqueles que haviam sido marcados como adversrios e inimigos do castilhismo. Ele fora alertado pelo filho e pelos genros que o seu nome continuava presente numa lista de supostos inimigos dos castilhistas.

FIGURA 06: Major Adolfo Felipe Voges e Bina Rosina.Fonte: arquivo fotogrfico do autor.

Por isto o major dizia para os seus familiares e amigos: - Acredito que o final desta revoluo, no representa uma paz realmente assegurada para aqueles que ficaram marcados como sendo inimigos, Por isto aceito os conselhos e prefiro ficar quieto aqui no meu canto em minha Fazenda de Campo Bom, para reorganizar a minha vida.

Baiano Candinho e Maria Witt decidiram viajar at a morada de Major Voges e Bina Rosina, uma vez que os seus vnculos de amizade haviam sido estreitados nestes ltimos anos. Candinho desejava pedir por aconselhamento para o rumo que tambm ele poderia tomar.

O baiano e famlia foram recebidos efusivamente sendo instalados em um dos galpes onde havia todo o conforto para dormir, cozinhar e morar num cantinho de muita privacidade.

Os galpes serviam de dormitrio da peonada e por isto estavam aparelhados com trempes e locais para o fogo de cho, com chaleiras e panelas, utenslios apropriados para a vida campeira ou, em caso de necessidade, at serem levados pelos tropeiros nas andanas pelos caminhos, na conduo de tropas at o mercado distante.

Em cada galpo existiam tulhas, algumas contendo feijo e outras com farinha de mandioca. Havia charque disponvel e at alguns caixotes contendo rapadura e num canto, pipas com aguardente.

Candinho encarou o seu padrinho e compadre e comentou: - Os seus pees e tropeiros devem ser muito felizes, pois tem um patro temente a Deus, sempre hospitaleiro e caridoso com todos. Quando chego sua casa me sinto como se eu tambm fosse algum da sua famlia...Major Voges sorriu e chamando Maria Witt para tomar parte da conversa explicou: - Candinho lembre que a sua mulher Maria Witt, veio de uma fazenda onde o pai tambm tinha estes mesmos costumes com a sua peonada e tropeiros, dando conforto para os seus empregados. Apenas o pai dela no teve filhos homens de modos que Maria e suas irms, bem cedo, tiveram que entrar para a lida campeira. Sei das andanas delas at como tropeiras. Portanto nos dias que vocs aqui permanecerem, estaro em casa. Utilizem tudo o que aqui encontrarem, do modo que melhor lhes convier para preparar as refeies.

FIGURA 07: Maria Witt, esposa de Baiano Candinho, desde a infncia apreciava a vida campeira e a lida com cavalos e criao de gado, os pais dela s tiveram filhas, mulheres, que aprenderam a lida com

os cavalos e a boiada. Fonte: arquivo fotogrfico do autor.

Depois, Major Voges olhando para as filhas de Candinho comentou: - No ir faltar a ajuda de vossas filhas, moas j casadoiras e que devem ter aprendido da me, como preparar um bom almoo com o feijo, a farinha e charque que aqui esto ao vosso dispor.Maria Witt sorriu e olhando em torno, falou: - Eu considerava que o meu pai era um homem abastado. Porm vendo estas acomodaes destinadas para a sua peonada reconheo que a abastana dele no grande coisa diante deste conforto que aqui encontramos. O que aqui nos dado igual ao que os meus prprios pais nos concediam na vida, dentro de nossa prpria casa.

Major Voges revelou satisfao com o comentrio de Maria Witt, sabia que ela era bem sincera e voltando-se para Baiano Candinho, disse: - Peo que agora o amigo venha comigo at a minha casa, precisamos ter uma conversa bem em particular. Afinal ainda existe um risco que pende acima de nossas cabeas e pode desabar e ceifar nossas vidas...Os conselhos de Major VogesMajor Voges e Baiano Candinho seguiram at a varanda da casa principal, onde se instalaram em torno de uma mesa, para conversar. J estava ali pronto um chimarro e gua quente, que uma das serviais preparara, a pedido de Bina Rosina.

Enquanto a cuia ia para as mos de Candinho e depois para o major, o dilogo se estabeleceu. O Baiano desejava receber conselhos, tinha a sua propriedade no Arroio Carvalho no vale do Rio Trs Forquilhas e ali poderia tentar reorganizar a sua vida familiar. Em seguida informou de um convite tentador que recebera do seu amigo Coronel Batista, para servir-lhe de capataz numa de suas fazendas, no Alto Josaphat.

FIGURA 08: Candinho pede conselhos ao Major Voges.Fonte: arquivo fotogrfico do autor.

Major Voges sorrindo, falou: - Amigo Candinho, se conselho fosse to bom, ento no seria dado, mas seria vendido por um bom preo. Quem, pois sou eu para lhe dar conselhos, cada um sabe o que melhor lhe convm. Cada qual precisa se decidir e depois arcar com a deciso tomada. Por isto quero lhe falar daquilo que eu decidi fazer e daquilo que eu considerei melhor para a minha segurana e para garantir o bem estar da minha famlia. Vou lhe enumerar as escolhas que eu adotei como atitude sbia, para a minha existncia.Major Voges recebeu a cuia das mos de Candinho que acabara de sorver o chimarro. Agora seria a sua vez de tomar o amargo, mas ele no encheu logo a cuia, pois desejava concluir o assunto. Passou ento a enumerar: - Em primeiro lugar, para ns no bom permanecermos circulando no Baixo Josaphat, ali as autoridades de Conceio do Arroio ainda esto vidas de vingana contra a recente invaso da cidade deles. Eles se sentiram humilhados pelos maragatos. Como segundo ponto considerei ser necessrio buscar um lugar mais discreto e optei em viver aqui nesta minha fazenda do Campo Bom, at o final de meus dias, longe da poltica do vale do rio Trs Forquilhas. E voc Baiano, tem filhas e filhos j chegando idade de casamento e que querem organizar a vida deles longe dos resqucios de dios e de desavenas produzidos durante a revoluo.Agora Major Voges encheu a cuia e passou a tomar o seu chimarro, dando sinal que a sua conversa findara.

Baiano Candinho estava pensativo, escutando com grande ateno e ento passou a expor as suas ponderaes, dizendo: - Padrinho Adolfo Voges s posso agradecer pelas suas palavras, preciso confessar que estou rodeado de pessoas onde cada qual quer me dizer o que preciso fazer. Por exemplo, o meu compadre Frana Gross e o meu concunhado Luis da Conceio insistem que precisamos permanecer em nossas propriedades no Trs Forquilhas. O Frana j retornou para a propriedade dele, junto no Rio do Pinto. O Luis da Conceio seguiu com a famlia dele para a propriedade que ele adquiriu l no fundo do Arroio do Padre. O Luis est safrando, moendo cana e fazendo rapadura e acar mascavo.

Major Voges interrompeu a sorvida do chimarro e comentou: - Estes dois esto numa lista negra e correm risco de serem mortos...Baiano Candinho continuou: - Medo de morrer eles nunca tiveram e agora dizem que precisamos confiar na anistia, a qual os castilhistas nos concederam. Outra preocupao que me persegue pelos meus primos baianos Joo e Jos. No me canso de lembrar deles, so doutores em castrao de animais. Insistem em dizer de que somos benquistos pelos colonos e pelos criadores de gado que precisam do servio de bons castradores...Major Voges sorriu e comentou: - Concordo que esses dois so realmente benquistos e o servio que eles oferecem importante. Eu os traria aqui para a minha fazenda, caso eles tivessem interesse para servir nossos fazendeiros, aqui no Alto Josaphat. Confesso de que no aposto na benevolncia de lideranas polticas de Conceio do Arroio, pois sabido que eles continuam sedentos por vingana. A gravidade da situao reside nicamente no fato de vocs humilharam a populao da Comarca de Conceio do Arroio h pouco mais de meio ano...Candinho ficou srio, concordou, porm enfatizou: - O que se poder dizer para estes meus primos? Eles receberam a oferta e aceitaram terras oferecidas pelo velho Triesch. Para mim isto um sinal de que ele os quer ter por perto. As terras que eles ocuparam so terras nacionais, mas so terras deles, boas para a criao de gado e de cavalos.

Major Voges franziu a testa e enfatizou: - Sou muito franco e digo de novo e repetirei quantas vezes for necessrio, de que temo pela vida dos revolucionrios derrotados caso ficarem muito vista, fazendo figurao na crista da lomba.

Baiano Candinho notando a sincera preocupao do amigo, concluiu: - Diante destas suas consideraes eu decido, hoje, que vou ficar aqui no Alto do Josaphat, sei que estou fazendo a vontade da minha Maria e dos meus filhos. Ofertas de trabalho no me faltam mas escolho ser capataz do Coronel Batista. Haverei de cuidar de um pedao de campo no muito distante daqui. A proposta boa... L existe um bom galpo para servir de morada e ele permite que eu organize o meu prprio rebanho, de reses e de cavalos. A Maria est rindo sozinha, falando das campereadas que juntos ainda iremos enfrentar, com a famlia inteira, finalmente reunida.

Candinho conhece a Fazenda Campo BomCandinho e Maria Witt chegaram dizendo que iriam permanecer, no mximo, durante trs dias na Fazenda do major Voges. Porm o anfitrio os deixou to vontade que os dias correram rapidamente, a ponto de no notaram que j estavam ali, fazia uma semana.

Major Voges inventava atividades que envolviam os visitantes. Enquanto isto Bina Rosina levava Maria e filhas para as atividades de rotina na cozinha, onde eram feitas guloseimas, doces tanto de polvilho bem como de farinha, para serem servidas durante os dias das comemoraes natalinas de 1895, que se aproximavam.

Para Baiano Candinho o Major reservou atividades diferentes permitindo que o visitante o acompanhasse na vistoria do trabalho dos vaqueiros e pees da fazenda.

Seguiram a cavalo para a rea nordeste da fazenda, onde era mantida uma invernada para gado e cavalos. Depois seguiram rumo ao norte, onde podia ser visto gado xucro que ainda no pudera ser recolhido para os currais, para ser marcado. Ao norte, at mulas xucras corriam arriscas, procurando fugir do campo de viso dos dois cavaleiros.

FIGURA 09: No Alto Josaphat havia campo a perder de vista...Fonte: arquivo fotogrfico do autor.

Finalmente rumaram para o lado noroeste, onde podiam ser vistas cercas, que faziam a divisria dos campos abertos de criao de gado com uma rea de lavouras.

Baiano Candinho comentou com admirao: - O meu padrinho possui belas lavouras de milho, de feijo, de mandioca e vejo aquela enorme extenso de canavial!Major Voges revelou satisfao com este comentrio e explicou: - Aqui ns produzimos o suficiente para o nosso sustento dirio, na fazenda. Estas lavouras so cuidadas por dois colonos e familiares que eu trouxe de Trs Forquilhas. Eles me pagam com a tera parte da produo de feijo, milho, aipim e at cana. Por isto as minhas tulhas sempre esto cheias.

Candinho mostrou espanto e quis mais explicaes, perguntando: - O seu engenho tambm cuidado por esses colonos?Voges meneou a cabea negativamente e falou: - Do meu engenho eu mesmo cuido, com o auxlio dos meus pees. Produzo rapadura, acar mascavo e aguardente. Tenho o meu alambique e a cachaa que produzimos de primeira e tem colocao certa no comrcio de So Francisco de Paula. Eu preciso me capitalizar todos os anos para poder manter a fazenda em andamento e para pagar os meus pees e serviais.

Major Voges silenciou por um momento e depois continuou: - Produzimos a nossa farinha de mandioca e polvilho, pois a Bina Rosina no sabe viver sem os ingredientes para a confeco de doces e roscas de polvilho. Aqui em casa a rosca tem maior preferncia do que o po. Apenas para festas maiores e aniversrios so feitos pos, cucas, tortas e bolos.

A atividade que despertou maior ateno de Candinho foi a criao de gado. Ele fez muitas perguntas, desejoso de saber a respeito do valor que era pago para o trabalho de um peo de fazenda. Candinho explicou: - O Coronel Batista me deu a liberdade para contratar meus prprios pees, caso for necessrio, para melhor cuidar da fazenda.O assunto despertou interesse de Voges que perguntou: - O que aconteceu que o Coronel Batista no entregou essa fazenda para ser administrada pelo Capito Luna e pelo tenente Valdo Crespo? Sempre me deu a impresso que ele estava dando preferncia para a presena deles, aqui no alto do Josaphat.

Candinho fez um muxoxo com as bochechas e se queixou: - Acredito que o Coronel finalmente notou o erro que cometeu ao dar preferncia para esses dois oficiais que desertaram da Brigada Castilhista. Ele notou que essa gente no tem profisso, no entendem da lida com gado e no gostam de pegar no trabalho pesado.

Voges interveio: - So dois homens que no sabem fazer outra coisa do que servir na Brigada, com um soldo, farda, cama e comida mensais garantidos, faa sol ou chuva...Candinho, com um olhar marcado pelo desconforto que o assunto lhe causava, explicou: - Sempre alertei o Coronel Batista sobre o carter desses dois. Mas ele no quis acreditar em mim. Agora ele notou que o Capito Luna e seus Brigadas no sabem ser ordeiros para trabalharem numa fazenda. Eles chegaram ao desplante de recusar a oferta do Coronel Batista e explicaram que preferiam tomar um rumo prprio, para serem livres, sem nenhum patro. Luna levou essa gente dele at a divisa com Taquara, onde querem viver de biscates, porm praticam falcatruas e at promovem assaltos e pilhagens em propriedades de colonos humildes e indefesos.Major Voges interrompeu: - Mas isso muito ruim, para voc...- Se ruim. - Disse Candinho. - Essas arruaas deles me prejudicam, pois se fala que so os baianos que atemorizam os colonos de Taquara, Rolante e vizinhanas. At o subdelegado de So Francisco de Paula j foi comunicado, com a queixa que o bando dos baianos continua fazendo malvadezas...Major Voges mostrou-se muito interessado nesta conversa e falou: - Caso isto ocorresse na Colnia de Trs Forquilhas, em outros tempos, quando eu era subdelegado, j teria realizado diligncias para levar Luna, Crespo e demais para a priso...Candinho retrucou: - Eu bem sei disso, pois eu, o Luis da Conceio e o Frana integramos a sua Escolta Policial e ajudamos a firmar a paz e a segurana em toda a nossa regio. Porm digo que jamais tivemos que combater brigadas desocupados ou andarilhos desordeiros, que fogem do trabalho.- Isto verdade, pois jamais permitimos que o malfeito pudesse se instalar na Colnia de Trs Forquilhas. - Concluiu Major Voges.

Ao entardecer ambos retornaram da longa cavalgada, ansiosos para novamente usufrurem o aconchego da sede da fazenda.

MORTE TRGICA DE MARIA WITT

O trabalho de Baiano Candinho, na condio de capataz de fazenda, ia muito bem. Ele tinha muito jeito para lidar com os pees. Todos acatavam as suas ordens, prontamente.

FIGURA 10: Mapa da regio serrana que era dominada pelos

Federalistas aps 1893. Fonte: Croqui de Alberto Schmitt.

Maria Witt procurava ajudar em tudo o que lhe fosse possvel. Ela sonhava um dia ter sua prpria fazenda com criao de gado, cavalos e mulas, semelhante ao primo Johann Hoffmann. Ela fazia questo de sair a cavalo, com o objetivo de recolher bezerrinhos extraviados ou recm nascidos. Estes seriam deles e seriam o incio da manada.

Numa destas sadas, ela fez algo que nem peo experiente faria. Resolveu trazer tambm a vaca xucra, me do bezerrinho. Era um procedimento de alto risco, mais ainda, pelo fato que ela havia amarrado o lao, na sela, na inteno de ter o animal sob controle total.

evidente que a vaca passaria a resistir ao lao. O animal xucro procurava um meio de fuga, corcoveando.

Maria, com o bezerro no colo, no tinha a mnima liberdade, para controlar corretamente o lao que prendia a vaca sua cela.

Ao chegar num terreno mais ngreme, com muitas pedras soltas, a montaria escorregou. O bezerro caiu de seus braos e a vaca se desembestou.

FIGURA 11: Maria caiu de mau jeito. Caiu de ponta cabea, quebrando o pescoo.Fonte: arquivo fotogrfico do autor.

Esse fato ocorreu em 09.02.1896. Portanto, no fazia nem seis meses que eles estavam nessa lida.

O abalo foi muito grande, para Candinho e filhos. Desconsolado ele levou a esposa morta at o galpo que lhes servia de morada, para que ala pudesse ser ali velada.

Candinho lembrou-se ento do seu padrinho e compadre Adolfo Felipe Voges e desejava ter o seu apoio. Enviou um peo para levar a notcia desta tragdia, para o morador da Fazenda Campo Bom.

Major Voges no se encontrava, pois viajara at Trs Forquilhas para uma festa que o seu filho Carlos Frederico organizara no Stio da Figueira.

Candinho no recebeu assim o apoio desejado, ajud-lo a conceder um sepultamento condigno para a fiel companheira Maria Witt. O sepultamento foi simples, sem pastor ou padre e, portanto, sem rezas, realizado num pequeno cemitrio no muito longe dali, no alto da Serra.

Major Voges leva consolo para CandinhoQuando o Major Adolfo Felipe Voges retornou para sua fazenda no Alto Josaphat logo soube da morte trgica de Maria Witt. Ele preparou a sua charrete puxada por apenas um cavalo e, em companhia de Bina Rosina seguiram at a morada de Baiano Candinho.

O quadro encontrado, no galpo que servia de morada do baiano, era um misto de tristeza mesclado com a satisfao pela visita que vinha chegando.

De braos abertos Candinho aguardava que o casal de visitantes viesse at a porta do galpo, onde ele se plantara, rodeado pelas filhas e filhos.

O baiano j havia sido alertado por um peo prestativo que certamente escutara os quero-quero anunciando a passagem de algum pela trilha do campo que conduzia at a fazenda.

Esses quero-quero, aves valorosas, smbolos de vigilncia, para anunciar quem vem ou quem vai e que, assim, merecem o reconhecimento do gacho campeiro.

FIGURA 12: Gravura do artigo O comportamento interespecfico" de defesa do quero-quero, (Molina, 1782), publicada naRevista de Etologia, verso impressa ISSN 1517-2805, v. 4 n. 2 So Paulo dez. 2002.O encontro de Major Voges e Candinho foi permeado de sinais de profunda amizade que estes dois lderes haviam forjado, ao longo dos anos.

O baiano chamou a filha mais velha e pediu que ela preparasse um chimarro, costume que se arraigara na vida dessa gente e que servia como sinal de acolhida, fazendo, parte da boa hospitalidade gacha.

Em instantes o chimarro esteve pronto, o fogo de cho estava aceso no galpo e logo a cuia foi de mo em mo.

Enquanto eles assim chimarreavam, Candinho que j recebera as condolncias trazidas pelo seu padrinho e compadre, sentiu-se vontade para falar de sua dor e desventura pela morte prematura da esposa. Passou a contar detalhes sobre a morte trgica, ele vinha, naquela hora, logo atrs da esposa tambm trazendo no lao um animal xucro j adulto, nascido extraviado no campo, que precisava ser marcado.

Falou, por um longo tempo, sobre a culpa que ele sentia por ter permitido que Maria concretizasse o intento de levar alm aquele bezerrinho recm-nascido tambm a me dele, uma vaca xucra. Candinho explicou: - Eu devia ter lembrado que a minha Maria j era mulher que perdera h muito tempo a sua agilidade campeira, de montar, laar e cavalgar. Porm ela se comportara, naquele dia, como uma jovem que fora um dia, quando com as irms acompanhavam o pai, na lida com cavalos e gado. Ela havia sido uma exmia cavaleira, mas agora j era me de diversos filhos e ficara com um corpo bem mais pesado...

Major Voges procurou orientar o amigo e por isso o interrompeu, dizendo: - No se culpe compadre Candinho, acredito que temos um destino traado para a nossa existncia. Ela escolheu voltar para essa vida campeira, cheia de riscos, sonhando com a vossa felicidade que ela pretendia ajudar a construir.

Candinho murmurou: - Isso verdade...E o Major continuou: - Creio que precisamos proporcionar consolo para vocs, pai, filhas e filhos os quais sentem o vazio que essa me prestimosa deixou em vosso meio. Sugiro que seja encomendado um culto, precisa ser solicitado ao novo pastor da nossa igreja do vale de Trs Forquilhas. Se o compadre me autoriza falarei com a sua sogra Catharina Hoffmann Witt, para em nome dela, seja feita a solicitao ao pastor, enquanto ns todos tambm iremos a igreja, participar da cerimnia fnebre, mesmo que atrasada, vos dar conforto. E ainda digo que a Maria merece receber as nossas oraes e preces e uma homenagem fnebre que lhe faltou no dia do sepultamento. Pedirei ao pastor para que ele registre este bito em seus livros, pois a falecida era batizada em nossa igreja e, acredito que vocs ainda participam da mesma, at hoje.

Candinho mostrou-se emocionado com as palavras ouvidas e lembrou que fazia quarenta dias que o seu sogro Carl Witt tambm falecera. Eram, portanto, duas mortes seguidas nesta famlia dos Witt, primeiro o pai e agora a filha.

Candinho autorizou ao Major para fazer todos os contatos necessrios, tambm com a sua sogra, os cunhados, as cunhadas e o numeroso parentesco familiar da falecida.

O culto pela finada Maria WittMajor Voges e Bina Rosina foram, naquele mesmo dia, at a morada da viva Catharina Hoffmann Witt, no Alto Josaphat. O casal se disps a lev-la at o vale de Trs Forquilhas para uma visita ao pastor, visando marcar um culto especial de oraes, pela falecida Maria Witt e para solicitar a anotao desse bito, no Livro do Registro Eclesistico.

A princpio a viva chorou muito, depois, foi se recompondo aos poucos e falou: - Aceito a oferta de vossa ajuda, com muitos agradecimentos.

A viva preparou algumas roupas e pertences que lhe seriam necessrios e acompanhou o casal Voges at a Fazenda Campo Bom. De l a viagem teria que ser em lombo de cavalo, pois a charrete no poderia transitar pelas trilhas estreitas e perigosas da descida da Serra do Pinto.

Dez dias depois deste esforo do Major Adolfo Felipe Voges j se realizava o culto no templo protestante de Trs Forquilhas. A igreja mostrou-se pequena diante do grande comparecimento da numerosa famlia Witt, unida com fortes laos com os Hoffmann serranos e os Hoffmann do vale.

FIGURA 13: O templo mostrou-se pequeno

para tanta gente, da numerosa famlia Witt.

Fonte: arquivo fotogrfico do autor.

Enquanto a viva Catharina, me da falecida Maria Witt, se postava diante do plpito, rodeada pelas demais filhas, netos e familiares, o vivo Baiano Candinho se manteve num canto, distante, parecendo deslocado de tudo o que ali se fazia e dizia. Porm no era apenas ele, mas muitos outros que se sentiam colocados margem nesse momento litrgico.

O fato que o novo pastor no admitia que nos seus cultos se utilizasse outra lngua que no fosse a germnica. Com isto Candinho, seus primos, ali tambm presentes e diversos serranos, pessoas que no dominavam o alemo, estavam colocados margem.

Entretanto, Candinho, encerrado o ato religioso, dirigiu-se ao major Voges para agradecer, dizendo: - Compadre, sei que para a minha sogra e para as minhas cunhadas este momento de prece do Pastor Lemo foi de muito valor. Diga-me qual o valor que devo pagar ao pastor, pelo servio dele?Major Voges respondeu: - Deixe comigo este assunto, pois ainda no sei como vocs havero de participar nesta Comunidade. Por enquanto, s sei que o novo pastor trouxe leis novas e diferentes para o trabalho pastoral na nossa Igreja...Candinho reuniu os filhos e retornou para a sua morada no Alto Josaphat.

Quando passavam diante da antiga morada deles, no rio Carvalho, Candinho falou s filhas e aos filhos: - Se fosse por mim eu j permanecia por aqui agora mesmo... Mas temos que antes cuidar ainda de acertos com o Major Batista e com os meus pees para deixar tudo pago e resolvido. Digo que ainda haveremos de voltar para c. Espero que seja logo...O CASAMENTO DE AMBROSINACom a morte de Maria Witt, as filhas maiores de Baiano Candinho, a Ambrosina e mais a Angelina, assumiram a tarefa de cuidar das irmzinhas menores, particularmente da pequena Ernestina, na expectativa que o pai conseguisse reorganizar sua vida familiar.

Candinho precisava continuar no Alto Josaphat por algum tempo, pois era, ainda, capataz de uma das fazendas do Coronel Batista e tambm por possuir um pequeno rebanho de reses, que ele planejava deixar aos cuidados do amigo Johann Hofmann.

Mas o que seria do casamento da Ambrosina, que j havia sido marcado pela finada Maria Witt para o dia 27 de julho de 1896?

Candinho decidiu que a cerimnia e inclusive uma singela festa, deveriam ser realizadas, de qualquer forma, apesar da dor e da tristeza motivados pela ausncia de Maria Witt. Pediu a ajuda aos companheiros da Guerra do Paraguai, o Baiano Tonho, o Jos Baiano e o Joo Baiano. Eles teriam que solucionar o problema do abate de uma novilha para fazer um bom churrasco.O casamento de Ambrosina e Joo Hoffmann foi realizado na data prevista, em 27.07.1896, porm com a festa transferida para a fazenda do noivo, tambm radicado no Alto Josaphat. O noivo teve que avisar o Pastor Lemo para esta alterao do local da cerimnia religiosa.

A satisfao de Baiano foi grande, ele sabia que a realizao desta celebrao religiosa protestante fora planejada por Maria Witt, apesar de saber que os servios do novo pastor estavam sendo realizados exclusivamente em lngua alem. Afinal, ela dominara perfeitamente esta lngua. J a maioria dos convidados, serranos, amigos de Candinho no entendiam absolutamente nada do que o pastor falava.

Candinho convidara alguns lderes e comerciantes da Colnia de Trs Forquilhas, dentre eles o velho Joo Pedro Jacoby Jnior, proprietrio do sobrado da Boa Unio. Este, no entanto, comunicara estar enfrentando problemas de sade, porm, mesmo assim enviara um valioso presente para os noivos.

Compareceram todos os integrantes do antigo Estado-Maior do extinto Esquadro Josaphat: o Luis da Conceio, o Frana Gross, os filhos e genros do falecido Joo Patrulha, o Baiano Tonho, o Jos Baiano e o Joo Baiano, a maioria tambm residente no vale do Trs Forquilhas.

FIGURA 14: Johann Hoffmann e Ambrosina casaram.Fonte: arquivo fotogrfico do autor.

Baiano Candinho foi cumprimentado e festejado por todos, no s por ser o pai da noiva, mas continuava sendo merecedor da admirao dos serranos, que o viam como homem de valor, que soubera fazer a Revoluo, sem partir para a matana de adversrios, ainda como um bom Comandante que conseguiu impor o respeito, a obedincia e a lealdade destes comandados.Aps a cerimnia religiosa da beno matrimonial, Candinho chamou Major Voges para um lado. Ele precisava receber da ajuda de algum em condies de servir de intrprete. Ele desejava ter uma sria conversa com Pastor Lemo. O caso que a filha menor de Candinho, a Ernestina, j com trs anos de idade, precisava ser batizada. A Revoluo atrapalhara os planos que a falecida Maria Witt fizera, para que o sacramento fosse celebrado no templo, na sede da Colnia de Trs Forquilhas.

A conversa com o pastor foi mais difcil do que se pudesse imaginar, pois o mesmo passou a reclamar de Candinho, dizendo: - Voc no praticante da f luterana nunca o vi em nosso templo, para participar de algum culto...

Candinho se desculpou, alegando: - O andamento da Revoluo impediu que eu levasse a minha Maria e filhos para frequentar a igreja. A Colnia esteve, por longo tempo, dominada pelos castilhistas, com a presena de um grupamento de policiais, da Brigada Militar de Porto Alegre que se colocou minha caa...

Candinho fez uma pausa procurando alguma desculpa convincente e explicou: - Alm do mais, mesmo que eu pudesse ter ido, para assistir algum culto do senhor, pouca serventia teria encontrado, pois no entendo nada da lngua alem... O velho pastor Voges, para atender nossa dificuldade, sempre nos atendeu com explicaes na nossa lngua nacional...O pastor entrou ento numa discusso com o Major Voges, reclamando: - Esse homem tem a coragem de me fazer uma crtica por causa da minha exigncia pelo uso exclusivo da lngua alem, na realizao dos cultos, de bnos matrimoniais e de ofcios fnebres?Major Voges notando o impasse que poderia se estabelecer nessa conversa, desistiu de traduzir as palavras do pastor, visando poupar o baiano que poderia sentir-se ferido em seus brios. Voges pediu licena ao pastor e foi procura da sogra de Candinho, a viva Catharina Hoffmann Witt.

Voges retornou em companhia da viva e insistiu: - Pastor, aqui est a viva Catharina, sogra do baiano e, ela membro praticante da nossa igreja de Trs Forquilhas. Assim sendo, acredito que ela poder fazer a solicitao deste batismo, j que se trata de uma netinha dela.

O pastor notou a artimanha utilizada por Voges e no teve como manter as recriminaes que ele comeara a fazer ao baiano.

A viva Catharina Witt no presenciara o dilogo anterior e ingenuamente se postou diante do pastor, dizendo: - Sim, eu peo e insisto que a minha netinha seja batizada em minha igreja. O meu genro jamais colocou impedimento para batizar os seus filhos em nossa igreja, ele foi um grande admirador e um amigo do nosso velho pastor Voges. E, alm do mais, a minha filha que to tragicamente foi arrancada do nosso meio, j havia falado comigo, no desejo de marcar o batismo da pequenina, assim que as coisas estivessem mais tranquilas em nossa Colnia. O pastor interrompeu as palavras de Catharina, puxou a sua caderneta de anotaes e contemporizou, dizendo: - Frau Witt, se a senhora quem tanto deseja esse batismo da menina, ento irei marcar uma data agora.

O pastor verificando os seus apontamentos constantes na sua caderneta, falou: - O batismo ser no dia 9 de fevereiro de 1897. Porm este sacramento ter que ser realizado em nosso templo, na igreja de Trs Forquilhas.No fora exatamente o que Candinho quisera, pois pretendia que o culto fosse realizado no Alto Josaphat. Lembrou, entretanto que a sua finada esposa sempre expressara o desejo de batizar todos os filhos no templo da Colnia, onde ela fora batizada e onde casara com ele, diante do velho pastor Voges.O esforo do Major Voges, na inteno de proporcionar ao Candinho um retorno, para um entrosamento na Comunidade Protestante foi de grande importncia neste momento difcil.

Dentro do possvel, um novo convvio de Baiano Candinho, na Igreja, recebia condies de ser desenvolvido, como nos velhos tempos. Afinal, o baiano fora, no passado, o homem que mereceu a confiana do prprio pastor Voges, encarregando-o de fazer a segurana e para garantir a paz e a tranquilidade, nas festas da igreja?

Enquanto o assunto do batismo da pequena Ernestina era resolvido satisfatoriamente, chegou Johann Hoffmann, intrometendo-se na conversa. Ele colocou a mo sobre o ombro de Baiano Candinho, dizendo: - Estou muito feliz com este teu plano para estabelecermos uma sociedade, para a criao de gado e cavalos, aqui no Alto Josaphat. Ainda haveremos de ter um grande rebanho, contando com a ajuda dos nossos filhos.

A conversa de Hoffmann com Candinho era na lngua nacional e o pastor notando que o que lhe cabia fazer estava resolvido, chamou Major Voges para um lado, perguntando: - Essa menina que haveremos de batizar ficar aos cuidados da irm Ambrosina que casou hoje?Voges respondeu: - Acredito que sim, pois pelo que eu soube, ela, aps a morte de Maria Witt, passou a desempenhar o papel de me desta irmzinha.

A morte desconcertaDe um modo geral, a morte, quando ela atinge o seio de uma famlia, causa diferentes sentimentos. O primeiro sentimento possivelmente o da perda, ou ento o do vazio.

A morte quando arranca do seio da famlia um ente querido, causa a sensao de estar abandonado por Deus e por todos, e pode despertar atitudes inesperadas, dentre elas a no aceitao e a revolta e a forte sensao de solido.

Mas como no aceitar algo que ocorreu e est a como um fato real e no mais poder ser modificado?

A sofrimento causado pela morte desnorteia e rouba, s vezes, o prprio sentido da vidaPara Candinho a morte de Maria Witt foi pior que um terremoto. Sentiu-se desnorteado e no mais quis saber do trabalho de capataz da fazenda do Coronel Batista. O sonho de terem a prpria fazenda acabara, desmoronado com a perda da companheira de vida. Nada mais lhe fazia algum sentido, naquele lugar.

Candinho se queixava: - Somente agora noto a importncia que a Maria Prvola teve na minha vida. Ela me fez sonhar e me fez acreditar que ns poderamos viver em paz, aqui no Alto Josaphat.Tudo o que Maria Witt teria gostado de ouvir em vida, Candinho externava agora em seus desabafos junto aos parentes e vizinhos.

As tragdias levam os homens reflexo e os acordam, mas, igualmente os desnorteiam e os deixam confusos. Por um lado Candinho despertara reconhecendo com toda a clareza o valor de companheira que ele acabara de perder. Por outro lado, ele no via mais sentido para os planos que juntos haviam estabelecido.

Ele se queixava: - O meu galpo e lar ficou vazio e sem alegria... No posso ficar aqui...Candinho reunia-se seus filhos e comentava: - Quanto eu gostaria de poder pisar na casa do velho pastor Voges e de Dona Elisabetha ou do Major Voges de Bina Rosina e pedir pelos conselhos deles! O que farei da minha vida? De que modo haverei de criar os meus filhos menores?A lembrana do velho pastor Voges despertou nele a vontade de retornar ao vale do rio Trs Forquilhas como se isto fosse capaz de trazer-lhe, de volta, os dias de felicidade e o prprio passado.

Ele reuniu os cavalos, as reses e os bezerros que lhe pertenciam, conduzindo-os at a fazenda de Johann Hoffmann. Acertaram que a criao desses animais seria feita em parceria, at que Candinho conseguisse encontrar um novo rumo para a sua vida.

Candinho desceu a Serra, levando os filhos e filhas menores, seis cavalos, duas vacas leiteiras, uma junta de bois, e cinco reses. Voltou para o seu antigo rancho, no Josaphat. Ao chegar, comentou com seus vizinhos, que ali ele vivera os melhores momentos de sua vida. Ali vivera os amores com Maria Witt e o nascimento dos filhos e das filhas.

As filhas casadas j tinham seguido seu rumo, constituindo suas prprias famlias, Estas j no lhe traziam preocupao. Porm o que haveria de ser dos menores, diante da secura de um lar sem a presena de uma me?

O seu retorno parecia muito mais como sendo uma tentativa desesperada para reaver o passado que lhe fugira, de reencontrar o tempo de grande felicidade que ali lhe fora dado viver ao lado de Maria Witt.A sua chegada ao baixo Josaphat apesar do seu desconsolo, no deixara de ser festiva. Os antigos companheiros o esperavam, muitos tinham suas propriedades, dentre eles o seu compadre Frana Gross e numerosa famlia.

Os primeiros dias de Candinho, na nova morada, foram de muito trabalho. Consertou o rancho e os currais. Os filhos o ajudaram em tudo o que lhes fosse possvel. Os amigos tambm o visitavam e auxiliavam. Cada um participava com um pouco, ajudando a consertar taipas ou as cercas dos currais.

Eles observavam a tristeza de Candinho e aconselhavam que ele procurasse uma nova companheira. As filhas, nessa idade, no podiam ficar sem me. Ele cortava tal assunto. Argumentava que no seu corao no existia nenhum lugar para outra mulher. Os amigos, porm insistiam e alegavam que isto era apenas a dor do momento. O luto era assim mesmo, porm ele devia lembrar que a sua vida no terminara e, era preciso cumprir o compromisso de pai, para com as filhas e filhos menores, carentes de ateno materna.

Candinho, para encerrar o assunto, sempre dizia a mesma coisa. Prometia: - Eu vou pensar no assunto, mais tarde.

DIFICULDADES DO PASTOR LEMOA situao da Colnia Protestante de Trs Forquilhas, depois da morte de Pastor Voges, ocorrida no final de 1893, passara a apresentar rpidas transformaes, nos mais diferentes aspectos. Tambm na rea eclesistica, tudo mudaria completamente.

O novo proco, conhecido como Pastor Lemo, vindo em fins de 1894, fizera todo o empenho para apressar uma mudana. Procurou definir as caractersticas da Comunidade, reclamando que estaria faltando uma melhor definio no tocante a uma expresso confessional luterana. Props que houvesse a inscrio de todas as famlias que desejassem constar como membros.

Pastor Gottfried Schlegtendal procurou implantar uma ordem semelhante vigente nas Comunidades Luteranas da Alemanha. Passou a exigir frequncia regular aos cultos e um ensino confirmatrio mais rigoroso.

O maior rigor do novo pastor, entretanto, se referia prtica da lngua alem. S deveriam ser confirmados os jovens que se dispusessem a aprender a lngua alem.

A Escola da Comunidade passara a ter somente o ensino da lngua alem e voltada ao ensino confirmatrio.

Enquanto isso, aps 1895, ano aps ano, os padres jesutas intensificaram as visitas2, se antes apareciam uma vez por ano, agora, eram quatro vezes mais intensas as visitas.

Os jesutas iniciaram um trabalho pela margem, em torno da Colnia. No Ancoradouro dos Diehl e no Chapu, passaram a oferecer celebraes de Missas, em residncias e sem cobrar quaisquer taxas de servios.

O assunto das Missas, foi levado ao conhecimento de Pastor Lemo. Ele reagiu, de imediato. Apresentou medidas disciplinares a serem aplicadas s famlias que aceitassem a presena de algum padre em suas casas. Ele afirmou: - O mal precisava ser cortado pela raiz!

Desta forma, o pastor desejava inibir todo o chefe de famlia que acolhesse um padre, para realizar uma Missa, no lar, o mesmo no mais poderia atuar como padrinho de batismo na comunidade evanglica.

Reacenderam-se as discusses. Uns entendiam que o pastor jogava fora de vez, essas famlias. Outros entendiam que tais famlias deviam ser excludas de vez.

Terreno para novo cemitrioCom a grande enchente de 1897, o Cemitrio do Passo, da Igreja Protestante, que fora o nico Cemitrio da Colnia, ficou seriamente danificado, reduzido praticamente metade do seu tamanho. Os caixes, ossos e esqueletos, espalhados pelas margens do rio e pelas lavouras tiveram que ser devolvidos terra, de forma precria. No havia, porm, nenhum espao para covas futuras. Era necessrio encontrar, com urgncia, um novo terreno.

A procura de uma rea de terra para instalar um novo Cemitrio na Vila virou uma verdadeira novela. Ocorreu uma sensvel m vontade de eventuais doadores, para definir uma nova rea.

Carlos Frederico Voges Sobrinho se disps a ceder uma rea de terras da propriedade que ele adquirira do seu irmo Frederico3.

Os integrantes da Diretoria da Comunidade tambm entraram em choque com outros grupos de membros, a respeito de uma localizao adequada de um novo Cemitrio. Desejavam um local mais prximo do templo.

Alm disso, surgiram outras discusses e desavenas as quais, nada tinham a ver com a localizao de um novo cemitrio. As famlias de maragatos, que haviam sido declaradas como bandidos aproveitaram o momento para apimentar ainda mais as discusses. Afirmavam que os castilhistas receberam, o que bem mereciam. Realmente, os castilhistas protestantes haviam negado sepultura para alguns dos ltimos revolucionrios mortos. Apesar de serem membros da Comunidade no haviam recebido espao no Cemitrio do Passo. E, agora eles mesmos ficaram com pouco cho, para sepultarem seus prprios mortos. Os maragatos diziam: - Tudo isto s pode ser um castigo divino.

A famlia Witt, bastante numerosa, espalhada desde o arroio do Padre at a localidade de Limeiras, tambm tidos como, secretamente, ligados aos revolucionrios federalistas, igualmente decidiram organizar o prprio Cemitrio. Ali eles haveriam de acolher todas as pessoas, sem restries de cor, credo ou partido poltico. Mais tarde, Michel Witt, fez a doao desse cho do Cemitrio dos Witt, para ser administrado pelos diretores da Igreja.

No Arroio Carvalho tambm existia o Cemitrio de Baiano Candinho onde alguns dos revolucionrios mortos durante a Revoluo haviam sido sepultados.

Assim que o pastor anunciou que iria deixar a Comunidade, o Presbtero Joo Jacob Mauer Senior apresentou-se para doar uma boa rea de terra, para instalar um novo Cemitrio, no longe do templo.

Pastor Schlegtendal transferido

Pastor Lemo foi se desgastando muito com essa questo da escolha de uma nova rea para a implantao de um Cemitrio, da Igreja.

Finalmente o pastor concluiu que no teria mais condies de continuar pastoreando esse rebanho, da Colnia de Trs Forquilhas. Por isto solicitou transferncia, aos dirigentes do Snodo Riograndense, da Igreja Luterana.

Ele foi atendido e transferido para a Comunidade Evanglica de Montenegro. Assim que ele comunicou a deciso, de imediato, resolveu-se o problema do Cemitrio. O Velho Mauer decidiu fazer a doao de um terreno, com tima localizao e que agradou a todos.Os moradores da Colnia de Trs Forquilhas estavam muito sofridos. Haviam enfrentado muitas dificuldades: calamidades, revoluo, epidemias e catstrofes. Tinha sido quase dez anos de cimbra de sangue, uma epidemia que ceifara mais de sessenta e cinco vidas. Houve ao mesmo tempo, a febre tifide e as tenses que assolaram o Rio Grande do Sul aps a Proclamao da Repblica. Sobrevindo tambm a sangrenta Revoluo Federalista, que findara em 1895. Alm da enchente de 1897 que se projetava no horizonte, outro mal chegava o extermnio dos ex-revolucionrios, com um plano macabro para abat-los um aps outro.

O povo ansiava por alguma mudana no doloroso cenrio. Alm do fim das matanas e a paz na sociedade, esperavam tambm por um novo pastor, que fosse mais parecido com o velho Voges. Um pastor que os soubesse compreender, confortar e indicar um caminho vivel. Algum que soubesse gui-los para os pastos verdejantes, conforme fala o Salmo 23.O FUTURO DOS MARAGATOSSempre que lhe era possvel, Candinho ia at a sede da Colnia. Ia visitar o velho amigo Major Voges, quando este aparecia para alguma rpida visita aos filhos e genros, para tomar conselhos e se atualizar nos acontecimentos da vida poltica riograndense.

Candinho se mostrava preocupado. Que lugar haveria para os maragatos, dali em diante? Poderiam eles voltar a atuar como Partido Poltico e fazer oposio ao Governo de Jlio de Castilhos?

Major Voges respondia com franqueza. Dizia que os castilhistas haviam se tornado em donos absolutos do poder. No haveria mais o mnimo espao para os maragatos, pois o Governo era uma ditadura, muito cruel com todo e qualquer adversrio. Major Voges explicou que na fronteira e mais alguns lugares da Provncia diversas lideranas maragatas haviam sido eliminadas. Era o claro objetivo de evitar que o movimento federalista pudesse ser trazido a tona.

Major Voges confidenciava que na Colnia de Trs Forquilhas at ele, como lder antigo e forte, havia perdido todo o espao poltico. O mesmo acontecera com o professor Serafim e outros companheiros maragatos. Todos tinham que manter-se bem quietos, para no ficarem sujeitos a atos de retaliao, que vinham sendo movidos pela ditadura castilhista.

Major Voges explicava que j providenciara tudo para subir a Serra e passar a residir na fazenda que possua no interior do municpio de So Francisco de Paula. Convidou Baiano a acompanh-lo. Oferecia para ele, o emprego de capataz e um futuro garantido.

Candinho agradeceu pela oferta amigvel. Respondeu, porm que desejava permanecer na Colnia. Com certeza os tempos haveriam de melhorar para todos. Major Voges discordou. Explicou que, em particular, os integrantes do movimento revolucionrio estavam marcados como bandidos. Que Candinho e os demais se cuidassem. Coisa boa que no viria, to depressa, para eles.

Os dias transcorriam calmos, sem grandes novidades. At parecia que a paz voltara por completo e que Candinho estava com a razo. Parecia que tudo haveria de voltar normalidade. Candinho dizia, filosofando: - E, a nossa vida continua... Haveremos de encontrar o nosso lugar, nesta Colnia, para viver e trabalhar. Queremos participar da poltica e da construo dos destinos do nosso Rio Grande e do Brasil.Candinho quer reorganizar a sua vidaNa Serra residiam muitos filhos da Colnia de Trs Forquilhas, que tinham algum parentesco com Maria Witt, mulher de Candinho. Uma destas famlias era dos Hoffmann Serranos, dentre eles, em particular o Johann. Ele era primo de Maria Witt, por parte de me. Logo estreitaram-se as relaes, com visitas frequentes. Maria observara que o primo Johann Hoffmann se dera muito bem na Serra. Possua uma pequena fazenda com um