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Entrevista a Luís Graça, presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa "DUItANTE MUITO TEMPO NÃO ERA IMPORTANTE OS DOENTES PERCEBEREM OS MÉDICOS" "HOUVE MUITOS ERROS DA COMUNIDADE MÉDICA, COMO A PROMISCUIDADE COM A INDÚSTRIA"

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Entrevista a LuísGraça, presidenteda Sociedadedas CiênciasMédicas de Lisboa

"DUItANTEMUITO TEMPO NÃOERA IMPORTANTEOS DOENTESPERCEBEREMOS MÉDICOS"

"HOUVEMUITOS ERROSDA COMUNIDADEMÉDICA, COMO APROMISCUIDADECOM A INDÚSTRIA"

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Luís Graça."Durante muitotempo não eraimportante osdoentes perceberemos médicos"

Zoom // Entrevista

Investigador na área da imunologia é o mais jovempresidente de sempre da Sociedade das Ciências Médicasde Lisboa, liderada no passado por figuras como EgasMoniz ou Miguel Bombarda. Luís Graça fala dos desafiosnum ano especial: em dezembro, a sociedade médica maisantiga da Europa completa 195 anos

MARTA F. REISmana. reis@wnline. com

Salta à vista que estão em mudanças. Non.° 34 da Avenida da República há caixotes

e ainda muito por embalar no dia em quetocamos à porta para falar com o novo pre-sidente da Sociedade das Ciências Médicasde Lisboa, eleito na véspera. Luís Graça,professor na Faculdade de Medicina de Lis-

boa e investigador no Instituto de Medici-na Molecular (IMM), assume com orgulhoo desafio. Aos 45 anos, é o mais novo de

sempre no lugar e há muito trabalho pelafrente, de revitalizar a sociedade médicamais antiga da Europa- que em dezembro

completa 195 anos - a resolver o tal proble-ma de terem de mudar de casa Desde os

anos 70, ocupavam um andar da Santa Casa

da Misericórdia de Lisboa a título gratuito,mas não foi possível chegar a acordo paracontinuar a haver a cedência de espaço e

os 3 mil euros pedidos de renda, o custo do

mercado na zona, era incomportável paraa associação, que não recebe donativos da

indústria farmacêutica para a gestão cor-

rente e não tem conseguido renovar a base

de sócios e chegar aos médicos mais novos.

Luís Graça admite que parte do problemaresulta de, nas últimas décadas, não terem

conseguido encontrar um lugar na vida

pública. É isso que espera ajudar a fazer.Por enquanto, mudaram-se no Hm de outu-bro para uma sala no Hospital Curry Cabral,e o espólio -incluindoumadas bibliotecas

mais completas na área da medicina - está

encaixotado à espera de uma morada maisdefinitiva.

Como é estar numa cadeira que foiocupada por Ricardo Jorge, EgasMoniz, Miguel Bombarda e, maisrecentemente, João Lobo Antunes,vultos da medicina no país?É uma grande responsabilidade poderfazer algo para manter uma sociedadetão antiga e com o prestígio que teve ao

longo de quase dois séculos. Nunca ima-ginei, e sinto que o desafio será fazer com

que consiga ter um papel que se aproxi-me desse passado.Surgiram em 1522. São uma sociedadedas ciências médicas porque deve

abranger todos os médicos ou parapromover a componente de

investigação na medicina?Inicialmente, julgo que tinha a ver coma afirmação de que a medicina tinha de

ser baseada no rigor científico, em alter-nativa a outras práticas mais tradicio-nais. A promoção da investigação nasáreas médicas foi sempre importante nahistória da sociedade e é algo que pre-tendemos reforçar.Antigamente era mais fácil um médicofazer investigação? Havia menos

preocupação em pedir permissão aodoente, com o consentimentoinformado...A natureza da investigação era diferen-

te. Sim, havia esse lado negativo mas, nofundo, a investigação era um esforço qua-se individual e hoje é impossível fazerciência que seja relevante e com impac-to de forma individual. Os artigos cien-tíficos que no início dos anos 20 tinhamum ou dois nomes como autores agoratêm equipas de dez pessoas. É precisocombinar muitas técnicas diferentes, daressonância magnética à anatomia pato-lógica ou à estatística.

"Os médicos erammuito influentes

politicamente e essainfluência tem vindo

a perder-se muito"

"Houve muitos erros dacomunidade médica,

como a promiscuidadecom a indústria. Trouxe

alguma descredibilização"

O que torna também a investigaçãomédica mais cara.Sem dúvida. Se quisermos ligar umadoença e as suas causas aos genes é pre-ciso sequenciar o ADN. E isto em todasas áreas. Trabalho em imunologia e parafazer investigação é preciso identificaras proteínas das células. São técnicasmuito dispendiosas.Consegue ver doentes ou, a certa altura,a investigação tem de ser uma opção?No meu caso foi uma escolha dedicar--me exclusivamente à investigação. Mashá quem consiga combinar as duas coi-sas. Tenho agora um estudante de dou-toramento que está a fazer um projetoclínico e que combina ver doentes comatividades de laboratório. É possível.Para alguém que quis ser médico,optar só por investigação é umaescolha fácil?Não foi nada fácil, mas muitas destasescolhas acabam por não o ser - somos

levados numa determinada direção. Quan-do estava a fazer o doutoramento tinhamuita saudade daquele sentimento de

feedback quase imediato que temos quan-do vemos doentes, a recompensa das

nossas ações. Quando estamos num ser-

viço de urgência vemos o resultado qua-se imediato do que fazemos, para o bem

NOME Luís Graça

INVESTIGAÇÃOLidera um grupo de

investigação no Institutode Medicina Molecuiar

(IMM) que estuda

doenças em que osistema imunitário, emvez de ser umaproteção, acaba porfuncionar ao contrário eser a raiz do problema.É o caso de doençasautoimunes, rejeição de

transplantes ou alergias,mas também da rejeiçãode alguns tratamentosem doenças como ahemofilia.

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e para o mal. Na investigação é muitodiferente: só conseguimos ver ao fim de

algum tempo.Agora vai passar a dividir a

investigado com a presidência dasociedade. Quais são os objetivos domandato?São três anos e o grande objetivo será

aproximar a sociedade sobretudo dos

jovens médicos que estão a começar a

sua vida profissional, e muitos com inte-resse na área da investigação. Aquilo quevamos procurar fazer é dar-lhes infor-mação e conhecimento transversal sobrediferentes áreas da medicina, para quequem está interessado em fazer investi-

gação em cardiologia, por exemplo, con-tacte com o que está a ser feito em dia-betes e noutras áreas.Uma exce ssiva compartimentarão tematrasado respostas para os doentes?Não sei s<: tem atrasado, o que acho é

que, eliminando essas barreiras, o pro-gresso poderá ser muito mais rápido.E vejo isso a acontecer não só entre áreasda medicina. Dou-lhe um exemplo: tra-balho com o sistema imunitário, masbeneficiei muito do contacto com físi-cos que ctiaram modelos em computa-dor que ajudam a perceber como asinteraçõe:> entre as células do sistema

imunitário podem ou não funcionar, o

que nos permite programar as experiên-cias que fazemos em laboratório de ummodo mais eficaz,E um tempo de aumentar a

colaboração, mas também se ouvedizer que a competição na ciência écada vez maior, com a pressão parapublicar artigos científicos, obterfinanciamento...Dizem que uma percentagem muitosignificativa dos cientistas que algumavez viveram - 80%, por aí - estão a tra-balhar neste momento. Isto significa quehá muito mais gente a fazer ciência ago-ra do que há 20, 50 ou 100 anos. De cer-ta forma, isso vem pôr em causa a estru-tura de investigação que tivemos atéaqui, piramidal, com o líder do grupo,investigadores de pós-doutoramento,investigadores de doutoramento e poraí fora. Discute-se se será viável isto man-ter-se assim para todos terem oportu-nidades e creio que, provavelmente, teráde haver uma reflexão sobre para ondedevemos ir. No que diz respeito às publi-cações científicas, de facto há uma com-petição feroz e ninguém está contente.Ninguém exceto as empresas que sãodetentoras dessas revistas, porque é umaindústria extremamente lucrativa.

Os investigadores pagam parapublicar os artigos científicos?

Sim, pagamos para publicar, pagamospara ler, pagamos para tudo.Se pagam para publicar, como se

garante a isenção?Existe o processo de revisão por pares queé independente do pagamento pela publi-cação do artigo, há essa garantia. Mas umdos problemas que temos é que uma fra-

ção significativa da investigação é feita comfundos públicos ou com fundos de donati-

vos, de pessoas que doaram para a investi-

gação do cancro, por exemplo. E no meiodisto é um bocadinho estranho utilizarem-se fundos públicos para publicar resulta-dos e depois esses resultados não estaremdisponíveis para a comunidade, porquepara ler o artigo é preciso subscrever a revis-

ta A maior parte das agências de financia-mento já está a obrigar a que quem publi-ca - os grupos de investigação - tenha de

manter o artigo disponível sem barreiras.Muitas das revistas dizem, "tudo bem, se

quiserem podem fazer uma publicaçãoopen access". E aí, se a taxa normal era milou 1500 euros, em open access é 3 mil euros.A SCML vai mudar de casa. É umasaída forçada?Estávamos neste edifício desde 1970. Não

conseguimos comportar o custo de mer-

cado de uma renda na Avenida da Repú-blica e vamos ter de sair. O espaço foi--nos cedido pela Santa Casa nas últimasdécadas e a história até é engraçada. Em1970 ocupámos o andar e, nessa altura,a Fundação Calouste Gulbenkian tinhadisponível um valor para pagar à SantaCasa e ficarmos com esta sede. O proble-ma foi que o edifício estava em proprie-dade total e não horizontal, e por issonão era possível destacar um andar. Quan-do a sociedade se mudou para cá foi nes-sa expetativa, mas isso nunca chegou a

acontecer. Neste momento, a Santa Casa

quer viabilizar os rendimentos do edifí-cio e teríamos de pagar 3 mil euros pormês, o que para nós não dá.As quotas não chegam?Temos poucos associados e os médicosmais velhos estão isentos, que é o queachamos justo.Acha que este desfecho resultatambém de a sociedade não terconseguido encontrar, nos últimosanos, o seu caminho?Creio que sim. Acho que o que condicio-nou não termos mais médicos jovenstem a ver com isso e com o facto de asiniciativas não se terem alinhado comas mudanças da sociedade atual.Uma das vossas apostas tem sido apromoção de prémios que, no fundo,são bolsas para investigação.Sim, temos os prémios Pfizer, que vão na61. a edição, e os prémios com a MerckSharp & Dohme na sétima edição, e cujasinscrições terminaram em outubro. Acre-ditamos que é a melhor forma de atribuirprémios que são apoiados pela indústriasem haver conflito de interesses. A indús-tria dá o valor monetário do prémio, mastoda a seleção das candidaturas e dos ava-liadores corre de forma independente.Ainda se retratam por vezes osmédicos como uma classe elitista,corporativa, com muitas quintas.Tem essa perceção?

continua na página seguinte »

Luís Graça, investigadordo Instituto de MedicinaMolecular de Lisboa, tomouposse em outubro comopresidente da Sociedade deCiências Médicas de Lisboa

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Dentro da medicina, nos últimos anos,houve uma progressiva especializaçãopara várias áreas e isso também explica a

evolução da sociedade: quando surgiu,havia medicina no geral, não havia as

outras especialidades. Tudo interessava a

todos. A partir de determinado momentofoi necessário haver especialização de

conhecimento, técnicas e práticas. Den-

tro desta sociedade começaram secções,

no fundo, grupos de interesses das dife-

rentes áreas. Muitas das secções autono-mizaram-se e foram criar outras socieda-

des, o que foi puxando muitos dos nossos

associados.

Mas, no geral, como retrata hoje a

classe médica?Sendo uma organização compartimen-talizada, acho que existe uma rivalida-de saudável entre instituições médicas- os médicos que trabalham no hospital

» continuação da página anterior x vestem a camisola desse local. Mas é

uma coisa saudável.E o lóbi médico é muito forte?Acho que perdeu muita importância. Em1900 e poucos, esta sociedade chegou a

ser proibida porque os médicos conspira-

vam contra o Estado. Os médicos erammuito influentes politicamente e creio queessa influência na política e nas coisas do

Estado tem vindo a perder-se muito.

Porque o médico deixou de ser vistocomo um ser todo-poderoso que sabia

mais do que a generalidade?A relação entre o médico e o conheci-mento era muito respeitada. Houve mui-tos erros da comunidade médica, porexemplo, a promiscuidade com a indús-

tria farmacêutica, congressos que não

eram bem congressos, que trouxeramuma certa descredibilização. O que me

parece um problema neste momento é

que a associação do conhecimento médi-

co aos médicos está algo abalada.

"A tendência naturalé concordar mais comuma opinião sedutora

do que com o que não é

explicado devidamente"

"Falar-se doesternocleidomastoideu

é um bom exemplo:até a linguagem médica

era uma barreira"

No próximo dia 11 dedezembro, a entrega doPrémio SCML/MSD em SaúdePública e Epidemiologia Clínicavai ter um palco simbólico:a cerimónia está prevista parao .Palácio da Bemposta, ondea sociedade foi apresentadaa D. João VI neste mesmo diaem 1822, fará 195 anos.O registo desse acontecimentolembra que a apresentaçãoaconteceu pelas sete da noite.Sua Majestade louvou muitoo estabelecimento de umasociedade que poderia fazergrandes serviços ao Estadoe "que lhe prestaria sempretoda a proteção possível",recorda o site da Sociedadedas Ciências Médicasde LisboaTERESA NIJTO

Por exemplo?Esta sensação de que, se repetir muitas

vezes que determinada coisa é a causade outra, então é porque é verdade. Istoé um perigo e já se viu que na saúde trazproblemas graves, como é o caso dosreceios em torno das vacinas.

Preocupa-o a desinformacão?Pois. Há essa boa prática no jornalismode, quando se trata um assunto comple-xo, dar o mesmo peso ao contraditório queà tese contradita, mas a discussão, nalguns

casos, devia ser mais sobre fundamentosdo que sobre opiniões. Na discussão cien-

tífica, não interessa quantas pessoas falam

e acham que as alterações climáticas são

Isto ou aquilo, mas a qualidade dos dados

que fundamentam determinada tese.

Mas isso também não terá decorridode os médicos e investigadores,durante algum tempo, não falaremtanto para o público mas entre si?

.Isso é muito verdade e nos últimos anostem havido um esforço grande para resol-

ver o problema. Falar-se do esternoclei-domastoideu é um bom exemplo: até a

linguagem era uma barreira ao entendi-mento e não era importante que o doen-te percebesse o que se estava a passar. Se

há uma posição que não se consegue per-ceber e há, do outro lado, uma opiniãosedutora, a nossa tendência natural é

mais concordar com aquilo que se per-cebe e que é sedutor do que com aquilo

que não é explicado convenientemente.Daí ser cada vez mais importante haverboa comunicação dos factos e reforçar amedicina baseada na ciência.Onde é a nova casa da sociedade?Por agora vamos para o Hospital CurryCabral, para manter a atividade. O que nos

entristece neste momento é que grandeparte do espólio e da nossa biblioteca, queé muito usada por investigadores na área

da saúde, ainda não tem um lugar defini-

tivo para ir. Temos livros antigos, o espó-lio de Reynaldo dos Santos, que nos foi doa-

do. É mais um objetivo para o mandato.