duelos de xadrez - minhas partidas com os campeões mundiais

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Yasser Seirawan

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Page 1: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais
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Catalogação na publicação: Ana Paula M. Magnus – CRB 10/2052

S457d Seirawan, Yasser. Duelos de xadrez [recurso eletrônico] : minhas partidas com os campeões mundiais / Yasser Seirawan ; tradução: Daniel Bueno ; revisão técnica: Ronald Otto Hillbrecht. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Penso, 2012.

Editado também como livro impresso em 2012. ISBN 978-85-63899-74-3

1. Xadrez. I. Título.

CDU 794.1

Page 3: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

Tradução:Daniel Bueno

Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição:Ronald Otto Hillbrecht

Vice-Presidente da FederaçãoGaúcha de Xadrez (2002-2003)

2012

Versão impressadesta obra: 2012

Page 4: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

Reservados todos os direitos de publicação, em língua portuguesa, àPENSO EDITORA LTDA., uma empresa do GRUPO A EDUCAÇÃO S.A.Av. Jerônimo de Ornelas, 670 – Santana90040-340 – Porto Alegre – RSFone: (51) 3027-7000 Fax: (51) 3027-7070

É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquerformas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e ou-tros), sem permissão expressa da Editora.

Unidade São PauloAv. Embaixador Macedo Soares, 10.735 – Pavilhão 5 – Cond. Espace CenterVila Anastácio – 05095-035 – São Paulo – SPFone: (11) 3665-1100 Fax: (11) 3667-1333

SAC 0800 703-3444 – www.grupoa.com.br

IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

Obra originalmente publicada sob o título Chess Duels: My Games with the World Champions, 1st EditionISBN 9781857445879

© 2010 Yasser SeirawanFirst published in 2010 by Gloucester Publishers plc, London.All rights reserved.This edition is published by arrangement with Gloucester Publishers plc, Northburgh House, 10 Northburgh Street, London EC1V 0AT.

Capa: Márcio Monticelli

Preparação de original: Jonas Stocker

Leitura final: Amanda Guizzo Zampieri

Editora responsável por esta obra: Lívia Allgayer Freitag

Coordenadora editorial: Mônica Ballejo Canto

Gerente editorial: Letícia Bispo de Lima

Projeto e editoração: Techbooks

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Sumário

Introdução ................................................................................................................................................9

1 Bobby Fischer ....................................................................................................................................... 17

2 Os Gigantes ........................................................................................................................................... 41

3 Vassily Smyslov ..................................................................................................................................... 53

4 Mikhail Tal .............................................................................................................................................. 69

5 Tigran Petrosian ................................................................................................................................... 93

6 Boris Spassky .......................................................................................................................................101

7 Anatoly Karpov, 1975-1985............................................................................................................138

8 Garry Kasparov, 1985-2000 ............................................................................................................184

9 Anatoly Karpov, Após 1985 ............................................................................................................246

10 Garry Kasparov, Após 2000 ............................................................................................................298

11 O Futuro do Campeonato Mundial .............................................................................................315

Índice Geral ..........................................................................................................................................328

Índice de Partidas ..............................................................................................................................334

Índice de Aberturas ..........................................................................................................................336

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Este livro é dedicado ao Grande Mestre Bent Larsen. Meu verdadeiro herói do xadrez.

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Introdução

Lembranças da SíriaEu nasci em 24 de março de 1960, em Da-masco, filho de pai sírio, Muyassar Seirawan, e mãe inglesa, Margaret Elvin. Meus pais se conheceram na época em que meu pai era estudante e estava obtendo seus títulos universitários avançados na Inglaterra. Ele estudava inteligência artificial e programa-ção de computadores no Instituto Boots, em Nottingham, onde conheceu minha mãe e se casou. O casamento não foi nenhum mar de rosas. Meu pai provinha de uma nação muçulmana e, ainda que não fosse um mu-çulmano praticante nem particularmente re-ligioso, era observador. Minha mãe frequen-tava a Igreja Anglicana e foi criada na cultura judaico-cristã, embora, como meu pai, tam-pouco fosse particularmente religiosa.

Minha piada predileta é que minha mãe e meu pai eram apostadores, traço que pas-saram para seus filhos; que meus pais joga-ram dados genéticos e saíram-se vitoriosos; graças a meu pai, da cintura para baixo eu era um árabe beduíno e, graças à minha mãe, da cintura para cima eu era um cavalheiro bri-tânico ortodoxo. Você ri, mas este é um jogo perigoso. Você certamente não quer que a matriz genética se misture, tampouco quer

inverter a correta ordem dos movimentos. Um cavalheiro britânico da cintura para bai-xo? Isso seria um desastre.

Meu pai era muito inteligente e obteve uma bolsa de estudos mediante a qual sua educação ocidental era paga pelo Estado sí-rio. Em troca, depois que ele completou seus estudos, meus pais foram para Damasco, onde meu pai foi obrigado a servir como ofi-cial no exército sírio por alguns anos como retribuição pelo crédito estudantil.

A família Seirawan ficou chocada ao ver que meu pai trouxera uma noiva para casa, especialmente sem a permissão da fa-mília. Sem dúvida ele não pediu porque cer-tamente a teriam recusado. Agindo assim, meu pai evocou a antiga tradição de buscar perdão em vez de permissão. Sua nova noi-va tinha numerosas desvantagens contra si: não era muçulmana, não falava árabe e com certeza sofreu um choque cultural. Tampou-co tornou-se benquista ao nascer o primo-gênito: uma menina, minha irmã Runda. Felizmente, com meu nascimento, um filho, tudo ficou perdoado. Da noite para o dia, a posição de minha mãe literalmente passou de quase pária para rainha. Este evento for-tuito contribuiu para nós dois.

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Em Damasco, nossa família vivia em um apartamento no andar térreo de um grande prédio residencial com um pátio privativo in-terno. Os apartamentos era ocupados princi-palmente por membros da grande família Sei-rawan. Todo mundo se preocupava com todos os outros, mantendo uma cuidadosa atenção especialmente com os jovens. As refeições eram comunitárias, assim como compras, lim-peza, estudo, feriados e assemelhados.

Eu fui um bebê grande, de quase quatro quilos, ao passo que minha mãe, uma mulher magra de um metro e setenta e pouco mais do que 50 quilos, tinha que vigiar-nos, eu e minha irmã, de perto, assim como outros em nosso complexo de apartamentos familiar. Ela aprendeu a falar árabe, vestia o hijab, o véu para mulheres, e passava como nativa. Era costume que amigos e estranhos parassem e fizessem elogios. “Não”, minha mãe dizia sa-cudindo a cabeça com tristeza, “ele tem má saúde e é magrelo.” Esta resposta costumeira pretendia evitar o mau olhado e não atrair atenção.

Minhas duas lembranças mais antigas e, sem dúvida, as únicas da Síria, consistem em prazer e dor. Eu achava que elas eram mitos em minha imaginação, mas meus pais as confirmaram. A lembrança agradável se inicia no chão acarpetado da sala de nosso apartamento. Sobre uma mesa alta demais ficava uma inalcançável caixa de chocolates. Capaz de resistir a tudo exceto à tentação, eu pensava em como pegar a caixa. Minha solução foi agarrar a toalha da mesa e puxá--la até que a caixa de chocolates caísse, jun-to com tudo que havia sobre a mesa. Depois que peguei a caixa, escondi-me atrás do sofá e comi todos os chocolates. Desde então, te-nho um caso de amor com chocolates.

Minha segunda lembrança também é de estar no piso acarpetado da sala brincan-do de “blocos” com outra criança do edifício. Olhei para cima e vi rachaduras começarem a aparecer na parede, depois senti uma dor re-pentina e forte nas costelas. No ar, enquanto a parede desabava, olhei atrás de mim para ten-

tar entender quem ou o que havia provocado a forte dor nas minhas costelas, e descobri chocado que tinha sido minha mãe. Esse foi o fim de minha lembrança; a totalidade dela.

Posteriormente, minha mãe explicou o que havia acontecido. O quintal precisava de reparos com os serviços de um buldôzer. Na hora do auge do calor no dia, o operador tirou uma soneca. Enquanto descansava, seu joe-lho bateu na alavanca de câmbio, e o buldôzer ficou em ponto morto. Ele começou a descer e a se distanciar do pátio, colidindo contra o edifício, arrebentando a parede e parando em nossa sala. A máquina acabou parando bem em cima de nossos blocos de brincar. Minha mãe tinha me agarrado com um braço e meu parceiro com o outro, arrebatando-nos brus-camente segundos antes que a parede des-moronasse em cima de nós dois.

Prazer e dor. Uma combinação comum.Mais uma vez, é preciso mencionar

que, em nosso edifício de apartamentos, as famílias eram todas grandes com numero-sas crianças; o infortúnio com uma criança perdida ou até uma mãe perdida não era in-comum naqueles dias. Em uma família, uma mãe perdeu a vida durante o parto e a crian-ça, uma menina, Haifa, nasceu. As famílias se reuniram e decidiram, coletivamente, que minha mãe, que estava me amamentando, também receberia o dever de amamentar Haifa. Na tradição árabe, a “mãe” não é neces-sariamente a mãe biológica, podendo ser a que amamenta, a que cuida da criança. Nesta situação, Haifa tornou-se uma irmã para mim e uma segunda filha para minha mãe.

InglaterraNo início dos anos de 1960, a Síria foi asso-lada por conflitos sociais. Líderes governa-mentais subiam e caíam. Esquadrões milita-res e gangues armadas patrulhavam as ruas e meus pais se preocupavam com o fato de a Síria estar mergulhando em um caos social. Decidiram abandonar a Síria e voltar para a Inglaterra. Não foi fácil e, sem dúvida, na-quela época era uma empreitada perigosa.

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Meu pai tinha um passaporte especial gra-ças à sua carreira estudantil e militar, sendo considerado uma pessoa essencial. Ele pre-cisava de uma permissão especial para sair do país, coisa que seu passaporte verdadeiro não permitiria. Assim, comprou passaportes no mercado negro e a família se fez passar por turistas britânicos. No caminho para o aeroporto, nossa mãe nos instruiu seriamen-te a falar apenas inglês, instrução da qual nem eu nem minha irmã temos lembrança. A única coisa de que nos recordamos é que a obedecemos e a família chegou na Inglater-ra em 11 de março de 1964.

Meu irmão Nabeel, ou melhor, Daniel, nasceu em 27 de outubro de 1964, alguns me-ses depois de nossa chegada em Nottingham. Nabeel, ou Nabil, significa ”nobre” em árabe. Seria de se pensar que uma ordenação mara-vilhosa como essa para iniciar a própria vida seria bem-vinda. Mas meu irmão não a acei-tava. Praticamente desde o momento em que aprendeu a falar ele se batizou. “Meu nome é Daniel”, dizia educadamente. “Por favor, me chame de Daniel”. Quando o chamávamos de Nabeel ele nos rejeitava e, em pouco tempo, nós todos o chamávamos de Daniel.

Eu adorei a Inglaterra. Aqui as lembran-ças brotam facilmente. Os primeiros tempos da escola, os livros de colorir, o prazer de an-dar de patinete, de jogar conkers* e bolinhas de gude, calçar galochas, trepar em árvores, colocar garrafas com água quente para dor-mir e comer pudim de melado, tudo vem rapidamente à cabeça. Parece que eu era especialmente bom no jogo de gude, que minha mãe desprezava. Todo dia eu voltava da escola para casa com os bolsos cheios de bolinhas que eu havia ganhado dos outros meninos. Minha mãe se certificava de que eu fosse para a escola sem bolinhas, mas eu sempre voltava com os bolsos cheios, pois pegava emprestada uma primeira bolinha

de um amigo e depois começava a ganhar dos outros meninos. Eu tenho uma lembran-ça bem clara; um menino, frustrado com suas perdas, arremessou sua bolinha o mais distante possível a fim de não perder. Para não ser superado, eu joguei minha bolinha atrás da dele. Foi uma daquelas coisas im-possíveis de acontecer. A bolinha dele caiu em um sulco, assim como a minha. Minha bolinha nicou na dele e eu ganhei. Meu gru-po de amigos riu disso vários dias.

Meu pai tinha muitos amigos dos seus dias de estudante, e um de quem ele gosta-va muito participava dos encontros familia-res, um certo Ken Whyld. Eles mantiveram contato por várias décadas. Próximo ao fim de sua vida, Ken visitou Seattle, onde almo-çamos todos juntos. Para quem não sabe, Ken Whyld é considerado um grande histo-riador de xadrez, sendo coautor do Oxford Companion to Chess. O mundo é pequeno.

O Novo MundoEm 1967, meu pai foi contratado pela Boeing, a famosa fabricante de aviões e, por isso, nossa família veio morar em Seattle, chegando em primeiro de junho de 1967. Fomos morar em uma casa no bairro Queen Anne Hill, onde iniciei meu caminho no sistema educacional americano na Queen Anne Elementary School.

O xadrez não fazia parte de minha vida neste período inicial. Meu pai gostava do jogo e tentou me ensinar. Embora sentisse atração pela aparência física das peças, os esportes físicos eram minha predileção e, nos Estados Unidos, eu me destaquei. Futebol americano, beisebol, queimada, luta livre e ciclismo eram meu novo mundo. Os dias dos patinetes, das bolinhas de gude e dos conkers estavam no passado. O Novo Mundo oferecia novos esportes e eu decidi que eles eram to-dos excitantes e maravilhosos.

Eu era extremamente atlético e corria rápido. Corrida de velocidade, atletismo e salto prenunciavam uma carreira promissora. Terminou antes de começar. Menos de um

* N. de T.: Jogo infantil comum na Grã-Bretanha usando as sementes da castanheira-da-índia, no qual uma criança usa uma castanha presa a um barbante para golpear e quebrar a castanha da outra.

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ano depois de nossa chegada, em março de 1968, meus pais se separaram e, em menos de um ano, estavam divorciados. Os filhos foram morar com minha mãe e, com o passar dos anos, meus conhecimentos do idioma árabe se diluíram tanto que hoje eu só sei algumas palavras. Em 1970, minha mãe se casou nova-mente com Richard Valance. Um homem que não poderia ser mais diferente de meu pai.

Valance era um homem alto, bem acima de um metro e oitenta, calvo, uma barba ver-melha flamejante e olhos azuis penetrantes. Ele havia nascido em Detroit, onde perambu-lava com gangues de rua; um confronto com rivais havia tirado a vida de seu melhor amigo. Valance temeu que seria o próximo. Decidiu sair dos Estados Unidos, foi para a Tailândia e tornou-se monge budista. Na Tailândia, pela primeira vez na vida, ele encontrou a paz. Seu astral elevou-se às alturas com seus estudos e longos períodos de meditação lhe trouxeram harmonia interior. Ele ficou perplexo quando seu abade lhe disse que ele já tinha aprendido tudo que podia e devia voltar para a América, onde seu destino o aguardava.

Na casa de meu pai, a ordem reinava absoluta. Tudo, o sono, o banho, as refeições, a escola e a hora de brincar, obedecia a um horário. Com Valance não havia horário al-gum e tudo era improvisado. De Seattle, a família viajou pelo litoral do Pacífico passan-do pelo Óregon e pela Califórnia, estabele-cendo-se em Palm Springs por alguns me-ses, depois em Corpus Christi, Texas, e, por fim, Virginia Beach, Virgínia, tornou-se nosso destino em 1970. Nossas mudanças cons-tantes bagunçaram nossos estudos mas, de alguma forma, eu não fui muito afetado. Em poucas semanas já tinha alcançado os cole-gas e minhas habilidades nos esportes fize-ram de mim um dos favoritos da classe.

De todos os lugares em que ficamos, Virginia Beach foi aquele de que mais gostei. Agora era minha vez no paraíso. O fascínio do mar era o chamado de uma sereia. Eu surfava com o corpo e usava uma prancha de surfe sempre que podia. Sempre adorei

nadar, mas foi em Virginia Beach que encon-trei minha vocação. Eu procurava ajudar os salva-vidas da melhor maneira possível e me oferecia para ajudar nas piscinas. A praia era meu novo mundo.

Como foi que, de todos os lugares, a família mudou-se para Virginia Beach? Des-necessário dizer que o casamento de minha mãe com Valance teve um impacto extraor-dinário sobre ela e, subitamente, o interesse dela por espiritualidade e misticismo brilhou intensamente. Meditação e misticismo eram áreas que exerciam imensa atração sobre ela. Os convidados em nossa casa incluíam instru-tores de ioga, astrólogos, numerólogos, ho-meopatas, budistas, hinduístas, evangélicos recém-convertidos e pessoas de praticamen-te todas as esferas. O célebre sonambulista Edgar Cayce, “O Profeta do Adormecer”, ha-via criado a sede da Edgar Cayce Association for Enlightenment (ARE) em Virginia Beach e minha mãe sentiu-se atraída a ir estudar lá. Edgar Cayce deitava-se para descansar e en-trava em transe e, enquanto estava “sob” este estado, ele falava com uma “voz” para ajudar as pessoas a se curarem. Milhares de leituras foram registradas com conselhos sobre como tratar praticamente todo tipo de moléstias e doenças. Minha mãe queria estudar estes re-gistros. Já no primeiro dia em que chegamos em Virginia Beach em nossa caminhonete fo-mos ao Centro ARE, e a primeira pessoa que conhecemos foi Hugh Lynn Cayce, o filho de Edgar Cayce. Naquela tarde, estávamos em nosso primeiro lar, a convite de Hugh Lynn.

Em Virginia Beach, eu frequentava a W. T. Cooke Elementary School e me tornei jorna-leiro para ganhar um dinheiro extra. Eu levava minhas obrigações muito a sério e não deixei de entregar meus jornais durante o Furacão Lisa. Os ventos contra mim eram tão fortes que eu não conseguia pedalar a bicicleta, carrega-da na frente com jornais enrolados em plás-tico, a qual ficou imobilizada pelas poderosas rajadas de vento enquanto eu tentava apertar os pedais para baixo. Fiz todo o meu percurso de entregas a pé, investindo contra os ventos

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fustigantes. Minha mãe estava absolutamen-te transtornada enquanto o furacão girava em torno de nossas janelas cobertas com fita.* Quando voltei para casa, ela estava pronta para me dar um bom sermão até notar que eu estava totalmente pálido e frio como um cubo de gelo. Disse-me que eu precisava de um ba-nho quente e que eu devia me despir enquan-to ela preparava a banheira. Ela ligou apenas a torneira de água fria e, quando eu mergulhei o pé na água, queixei-me de que a água esta-va muito quente. Retirei um pouco da água e liguei a torneira fria novamente. Meia hora de-pois tirei mais um pouco da água e dessa vez liguei a torneira de água quente e fiquei no banho por mais de uma hora. Com o tempo, a temperatura do meu corpo voltou ao normal. Eu não sei o quanto minha temperatura real-mente diminuiu mas, vendo em retrospecto, acho que provavelmente tive muita sorte de não ter sofrido algum dano permanente. (A piada na família, é claro, é de que houve, sim, um dano grave.)

Eu não sei de onde provém minha natu-reza competitiva. Seja nos esportes, na escola ou como jornaleiro, eu me esforçava para ser o melhor. Não apenas o melhor, mas excelen-te. Sim, eu queria vencer e não apenas dentro das regras, mas também dentro do espírito das regras. Se eu achava que um juiz havia cometido um erro de arbitragem, eu devolvia a bola para o outro time, o que nem sempre me fazia benquisto pelos membros do meu time. Esta aspiração por excelência também me meteu em encrencas de outras formas. Na maioria das vezes em sala de aula. Um “A” ou um “A+” eram apreciados mas não suficientes. Eu queria 100%. A maioria de minhas discipli-nas era avaliada em uma escala contínua, com os extremos determinando a letra da nota. Mi-nhas pontuações de 100% causavam ressenti-mento. Muitas vezes eu era incentivado a “não acertar todas”. As discussões me deixavam

frustrado e perplexo. Qual era o ponto? Muitos professores encontravam meios de me passar deveres de casa extras ou outras tarefas, prin-cipalmente fichas de leitura.

De volta a SeattleMais uma vez, meu mundo feliz foi jogado de cabeça para baixo em 1972. Minha mãe de-cidiu que seus estudos e pesquisa no Centro ARE estavam concluídos, seu casamento com Valance não estava indo bem e estava na hora de voltar para Seattle. Eu fiquei desolado. Mi-nhas lembranças de Seattle não eram atraen-tes; em especial, chovia bastante e, embora a cidade fique na Costa do Pacífico, eu não me lembrava de ter surfado lá, pois não ha-via ondas em Puget Sound. Resisti, mas não adiantou, e a família se mudou para Seattle no verão de 1972 quando o ano letivo terminou. Naquela época, eu me considerava uma pes-soa da rua; eu tinha pouco interesse por tele-visão, a menos que meu time de futebol ame-ricano, o Dallas Cowboys, estivesse jogando. Isso e luta livre profissional, é claro.

Meus piores temores de Seattle se realizaram na chegada. Os dias quentes de verão eram curtos, e os dias encobertos, comuns. A família se banhava nas praias do Lago Washington perto de Sand Point, um lugar a nordeste do Distrito Universitário. Algumas milhas mais ao norte pela estrada, Sandpoint Way, havia uma “praia”. Um lugar no lago onde havia uma grande boia até a qual podia-se nadar e saltar para mergulhar, usando o trampolim alto e baixo. Este par-que junto ao lago, com seus bancos para pi-quenique, era meu tedioso consolo. Quando chovia, o que acontecia com frequência, as crianças ficavam presas em casa.

Como muitos de nossos pertences ain-da não haviam chegado, a família costumava visitar nosso vizinho do andar de cima, Da-vid Chapman, um paraplégico que tinha um televisor maravilhoso no qual podíamos as-sistir aos Jogos Olímpicos. Foi David que me ensinou o peculiar jogo de xadrez, no qual eu me atrapalhava tentando entender os estra-

* N. de T.: É comum usar fitas adesivas nos vidros das janelas em regiões onde há furacões e tornados para evitar que os vidros se estilhassem caso sejam atingidos por algum objeto lançado pelo vento.

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nhos saltos dos cavalos. David me derrotava facilmente e, para me tornar competitivo, eu visitava um café, The Last Exit on Brooklyn, no distrito da Universidade de Washington, onde outros enxadristas se encontravam para jogar Blitz. O xadrez havia chegado em minha vida.

Aqui, gostaria de avançar rapidamente para 1978/79, seis anos depois. Minha mãe havia se casado pela terceira vez, com um havaiano, Kelena Nakata. A família agora es-tava morando em um condomínio em um grande complexo em Rainier Beach, desta vez não na parte norte do Lago Washington, mas na parte mais ao sul, a quilômetros de distância do centro de Seattle e até mais distante da Universidade de Washington, que fica ao norte do centro. Eu menciono este último ponto apenas para enfatizar que qualquer pessoa que fosse estudar na “U-W” (pronunciado como “U-Dub” no local) defi-nitivamente não moraria em Rainier Beach, pois ficaria pelo menos a 40 minutos do campus, com bom tráfego.

Como é universalmente conhecido, os britânicos são os piores cozinheiros do mundo, e minha mãe é um exemplo parti-cularmente portentoso deste truísmo. Seu defeito foi uma benção. Para finalidades de autopreservação, os filhos aprenderam a cozinhar bem. Um dia eu encontrei minha mãe na cozinha, sempre um sinal de peri-go e, desconfiado, perguntei o que ela es-tava fazendo. Ela explicou que os vizinhos recém tinham se mudado para o andar de baixo e ela queria dar boas vindas aos re-cém-chegados e, por isso, estava assando um bolo. É claro que eu fiquei na dúvida se depois de provar o bolo nossos novos vi-zinhos não desapareceriam de vez. Eu não precisava ter me preocupado. Triunfalmen-te, minha mãe desceu ao andar de baixo com o bolo e bateu na porta. Uma senho-ra simpática abriu. Minha mãe derrubou o bolo no chão e começou a chorar. E a outra senhora também. Elas choraram efusiva-mente, abraçando-se emocionadas e com força. Era Haifa. Depois de quase duas dé-

cadas distantes, mãe e filha se reconhece-ram instantaneamente.

Haifa havia se casado com um homem, Mohammed, que estava estudando na Uni-versidade de Washington. Em uma cidade de quase um milhão de habitantes, Haifa veio morar embaixo de minha mãe. É uma história que, se estivesse em um romance, seria considerada ridícula. Realmente, a vida é mais estranha do que a ficção.

Minha carreira no xadrez Em 1979, minha carreira ganhou um imen-so impulso quando eu venci o Campeonato Mundial Júnior (abaixo de 21 anos de idade) em Skien, Noruega. Eu já havia galgado po-sições nos Estados Unidos, mas foi este re-sultado que chamou a atenção dos organi-zadores mundiais para mim e, em janeiro de 1980, fui convidado para o evento de elite em Wijk aan Zee, Holanda. Como eu iria me sair como novato nas grandes ligas? “Wijk” foi um salto para mim. Eu empatei pelo pri-meiro lugar, adquirindo com isso a norma final de Grande Mestre. Sete anos e meio depois de aprender o jogo, eu me tornei um Grande Mestre. Foi uma viagem e tanto.

Além do título de Grande Mestre, Wijk aan Zee em 1980 também me trouxe outra coisa especial: uma grande amizade com Victor Korchnoi a qual já dura décadas. Na-quela época, Victor era considerado o se-gundo melhor jogador do mundo. Ele me convidou para trabalhar com ele em sua campanha para os Torneios de Candidatos e do Campeonato Mundial de 1980-1981. Tra-balhamos com afinco e, graças a ele, meus conhecimentos de xadrez dispararam. Em meados de 1980, eu me qualifiquei através do ciclo interzonal e me tornei Candidato (Montpellier em 1985). Pelo resto de minha carreira, disputei torneios e eventos mun-diais chegando, por fim, às fileiras dos dez maiores enxadristas do mundo.

Em 1988, criei uma revista de xadrez, a Inside Chess, publicada por doze anos. Em 2001, eu vendi o negócio para Hanon Russell.

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Durante a década de 1990, jogar no circuito de xadrez profissional e simultaneamente editar uma revista quinzenal era muito traba-lhoso e eu estava sempre ocupado e com fre-quência muito cansado. Não era fácil encon-trar tempo para treinar adequadamente e me preparar para os duelos com os melhores enxadristas do mundo. Muitas vezes, no ta-buleiro, eu me encontrava jogando baseado nos meus conhecimentos fundamentais do xadrez, sem novidades espetaculares de aberturas – apenas um xadrez teimoso. No final de 2003, eu me afastei do circuito dos torneios, uma carreira de mais de 30 anos que me trouxe amizades e lembranças mara-vilhosas de várias partes do planeta.

Minha vida tem sido estranha, com muitos movimentos drásticos tanto para a esquerda quanto para a direita. Junte-se a mim agora nesta viagem ao mundo do xa-drez e a uma esfera especial: o mundo da elite. Convido você a conhecer e a compe-tir não apenas com os melhores, mas com os melhores entre os melhores, os Cam-peões Mundiais. Em minha carreira eu fui abençoado. Conheci e conversei com Max Euwe e Mikhail Botvinnik, analisei com Ro-bert James Fischer e joguei contra Vassily Smyslov, Mikhail Tal, Tigran Petrosian, Boris Spassky, Anatoly Karpov e Garry Kasparov. Estes são nove dos treze Campeões Mun-diais, cuja história remonta a 1886 e Wilhelm Steinitz. É nestes duelos, nas partidas com os controles de tempo clássicos que joguei contra esses Campeões, que julgo minha carreira no xadrez. Os enxadristas costumam perguntar: “Quem foi o melhor de todos os tempos?”, assim como “Quem eram os dez melhores?” Os melhores dos melhores? Uni-versalmente, três nomes são sempre incluí-dos nestas listas: Fischer, Karpov e Kasparov. Às vezes, mas nem sempre, as listas incluem Spassky, Smyslov e também Tal. Realmente, eu vivi em uma época de gigantes.

A apresentação do material neste livro gerou problemas difíceis, para dizer o míni-mo. Deveria apresentar as partidas na ordem

cronológica em que elas foram disputadas? Se eu fizesse assim, eu ficaria pulando para frente e para trás, de um enxadrista para o outro, e teria dificuldade para apresentar um quadro completo de meus adversários. Por exemplo, minha primeira partida com um Campeão Mundial foi em 1980, contra Boris Spassky, seguida um mês depois por um en-contro com Mikhail Tal, depois uma partida com o então Campeão Mundial Anatoly Kar-pov, e assim por diante, com os jogadores sendo constantemente misturados. Pare-ceu melhor criar um capítulo separado para meus duelos com cada jogador. Deste modo eu poderia dedicar um capítulo inteiro à im-pressão global deles enquanto pessoas, além de discutir seus estilos de jogo.

Tomada esta decisão, uma abordagem lógica era apresentar os gigantes em ordem cronológica, iniciando com Paul Morphy e evoluindo para Wilhelm Steinitz, Emanuel Lasker... Eu faria uma pausa quando chegas-se em Vassily Smyslov, o gigante mais velho com quem duelei cinco vezes, e continuaria andando até chegar a Bobby Fischer, Ana-toly Karpov e Garry Kasparov. Contudo, esta forma de apresentação não me atraía. Em primeiro lugar, eu não tinha nenhuma par-tida contra Bobby e, assim, depois de apre-sentar capítulos com partidas, haveria subi-tamente um capítulo sem nenhuma partida. Mas mais importante do que isso, eu era o produto do “boom de Bobby Fischer” em 1972. Bobby foi o começo de minha carrei-ra. Parecia-me muito mais interessante e eu precisava iniciar com ele. E assim o fiz.

Depois de Bobby, apresento minhas impressões de nossos grandes Campeões Mundiais, tentando compartilhar minhas histórias em primeira e segunda mão en-quanto recuo cronologicamente. Com Vas-sily Smyslov, Mikhail Tal e Tigran Petrosian estou em terra firme.

O grosso deste livro se concentra em três enxadristas: Boris Spassky, Anatoly Karpov e Garry Kasparov, os três gigantes com os quais joguei com mais frequência.

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Existem dois capítulos sobre Karpov: o pri-meiro cobre seu reinado de 1975 a 1985, e o segundo trata do período em que ele se tornou o Campeão Mundial da FIDE no-vamente. Existem também dois capítulos sobre Kasparov: o primeiro compreende seu reinado de 1985 a 2000, e o segundo o “pós-morte” quando ele perdeu o título para Vladimir Kramnik. Vou e volto no tempo um bocado, pois joguei contra esses adversá-rios com frequência e, às vezes, no mesmo evento. Depois, houve intervalos de muitos anos até duelar com eles novamente.

A maior rivalidade enxadrística de to-dos os tempos foi entre Karpov e Kasparov. Ela estendeu-se por décadas e, entre si, eles disputaram cinco matches de decisão do Campeonato Mundial, algo inédito na his-tória. Os capítulos dedicados a eles também incluem muitas informações sobre outros enxadristas. O livro resultante é um virtual caldo de histórias, anedotas e partidas com os gigantes. Tentar separá-los em uma or-dem cronológica rigorosa teria sacrificado grande parte do prazer que eu obtive da es-crita deste livro. Aliar histórias e partidas tor-nou a escrita – e, espero, a leitura – deste li-vro muito mais divertida. Revela-se que uma carreira enxadrística é muito parecida com uma partida interessante – não tão limpa e organizada, simples ou fácil de acompanhar como alguns gostariam. Minha esperança é que este livro seja tanto melhor por não ser um trabalho organizado e limpo. Todos os defeitos são inteiramente meus.

O capítulo final é sobre a Fédération Internationale des Échecs (FIDE), ou Federa-ção Internacional de Xadrez, e o importante papel que esta organização cumpre. Ofereço minhas opiniões sobre seus sucessos e fra-cassos e sobre como ela poderia funcionar melhor nos anos que estão por vir.

AgradecimentosEste trabalho não teria acontecido sem a gentil persuasão de Dan Addelman, editor administrativo da Everyman e sem sua boa

vontade para estender meus prazos de en-trega. Levou mais de um ano, pois trabalhei devagar. Quero agradecer ao historiador de xadrez Edward Winter, conhecido pela Chess Notes, por seus conselhos e também por seu incentivo. Agradeço também a Hanon Russell do Chess Café pela licença para reproduzir minhas anotações da Inside Chess. Também tenho muito a agradecer a meus amigos de longa data Bruce Harper, que gentilmente trocou seu chapéu de autor pelo de revisor, e John Donaldson, por toda sua assistência em pesquisa. Cavalheiros, meus sinceros agrade-cimentos a todos vocês.

Nas partidas apresentadas neste livro, esforcei-me para deixar claro quando as par-tidas eram clássicas, o maior teste de domí-nio do xadrez, quando eram rápidas (de uma hora ou menos por jogador) e quando eram Blitz (cinco minutos para cada jogador). Em minhas anotações, dei especial atenção às partidas clássicas, menos atenção às parti-das rápidas e ainda menos às partidas Blitz. Estas partidas de cinco minutos devem ser desfrutadas e não levadas muito a sério. Na maioria das vezes, saí com meu maxilar des-locado, mas consegui desferir alguns murros e jabs.

Finalmente, gostaria de fazer um agra-decimento e reconhecimento especial a Ro-bert Anthony Karch e Bill Goichberg. Robert organizou torneios abertos suíços durante décadas no noroeste do Pacífico, onde pude adquirir experiência. Ele realmente foi o “Sr. do Xadrez do Noroeste” por muito tempo e, se não tivesse organizado competições, minhas oportunidades de competir no iní-cio de minha carreira certamente teriam sido menores. Em semelhante medida, Bill, afamado pelo Mundial Aberto, organizou campeonatos em todo o país. Competi em muitos dos eventos de Xadrez Continental, às vezes obtendo minhas normas da FIDE. Muito obrigado a vocês dois!

Boa leitura,Yasser Seirawan

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Bobby Fischer

Quando eu estudava na Garfield High School, em Seattle, meu professor de física pediu à classe que escrevesse um trabalho sobre a teoria do Big Bang (A Grande Explo-são) da criação do universo. Em suas aulas, ele parecia especialmente entusiasmado com a teoria, elogiando-a efusivamente. Eu não compartilhava do entusiasmo dele, tendo dúvidas sobre a teoria, mas, mesmo assim, escrevi diligentemente um ensaio intitulado “No princípio”. Ele apresentava o conceito do Big Bang e eu escrevi favora-velmente sobre como a teoria fazia sentido. Recebi um “A+” pelo trabalho e desde então penso sobre o “Princípio”.

A lenda Fischer se inicia“O Big Bang”, não apenas para a minha car-reira de xadrez, mas para muitos enxadristas americanos, foi o sucesso de Robert James Fischer em 1972 (1943-2008). Naquele ano, ele se tornou o décimo primeiro Campeão Mundial de Xadrez segundo a Federação Mundial de Xadrez. Sua vitória no match de 1972 contra Boris Spassky, da União Soviéti-ca, teve um papel central no meu entusias-mo pelo xadrez. Seu sucesso impulsionou

o povo americano para o xadrez e o match com Spassky foi notícia de primeira pági-na por vários meses. Logo todos sabiam da história: ele foi o americano que enfrentou “sozinho” o rolo compressor de xadrez da União Soviética, derrotou-os todos sucessi-vamente e ganhou a coroa, tornando-se o Campeão do Mundo. Meu círculo de amigos íntimos de xadrez estava em polvorosa. “Bo-bby”, como era carinhosamente conhecido por todos, era simplesmente o brinde dos tempos. O fenômeno Bobby Fischer foi ex-traordinário. A revista Life fez uma grande reportagem de capa sobre ele, enquanto a mídia acompanhava todos os seus movi-mentos dentro e fora do tabuleiro.

Após sua vitória em Reykjavik, na Is-lândia, em 1972, Bobby foi homenageado com um desfile na cidade de Nova Iorque e recebeu as chaves da cidade; apareceu no programa Tonight de Johnny Carson; fez uma paródia com Bob Hope; o presidente Nixon o saudou como um herói nacional... E então, no auge de seu reconhecimento e conquistas profissionais, ele deixou o pal-co e desapareceu.

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Onde estava o Bobby?Dizer que a situação era exasperante seria um eufemismo. Todo fã de xadrez nos Esta-dos Unidos aguardava sua próxima partida, torneio e confronto. A impetuosa marcha de Bobby pelo ciclo do Campeonato Mundial e na disputa pelo título tinha sido tão domi-nante que simplesmente não havia dúvida de que ele seria o vencedor no próximo tor-neio ou evento em que competisse. Viven-ciamos uma ansiedade coletiva enquanto aguardávamos o anúncio de quando e onde ele iria jogar novamente. Essa pausa em sua carreira coincidiu com a época em que eu comecei a jogar e me deu uma chance de tentar me igualar. Eu aprendi a repetir suas maiores vitórias, inclusive a “Partida do Sé-culo” contra Donald Byrne. Uau! Disputada quando ele tinha apenas 13 anos.

Eu me emocionava com as histórias sobre a sua partida contra Robert Byrne no Campeonato Mundial dos Estados Unidos. Bobby tinha sacrificado uma peça e os Gran-des Mestres que faziam comentários durante a partida diziam sabiamente ao público que ele tinha jogado levianamente e agora estava perdido... Em seguida, para a surpresa deles, Byrne abandonou a partida. As histórias eram todas muito inspiradoras. Era como se Bobby estivesse em um mundo próprio.

Os meses se passavam e ainda não se tinha notícia sobre o esperado retorno triun-fal de Bobby ao tabuleiro. A preocupação cresceu. O próprio Bobby não havia dito a todos que, como Campeão do Mundo, ele iria jogar com frequência e manter um papel ativo jogando em todos os eventos maiores e mais importantes? Citava-se amplamen-te que Bobby teria dito em uma entrevista: “Tudo o que eu quero fazer é jogar xadrez”. Onde estava ele? Nesse período de trevas no xadrez, parecia que ele estava se escon-dendo – mais especificamente, evitando toda a imprensa e os paparazzi. Ele parecia especialmente tímido diante das câmeras. O que ele estava fazendo? Estava estudando?

Estava jogando “partidas de treinamento particulares” para manter sua vantagem? Bobby não estava apenas ausente – ele tinha desaparecido completamente. Um vácuo de xadrez havia sido criado. O desfile tinha pa-rado, o líder era um desertor.

Em 1974, apareceu um novo livro, es-crito por Brad Darrach, repórter da revista Life, intitulado Bobby Fischer vs. the Rest of the World. Ele causou sensação em meu círculo de amigos. Devorei o livro ansiosamente, sa-boreando todas as revelações sobre as opi-niões e o comportamento de Bobby. Várias passagens me fizeram rir alto, imaginando o que Bobby teve de suportar durante o ven-daval a seu redor. “Tire os russos das minhas costas”, foi o que ele disse ao coronel Ed Ed-mondson, o chefe de sua delegação, e essas palavras adquiriram vida própria. “Saia das minhas costas!” ouvia-se nos clubes de xa-drez e no café Last Exit, onde aprendi a jogar e usar um relógio de xadrez para jogar parti-das de Blitz, ou de cinco minutos.

As especulações sobre o que Bobby es-taria fazendo ou deixando de fazer pareciam crescer e tornar-se mais extravagantes com o passar do tempo. A Igreja Universal do Reino de Deus de Garner Ted Armstrong parecia desempenhar um papel central na vida de Bobby. Essa Igreja parecia ser uma espécie de culto apocalíptico de fundamentalistas cris-tãos que acreditavam na profecia do Novo Testamento. O apocalipse estava sobre nós e somente os verdadeiros crentes seriam sal-vos. Circularam rumores de que Bobby tinha doado os seus ganhos com o Campeonato Mundial para a Igreja. Sua secretária particu-lar, “Claudia”, um membro da Igreja, era res-ponsável por entrar em contato com Bobby e repassar os convites e propostas comerciais. Ela parecia ser o único canal de contato com Bobby. Espalhavam-se rumores sobre ações judiciais de Chester Fox, o homem que tinha os direitos de filmagem do jogo de 1972, as-sim como de uma ação judicial contra os edi-tores do livro de Darrach. Todos os detalhes eram avidamente compartilhados.

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Fiquei sabendo que Bobby tinha rece-bido uma oferta de um milhão de dólares para endossar um xampu em um comercial. Um milhão de dólares! Que quantidade as-sombrosa de dinheiro! Dinheiro fácil com certeza. Bastava tornar-se Campeão Mundial de Xadrez e patrocinadores e ofertas comer-ciais bateriam à sua porta. Como Bobby ti-nha reagido a uma oferta tão maravilhosa? A resposta que nos surpreendeu foi que Bobby recusou. Recusou um milhão de dólares? Se-ria possível? E, em caso afirmativo, por quê? A resposta foi que Bobby recusou a oferta comercial pela mais simples das razões: ele não usava aquela marca particular de xam-pu. Esta resposta impressionante provocou incrédulos minutos de silêncio seguido por gargalhadas. Não parecia possível! “Sério?” todos perguntamos. Sim, fomos informa-dos – Bobby é uma pessoa muito “pura”, que nunca iria endossar um produto no qual não acredita pessoalmente. Hmm.

Essas histórias me fizeram reavaliar toda a minha noção de endossos comerciais. Será que eu seria tão puro? Rejeitaria uma oferta de um milhão de dólares porque eu não usa-va o produto em questão? Certamente que não! Eu também não possuía um Rolls Royce nem um relógio Rolex Midas, mas por um mi-lhão de dólares eu certamente os indicaria como excelentes produtos, especialmente se algumas amostras fossem fornecidas como parte de meu apoio! Afinal, eu deveria ter a chance de experimentá-los.

Histórias sobre Bobby pululavam. Era impossível distinguir mito de realidade. Re-pórteres escreviam tudo o que imaginavam, e não havia ninguém para desmenti-los. Tonela-das de lixo eram vomitadas e constantemente recicladas. A ficção tornou-se realidade, repe-tida por um texto atrás do outro. Os amigos, perplexos com essas reportagens, pediam a Bobby que escrevesse cartas para corrigir os autores, mas geralmente sem sucesso.

Meus amigos de xadrez de Seattle ansia-vam por qualquer notícia de Bobby. A sabe-doria reciclada era a de que ele estava com a

Igreja Universal do Reino de Deus, que Claudia conduzia seus negócios e que, em vez de trei-namento de xadrez, ele estava concentrado no processo sobre o livro de Brad Darrach. Não havia apoios comerciais, nem torneios, nem notícias. Estávamos dolorosamente vazios de histórias para contar uns para os outros.

Artigos constantemente repetiam e alardeavam o seguinte: Bobby desprezava a imprensa, recusou todos os pedidos de entrevista e não queria que as pessoas sou-bessem onde ele vivia: que levava uma vida solitária em Pasadena, Califórnia, usando transporte público para fazer viagens à Bi-blioteca Pública de Los Angeles para fazer pesquisas para seu processo judicial; que to-dos os seus amigos lhe prometeram sigilo e que estava afastado de sua família.

Embora seja apenas especulação da mi-nha parte, parece que a ação judicial de Bobby contra Brad Darrach teve um papel central em sua vida por muitos anos e terminou em desastre para ele. Em sua edição de junho de 1977, a revista Chess Life & Review relatou:

“A ação judicial de 5 milhões de dólares por invasão de privacidade movida por Bo-bby Fischer contra o autor Brad Darrach, da Time-Life International e Stein and Day Pu-blishers, foi indeferida pelo juiz do Tribunal Regional da Califórnia, Matt Byrne. Fischer acusara o autor e os editores de quebrar promessas escritas e orais de não publicar detalhes de sua vida privada. Furioso com o resultado, Fischer disse ao juiz David Byrne: ‘Não pagarei um centavo de imposto de ren-da até que seja feita justiça neste caso.’”

Palavras impressionantes e reveladoras de Bobby. Seu profundo antagonismo às au-toridades federais dos Estados Unidos tinha começado.

O Match de 1975Um dia, um raio de luz nos trouxe energia: Bobby teve uma carta publicada na edição de novembro de 1974 da Chess Life & Review, na qual ele propunha novas, ou talvez anti-gas, regras para o match de defesa do título

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programado para 1975. Em vez das regras do melhor de 24 partidas que ele usou para derrotar Boris Spassky, Bobby queria retro-ceder cem anos para as regras de Wilhelm Steinitz, propondo um confronto do primeiro a ganhar dez partidas, desconsiderando-se os empates. Estas regras incluíam a condição de que, se o Campeão Mundial que estivesse defendendo o título (Fischer) vencesse nove partidas, ele não poderia perder o match. O Campeão Mundial teria que vencer dez parti-das para ganhar a competição, assim como o Desafiante – mas, se o Campeão Mundial ven-cesse nove partidas, o pior que poderia acon-tecer seria um empate com nove vitórias de cada um. O prêmio seria dividido igualmente em caso de um empate de nove vitórias, mas o Campeão Mundial conservaria seu título.

A proposta de Bobby provocou imen-sas discussões nos círculos e revistas de xa-drez. Matemáticos escreveram extensamen-te sobre como um empate de 12 a 12 com o Campeão conservando seu título era mais vantajosa para o Campeão Mundial do que as regras de obrigação de vitória em dez partidas. Na Chess Life & Review, Fischer ex-plicou que, como os empates não contavam, os dois adversários estariam motivados a jo-gar por uma vitória em todas as partidas.

Era tudo muito excitante. Bobby esta-va voltando! E também não jogaria apenas as 24 partidas. Quem sabia quanto tempo iria durar um match contra o Desafiante soviético Anatoly Karpov? Seriam meses de partidas. Ou jogaria? A instituição de xadrez que teria que aprovar as mudanças nas regras era a Federação Internacional de Xadrez (FIDE) que, como muitas instituições internacionais da época, era dominada pela União Soviética e seus aliados. As propostas de Bobby seriam aceitas pelos delegados nacionais na Assembleia Geral da FIDE, ou as mudanças propostas por Bobby seriam rejeitadas? De repente, pessoas que nada sabiam sobre a FIDE começaram a aprender sobre seu Comitê Central, suas regras e seus procedimentos de votação. Era tudo muito

estranho, mas, de alguma forma, também fascinante.

Mais ou menos na época em que se acirrava a discussão sobre se as propostas de Bobby seriam mais justas para o Desafiante do que uma disputa de duração fixa, na qual os empates aproximavam o líder do título cobi-çado, surgiram rumores de que o ditador fili-pino Ferdinand Marcos tinha oferecido cinco milhões de dólares para sediar o Campeonato Mundial de Xadrez de 1975. Todos se voltaram para a FIDE – certamente os delegados apro-variam as mudanças nas regras, Bobby estaria na disputa e milhões de dólares estariam em jogo. Com 20% do dinheiro indo para a FIDE, seria uma oferta boa demais para ser recusa-da. Estávamos tontos de empolgação. A vota-ção na FIDE seria uma formalidade.

Então o mundo do xadrez foi engolido por um buraco negro. O ex-Campeão Mun-dial Max Euwe, na época presidente da FIDE, convocou um congresso especial da FIDE para votar sobre as propostas de Fischer para as regras do Campeonato Mundial. A votação foi muito disputada. Meu amigo coronel Ed Edmondson, que tinha sido diretor executivo da United States Chess Federation (USCF), ou Federação de Xadrez dos Estados Unidos, contou-me sua história nos bastidores do evento, que eu resumi como segue:

“A disputa seria acirrada. Os dois lados estavam usando todos os meios possíveis. Os soviéticos estavam torcendo braços e cotove-los e as nações ocidentais estavam fazendo o mesmo. Aquela era a nossa chance de levar o xadrez a novos patamares. A perspectiva de um match de cinco milhões de dólares dis-putado nas Filipinas, confrontando um ame-ricano e um soviético, colocaria o xadrez com firmeza nas capas de jornais do mundo inteiro outra vez. O confronto provavelmente duraria meses. Fazíamos lobby como se não houvesse amanhã. Sem dúvida, não haveria amanhã.

“Eu conhecia o Bobby muito bem. Ele queria as regras de Steinitz e acreditava ge-nuinamente que elas eram mais justas para os dois adversários. Ele as queria mesmo an-

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tes de jogar contra Spassky, mas como De-safiante ele não tinha chance de mudar as regras. Eu sabia, simplesmente sabia que, se as regras de Steinitz não fossem aprovadas, Bobby renunciaria ou perderia seu título. As apostas eram radicais assim. Antes da vota-ção, eu estava nervoso, porém confiante. Eu achei que ele iria ganhar, mas com uma mar-gem pequena. Perdemos por uma margem muito estreita. Ao que parece, o delegado mexicano mudou seu voto no último ins-tante possível. Um ano depois, uma delega-ção de Grandes Mestres soviéticos visitou o México em uma turnê de cortesia realizando seminários e simultâneas gratuitas. Os sovié-ticos conseguiram sua vitória, mas atrasaram o xadrez em uma década ou mais.”

Lembre-se de que essa votação ocor-reu em uma época em que os soviéticos e seus satélites costumavam vencer votações nas Nações Unidas com margens retumban-tes. O fato de a disputa ter sido tão acirrada é realmente um atestado de o quanto foi forte o lobby da USCF. O resultado da decisão da FIDE não poderia ter sido mais cataclísmico. A previsão mais terrível se concretizou: pra-ticamente no momento em que a contagem de votos foi anunciada e a moção pela mu-dança de regras perdida, Bobby declarou sua renúncia como Campeão Mundial de Xadrez da FIDE. Posteriormente, contudo, Bobby de-clarou que renunciara “apenas” seu título da FIDE e que ainda era Campeão Mundial.

Em vez de aprovar as regras de Steinitz de “precisar vencer dez partidas”, que Bobby queria, os delegados da FIDE buscaram um meio-termo e aprovaram um conjunto de regras de “precisar vencer seis partidas”. Em caso de um empate de cinco a cinco, o match continuaria até que a próxima partida decisiva fosse disputada. As regras de “pre-cisar vencer seis partidas” eram defendidas por José Raúl Capablanca e costumam ser chamadas de “Regras de Londres”.

Isso era típico na tomada de decisões da FIDE então e sempre. Dada uma escolha entre “A” ou “B”, os delegados da FIDE inva-

riavelmente aprovavam um plano “C”, o qual era um híbrido entre as duas opções que geralmente sublinhavam e combinavam os piores aspectos das duas opções originais e, ao mesmo tempo, não possuíam qualidades próprias compensadoras.

Naquela época e desde então, eu acha-va que um match de 24 partidas era mais do que suficiente para determinar o melhor jo-gador. Eu gostava do sistema de ter que ven-cer dez partidas pelo aspecto dramático, pois os jogadores teriam que correr riscos para vencer o match, mas a ideia de uma compe-tição “sem data para terminar” me preocupa-va. Um match deste tipo poderia se estender por meses, possivelmente arruinando o orça-mento do patrocinador e também enfadan-do o público. Os organizadores de um match de dez vitórias poderiam ser financeiramen-te aniquilados ao fixar um local para a com-petição. E se o match se decidisse em poucas semanas e o lugar tivesse sido alugado por muitos meses? Inversamente, e se após mui-tos meses o placar fosse de apenas seis vitó-rias para um dos competidores? Como esten-der o contrato ou encontrar um novo local? E como um match realmente longo que duras-se muitos meses afetaria o ciclo de três anos? Por princípio, o perdedor do match tinha que entrar no ciclo nos estágios iniciais, mas ele poderia já estar em andamento.

Após a renúncia de Bobby em abril de 1975, o Desafiante soviético Anatoly Karpov foi declarado Campeão Mundial por forfeit. Os apreciadores americanos de xadrez fica-ram amargamente decepcionados, sentindo, sem dúvida, como Bobby sentia, que eles e todo o mundo do xadrez tinham sido priva-dos de um duelo excitante. O novo Campeão Mundial, Anatoly Karpov, passou sua carreira tentando reverter a opinião pública de que ele não era um verdadeiro campeão.

A lenda cresceApesar da desistência, o interesse em Bobby Fischer era tão palpável que, quando eu jo-guei no Aberto Americano em 1976 em Santa

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Monica, correu um falso boato no salão do torneio de que um “homem de barba, possi-velmente Bobby” estava no prédio. O salão de jogos ficou praticamente vazio. Esta era uma grande proeza em um evento suíço grande, onde uma sirene com quatro alarmes mal conseguia tirar os competidores de seus ta-buleiros. (Lembre-se de que Pasadena, a cida-de natal de Bobby, ficava apenas a uma hora de carro de Santa Monica.)

Encontrar uma comparação para ilus-trar o impacto da ausência de Bobby é mais do que difícil, mas vou tentar. Atualmente somos abençoados com alguns talentos excepcionais no xadrez no mundo inteiro: Yifan Hou, uma chinesa de 15 anos, é apre-sentada como futura Campeã Mundial; Parimarjan Negi, da Índia, Sergey Karjakin, da Ucrânia, Teimour Radjabov, do Azerbai-jão, Hikaru Nakamura, dos Estados Unidos, Daniel Stellwagen, da Holanda, e David Howell, da Inglaterra, todos se destacam; e, é claro, o mais cotado de todos, Magnus Carlsen, da Noruega. Como é emocionante ver todas essas jovens estrelas competirem e avançarem lentamente rumo às mais al-tas honrarias. Embora seja difícil reconsti-tuir a época de 1974 e 1975, para colocar o interesse em Bobby em perspectiva, leve embora todas essas promissoras estrelas da atualidade e faça-as declarar coletivamente que estão desistindo do xadrez para sem-pre. O desapontamento sentido pela au-sência de Bobby não poderia ser maior. Eu, por exemplo, fiquei totalmente murcho.

Depois de 1975, tive que me consolar jogando por meio de My 60 memorable ga-mes e também ouvindo histórias de colegas que tinham conhecido Bobby pessoalmente. Eis, então, uma lista de “Histórias de Bobby” de que eu sempre gostei. A maioria delas es-tou compartilhando pela primeira vez...

As duas primeiras são de Robert Byrne, que, além de ser um dos Grandes Mestres mais bem-sucedidos dos Estados Unidos, escreveu para a Gray Lady, o The New York

Times, por décadas. Resumirei duas histórias de Byrne como segue:

“Foi durante a disputa das Finais dos Candidatos de 1971, em Buenos Aires, com Tigran Petrosian. Eu estava no centro de im-prensa preparando minha coluna. Todos os soviéticos estavam lá, olhando para os mo-nitores e analisando o jogo abertamente em uma das mesas centrais. Miguel Najdorf era o centro das atenções e fazia comentários depois de cada lance. Miguel achava que Bobby tinha uma boa posição na sexta par-tida e então, quase inacreditavelmente, ele fez seu lance, Cc5xd7, trocando seu impres-sionante cavalo em c5, realmente poderoso, por um dos piores bispos em d7 que uma posição pode ter...

“Najdorf quase voou da cadeira. ‘Meu Deus! Ele enlouqueceu!’, ele começou a gri-tar. ‘Trocar um cavalo desses por um bispo daqueles!’ Najdorf segurou o cavalo para que todos o vissem. ‘Ele não entende nada, nada de xadrez!’

“Os soviéticos praticamente riram e se abraçaram; eles estavam muito contentes com o que todos concordavam ser uma pés-sima troca. Uma troca que livraria Petrosian do perigo, entende?

“Todos olharam para mim, esperando que eu, por ser dos Estados Unidos, tentaria defender a decisão de Bobby, mas eu apenas fiquei em silêncio, explicando que eu tinha uma coluna a escrever e estava ocupado de-mais para tomar parte naquilo. Secretamen-te, eu sabia exatamente o que Bobby estava pensando, porque eu tinha analisado com ele muitas vezes. Para Bobby era tudo mui-to simples. Ele valorizava mais os bispos do que os cavalos. Ponto. Para ele, na posição resultante, seu bispo estava muito melhor do que o cavalo das Pretas. Ele viu que podia centralizar seu rei, bloquear o peão-d passa-do das Pretas e, depois, suas torres e bispo coordenariam-se melhor do que as torres e o cavalo, e o jogo estava acabado. Para Bobby, aquela captura de cavalo por bispo era como cravar o último prego no caixão.

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“Alguns lances depois da troca, eu es-tava olhando para o Grande Mestre Alexey Suetin, o técnico de Petrosian, e ele estava de boca aberta e ficando cada vez mais boquia-berto. Quando Petrosian se encontrava pres-tes a abandonar a partida, seu queixo estava quase na mesa e ele sussurrou: ‘Ele joga de uma maneira tão simples.’ Eu me esforcei mui-to para me conter, para ser educado e não rir, mas não foi possível. Veja, aquele era o jeito do Bobby jogar. Xadrez clássico simples.”

Existe algo nessa história que me emo-ciona profundamente, a ideia de que o Cam-peão Mundial tem uma compreensão niti-damente superior a dos outros. Ele tem seus conceitos e com seus lances ele diz: “É assim que eu penso. Refute-me se for capaz”.

A segunda história de Byrne era de 1966: “Jogamos em Havana na Olimpíada.

Os cubanos eram anfitriões maravilhosos. Os momentos mais felizes para mim eram quando Bobby era cortejado. Ele tinha uma suíte ampla bacana e a equipe toda entrava em fila depois da rodada. Bobby reconstituía a partida para nós e nos mostrava como ele havia vencido e por quê. Era simplesmente fascinante. Sua análise era incrível. Era como se os lances fluíssem das pontas de seus dedos. Suas mãos eram grandes e as peças apenas se mexiam, praticamente dançando, e era tão especial. Daí, um desastre se aba-teu sobre nós... Bobby estava mostrando um jogo à equipe e então fez uma pausa e começou a rir, e ficou rindo e rindo cada vez mais alto. Tentando falar, ele disse: ‘E agora vocês sabem o que o pato jogou? Ele jogou...vocês não vão acreditar...’ Bobby moveu a peça e sumiu debaixo da mesa num ataque de riso convulsivo.

“A equipe se pôs a estudar a posição freneticamente. Não conseguíamos enten-der a risada de Bobby e queríamos com-partilhar. Mas, maldição. O lance que seu adversário fez parecia totalmente sensato e eu estava tendo dificuldade para enten-der onde estava a refutação. Foi então que Bobby se recuperou de seu ataque de riso

e conseguiu sair do chão e voltar para o ta-buleiro. Ele fez seu lance. Droga! Estava bem debaixo do nosso nariz e era tão óbvio. Eu não tinha visto. Mas quando eu compreendi instantaneamente como aquilo minava to-talmente a estratégia do adversário, eu tam-bém tive que começar a rir. Uns segundos depois outra pessoa começou a rir, e logo to-dos estavam rindo também. Mas eu te digo, Yasser, naqueles poucos segundos em que não vi o lance, fiquei em pânico total. Eu não queria que Bobby pensasse que eu também era um pato.”

O lado negro de analisar xadrez com um gênio. Você não quer ser chamado para o ringue para explicar um lance.

Quem conheceu “Don” Miguel Nadjorf, o Grande Mestre argentino nascido na Po-lônia, sabe que ele era um homem de pai-xões. Veloz para tomar uma decisão em um décimo de segundo, Miguel me contava histórias sobre os campeões por horas a fio. Eu não entendia por que alguém não entre-vistava Miguel por algumas horas, pois ele era um ótimo contador de histórias. Eu ado-rava nossos encontros. Ele tinha inúmeras histórias sobre Bobby, das quais muitas me esqueci, infelizmente. Miguel tinha opinião sobre tudo e, a que segue, discutimos mui-tas vezes e demoradamente.

Estávamos em um restaurante em Bue-nos Aires jantando nosso “lomo” de costume quando Miguel me disse, “Jasser!” (em espa-nhol, o “y” muitas vezes é pronunciado como um “j”, e Miguel gostava mais do som de Jasser do que de Yasser; assim, para Miguel – e somente para ele – eu fiquei sendo Jasser) “Você sabe que o Bobby não tem estilo.”

Agora, este é o melhor gambito de abertura para uma conversa entre enxadris-tas que eu já vi. “Quê? Eu não te entendo, Miguel. O que você quer dizer?” perguntei.

As opiniões de Miguel eram sempre defendidas com vigor e ele se comprazia em me fisgar e me puxar para discussões anima-das e emotivas. Ele era um homem apaixo-nado que amava demais o xadrez. Explicou

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sua teoria, sobre a qual penso com frequên-cia. Ela dizia o seguinte:

“Quando você me mostra uma parti-da de Capablanca, eu penso, ‘A-ha, Muito legal. Muito suave. Lances lógicos. Jogo bo-nito. Deve ser uma partida de Capablanca!’ Depois, você me mostra outra partida e eu penso, ‘Meu Deus! Quem é esse bandido jogando com as Brancas? Olhe estes sacri-fícios descuidados, ousados. E esse lance calmo, também! Incrível! Perdendo duas pe-ças e ele para para fazer um lance desses. E ele venceu! Mas claro, me dou conta, este é Tal.’ E outra partida. ‘Eu não consigo enten-der o que o jogador está fazendo. Ele está tomando precauções extraordinárias e seu adversário nem sequer está atacando. Agora ele manobrou suas peças para trás e depois para frente outra vez em boas casas. Ele me-lhora sua posição mas não fez nada concre-to. Meu Deus! O adversário está sufocado e simplesmente morto! Onde estava o erro? É claro, este é Petrosian.’ Veja você, Jasser! Eu reconheço o estilo. Mas quando eu analiso uma partida de Bobby, eu não vejo nada. Não tem estilo. Bobby jogava com perfeição. E a perfeição não tem estilo.”

A perfeição não tem estilo. Um conceito muito interessante, se você parar para pensar. Ficamos horas discutindo e, no fim, eu achei a teoria de Miguel muito convincente.

Hoje, com o advento dos computado-res, essa discussão sobre se a perfeição tem um “estilo” poderia ser retomada. Eu sempre gostei de jogar Blitz e, atualmente, jogo on-line. Às vezes, depois de uma vitória, meu adversário me acusa furiosamente de estar usando um computador e coloca meu nome no “ignorar” sem saber quem eu sou. Quan-do analiso a partida que venci, ela pode pa-recer “estilosa”, mas alguns dos lances eram, na verdade, os segundos melhores. As duas coisas combinam?

Alguns usam o termo computer-like (semelhante a computador) para descrever um lance, uma estratégia ou o final de uma partida. É esta última parte que eu acho in-

teressante. A expressão computer-like tem uma forte conotação de precisão e perfei-ção. Mas os computadores vencem de uma maneira complicada. Eles não trocam quan-do têm vantagem material, uma tendência humana natural e uma prática bem estabe-lecida para reduzir o potencial de caos. Os computadores empilham complicações em cima de mais complicações, sabendo como vão se sair. Esse jogo dinâmico muitas vezes faz com que os computadores vençam com mais rapidez do que os humanos, que tro-cam quando têm vantagem material. E, ga-rantindo que fiquem dentro de seus limites, os computadores nunca cometerão um erro devido à fadiga. O que os humanos vêem como “complicações” são, para um compu-tador, simplesmente a demonstração de um teorema. Existe estilo em tal perfeição? Bobby venceu muitas partidas complicadas e sem dúvida parecia deleitar-se com táticas, mas ele também ficava feliz ao simplificar para uma vitória técnica. Ele jogava com per-feição? Muitos de seus colegas achavam que sim, embora análises computacionais poste-riores tenham demonstrado que mesmo Bo-bby às vezes não jogava perfeitamente. Mas perfeição e estilo estão nos olhos de quem vê e, em um sentido real, o jogo de Bobby transcendia o estilo.

Na década de 1970, eu costumava via-jar para a Big Apple para jogar em eventos e encontrar adversários para jogar Blitz. In-clusive visitei a famosa “Flea House” perto de Times Square antes de me decidir pelo Manhattan Chess Club como meu refúgio predileto para jogar Blitz. Quando estava na cidade, eu tentava me encontrar com Asa Hoffman, um conhecido mestre de Blitz que sabia muitas histórias sobre Bobby, e passá-vamos horas juntos enquanto ele me con-tava sobre como ludibriava Bobby, fazendo apostas que nem mesmo Bobby podia su-perar. “Ele me dava vantagem de cinco para um em dinheiro e também vantagem do empate. Sem vantagem de tempo. Nós dois jogávamos com cinco minutos cada um. Ele

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vencia nos placares, eu ganhava o dinheiro.” Assim Asa descreve suas sessões.

Em uma de minhas visitas, Asa me apre-sentou a Jackie Beers. Jackie usava barba e tinha uma aparência desleixada naquele dia. Contudo, ele foi apresentado como um con-fidente íntimo de Bobby. Sentamos para uma boa conversa e Jackie me contou que recente-mente tinha recebido uma chamada: “Bobby me perguntou se eu podia emprestar-lhe 50 pratas”. Eu fiquei surpreso. “Eu disse que, se eu tivesse, certamente lhe mandaria, mas eu disse a verdade, que eu não tinha os 50 dó-lares”. Eu acreditei que Jackie estava dizendo a verdade quando disse que não tinha os 50 dólares, mas poderia mesmo ser verdade que Bobby era tão pobre que precisava pedir di-nheiro emprestado a amigos que mal podiam atendê-lo neste modesto pedido de ajuda?

Parecia totalmente incoerente. Como seria possível? Estávamos falando de um homem que podia ganhar milhares de dóla-res em um único dia jogando em torneios, participando de simultâneas ou mesmo dando uma palestra. Seria tão simples e, no entanto, Bobby preferia pedir dinheiro em-prestado? Viver uma vida de miséria? Mas que diabos estava acontecendo? Eu fiquei totalmente confuso.

Durante uma de minhas visitas a Nova Iorque eu fiquei com uma família. O mari-do era um médico suíço, o “Dr. Rudy”. Ele se interessava muito por xadrez pois seus dois filhos jogavam. Ele fizera contato com Claudia e queria ajudar Bobby a sair de sua aposentadoria autoimposta. Ele agendou um encontro com Bobby e pagou 5 mil dó-lares adiantados pelo privilégio de conhecer e falar com ele. As conversas deveriam ser totalmente sigilosas e não haveria fotos. O Dr. Rudy embarcara na aventura e saiu com uma impressão extremamente positiva. Bo-bby estava pronto, disposto e até ansioso para jogar, mas insistia nas regras de Steinitz para jogar em matches. Infelizmente, ele não estava interessado em participar de torneios.

No decorrer dos anos, conheci nume-rosas pessoas que tinham feito o mesmo que o Dr. Rudy, pagando cinco mil dólares pelo privilégio de um encontro. A maioria desses encontros parecia ter ido muito bem e o pessoal saía confiante. Confiantes ou não, tudo deu em nada.

Havia alguma esperança? Minha história predileta sobre “pagar pelo privilégio de conhecer Bobby” é a de Arnfried Pagel. O Sr. Pagel era um industrial no ramo de cimentos que se fixou na Holanda, perto de Beverwijk. Por seu grande interesse em xadrez, ele patrocinava um clube local, o Koningsclub. Pouco tempo depois, o Sr. Pagel decidiu que seu clube estava destinado a tor-nar-se o Clube Campeão de Xadrez da Holan-da e, assim, saiu em busca de “mercenários”, Grandes Mestres que ele contrataria para jogar em seu esquadrão. Naquela época, le-vava tempo para promover um clube para o nível mais alto da liga, mas o Sr. Pagel estava ansioso para que seu time vencesse o Cam-peonato da Liga “antes do tempo”. Ele resol-veu contornar o processo de qualificação usual e propôs um desafio direto a Volmac, o Campeão dos Clubes Holandeses. A equipe do Volmac aceitou o desafio, e fui contratado pelo Sr. Pagel, por indicação de Lev Alburt, para jogar para seu Koningsclub.

O Sr. Pagel foi um anfitrião maravilhoso, e, para minha sorte, o resultado do match de dois dias dependia do resultado de minha se-gunda partida contra Raymond Keene. Se eu vencesse, o Koningsclub venceria o match de desafio, e foi exatamente isso o que aconte-ceu. O Sr. Pagel estava nas alturas e me con-vidou, assim como Victor Korchnoi, da equipe do Volmac, para jantar e jogar bridge. Naque-la noite, o Sr. Pagel nos contou a seguinte his-tória, que também resumi assim:

“Depois que comecei a patrocinar o Koningsclub, comecei a me dar conta de que seria um verdadeiro sonho para mim se Bobby Fischer jogasse ao menos uma parti-da pela equipe. Escrevi para Claudia e fiz a

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oferta de pagar 100 mil dólares a Bobby para jogar uma única partida. Como estávamos nos níveis mais baixos na época, o adversá-rio de Bobby seria um verdadeiro amador no xadrez escolhido de forma totalmente alea-tória. Recebi uma resposta afirmativa de que Bobby estava disposto a conversar sobre a minha oferta, mas gostaria de me encontrar para tratar dos detalhes. Haveria uma “taxa de ingresso” para o público? A partida seria filmada? E assim por diante. Eu teria que pa-gar 50 mil dólares para me encontrar com Bobby para acertar os detalhes e voar para Pasadena. Eu concordei sem hesitar.

“Em meu primeiro encontro com Bobby tudo correu bem. Conversamos sobre mui-tos detalhes e chegamos a um acordo geral. Passei algumas horas com ele no primeiro dia e ele me elogiou, dizendo que desfruta-ra imensamente de minha companhia e me perguntou se poderíamos nos encontrar no-vamente no dia seguinte, para que ele tivesse tempo de pensar sobre nossa conversa e os principais pontos. É claro que eu concordei. Encontramo-nos de novo e parecíamos ter feito muito progresso. Isso continuou, mas eu tinha um sentimento muito desconfortável de que, apesar de ser, no meu entendimen-to, uma oferta muito generosa, de alguma forma Bobby estava procurando um motivo para dizer não. Se esse fosse o caso, minha viagem teria sido em vão e eu voltaria para a Holanda de mão vazias. E o pior é que eu não tinha absolutamente nenhuma prova de que eu sequer havia me encontrado com Bobby. Uma das condições de nosso encontro foi a de que não haveria câmeras nem fotos nem comentários com a imprensa sobre o nosso encontro. Eu tinha concordado. Mas o que fazer agora? Eu não queria voltar de mãos to-talmente vazias.

“Por fim, decidi contratar um detetive particular. Sua tarefa seria tirar uma foto de Bobby comigo de longe, sem que ele o sou-besse. Eu evidentemente manteria a foto em total sigilo e só a usaria como prova de que havia realmente me encontrado e dis-

cutido com ele a ideia de ele jogar uma par-tida para o clube.

“Durante os encontros, nossas conver-sas estavam ficando presas a detalhes. Bobby estava fazendo perguntas para as quais eu não tinha respostas e a possibilidade de che-gar a um acordo estava diminuindo. Faríamos uma última tentativa e um terceiro encontro final, pois eu precisava voltar para a Holanda. Combinamos de nos encontrar em um deter-minado banco de um parque ao meio-dia. Eu estava lá pontualmente. Nada de Bobby. Passados quinze minutos, comecei a duvidar de que estava no lugar certo. Nos encontros anteriores, Bobby tinha sido sempre pontual. Assim, eu estava sentado em um banco de parque começando a ter dúvidas, quando ouvi um ‘psiu’ vindo das árvores atrás de mim. Isso continuou e eu olhei para as árvores e vi Bobby.

‘Bobby! O que você está fazendo nas árvores? Saia daí’, eu disse.

‘Não’, disse Bobby. ‘ Venha você aqui’. Daí eu fui até as árvores onde Bobby

estava se escondendo e começamos a sus-surrar em um tom conspiratório. ‘Por que estamos nos escondendo assim?’, perguntei.

Bobby parecia muito agitado e olhava em volta. ‘Estou sendo seguido!’, ele disse.

“É claro que eu imediatamente com-preendi que Bobby tinha descoberto que estava sendo seguido pelo detetive particu-lar que eu tinha contratado para tirar nossa foto. Eu não poderia dizer uma palavra sem me entregar. De algum modo, andamos pela fileira de árvores e despistamos nosso perse-guidor. Posteriormente, eu consegui minhas fotos, mas Bobby nunca jogou pela minha equipe. Depois desta viagem, eu entendi que Bobby não jogaria xadrez outra vez.”

A história de Pagel, que ele me contou em maio de 1982, embora engraçada, trou-xe uma grande decepção. Embora dez anos tivessem se passado desde que Bobby tinha jogado uma partida de xadrez em público, to-dos tínhamos esperança de que ele retorna-ria à arena do xadrez, mas a história de Pagel

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parecia por um fim a essa perspectiva para sempre. Afinal, o que poderia ser mais sim-ples? Jogar uma única partida na Liga Holan-desa contra um amador com rating de 1200 por uma remuneração de cem mil dólares. Nenhum título mundial em jogo; nenhum intermediário soviético com o qual tratar; ne-nhuma competição endossada pela FIDE; ne-nhum adiantamento nem intervalos prolon-gados ou postergações; apenas duas pessoas disputando uma partida vespertina em um clube local. Caramba, eles podiam até dividir uma rodada de cerveja durante a partida, que é uma prática comum. Se aquela oferta não foi aceita, que esperança poderia haver para um evento mundial mais sério? O relato de Pagel me fez afundar completamente.

Mais um detalhe da história da Pagel que vale a pena contar. Ele havia combinado com Claudia de se encontrar com Bobby por uma taxa de 50 mil dólares. Essa taxa incluía o acordo de que Bobby tornar-se-ia membro honorário do Koningsclub. Quando chegou a hora de Pagel pagar a Bobby seus hono-rários, ele apresentou cinco maços bem or-ganizados com 10 mil cada um. Bobby, que gostou de Pagel, devolveu três dos maços, explicando que 20 mil eram suficientes. Bobby tinha uma personalidade complica-da. Se ele gostasse de você, ele abriria mão de seus honorários e seria generoso; se não gostasse, independentemente da quantida-de de dinheiro envolvida, ele simplesmente recusaria, inclusive, ofertas de um milhão ou mesmo de cinco milhões de dólares.

Por que eu ainda nutria esperanças de um retorno de Bobby ao tabuleiro? Ao longo do tempo, minhas vagas esperanças tinham sido nutridas pelos Grandes Mes-tres Eugene Torre das Filipinas e Miguel Quinteros da Argentina. Ambos eram ami-gos íntimos de Bobby e, mais importante, seus confidentes. Em diversas ocasiões e lu-gares, eles pareceram ter se encontrado com Bobby por alguns dias de troça e diversão e, evidentemente, um tabuleiro de xadrez era inevitavelmente puxado. Bobby ainda es-

tudava a Chess Informant e deliciava-se em desmontar a análise de Karpov (que Bobby chamava depreciativamente de “Kar-piche”) e do jovem Kasparov. Bobby começava: “Está bem, vejamos agora como o dito Campeão Mundial, o Sr. Kar-piche joga xadrez... Agora nesta posição, que Kar-piche diz equilibra-da. É mesmo? O que será que ele faria diante deste lance? Talvez o dito Campeão Mundial quisesse abandonar a partida?” “Oh, e isso é bom. Aqui ele diz que está ganhando. Inte-ressante. Depois deste lance, não podemos concordar em um empate?”

Eu jurei tanto a Eugene quanto a Miguel não contar nada a ninguém e regozijava-me por ter obtido sua confiança. Nunca revelei o que eles me mostraram, mesmo quando estava explodindo de vontade de fazê-lo. É claro que eu já me esqueci das muitas posi-ções que eles mostraram, onde Bobby des-mantelava a análise do “dito Campeão Mun-dial”, mas uma coisa estava clara: Bobby tinha encontrado defeitos na análise dele. Defeitos indiscutíveis. “Por que ele estava estudando as partidas de Anatoly Karpov tão atenta-mente se não estava determinado a arrasá-lo no tabuleiro?”, eu pensava. Depois, eu refletia sobre o relato de Pagel e me perdia. Quero di-zer, ali estava um patrocinador perfeito, um industrial nascido na Alemanha, disposto a pagar milhares de dólares e a aceitar todos os termos e as condições que Bobby exigisse, uma pessoa que fez uma amizade com ele e, mesmo assim, não foi possível chegar a um acordo. E o que pensar de Jackie Beers e a ne-cessidade de pedir 50 dólares emprestados? Era muitíssimo confuso!

Em outra ocasião, Miguel Quinteros contou-me uma história fantástica que era mais ou menos assim. Ele e Bobby combina-ram de visitar Las Vegas e curtir um peque-no feriado. Bobby não gostou da ideia de se hospedar em um dos grandes cassinos e preferiu ficar em um hotel fora do circuito de cassinos. Eles dividiram um quarto du-plo e saíram para jogar nas máquinas caça--níqueis, comer num buffet e assistir a algum

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show. Miguel explicou que tinha várias ma-las Samsonite grandes, onde levava seus ternos caros feitos sob medida, enquanto Bobby tinha uma mala leve e uma pequena bolsa, semelhante a uma pasta executiva, que ele mantinha chaveada e escondida debaixo de sua cama. Essa pasta especial continha as valiosas revistas em quadrinhos mexicanas de Bobby, que ele adorava, além de alguns suplementos vitamínicos. Certa noite, quando voltaram ao quarto, percebe-ram que haviam sido vítimas de um assal-to. Os ladrões não haviam levado os ternos caros de Miguel, e a única coisa que estava faltando era a pequena valise chaveada de Bobby, escondida debaixo da cama. Bobby choramingou: “O cara rouba minhas revistas e não toca nos teus ternos? Qual é a dele?” Miguel ri disso há anos.

Uma história final de Miguel Quinteros. Um de seus amigos mais queridos e próxi-mos é seu conterrâneo Jorge Rubinetti. Eles participaram de um torneio round robin em Buenos Aires, em 1970, com Bobby. A parti-da estava marcada para a tarde e, perto do meio-dia, Miguel ouviu alguém batendo na porta de seu quarto no hotel. Era Jorge, seu amigo de infância. Em algumas horas, ele te-ria que encarar o grande Bobby Fischer. “Por favor”, disse Jorge, “você precisa me ajudar a me preparar! Hoje eu jogo de Pretas contra Bobby e você precisa me dizer o que preciso fazer.” E, então, o que o querido e íntimo ami-go Miguel aconselhou a seu maior amigo, que era como um irmão, em seu desespera-do momento de necessidade? Miguel sorriu, meneou a cabeça e disse: “Jorge, deixe-me explicar. Este cara vai te arrasar. Ele estudou a vida inteira para derrotar patos como nós. Você não tem chance. Não há nada que eu possa te aconselhar para impedir o inevitá-vel. Por favor, não vamos perder tempo e va-mos ter um belo almoço juntos. Depois você pode me mostrar como perdeu.”

Nós todos tínhamos sido informados de que Bobby tinha uma grande capacidade para trabalhar duro no xadrez, que ele es-

tudava até tarde da noite e passava a maior parte de suas horas de vigília lendo livros e revistas de xadrez. A história a seguir foi con-tada por outras pessoas, mas eu posso tran-quilamente confirmar sua autenticidade. Ela me foi contada por Allen Kaufman. Allen era há muito o diretor executivo da American Chess Foundation (ACF), que hoje é a Chess--in-Schools Foundation. Nos velhos tempos, a ACF começou como uma fundação para apoiar os esforços de Samuel Reshevsky em sua luta pelo Campeonato Mundial. Vou re-sumir a história de Allen:

“Eu conhecia Bobby muito bem e o via sempre pela cidade de Nova Iorque, em clubes e em torneios. Nós nos dávamos bem. Na época em que ele estava se pre-parando para seu confronto com Spassky, ele andava carregando seu famoso “livro vermelho”. Este era a edição da série alemã (Weltgeschichte des Schachs Volume 27) que continha as partidas de Spassky (mais de 350 partidas). Era o tipo de brincadeira que Bobby adorava fazer com as pessoas, inclu-sive comigo. Ele nos alcançava o livro e dizia: ‘Escolha uma partida’. Eu abria o livro e es-colhia uma. ‘Diga-me o número da partida, o nome do adversário e onde a partida foi disputada’. E eu dizia. Bobby então reconsti-tuía a partida e os movimentos exatos. Você podia literalmente pôr o dedo sobre a pági-na, acompanhar os lances nos diagramas e Bobby lhe dizia quando ela iria terminar. Era realmente a coisa mais incrível. Não esqueça que os jogadores às vezes repetiam um ou dois lances para ganhar tempo no relógio, e Bobby acertava o placar. Só posso explicar isso como uma memória fotográfica, pois Bobby tinha memorizado o livro inteiro.”

Pessoalmente, isso me pareceu uma ver-dadeira proeza. Eu mal consigo me lembrar de minhas próprias partidas, muito menos me-morizá-las lance por lance. Fazer isso com as de outro jogador? Fala sério. De jeito nenhum!

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Conhecendo Victor KorchnoiEm muitos aspectos, este livro é sobre três campeões mundiais, Boris Spassky, Anatoly Karpov e Garry Kasparov, pois joguei contra eles mais vezes. Mas é difícil mencioná-los sem também pensar em Victor Korchnoi, que desempenha um papel crucial nesta história, e assim eu peço sua compreensão, caro leitor, enquanto eu faço uma pequena digressão de minha conversa sobre Fischer. Afinal, Victor também disputou matches cruciais com es-ses três grandes Campeões Mundiais, espe-cialmente Karpov. Não vamos esquecer que Victor perdeu o match das Finais dos Candi-datos em Moscou por apenas um ponto para Anatoly Karpov (12½-11½), match que efeti-vamente decidiu o Campeonato Mundial de Xadrez, pois Bobby abdicou de seu título no ano seguinte. Em 1978 e 1981, Victor desa-fiou Karpov em um match pelo Campeonato Mundial. Três confrontos brutais pelo títu-lo mundial! No caminho, ele derrotou Boris Spassky nos matches de Candidatos.

Estava programado que Victor jogaria contra Kasparov em Pasadena, Califórnia, nas Semifinais dos Candidatos em 1983. Ele venceu por forfeit quando Kasparov não teve autorização dos órgãos de xadrez/des-portivos da URSS para competir nos Estados Unidos. Com um espírito esportivo, Korchnoi concordou em repetir o match em Londres. Caso quisesse, Korchnoi poderia ter mantido sua vitória por desistência e Kasparov teria ficado fora do ciclo de 1981-1984. Mas Victor queria jogar. Kasparov venceu neste novo match e tornou-se o Desafiante. Victor era um figura de destaque no mundo do xadrez há décadas. Pensei muito em incluir minhas partidas contra Victor neste volume, mas de-cidi não fazê-lo, talvez porque, então, seriam dois volumes.

Como eu disse na Introdução, em 1980 disputei meu primeiro “supertorneio” real-mente importante, o Festival de Xadrez de Hoogoven em Wijk aan Zee, Holanda, ten-do vencido o Campeonato Mundial de Ju-

niores no ano anterior. Eu ainda estava em busca de minhas normas de Grande Mestre, pois ainda não possuía o título. Por muita sorte, obtive um resultado fabuloso, empa-tando com meu compatriota Walter Shawn Browne no primeiro lugar com um placar de 10-3 (o que os enxadristas chamam de resultado “+7” ). Com várias rodadas so-brando, conquistei minha terceira e última norma de Grande Mestre. Depois de minha partida contra o Grande Mestre islandês Guðmundur Sigurjónsson, os organizadores fizeram uma coisa incrível: após a renúncia de Guðmundur, eles pararam os relógios das outras partidas e convidaram os participan-tes para fazer um brinde com champanhe para seu mais novo colega. Foi um gesto magnífico e eu o apreciei imensamente.

É interessante que meu futuro sogro, Jan Nagel, também estava na plateia. Ele também participou do brinde com cham-panhe. Brinco com ele dizendo que ele está “por minha conta” desde então.

Eu tinha saído às pressas do torneio de Hastings em 1979 para chegar em Wijk a tempo, mas perdi a cerimônia de abertura – uma das únicas vezes que isso ocorreu em minha carreira. Se não me falha a memória, em meu lugar, Hans Bohm pegou meu “nú-mero” para o Grupo A. Hans fez-me um gran-de favor escolhendo o número 1. Isso signi-ficava que eu começaria o torneio com as Brancas em duas partidas consecutivas. Com o resfriado tradicional que todo competidor em Hastings pega como castigo por sua par-ticipação, fui para Wijk abatido por minha condição. Quando cheguei, fui informado de que jogaria contra John van der Wiel na primeira rodada e contra Victor Korchnoi na segunda. Eu esperava que até lá meu resfria-do já tivesse passado. Para minha surpresa, venci as duas partidas.

Em minha partida com Victor, tive mui-ta sorte. Naquela época, meu repertório de aberturas era terrivelmente fraco. Na verda-de, eu mal sabia estudar aberturas. Nas aber-turas que eu jogava, eu tentava desenvolver

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minhas próprias ideias, preparando o que eu esperava serem armadilhas para adversários inocentes. Victor caiu direto em uma de mi-nhas mais elaboradas novidades. Ele esta-va em sérios apuros desde o início, gastou imensas quantidades de tempo (o controle do tempo naquela época era de 40 lances em duas horas e meia para cada jogador, seguido por uma prorrogação em que cada jogador recebia uma hora para 16 lances até o fim) e estava recém encontrando a saída de seus problemas, quando fiz um lance tá-tico certeiro. Praticamente com seu tempo esgotado, Victor não conseguiu manter sua posição.

Nem precisaria dizer que fiquei feliz com o resultado, mas Victor nem tanto. Ele detesta perder e é famoso por ficar real-mente chateado depois de perder uma partida. Eu não sabia disso na época e sim-plesmente perguntei alegremente: “Você gostaria de analisar a partida?” Ah, quanta inocência. (Tente imaginar Victor “gostando” de analisar uma derrota, especialmente logo depois da partida.)

Evidentemente, Victor não gostaria de analisar a partida comigo. Só há uma coisa que Victor detesta mais do que perder uma partida: é perder para um jovem. Ele acredita firmemente em “derrotá-los enquanto são jo-vens”, e perder para um pato jovem – mesmo que seja o pato Campeão Mundial Júnior – não fazia diferença. Princípios são princípios.

Como o próprio Victor lhe dirá, ele tem uma personalidade muito complicada, com traços tanto de sadismo quanto de maso-quismo. Neste caso, se não analisássemos a partida juntos, Victor poderia conforta-velmente voltar para seu quarto de hotel e repreender-se sozinho por ter sido um tre-mendo idiota por ter perdido. Assim, Victor teve uma ideia melhor: “Vou analisar com este idiota e me atormentar com meus pés-simos lances.”

Passamos para uma das salas de análi-se e começamos nossa autópsia. Como men-cionado, Victor, o Terrível, teve muito azar

em sua primeira partida. Ele tinha caído em uma de minhas melhores surpresas de aber-tura. Eu conhecia a abertura de frente para trás, de cima para baixo, da direita para a es-querda. Victor dizia que ele tinha feito este e este lance ruim e que deveria ter jogado isso em vez disso. Minha resposta era dizer que, sem dúvida, eu tinha esperado aquele lance. Mas eu tinha uma refutação para ele e mostrava uma sequência de lances que conduzia à vitória. Isso continuou por al-gum tempo e, pouco a pouco, Victor perce-beu que, na verdade, seu tempo tinha sido muito bem usado. Ele tinha andado sobre uma corda bamba durante muitos lances e tinha encontrado as melhores linhas de de-fesa possíveis. Na verdade, eu nem acredita-va que ele quase tivesse salvo a partida, já que eu considerava que minha novidade era imbatível e praticamente uma refutação de toda a variante. Victor ficou impressionado. O jovem pato sabia o que estava fazendo. Depois de nossa autópsia, Victor me parabe-nizou. Ele inclinou sua cabeça em minha di-reção e disse: “Muito boa partida. Nada mau. Nada mau mesmo.”

Ao longo do torneio, Victor interes-sou-se cada vez mais por minhas partidas e muitas vezes me perguntava sobre as outras partidas que estavam em andamen-to. “Yasser, o que você acha da posição de Timman?”, ele perguntava. Olhando para o painel de exibição, eu dava minha respos-ta e, mais uma vez, Victor acenava com a cabeça concordando. Isso continuou até o fim do torneio, quando eu tive a maior sur-presa de minha juventude.

Uma proposta inesperadaVictor chamou-me para um canto para falar-mos em particular. Explicou que em breve ele jogaria seu Match de Candidatos contra seu arquirrival, Tigran Petrosian. “Se eu gos-taria de ser seu segundo?” Fiquei emudeci-do, sem saber o que responder. Tenho qua-se certeza de que nada saiu da minha boca enquanto fiquei parado ali, surpreso. Posso

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dizer honestamente que meus tumultuosos pensamentos giraram em torno de uma coi-sa: quanto aquilo iria custar e se eu teria con-dições de pagar.

Victor não entendeu o meu silêncio. “Ah!”, disse ele, “Desculpe. As condições: a viagem, a estadia e as refeições são por minha conta. Enquanto você estiver traba-lhando comigo receberá 500 francos suíços por semana...”

Agora eu estava convencido de que estava sonhando. Será que eu tinha enten-dido direito? Victor estava se propondo a me pagar? Para treiná-lo? Que diabos eu podia ensinar a Victor Korchnoi? Com muita grati-dão, eu aceitei e estendi-lhe a mão, concor-dando. Aperto de mãos.

Dois meses depois, em março de 1980, viajei a Zurique para começar a trabalhar com Victor Korchnoi e ajudá-lo a se preparar para sua campanha para o título do Campeonato Mundial de Xadrez. Dizer que eu estava em-polgado seria pouco. Embora eu já tivesse feito muitas viagens transatlânticas de minha casa em Seattle para a Europa, dessa vez eu mal conseguia ficar parado sentado. Não dor-mi nada e cheguei feliz, mesmo que exausto. Victor e Petra, sua futura esposa, foram me encontrar no aeroporto e todos explodimos em sorrisos contentes. Petra e eu nos torna-mos amigos instantaneamente.

Petra nos levou de carro ao aparta-mento de Victor, onde jantamos e conver-samos noite adentro. Petra voltou para seu apartamento e Victor e eu ficamos discutin-do um programa de treinamento concreto. Acredite, quaisquer que fossem as minhas noções sobre treinamento enxadrístico até então, elas voaram pela janela durante mi-nha estadia com Victor. Ele trabalhava com afinco, muito afinco. Em algum momento durante aquela primeira noite, Victor subi-tamente percebeu que eu estava sentindo os efeitos da longa viagem, e de qualquer forma era tarde, e então ele disse: “Vamos descansar um pouco e retomamos amanhã de manhã quando você acordar”. Bom plano.

Andamos pelo corredor e fomos até o quarto de hóspedes. Eu perguntei a Victor o que ele estava fazendo. “Eu vou dormir aqui. Por favor. Você fica no quarto principal”, dis-se ele. Não, não, não. Eu estava mais do que satisfeito em dormir no quarto de hóspedes e não queria tirá-lo de seu próprio quarto. Não, eu insisti. Victor dormiria no quarto principal, e quarto de hóspede estava bom para mim. Victor continuou recusando e eu continuei insistindo. Isso durou um certo tempo, sem que nenhum de nós cedesse. Por fim, Victor confidenciou. “Tudo bem, a situação é a seguinte: estou com um proble-ma nas costas. Petra comprou um colchão especial para mim. Um colchão ‘firme’ que eu deveria usar e que me faria bem. Mas eu durmo no quarto de hóspedes porque prefi-ro a cama daqui.”

Hmm. Tudo bem. Aquilo fazia sentido. Eu estaria fazendo um favor a Victor dormin-do no quarto principal. Feito! Finalmente estávamos dando nossos “boas noites” de despedida um ao outro e Victor acrescentou um comentário muito peculiar: “Espero que você não esteja nervoso” e fechou a porta. Assim, lá estava eu de pé, junto à porta do quarto de hóspedes, parecendo um idiota, com o cenho franzido e pensando “o que quer dizer isso?” Em vez de bater na porta e pedir a Victor que se explicasse, aceitei aqui-lo como algum tipo de desafio. Uma charada que eu – exibindo um brilhante raciocínio dedutivo ao estilo de Sherlock Holmes – iria resolver sem ajuda. Embora me sentisse exausto por causa da mudança do fuso ho-rário, a charada ficou na minha cabeça antes de eu adormecer. Ela me perseguiria duran-te as duas semanas seguintes.

Eu falei que trabalhar com Victor era sério? Bom, era mesmo. Nossa rotina nos mais ou menos oito dias seguintes consistia em acordar, tomar banho, tomar o café da manhã com queijo, ovos e bacon, torrada, granola com iogurte e chá. Isso era segui-do por algumas partidas de Blitz e uma boa caminhada rápida. Depois pegávamos algu-

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ma linha de abertura específica e a analisá-vamos profundamente. Podíamos fazer um intervalo para o almoço ou não. Petra vinha para preparar o jantar e parávamos para comer. Às vezes, para desalento de Petra, comíamos e analisávamos às cegas. Depois, voltávamos para o tabuleiro até que o sono se tornasse insistente. Dia após dia.

Devo dizer que eu me considerava um jogador de Blitz. Na verdade, eu acreditava genuinamente que naquela época eu era um dos melhores do mundo. Jogar com Victor foi um rude despertar, para dizer o mínimo. Ele era um monstro quando esta-va com as Brancas e acho que, no “total”, eu conseguia um placar de 45%, o que me pa-recia um desastre pois eu achava que era o melhor... Victor não fingia: “Não. Eu sempre fui subestimado no Blitz. Na verdade, eu sou muito bom. Evidentemente, Fischer é muito melhor no Blitz”.

Como estávamos na época da Páscoa e, afinal de contas, estávamos na Suíça, um coelho de chocolate enorme apareceu no apartamento de Victor. De onde ele veio eu não saberia dizer, mas ele foi um convidado muito bem-vindo. Como se tratava de um grande e bom exemplar de uma iguaria su-íça, concordamos que o vencedor de cada partida de Blitz poderia comer um pedaço do coelho de Páscoa. Regras de Steinitz; em-pates excluídos. Durante as duas semanas seguintes nós o retalhamos bem e, embora Victor ganhasse mais, eu também ganhava a minha parte. Acredite, morder e mastigar pedaços de um coelho de chocolate suíço que você ganha por derrotar Victor Korchnoi em uma partida de Blitz é algo que você sa-boreia em dobro.

Um dia, algo muito estranho aconte-ceu. Depois do café da manhã, iniciamos nossa sessão costumeira de Blitz e eu ven-ci com as Brancas, ganhando um pedaço do coelho. Depois, uma grande surpresa: eu venci com as Pretas. Isso me garantiu uma dupla porção. Depois eu venci com as Brancas. Uau! Três vitórias consecutivas. Isso

nunca tinha acontecido antes. Victor esta-va ficando irritado e declarou com ousadia: “Tudo bem, se você ganhar esta partida, você perde o parceiro e saímos para cami-nhar!” Eu gargalhei. “Ah não! Vou perder um parceiro!”, retruquei. E, como previsto, eu venci e saímos para caminhar.

Nosso trabalho naquele dia não estava particularmente inspirado e era evidente que Victor estava pensando em outras coisas. O que era? “Hoje à noite, o prefeito vai realizar uma recepção e comemoraremos o meu ani-versário.” Ótimo, eu pensei. O prefeito de Se-attle poderia aprender alguma coisa...

Quando Petra chegou, ficou desapon-tada ao ver que eu não tinha um paletó e gravata adequados para a recepção. Levou--me até o guarda-roupas de Victor e tirou um paletó atrás do outro. Nenhum deles servia direito, mas um deles tinha que servir. Fo-mos à recepção, descendo as escadas de um grande restaurante até um porão cavernoso que continha enormes barris de carvalho elevados sobre paredes grossas. Havia mui-ta gente e eu me sentei em uma mesa com Victor, o aniversariante. Houve discursos em alemão ou alemão suíço (Schweizerdeutsch), aos quais todos, inclusive eu, aplaudiram. O prefeito, com seu grande medalhão orna-mentado, fez seu discurso, que pareceu ser bem acolhido. A noite prometia ser alegre para todo mundo. Victor gentilmente tradu-zia muitos dos discursos, algo que faria du-rante o ano e meio seguinte. Depois veio a comida e todos a saboreamos.

Em certo momento, o prefeito deu-se ao trabalho de visitar cada mesa, apertando mãos e desejando a todos os convidados um bom jantar, por fim, chegando à nossa mesa com, é claro, o convidado de honra. Ele pare-cia o tipo jovial, estendendo a mão com um grande sorriso e palavras de boas-vindas em alemão. Respondi em inglês, agradecendo pelo maravilhoso jantar e pela bela recep-ção. “Ah, americano! Sim, Bem. Seja bem--vindo”, ele disse em inglês. Neste momento ele estava começando a me avaliar, e meu

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paletó mal ajustado, meus cabelos longos e minha pouca idade chamaram sua atenção. “Desculpe por perguntar”, ele disse, “O que você está fazendo aqui?”

“Eu sou o treinador de Victor Korchnoi”, respondi, apontando para Victor, que es-tava sentado ao meu lado. O prefeito ficou surpreso. Ele se afastou de mim e aconche-gou-se perto de Victor e declarou em voz alta: “Então você treina o nosso Victor?” O prefeito deu uma risadinha, como se tivesse feito uma piada interna que todos poderiam desfrutar em pensamento. O tom implicava a zombaria “o que você poderia ensinar ao nosso Victor?”, o que, sem dúvida, parecia uma pergunta muito razoável a mim e ao público crescente do prefeito. Até os gar-çons pareceram diminuir o passo, andando mais silenciosamente, nas pontas dos pés. O prefeito parecia ter genuíno apreço por Victor e orgulho por ele ter fixado residência em sua cidade.

“Sim!” foi minha única palavra de res-posta à pergunta sobre o treinamento, sem dar mais detalhes. O prefeito perseguiu sua caça: “Bem. Você alguma vez já jogou com Victor? Uma partida em um torneio, quero dizer?” O prefeito dava muita ênfase a algu-mas palavras. Pelo canto do olho eu podia ver Victor afundando na cadeira. Ele intuiu o que estava por vir.

“Ah, sim. Já jogamos. Disputamos uma partida séria em uma competição importan-te em janeiro”. Deixando o ponto-chave mo-mentaneamente lacrado.

“É mesmo?” O prefeito sorriu. “E quem venceu?” Ele dirigiu essa pergunta ao gran-de grupo de ouvintes, com os braços levan-tados e as mãos abertas como se a resposta fosse uma conclusão previsível.

“Eu venci”, respondi com um largo sorriso.

O prefeito então ficou desequilibrado e precisou recuperar a tranquilidade. “Você venceu?”, disse ele nervosamente. Virou-se para Victor para confirmar, e Victor afun-dou um pouco mais em sua cadeira. Agora

o prefeito viu-se obrigado a desempenhar para um público que parecia ter chegado mais perto. “Bem, quando vocês treinam...você já jogou Blitz com Victor?” O prefeito pressionava. Ai meu Deus. As coisas esta-vam piorando, e Victor parecia estar na al-tura da mesa.

“Com certeza, sim!”, eu disse alegre-mente. “Até tivemos uma sessão de Blitz hoje de manhã”. Mais uma vez deixei a resposta fechada, precisando ser desembrulhada.

Agora o prefeito estava definitivamen-te de volta em terra firme. Suas perguntas re-velavam um conhecimento de xadrez supe-rior ao de um político mediano. “Bem, nosso Victor é um incrível jogador de Blitz! Como foi a partida?” Ah meu Deus. Victor estava afundando abaixo da mesa.

“Bem, nós jogamos quatro partidas de Blitz hoje. Eu venci todas...” Neste ponto, o prefeito percebeu que precisava visitar outras mesas e afastou-se o mais rápido possível.

Com a partida conclusiva do prefeito, Victor parecia milagrosamente ter recupe-rado sua estatura. “Yasser, amanhã vamos jogar Blitz e eu vou te arrasar!” Eu ri pelo resto da noite. No dia seguinte jogamos, e Victor cumpriu sua palavra. Apesar da sur-ra, eu estava nas nuvens com minha situa-ção. Eis que eu estava analisando e jogando contra o enxadrista que eu achava que ven-ceria o Campeonato Mundial. Victor tinha perdido em 1974 e em 1978 para Anatoly Karpov por um único ponto nas duas vezes; ele estava em sua melhor forma e começa-ria provando isso por qualificar-se em três exaustivos Matches de Candidatos. Victor era ao menos o segundo melhor enxadrista do mundo por ranking e estava se armando para ser o número um com uma determina-ção capaz de mover montanhas.

Durante nossas primeiras duas sema-nas juntos, depois de intenso treinamento e longas caminhadas, várias coisas ficaram muito claras para mim sobre Victor e suas concepções de mundo. Ele era, é claro, um desertor muito importante e uma séria

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ameaça à cobiçada “Coroa do Xadrez” e a Anatoly Karpov da União Soviética. Sua de-serção e a ameaça que ela criava não pode-riam ser exageradas. Victor estava totalmen-te convencido – e não havia dúvida em sua convicção de que a KGB iria assassiná-lo. Ele esteve envolvido em dois acidentes de carro misteriosos – eu era um dos passageiros no segundo. A certeza de Victor de seu inevitá-vel fim nas mãos de um assassino da KGB era inabalável e absoluta.

Agora eu entendia o que Victor quis dizer quando me disse naquela primeira noi-te: “Espero que você não esteja nervoso”. O que ele estava realmente me dizendo era: “Ouça, Yasser, se a KGB vier me pegar esta noite, eles não vão atirar no cara que esti-ver dormindo no quarto de hóspedes, eles vão atirar no cara que estiver dormindo no quarto principal!” Depois de ter decifrado a charada e festejado minha recém-adquirida consciência, fiquei nervoso.

Durante o Ciclo de Candidatos de 1980-81, o Grande Mestre Michael Stean e eu éra-mos os segundos de Victor. Posteriormente, os Grandes Mestres Lev Gutman e Leonid Shamkovich, e também Igor Ivanov, uniram--se a nós para um trabalho durante o Match do Campeonato Mundial de 1981 contra Anatoly Karpov em Merano, na Itália. Durante este período de 22 meses, tive a oportunida-de de conhecer Victor muito bem. Falamos demoradamente sobre Bobby e o sistema de “precisar vencer dez partidas”. O que te-ria acontecido se Korchnoi tivesse derrotado Karpov na Final dos Candidatos de 1974 e ti-vesse que jogar contra Bobby em 1975 com a condição das dez vitórias? Nas palavras de Victor: “Bobby teria vencido de dez a cinco. Mas juntamente com 32 empates!”

Eu mencionei que Victor teve dois aci-dentes de automóvel misteriosos. O aciden-te em que eu estive envolvido não foi grave – foi mais uma pequena colisão. (No primei-ro acidente, o carro realmente capotou e Victor sofreu um ferimento grave na mão.) Lembro-me de que estávamos indo para a

Áustria para o confronto entre ele e Tigran Petrosian em 1980. Petra estava dirigindo e Victor era o passageiro no assento da fren-te, enquanto Michael Stean e eu estávamos atrás. Alguém nos bateu por trás, mas Petra manteve o controle do carro. O outro mo-torista fugiu apressado e ninguém se feriu. Todas as minhas conversas com Victor sobre a KGB voltaram a assombrar os meus pen-samentos, mas, felizmente, não aconteceu mais nada. (Revelação completa: na presen-te data, Victor ainda está firme e forte, mas eu nada posso assegurar em relação a todos os hóspedes de sua casa...)

Korchnoi sobre FischerEnquanto estávamos indo de carro para a Áustria, outra pergunta foi colocada para Victor: “O que teria acontecido se, em 1974, você tivesse vencido a disputa Final dos Can-didatos contra Anatoly Karpov e se tornado o Campeão Mundial?” Victor quase não he-sitou para formar sua resposta. “Sim, veja-mos... Ah, neste caso, tudo está muito claro, Karpov teria desertado e estaria andando neste carro!” Todos caímos na gargalhada.

Victor e eu falávamos sobre Bobby Fischer com frequência. Nos anos 1970, Victor jogou no torneio de Lone Pine, pa-trocinado por Louis D. Statham. Depois do evento, ele foi à Pasadena e encontrou-se com Bobby em um parque. Bobby trouxera consigo um novo rádio portátil que pegava a Radio Free Europe e muitos outros sinais de rádio internacionais. Victor tinha uma proposta muito concreta: ele tinha um pa-trocinador interessado, e queria saber se Bobby gostaria de jogar um match contra ele. Victor falou superficialmente sobre um “prêmio de um milhão de dólares” e detalhes imponentes. Bobby ouviu as palavras de Victor até ele ter descrito tudo o que tinha a oferecer. Agora era a vez de Bobby respon-der, e Victor prendeu a respiração com gran-de expectativa.

“Tá vendo este rádio?”, perguntou Bobby. “Quanto você acha que ele custa?”

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O pensamento de Victor estava voan-do alto nas nuvens e a pergunta o pegou completamente desprevenido. “Hmm.. não sei. Cem dólares?”, disse Victor encolhendo os ombros.

“Que nada! 39 dólares!”, respondeu Bobby alegremente.

Victor estava desolado. Ela achava que estava negociando quando, onde, como e por que um confronto valendo um milhão de dólares poderia acontecer; quantias de dinheiro a serem depositadas em uma con-ta; garantias por ações específicas; e a cabe-ça de Bobby estava no preço de seu novo brinquedo de rádio. É claro que o confronto nunca aconteceu.

Victor tinha um imenso respeito pelo jogo de Bobby. Na verdade, Victor foi a pri-meira pessoa a me dizer que Bobby era um herói na União Soviética. O quê? Como isso era possível? Bobby era um herói americano. O nosso herói. Victor explicou que havia um grande grupo de dissidentes na URSS e que eles também estavam torcendo por Bobby em 1972. A vitória de Bobby era uma derrota para o sistema soviético que desprezavam. Foi um momento de despertar para mim. De repente, a nação comunista sem rosto não parecia tão sem rosto.

Para minha mente adolescente, era difícil compreender. Comunistas soviéticos torcendo para que um capitalista america-no derrotasse seu correligionário? Isso seria como os americanos torcerem para que a seleção soviética de basquete derrotasse os americanos em 1972. (A propósito, um re-sultado que ainda está entalado em minha garganta.) Havia pessoas assim em ambas as nações? Victor me esclareceu: “Bom, na verdade, apenas uma minoria de pessoas na União Soviética é filiada ao Partido Comunis-ta. A maioria não é comunista.” Eu comecei a crescer rapidamente.

Victor me mostrou uma carta que rece-beu de Bobby cumprimentando-o por sua deserção e dando-lhe as boas-vindas ao Oci-dente. Mas a amizade florescente de Bobby

com Victor não durou. Victor mencionou de passagem a um jornalista que tinha se en-contrado com Bobby, o que foi devidamen-te publicado. Bobby viu o artigo e enviou a Victor uma carta bem-educada assinalando que eles haviam concordado em manter seu encontro em segredo e certamente fora da imprensa. O irascível Victor, tendo vindo de um Estado totalitário, respondeu que, se Bobby não valorizava uma imprensa livre, eles não tinham nada em comum. A corres-pondência entre eles terminou pouco tem-po depois.

A visão de mundo de BobbyBobby também havia enviado a Victor uma série de livros que Victor me emprestou e que eu li integralmente. Esses presentes de Bobby incluíam The Elders of Zion, The Protocols of Zion e cinco outros títulos, todos falando so-turnamente sobre os Illuminati. Todos tinham a mesma mensagem básica: o mundo estava sendo vítima de uma conspiração universal de banqueiros, muitos dos quais judeus. Esses li-vros eram mal escritos, com numerosas frases grafadas com letras maiúsculas para enfatizar as principais ideias e coisas do tipo. Os livros professavam que uma Conspiração Mundial de Bancos (judia) estava determinada a insti-tuir um governo totalitário no mundo que nos escravizaria a todos (através de dívidas).

Os livros enredavam várias institui-ções, incluindo os Rothschild, o Banco da Inglaterra, o Federal Reserve (privado), a fundação da Receita Federal, as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Trilateral, o Grupo Bilderberg, a sociedade secreta Skull and Crossbones de Yale, os maçons e assim por diante. Os fatos históricos eram descritos de modo a torná-los necessários para que as metas dos Illuminati fossem alcançadas. Todo grupo internacional era visto com desconfiança, e todos eram guiados pelo desejo de nos converter em escravos da dívida e assim controlar o mundo e toda a humanidade. No extremo mais profundo da conspiração,

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os líderes desse complô haviam criado uma máquina do tempo que lhes permitia se-rem transportados para momentos cruciais na história para mudar o desfecho. Era uma descoberta muito deprimente. Havia mui-tas passagens que Bobby havia obsequio-samente sublinhado para que Victor pudes-se ver a verdade. Ai meu Deus.

Depois de ler esses livros durante várias semanas, duas coisas me vieram à cabeça imediatamente. Primeiro, e mais importante, como alguém poderia levar esses livros a sério? Segundo, como eu po-dia me unir aos Illuminati? Afinal, os livros pintavam um quadro bastante sombrio da inevitabilidade do êxito do complô. Se não podemos derrotá-los, podemos nos unir a eles. Ser o zelador, digamos, da América do Norte, não parecia ser uma batida ruim (bad beat),* já que de qualquer maneira estáva-mos todos condenados.

Na época, atribui a culpa pelas con-cepções políticas, econômicas e de mundo de Bobby a seu tipo particular de credo cris-tão fundamentalista – um sistema de cren-ças da proximidade do dia do juízo final que aguardava a vinda dos cavaleiros do apo-calipse, como profetizado pelo Novo Tes-tamento, para pisotearem todos nós. Esse credo, casualmente, é muito favorável a Is-rael e à expansão sionista. Ficou claro que, depois que rompeu com sua Igreja, Bobby inverteu suas concepções sobre Israel, as-sim como sobre o povo judeu. Por suas pos-teriores transmissões de rádio das Filipinas publicadas na internet, descobrimos que as visões de Bobby sobre a “conspiração ju-dia” haviam se fortalecido e ele falava com amargura sobre elas, sobre seu país e sobre o povo dos Estados Unidos. Era fisicamente doloroso ouvi-las.

Em algum ponto na metade da déca-da de 1980, deparei-me com um panfleto a respeito do qual já havia lido. Ele se chama-

va I Was Tortured in the Pasadena Jailhouse!, da autoria de Bobby Fischer, o Campeão Mundial de Xadrez. Se alguma vez li um gri-to de ajuda, ali estava ele. O copyright era de 1982 e o panfleto foi publicado por Bobby Fischer. O preço de capa era um dólar. Os parágrafos são precedidos por títulos em negrito. Os títulos contam a história com-pleta do que aconteceu:

Assalto a banco...Sério...Preso...Brutalmente algemado...Falsa prisão...Humilhado...Sufocado...Descrição do assaltante...Completamente nu...Nenhum telefonema...Cela do horror...Isolamento e tortura...Hospital psiquiátrico...Passando fome e frio...Colchão interno...

Refeição e quentinha...Sem água...Tira doente...Indecência da polícia...Ameaças...Mesmas perguntas e respostas...Crimes da polícia...Telefonema...Impressões digitais...Assinado sem ler...Nenhuma acusação por escrito...(Nenhum) Dinheiro de volta...Simulação...Perguntas não feitas...Fatos verídicos...

O panfleto foi assinado com um fac--símile por “Robert D. James”. Abaixo da as-sinatura havia uma explicação: “Robert D. James (profissionalmente conhecido como * N. de T.: Bad beat: expressão usada no jogo de pôquer.

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Robert J. Fischer ou Bobby Fischer, o Cam-peão Mundial de Xadrez)”.

Quem lesse esse panfleto não pode-ria deixar de querer se envolver na vida de Bobby e salvá-lo de si mesmo e de seu am-biente. Basicamente o que aconteceu é que ele estava caminhando em um belo bairro de Pasadena tarde da noite. Um assalto a banco havia ocorrido mais cedo naquele dia. A polí-cia estava atenta para pessoas que pareces-sem deslocadas. Quando a polícia parou para interrogá-lo, Bobby assumiu um ar desafiador e citou os direitos constitucionais na Quinta Emenda para não ser incriminado. Ele foi de-tido. Resistiu, recusando-se a cooperar, e as coisas foram piorando.

Onde estavam os amigos de Bobby? Por que eles não estavam tentando ajudá-lo? Não seria possível convencê-lo a fazer tera-pia? O panfleto era, em minha opinião, a gota que faltava. Eu não conseguia imaginar Bo-bby saindo de seu isolamento autoimposto. Mais do que tudo, esse panfleto expõe o mito de que Bobby derrotara o império soviético sem ajuda. Sem ajuda, quando confrontado pela polícia em Pasadena, ele fez um tolo de si mesmo e acabou preso. Se ele tivesse dito simplesmente: “Eu sou Bobby Fischer. O presi-dente Nixon declarou-me um herói nacional. Eu derrotei os russos no Campeonato Mun-dial de Xadrez de 1972 e conquistei o título para os Estados Unidos”, os policiais prova-velmente teriam parado imediatamente, sur-presos, pediriam um autógrafo e ofereceriam uma carona até sua casa. Bobby sem dúvida apresentava muitos comportamentos auto-destrutivos e às vezes era seu pior inimigo.

Minha próxima história sobre Bobby foi contada por Bessel Kok. Como pano de fundo para esta história, vamos começar em Dubai durante a Olimpíada de Xadrez de 1986. O então Campeão Mundial, Garry Kasparov, e Bessel Kok, presidente da Cor-poração SWIFT, com sede em Bruxelas, de-cidiram fundar a Grandmasters Association (GMA), ou Associação de Grandes Mestres. Fui convidado para ser um dos diretores

fundadores – tarefa que aceitei com en-tusiasmo. Em fevereiro de 1987, tivemos nossa primeira reunião de diretores, em Bruxelas, e a GMA foi fundada. Os primei-ros anos foram de considerável sucesso e a GMA criou sua própria série de eventos da “Copa do mundo”. Muitos se referem ao período de 1987 a 1991 como a época de “ouro” para o xadrez. Bessel era presiden-te da GMA e meteu na cabeça que gosta-ria muito que Bobby se associasse à GMA. (As taxas eram de 20 dólares por ano.) Ele convidou Bobby para visitar Bruxelas e, a seguir, está minha sinopse da história de Bessel:

“Convidei Bobby para vir a Bruxelas, onde nos encontraríamos e conversaríamos sobre a possibilidade de ele se associar à GMA, além de falarmos a respeito dos projetos de xadrez nos quais ele estivesse interessado. Bo-bby veio e ficou em minha casa por volta de uma semana. Ele estava muito preocupado com a possibilidade de ser reconhecido e de a imprensa fazer alarde. Por isso, mais ou menos por medo de ser descoberto, ele basicamente ficava em casa, o que me deixou maluco, pois eu queria sair e mostrar-lhe a cidade. Quando falávamos sobre a GMA e possíveis projetos de xadrez, as conversas não davam em nada e nada iria acontecer.

“De repente e surpreendentemente, bem no fim de sua estadia de uma sema-na, Bobby resolveu que queria ir a um bar, o que ele chamava de um “bar de garotas”. Por sorte, eu conhecia um. Fomos até lá e pedi-mos uma garrafa de champanhe cara. Sem problemas, eu estava feliz de estar fora de casa. Logo Bobby estava conversando com uma moça e eu com outra. Nós estávamos de costas um para o outro, mas eu prestava atenção na conversa que estava acontecen-do atrás de mim.

“Era o tipo de conversa trivial que se tem nestas ocasiões, até que a mulher fez uma pergunta de parar o coração: ‘Então, com o que você trabalha?’ Tenho certeza de que o champanhe teve um efeito suavizan-

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te, mas eu senti Bobby empertigar-se e en-direitar as costas.

‘Eu sou um Grande Mestre Internacio-nal de Xadrez!’, Bobby disse sem rodeios. Fi-quei surpreso com sua admissão, mas a mu-lher respondeu com entusiasmo.

‘É mesmo? Eu também jogo xadrez! Eu sei o nome de muitos Grandes Mestres. Qual é o seu?’

“Neste momento, eu tive que interrom-per minha conversa para me virar e ouvir o que estava acontecendo atrás de mim. Tinha se tornado muito interessante. Bobby pare-cia genuinamente encantado com o fato de que a mulher sabia alguma coisa de xadrez.

‘Bom, meu nome é Robert James Fischer. Eu sou o Campeão Mundial de Xa-drez!,’ exclamou Bobby, com um tom resoluto.

‘Ora vamos’, disse a mulher. ‘Pare de fa-zer piadas. Você não é Bobby Fischer! Ontem tivemos Dali, e agora é o Fischer’, disse ela fazendo beicinho. ‘Mas olha, pague-me ou-tra taça de champanhe e eu te chamarei de Bobby pelo resto da noite.’

“Bobby estava evidentemente choca-do porque a mulher não acreditara nele, en-quanto eu ria sem parar. Bobby começou a vasculhar sua carteira e os bolsos do casaco tentando encontrar algum documento que provasse sua identidade. Ele passara anos tentando esconder sua identidade e, no mo-mento em que desesperadamente queria provar quem era, não podia. Mesmo quando tentei socorrê-lo dizendo: ‘Sim, este é real-mente Bobby Fischer’, recebemos ambos um olhar incrédulo. Foi uma das experiências mais engraçadas de minha vida. Fischer não podia provar quem ele era”.

Bessel, que tem um temperamento tranquilo e ri com frequência, sempre conta essa história com risadas entusiasmadas. Por sua forma de contar, a gente imagina o que ele deve ter rido. A história de Bessel sem-pre me faz rir sempre que ele ou eu a recon-to. É a história pela qual eu gostaria de me lembrar de Bobby, em que ele tem orgulho de ser quem é e quer provar sua verdadeira

identidade, em vez de se esconder por trás da máscara que fez para si mesmo.

Para mim, Bobby é um enigma; uma pessoa mítica. Um herói que se tornou uma pessoa amarga que desdenhava do mundo. Um homem que lutava contra demônios reais e imaginários. Um homem que investia contra moinhos de vento. Mas o pior, mui-to pior, ele foi um homem de extraordinário potencial que não se realizou. Bobby po-deria ter sido o Mohammed Ali do mundo do xadrez. Poderia sozinho ter levantado o esporte e o colocado na cena mundial. Ele recusou esse papel heroico e preferiu fugir para seu mundo particular isolado. A perda para o mundo do xadrez foi simplesmente incomensurável.

O retorno de Bobby Bobby era, evidentemente, um deus do xadrez. Se tivesse continuado a jogar, nin-guém sabe o que teria alcançado, que dis-putas e torneios teria vencido, se teria alcan-çado um inexpugnável recorde de matches e torneios e se teria a supremacia por uma década ou mais.

Mas, em 1992, Bobby chocou o mun-do. Ele saiu da aposentadoria, voltando a confrontar Boris Spassky. Foi um match sobre o qual Garry Kasparov, entre muitos outros, falou mal, declarando que as parti-das eram de má qualidade e exemplos de “xadrez de velhos”. Foi dito que Bobby era de outra época e nunca deveria ter voltado a jogar pois seu jogo prejudicou sua condição legendária. Surpreendentemente, essa foi a linha adotada pela Chess Life, a publicação oficial da USCF. Os comentaristas pareciam especialmente ávidos por criticar os lances escolhidos. Eu visitei o match, encontrei-me com Bobby por um dia e escrevi um livro so-bre isso, No Regrets (Sem Arrependimentos).

Vamos colocar esse confronto de 1992 em seu devido contexto, certo? Bobby não havia movido um peão em público por 20 anos. Dizer que ele estava “enferrujado” seria dizer pouco. Seria como se um ciclista como

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Lance Armstrong se ausentasse por duas décadas e depois anunciasse que iria com-petir no Tour de France. Impossível. Então, o que eu poderia esperar? Eu esperava que vencesse, mas que o faria de uma maneira desleixada. Em vez disso, eu desafio a todos a reconstituir a Primeira Partida daquele confronto. Foi incrível! Não apenas uma pé-rola, foi uma partida excepcional. Todos os lances de Bobby estavam corretos. Perfei-tos! Eu estava estupefato. Depois, vejamos a Segunda Partida. Mais uma vez, em cerca de 60 lances, Bobby jogou xadrez perfeito. Simplesmente perfeito. Ele construiu uma posição vitoriosa, mas na sexta hora de jogo concedeu a Boris uma pequena escotilha de fuga, que Boris descobriu e evitou a derro-ta. Incrível. Bobby voltou ao xadrez e jogou seus primeiros 100 lances de maneira per-feita. Vou repetir isso: de maneira perfeita. Quem sabe o que ele poderia ter alcançado se estivesse ativo por vinte anos, mas aque-les 100 primeiros lances em 1992 me con-venceram de que ele tinha potencial para ser o melhor de todos os tempos.

Uma vez conversei com meu pai sobre Bobby no começo dos anos oitenta. Eu tinha falado sobre minha admiração por Bobby e meu pai demonstrou uma indiferença quase veemente. Surpreso, perguntei por que ele tinha uma opinião tão forte e negativa sobre ele. Parafraseando: “Bobby venceu o Cam-peonato Mundial de Xadrez. Ele lutou e ven-ceu uma vez. Uma vez. Eu já fui paraquedista. Qualquer idiota é capaz de se jogar de um avião. Você passa a ser respeitado quando o faz pela segunda vez, pois você conhece seus medos e o que precisa enfrentar.”

Palavras fortes e reveladoras, sem dú-vida.

Encontrando Bobby FischerFui à Iugoslávia para uma parte do confronto de Fischer e Spassky de 1992 e me encontrei com Bobby e passei um dia com ele. Aquelas poucas horas juntos foram, de meu ponto de vista, uma experiência muito agradável.

Eu estava eufórico por conhecê-lo e fico gra-to a ele pelo tempo que passamos juntos: um dia inteiro. Eu o guardarei com carinho. Bobby agradeceu-me pessoalmente por ter viajado até Sveti Stefan para o confronto, e lamentava que eu fosse o único Grande Mes-tre americano presente. Ele achava que seu retorno não tinha recebido a aclamação que merecia.

Eu conto isso como pano de fundo para o retorno que recebi, por fofocas, de que Bobby parecia estar furioso comigo porque eu tinha escrito No Regrets e assim tinha me beneficiado com o retorno dele ao xadrez. Eu me reuni às legiões de outras pessoas que lucraram com ele. Embora No Regrets não tenha me trazido nem fama nem fortuna, fiquei orgulhoso pelo livro e recebi um elogio fantástico de Boris Spassky, que adquiriu 47 exemplares. Este era claramente o caso de “maldito se fizer e maldito se não fizer”. Entristece-me pensar que Bobby tinha má opinião sobre mim antes de falecer.

Seria tolice escrever novamente sobre o dia que passei com Bobby aqui, pois eu contei isso em detalhes em No Regrets. Em retrospectiva, eu diria que duas coisas se destacam em nosso encontro. A primeira foi como Bobby me elogiou por Cinco Coroas (Five Crowns). Aquele livro fazia uma análise profunda de todos os 24 jogos do confronto entre Kasparov e Karpov em 1990. Em mais de duzentas páginas de análise, Bobby en-controu dois erros. Erros que eu também tinha descoberto depois da publicação. Ele conhecia os jogos e onde eu havia me perdi-do. Eu fiquei impressionado.

A segunda coisa foi que, antes de me encontrar com ele em sua suíte, tanto Eugene Torre quanto Svetozar Gligorić me disseram que Bobby estava enfezado co-migo. Eu tinha escrito uma coisa na Inside Chess de que ele não tinha gostado. Eu me referi a ele como “o fantasma de Pasadena”. Bobby se queixou, dizendo: “Eu não sou um fantasma, eu sou um homem”. Assim, deci-di lhe pedir desculpas e receber o perdão

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dele. Quando fomos nos cumprimentar, se-gurei a mão dele enquanto pedia desculpas e não a soltei antes que ele dissesse: “Va-mos esquecer isso tudo.”

Com isso fora do caminho, Bobby es-tava animado, falava rápido e ria facilmente. Compartilhávamos histórias de Bruce Lee, o artista marcial que ambos admirávamos. Para ler o relato completo de meu encontro com Bobby, o leitor deve ler No Regrets. De-pois de 1992, nunca mais me encontrei nem falei nem mantive correspondência com Bo-bby.

Um livro que vou sempre valorizar, mesmo com a capa despedaçada, é My 60 Memorable Games de Bobby. Existem his-tórias para todas as partidas disputadas, e uma delas tocou meu senso de humor. Ar-thur Bisguier relata o seguinte incidente no Aberto do Estado de Nova Iorque, realizado em Poughkeepsie, em agosto/setembro de 1963. A passagem a seguir foi extraída de The Art of Bisguier, Selected Games 1961-2003 (Milford, 2008):

“Jogando contra Bobby no Aberto do Estado de Nova Iorque naquele ano, perce-bi que ele estava demorando demais para jogar. Daí vi que ele tinha pegado no sono. Em alguns minutos a seta em seu relógio iria cair e ele perderia por tempo. Não é assim que gosto de ganhar partidas, torneios ou títulos. Por isso cometi o que alguns chama-ram de maior erro do torneio. Eu acordei o Fischer. Bobby bocejou, deu seu lance, bateu no relógio e me derrotou. Essa acabou sen-

do a Partida 45 em My 60 Memorable Games. Depois eu soube que Fischer tinha ficado acordado até tarde na noite anterior jogan-do Blitz para ganhar dinheiro.”

Eu acho que nunca tive um adversário que tenha adormecido durante uma parti-da, mas alguns deles certamente chegaram perto disso. Às vezes fico preocupado que isso possa ser um efeito dos aspectos po-sicionais de meu estilo. Fico pensando em como eu teria agido. Acredito firmemen-te que devo lembrar meus adversários de apertar o relógio quando eles esqueceram de fazê-lo, além de lembrá-los que seu tem-po se esgotou (caso eu tenha certeza disso). Mas, se Bobby adormecesse, eu poderia achar que o coitado precisava de uma hora de descanso...

No fechamento deste capítulo, eu co-loco Robert James Fischer como o terceiro maior jogador de todos os tempos. Ele foi um gigante que se dedicou ao xadrez e nos deixou um legado de partidas de tirar o fô-lego. Receio que ele será lembrado mais por ter abandonado o xadrez prematuramente do que pelo que contribuiu para o esporte. No xadrez, recordamos nossas derrotas mui-to mais do que nossas vitórias. A ausência de Bobby foi a maior perda que o xadrez sofreu desde Paul Morphy. A estrada para a recupe-ração ainda está em andamento.

Existe um vídeo islandês sobre Bobby Fischer que eu achei muito bom: faça uma busca na internet por “Documentary Fischer VS Spassky”.

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Os Gigantes

O grande cientista britânico Sir Isaac Newton escreveu: “Se eu fui capaz de ver mais longe é porque estava de pé sobre os ombros de gigantes.” Embora tenhamos iniciado com Bobby Fischer, ele também estava de pé sobre os ombros de gigantes. Quando exa-mino as páginas da história do xadrez, é em Paul Morphy (1837-1884) que a linha dos Campeões Mundiais de Xadrez realmente começa. Ainda que Morphy não tenha sido oficialmente reconhecido Campeão Mun-dial, para mim e para muitos outros ele foi o primeiro grande enxadrista de classe mun-dial e foi simplesmente o melhor enxadris-ta de seu tempo. Como melhor definir um Campeão Mundial? Após uma carreira mete-órica derrotando todos os seus contemporâ-neos, Morphy anunciou sua aposentadoria e parou de jogar xadrez sério em público em 1859. Poder-se-ia afirmar que ele foi uma das primeiras celebridades mundiais.

Uma breve históriaQuando Paul Morphy parou de jogar, o líder reconhecido na época era Adolf Anderssen (1818-1879), que tinha perdido decisiva-mente um match para Morphy em 1858. Cer-ca de sete anos depois de Morphy se aposen-

tar, em 1866, Anderssen perdeu com menor margem de diferença para Wilhelm Steinitz (1836-1900). Após sua vitória, Steinitz foi considerado o melhor jogador do mundo. Entretanto, foi somente após seu confronto com Johannes Zukertort, em 1886, quando o contrato declarava especificamente que o match era “pelo Campeonato Mundial”, que Steinitz passou a ser considerado o primei-ro Campeão Mundial oficial. Esse reconhe-cimento deveria se estender de 1866 ou de 1886? Você decide. Seja como for, a partir de 1866 Steinitz dominou todos os seus rivais.

O confronto entre Wilhelm Steinitz e Johannes Zukertort em 1886 foi disputado de acordo com o que seria chamado de “Re-gras de Steinitz”. Elas exigem que o vencedor do confronto alcance dez vitórias, excluin-do-se os empates. Steinitz venceu o match com um placar decisivo: dez vitórias, cinco empates, cinco derrotas. Steinitz defendeu seu título muitas vezes derrotando adver-sários fortes e, desse modo, deu ao título do Campeonato Mundial um brilho que durou mais de um século.

Steinitz perdeu seu título em 1894 para Emanuel Lasker (1868-1941). Lasker venceu a disputa convincentemente com dez vitó-

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rias, cinco derrotas e quatro empates. Em 1896/97, Lasker e Steinitz disputaram uma revanche, que Lasker venceu ainda com mais vantagem, por dez vitórias, cinco em-pates e duas derrotas. Lasker passou a deter o título por mais tempo entre todos os cam-peões, mantendo-o por 27 anos. Ele tam-bém defendeu seu título ativamente, apesar de não haver um sistema oficial organizado para determinar quem era o Desafiante mais adequado a qualquer momento.

Em março/abril de 1921, Emanuel Lasker foi derrotado por José Raúl Capablanca (1888-1942) em Havana, Cuba. Lasker abandonou o match depois da 14a partida, tendo perdido quatro partidas sem uma única vitória. Os partidários de Lasker, que eram muitos, mencionaram sua má saú-de, mas Capablanca estava no auge de sua força e o próprio Lasker foi cortês diante da derrota.

Capablanca conservou o título de 1921 a 1927, quando o perdeu para Alexander Alekhine (1892-1946), em um confronto disputado em Buenos Aires, Argentina, de setembro a novembro de 1927. As regras ha-viam mudado para o “primeiro a vencer seis partidas”, de acordo com as “Regras de Lon-dres”. Este acabou sendo o match mais longo pelo título mundial antes dos tempos mo-dernos. Alekhine venceu uma luta titânica com seis vitórias, três derrotas e incríveis 25 empates. Quem sabe quanto tempo o con-fronto teria durado se tivesse sido disputado até que alguém obtivesse dez vitórias.

A vitória de Alekhine foi uma incrí-vel surpresa para o mundo do xadrez, pois Capablanca era considerado o grande favo-rito, e até invencível. Muitos esperavam um novo confronto. Embora muito tenha sido escrito sobre Alekhine ter se esquivado ou não de seu rival, a realidade é que eles ja-mais disputaram outro match pelo título.

Em 1935, Alekhine inesperadamen-te perdeu seu título para Machgielis (Max) Euwe (1901-1981) com um placar de nove vitórias, treze empates e oito derrotas. Eles

enfrentaram-se novamente e Alekhine re-cuperou o título em dezembro de 1937 com um placar decisivo: dez vitórias, qua-tro derrotas e onze empates. A razão para o placar final desequilibrado é que Euwe perdeu quatro das cinco últimas partidas. Depois desses dois confrontos, Alekhine não defendeu seu título novamente, mas o manteve até morrer em 1946. Com a morte de Alexander Alekhine, estamos nos aproxi-mando do momento ao qual eu gostaria de recuar no passado e oferecer alguns vislum-bres de nossos grandes predecessores.

Se pararmos um momento e reconhe-cermos Steinitz como o Campeão Mundial a partir de 1866, estendendo seu reinado para trás, e não a partir de 1886, então os primei-ros cinco detentores do título do Campeo-nato Mundial o mantiveram por 80 anos, sendo que Euwe o manteve por apenas dois daqueles anos. Quando avançamos para o período após a Segunda Guerra Mundial e o início do novo milênio, o título muda de mãos em um ritmo muito mais acelerado.

É através do Grande Mestre polonês Miguel Najdorf que chega nossa primeira história. Fui testemunha em pelo menos três ocasiões em que Najdorf a contou. Os histo-riadores de xadrez tentaram confirmar a ve-racidade deste conto mas não tiveram êxito. Ele consiste fundamentalmente no seguinte:

Quando estava na Polônia, Miguel jo-gava para um clube que realizava uma exi-bição simultânea com Alexander Alekhine. O evento era para quarenta jogadores, mas o clube deliberadamente inventou que dez jogadores estavam faltando e pensaram em corrigir essa ausência e a falta do dinheiro dos ingressos com Alekhine. Será que ele estaria disposto a disputar as vinte partidas simul-tâneas normais além de jogar outras dez às cegas? Seriam trinta jogadores ao todo e os honorários de quarenta tabuleiros seriam in-tegralmente pagos. Alekhine concordou com a mudança. O clube então escondeu seus me-lhores enxadristas, inclusive Miguel, na sala onde as partidas às cegas seriam disputadas.

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Enquanto isso, vinte jogadores mais fracos disputariam as partidas simultâneas normais. Embora tenha exterminado as vinte ovelhas de sacrifício, Alekhine teve problemas nas dez partidas às cegas. Na verdade, proble-mas sérios. Em sua partida às cegas, Miguel usou uma siciliana onde fez um sacrifício de qualidade contra o cavalo das Brancas em c3. Alekhine recusou, mas isso foi seguido por ...Tc3xa3, sacrifício que não poderia ser recu-sado. Miguel venceu.

Muitos anos depois, Miguel e Alekhine disputaram uma partida em um torneio em Buenos Aires. A partida terminou em empa-te e os dois saíram para jantar e depois fica-ram bebendo até tarde da noite. Propondo um brinde, Miguel saudou Alekhine com as seguintes palavras: “Ao melhor jogador de xadrez do mundo, Doutor Alexander Alekhine, muita saúde! Mas lembre-se de que estou um ponto à sua frente”. Dizendo isso, Miguel bebeu sua bebida. Alekhine sacudiu a cabeça e respondeu: “Miguel, eu posso estar completamente bêbado, mas um empate não te garante um ponto à mi-nha frente”. E por sua vez secou seu copo.

Miguel então perguntou a Alekhine se ele se lembrava de uma turnê de exibição simultânea que ele havia feito na Polônia. Alekhine franziu o cenho e ficou intrigado, tentando se recordar. Passaram-se alguns minutos. “Eu não me lembro de jogar contra você.” Quebrando a cabeça, Alekhine tenta-va situar o rosto de Miguel. Miguel lembrou--lhe de que, sem dúvida, eles nunca haviam se “encontrado” no sentido físico, pois ele es-tava noutra sala jogando às cegas. Alekhine franziu o cenho de novo, sacudindo a cabe-ça, mergulhado profundamente em pensa-mentos. Por fim, perguntou: “Você me ofere-ceu um sacrifício de Txc3 e Txa3?”

Miguel ficou estupefato. “Meu Deus, Jasser. Como isso é possível? Ele tinha disputa-do uma partida simultânea muitos anos antes, uma partida às cegas avulsa, e se lembrava de meu sacrifício! Veja você, Jasser, é isso que os torna (os Campeões Mundiais) tão grandes.

Eles têm uma memória fantástica e não per-doam nem se esquecem de uma derrota!”

Esta é realmente uma história maravi-lhosa, e eu gostaria muito que ela fosse ve-rídica, pois toca no âmago da grandeza do xadrez: todos os campeões de xadrez que eu conheci realmente têm uma memória incrí-vel e todos detestam perder.

Max EuweDe Alekhine prosseguimos para Machgielis (Max) Euwe. Quando participei de um dos torneios de Lone Pine no final da década de 1970, conheci o “Sr. Euwe”. Nossa conversa foi leve e agradável. Naquela época, ele era o presidente da FIDE. O que me impressionou era que ele acompanhava as partidas aten-tamente e gostava de fazer comentários e análises depois das partidas. Parecia um senhor de idade muito digno, de cujos lá-bios vinham algumas sugestões realmente excelentes. De alguma forma, na minha ca-beça de adolescente, parecia meio absurdo, não sei por quê; enxadristas deveriam ser armas jovens duronas, travando batalhas do tipo taco a taco. Sábios nobres deste tipo não deveriam estar tão ativamente envol-vidos. Porém, havia o Sr. Euwe, “grelhando bifinhos” com os melhores leões jovens. Era fácil ter admiração por ele, especialmente quando seus lances comprovavam-se con-sistentemente corretos.

Para os holandeses, evidentemente, Max Euwe era um gigante do xadrez que le-vou a chama eterna do jogo para a atenção do público holandês, junto ao qual tornou--se arraigada. Atualmente, a Holanda é um dos melhores países para quem quer ser um enxadrista profissional. Todos os enxadristas profissionais da Holanda são profundamen-te gratos a Euwe por seu legado. O Grande Mestre holandês Hein Gonner escreveu que Euwe era “O Bom” e também o “O Sábio” e “O Justo”; e assim por diante; que “todas as coisas boas surgiram com Euwe”. Sem dúvida, depois de escrever um capítulo desses sobre Bobby Fischer, entusiasmo-me por chegar e escre-

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ver da mesma forma coisas brilhantes sobre alguém que eu mal conheci. Mas aí há Bent Larsen...

Para os que não sabem, o Grande Mes-tre dinamarquês Bent Larsen é meu verda-deiro herói, e este livro é dedicado a ele. De todos os mestres que conheci, Bent é o que mais admiro. Não apenas pela força de sua personalidade, sua mente extraordinária, seu talento para línguas, seu maravilhoso senso de humor e sua absoluta determi-nação lutadora pela vitória no tabuleiro. É que ele tem todas essas qualidades e muito, muito mais do que isso: ele é um homem de caráter, de princípios e, mais importante, é também uma pessoa gentil e calorosa. Se for possível dizê-lo, ele é a pessoa mais munda-na e digna que pode existir. Eu adoro o Bent!

E Bent Larsen odiava Max Euwe.Vamos voltar outra vez para aqueles

dias, em Lone Pine, de torneios suíços fecha-dos de extraordinária qualidade e repletos de possibilidades de normas de títulos. As edições posteriores apresentavam nove ro-dadas de jogo, mas o cronograma de parti-das era totalmente ridículo. Jogávamos cin-co rodadas consecutivas, seguidas por dois dias de descanso e depois as quatro rodadas restantes. “Por quê?”, todos perguntavam. Por que não jogar por três dias, depois um dia livre, depois mais três rodadas, depois um dia livre, e então as três últimas roda-das? Realmente, por que não? A resposta era Sammy Reshevsky. Sammy era um judeu or-todoxo e, para acomodar seu Sabá, Sammy precisava das sextas e sábados livres. E assim era o cronograma de jogos. Embora esses dias livres consecutivos criassem uma exce-lente oportunidade para que Louis Statham, a força motriz por trás dos grandes torneios de Lone Pine, e sua esposa Dorothy dessem uma festa, a maioria dos enxadristas não ti-nha muito o que fazer a não ser se preparar e esperar. Partidas de pôquer e sessões de Blitz irromperam no Dow Villa Motel, onde me hospedei, e uns sujeitos aventureiros fi-zeram-me ir de carro até Las Vegas. Foi num

desses dias livres que recebi uma mensagem urgente de Bent Larsen para nos encontrar-mos para uma bebida...

Quando cheguei em seu quarto, Bent já estava meio alto e me serviu um cálice de vinho bastante generoso para começar. Co-meçou dizendo: “Yasser, você acha que eu sou uma pessoa chata?”

Muito já se disse sobre Bent, mas cha-to? Dificilmente. “Não. Claro que eu não acho que você seja chato. O que diabos te faria pensar isso?”

A conversa então tornou-se mais in-tensa enquanto Bent se explicava. “Disse-ram-me que os índios Sioux mediam o valor da vida de um homem pelos inimigos que ele tinha. Se ele tivesse um grande inimigo, ele por sua vez era grande por ter sido digno de um inimigo assim.”

É claro que eu fiquei confuso. Bent prosseguiu. “Veja você, Yasser, eu não tenho inimigos. Absolutamente nenhum. Daí co-mecei a pensar se eu não era um cara cha-to. Um homem sem inimigos? O que isso diz de mim? E então me lembrei de que tenho um inimigo, sim: Max Euwe! E ele está mor-rendo”. Bent prosseguiu explicando que Max Euwe estava mal de saúde e tinha lhe envia-do um telegrama, no qual pedia a Bent que o perdoasse, para que ele pudesse morrer em paz. Naquele dia, Bent havia enviado um te-legrama de resposta com uma única palavra: “Não”. Ai. Eu havia me metido em uma situa-ção bem desagradável, e agora Bent estava ficando seriamente embriagado para ameni-zar a dor de fazer algo que de outra forma ele não aprovaria. O que tinha acontecido?

Para compreender inteiramente a raiva de Bent, precisamos entender que o mundo nos anos 1970 era bipolar. Havia o Ociden-te e o Oriente. Os soviéticos dominavam o xadrez e consideravam o Campeonato de Xadrez Mundial um “título soviético”. No Ocidente havia dois Desafiantes potenciais, Bent Larsen e Bobby Fischer, pois Sammy Reshevsky já estava velho. E, entre os dois, quem iria dizer quem era o melhor? Larsen

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ou Fischer? Na verdade, no confronto “União Soviética contra o Resto do Mundo” de 1970, muitas vezes descrito como o “Confronto do Século”, foi o próprio Fischer que cedeu o lu-gar e permitiu que Bent jogasse o tabuleiro número um pela equipe mundial. Não existe absolutamente nenhuma possibilidade de que Bobby fizesse uma coisa dessas se não acreditasse verdadeira e profundamente que Bent merecia “liderar” o resto da equipe mundial. Mais uma vez, aqui não se tratava de um fã de xadrez comum fazendo um sor-teio entre dois Grandes Mestres merecedo-res, permitindo que Bent jogasse no tabulei-ro número um. Foi o próprio Bobby Fischer, o deus do xadrez, que tomou a decisão his-tórica: Bent estaria à frente dele, no tabuleiro número um pelo resto do campeonato.

Sem dúvida, Bent será lembrado por seu Waterloo de Denver em 1971, quando foi eliminado por Bobby por 6 a 0 em seu Match de Candidatos. Mas, antes daquele fiasco, a rivalidade entre os dois era aguda e equilibrada. Bent acalentava grandes so-nhos de enfrentar Boris Spassky e posterior-mente Anatoly Karpov e conquistar o título mundial. Para tornar-se um Desafiante, ha-via apenas um pequeno obstáculo que Bent tinha que superar: o próprio ciclo do Cam-peonato Mundial. A classificação zonal não era problema, mas o passo realmente difícil era o torneio interzonal. Esta competição, um round robin com cerca de 20 enxadris-tas, era realmente exaustiva. Para se classi-ficar para o Torneio de Candidatos, o joga-dor precisava ficar entre os três melhores e, às vezes, apenas os dois melhores pros-seguiam. Em um torneio prolongado com todos os Grandes Mestres e outros campe-ões nacionais muito capazes, surpresas ou derrotas mais cruéis eram abundantes. Um resfriado de uma semana durante o even-to poderia pôr fim à campanha, bem como despreparo, sono insuficiente, má alimen-tação, etc. Não se qualificar para o Torneio de Candidatos significava que se teria que recomeçar um novo ciclo de três anos.

Bent estava convencido de que iria se qualificar e tornar-se candidato novamen-te, mas não se fosse forçado a jogar uma Interzonal dentro da União Soviética. Para ser bem-sucedido no ciclo, sua única con-dição era simples: “Não me coloquem na Interzonal soviética!”

Como havia dois torneios interzonais, um disputado no Ocidente e o outro no Oriente, isso não era problema para a FIDE e para seu presidente Max Euwe. Bent, como uma das maiores estrelas do Ocidente, joga-ria no Interzonal ocidental. Simples. Segun-do Bent, Max Euwe deu-lhe uma garantia pessoal absoluta, total, de que ele não teria que jogar na Interzonal soviética. Contudo, na década de 1970, Bent foi obrigado a jogar não apenas em um, mas em dois torneios interzonais soviéticos, Leningrado em 1973 e Riga em 1979. Bent não se classificou em nenhum deles. Seus sonhos de glória no Campeonato Mundial terminaram.

Por que Max Euwe fez sua promessa pessoal solene a Bent e depois “não cum-priu sua palavra”? Não faço ideia. Eu não sei como os sorteios foram feitos e não conhe-ço a política da FIDE, e nem julgo que a co-nheço. Tudo que sei é que Bent se ressentia pelo Interzonal de Leningrado de 1973 e não perdoaria Euwe, mesmo quando o estado de saúde dele estava crítico...

Não é o que chamaríamos de uma “lin-da” história, é? Nem mesmo uma história agradável. Na verdade, uma história cruel, fria, que nos deixa perplexos e tristes, ainda que elucide um pouco o ardor com que os Campeões Mundiais ou aspirantes ao título se entregam em sua busca pela mais alta honraria. Se Bent tivesse tido uma oportu-nidade de jogar no Interzonal ocidental e tivesse se classificado (ou não), os dois pode-riam muito bem ter partilhado uma grande amizade. Sem dúvida, a história do xadrez teria sido diferente. Em meados da década de 1970, não havia Bobby Fischer e ninguém sabe onde Bent poderia ter chegado, estan-do ausente o enxadrista que o tirara do pá-

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reo no ciclo de 1969-1972. Bent era um joga-dor admirável e, no tabuleiro, uma força que não poderia ser subestimada.

Uma nova eraPassando para uma história mais agradável... vamos continuar com nossas viagens com Max Euwe. Depois de tirar o título de Cam-peão Mundial de Alexander Alekhine, Euwe o perdeu em um novo confronto. Alekhine morreu em 1946 como detentor do título. O que fazer? Depois de muita discussão, a Assembleia Geral da FIDE decidiu restituir o título a Max Euwe, com a expectativa de que, como Campeão, ele o defenderia contra um Desafiante aceitável. Euwe aceitou a ofer-ta da FIDE e foi Campeão Mundial por um dia. No dia seguinte, a delegação soviética chegou atrasada na reunião da Assembleia Geral e a moção foi reaberta para discussão. A moção prévia que conferia o título a Euwe foi rescindida e, em seu lugar, um torneio com os mais fortes jogadores do mundo, inclusive Euwe, seria realizado para definir o novo Campeão Mundial. Mikhail Botvinnik foi o campeão do round robin de cinco joga-dores (o Grande Mestre dos Estados Unidos Reuben Fine recusou-se a jogar), com um placar de 14/20, três pontos de vantagem sobre os outros competidores, e tornou-se o novo Campeão Mundial de Xadrez em 1948.

A vitória de Botvinnik inaugurou uma nova era no mundo do xadrez. Doravante, a FIDE administraria um ciclo de três anos sob seus auspícios que produziria um Desafian-te para o Campeão. Os períodos anteriores de confrontos aleatórios pelo Campeonato Mundial, realizados conforme a habilidade de um Desafiante de encontrar um patroci-nador, ficariam para trás por algum tempo. Há mais sobre essa história no último ca-pítulo. Sob o novo ciclo da FIDE, qualquer Campeão Nacional poderia entrar no ciclo classificando-se em algum evento de dispu-ta zonal, o qual levaria a um torneio interzo-nal, cujos vencedores se classificariam para um torneio de Candidatos, posteriormente

a ser modificado para matches de Candi-datos, com a insistência de Bobby Fischer na prevenção de conluio. O vencedor do(s) Torneio(s) de Candidatos/matches tornar-se--ia o Desafiante oficial, ganhando o direito a um confronto pelo título. Seria um match de 24 partidas em que o Campeão seria favo-recido em caso de empate (em caso de um empate de 12 a 12, o Campeão continuaria com o título). Caso o Desafiante não conse-guisse destronar o Campeão Mundial, ele teria que percorrer novamente todo o ciclo seguinte, às vezes a partir da primeira etapa, o torneio zonal.

Mikhail Botvinnik também insistiu em mais uma vantagem para o Campeão: o Campeão que perdesse o match pelo título teria direito a um novo confronto com o De-safiante dentro de um ano. Os fundamentos desse sistema vigoraram até 1993.

Privadamente, os melhores enxadris-tas brincavam com a palavra “campeonite”. É um vírus estranho que acomete os en-xadristas somente quando são Campeões Mundiais, ainda que os primeiros sintomas possam ser detectados nos estágios de Candidato e Desafiante. Essencialmente, o título ou mesmo a proximidade do título lhes sobe à cabeça. Seus egos tornam-se tão inchados que eles perdem a bondade e o respeito pelos outros. Nem todos são sus-cetíveis à doença. Entretanto, quando ela recrudesce, os resultados não são bonitos...

Mikhail BotvinnikMikhail Moiseyevich Botvinnik (1911-1995) foi batizado de “Patriarca” do xadrez sovié-tico. Isso deveu-se sobretudo à sua influên-cia para que o sistema de um match de 24 partidas, além da vantagem de “um match de revanche para o Campeão Mundial der-rotado”, fosse instituído após a morte de Alekhine. Em vários textos, inclusive seus, Mikhail era retratado como uma figura aus-tera e rigorosamente correta. Uma “lógica ferrenha” regia seu estilo de jogo, e a mes-ma “retidão impiedosa” marcava seu caráter

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público. Ao menos era assim que sua ima-gem pública era apresentada e percebida pelo público. Uma figura austera e correta, fixada no trabalho árduo dedicado sob as regras de uma lógica ferrenha.

Certa vez, indagado sobre a modalida-de “Blitz” do xadrez, Mikhail tinha uma opi-nião muito clara: Blitz era ruim. Ele leva a um jogo desleixado e a maus hábitos. O tempo seria melhor aproveitado estudando seria-mente! (Pobre de mim, que passei minha carreira inteira jogando Blitz).

Encontrei-me com Mikhail em três ocasiões, embora não consiga situá-las com precisão. A primeira vez foi em um torneio SWIFT/GMA no final dos anos 1980, e toda a imagem pública de Botvinnik desmoro-nou frente a meus olhos. Não mais Campeão Mundial, ali estava um senhor sorridente e gentil que falava comigo com um brilho nos olhos. Trouxera-me um presente de Moscou, uma garrafa de conhaque armênio. Nou-tro encontro, em 14 de setembro de 1994, deu-me um exemplar de um livro com suas melhores partidas com uma dedicatória pes-soal de melhores votos. Parecia que sempre que nos encontrávamos, Mikhail queria me cumprimentar pelo meu jogo e tinha várias perguntas sobre minhas partidas...

Não falávamos inglês em nossos en-contros. Mikhail geralmente trazia consigo seu sobrinho, que diligentemente traduzia tudo. Cada encontro com ele era uma ex-periência extremamente agradável. Mikhail era afável, carinhoso e encantador comigo. Não sei por quê, mas eu gostava muito de sua companhia. Discutíamos sobre xadrez e analisávamos juntos às cegas. Ele não perdia um lance. Considerando sua idade avança-da, fiquei muito impressionado.

Embora eu nunca tenha analisado ou jogado com Botvinnik no tabuleiro, tive, a partir de nossas conversas, uma impressão muito forte de que ele acompanhava aten-tamente as partidas dos dez melhores jo-gadores e estava atualizado sobre muitos assuntos de xadrez, inclusive sobre a política

da FIDE. Mikhail também tinha uma gran-de fonte de orgulho: gostava muito de um de seus alunos, Garry Kasparov. Quando o nome de Garry era citado, o rosto de Mikhail literalmente irradiava alegria.

Garry Kasparov certa vez contou-me uma história mais ou menos assim: ele estava no adiamento de uma partida em que tinha um peão e um bispo contra torre e estava preocupado se poderia manter a posição. Te-lefonou para Botvinnik e, depois de explicar o desequilíbrio material, recebeu em troca uma pergunta. “O seu bispo tem uma casa na qual está firmemente ancorado?”, indagou Botvin-nik. “Não”, foi a resposta de Garry. “Então você está perdido”. Essa discussão ocorreu antes mesmo de Garry descrever a posição. E, de fato, a análise posterior de Garry demonstrou que Botvinnik tinha razão. “Yasser, foi extra-ordinário. Ele imediatamente pôs o dedo no cerne da posição. Eu jamais esqueci.”

É estranho comparar a imagem públi-ca de Botvinnik com a imagem privada que eu tive de nossos encontros. Por outro lado, não o conheci quando ele foi Campeão, e as eventuais “campeonites” que o tivessem acometido já teriam passado.

Uma história que eu sempre adorei: no ciclo de 1973-1975, Boris Spassky tinha per-dido seu título para Bobby Fischer e as au-toridades da Federação Soviética de Xadrez estavam aflitas por recuperar o título. A Fede-ração enviou uma correspondência a todos os seus maiores Grandes Mestres e treinado-res pedindo suas opiniões sobre os jogadores no ciclo. Botvinnik respondeu com análises e dossiês detalhados de cada um dos jogado-res. Páginas e páginas sobre Spassky, Karpov, Korchnoi, suas virtudes e fraquezas de um ponto de vista que era simplesmente singu-lar. Botvinnik chegou em Lev Polugaevsky e, segundo Korchnoi, escreveu apenas as se-guintes palavras: “Ele goza de boa saúde”. Eu sempre sorrio quando descrevo essa história, e rio quando a conto para alguém. Mikhail tinha senso de humor, mas o mantinha bem escondido.

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Vassily SmyslovUm dos Campeões Mundiais mais bondo-sos e notáveis, ainda que perversamente um dos menos conhecidos no Ocidente, é Vassily Vassilievich Smyslov (que foi o deten-tor do título em 1957-1958). Enquanto Mikhail Botvinnik foi aclamado tanto em seu país quanto no estrangeiro como um gigante do xadrez, Vassily foi um dos quatro outros en-xadristas que competiram no match-torneio do Campeonato Mundial de Xadrez de 1948, vencido por Botvinnik. As pessoas lembram de quem venceu, mas tendem a esquecer que Vassily tirou segundo lugar com um placar de 11/20. Em 1953, Smyslov venceu o torneio de Candidatos de Neuhausen--Zurique (18/28), com dois pontos à frente de David Bronstein, classificando-se para um match de 24 partidas contra Botvinnik. O match de 1954 terminou em um empate de 12-12 e Botvinnik manteve o título.

Três anos depois, em 1957, Smyslov conquistou novamente o direito de ser De-safiante. Desta vez Smyslov venceu o match, derrotando Botvinnik por um placar de 12½-9½, tornando-se o sétimo Campeão Mundial oficialmente reconhecido. No ano seguinte, Botvinnik exerceu seu direito a um “match de revanche” e venceu com um placar de 12½-10½. O que é notável é que, no Ocidente, “Mike Botvinnik de ferro” tinha uma justificada fama de grande enxadrista e uma influência dominante sobre a “Escola Soviética de Xadrez”. É verdade. Mas con-sidere que, nos três matches do Campeo-nato Mundial, Smyslov venceu 18 partidas e Botvinnik 17 (com 34 empates) e, contu-do, ele foi Campeão somente por um ano. Quem era o melhor enxadrista? Durante seu mandato, Botvinnik descreveu sua posição como “primeiro entre iguais”. Tenho certeza de que ele tinha Vassily Smyslov em mente quando fez essa declaração.

Finalmente, com Smyslov estou em terreno firme. Disputamos cinco partidas em torneios e, no próximo capítulo, exami-

naremos meus duelos com o sétimo Cam-peão Mundial.

Mikhail TalNosso próximo Campeão Mundial é o favori-to de todos, Mikhail Tal (1936-1992), “Mischa” para todos. Abençoado por uma encanta-dora personalidade e por um nome de fácil pronúncia, Mischa foi deslumbrante no ta-buleiro de xadrez. Um cometa que brilhou tão intensamente que quase consumiu a si mesmo. Seu xadrez era estonteante, emocio-nante, sacrificatório e sobretudo tenso. No tabuleiro sempre havia algum tipo de tensão, o que mantinha os adversários de Tal na beira de seus assentos. Eles tinham que ser muito cuidadosos e não podiam permitir a menor oportunidade. Tal levava energia à posição e a infundia com uma beleza ousada de tirar o fôlego. Era impossível não admirar sua bra-vura. Em 1960, com apenas 23 anos, Mischa alcançou a altura de Botvinnik, vencendo o match decisivamente por 12½ a 8½. Seu livro Tal-Botvinnik 1960 apresentou um fascinante retrato do lado de dentro do confronto e é considerado (com certeza por mim) um dos melhores livros de xadrez de todos os tempos.

Mais uma vez, Botvinnik aproveitou-se da cláusula de revanche e, em 1961, recupe-rou o título. Assim, o oitavo Campeão Mun-dial de Xadrez também deteve o título por apenas um ano.

Mischa e eu nos encontramos pela primeira vez em Riga, em 1979, durante o torneio interzonal. Jogamos juntos por mais de uma década, com cinco jogos em torneios e uma sessão informal de treina-mento em Blitz. Voltaremos a Mischa no Capítulo 4.

Tigran PetrosianNo início da década de 1950, surgiu um novo aspirante ao título de Campeão Mundial, Tigran Vartanovich Petrosian (1929-1984), da Armênia. Ele disputou dez ciclos conse-cutivos de três anos, de 1953 até 1980. Em

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1963, ganhou o direito de desafiar Botvinnik e venceu o match com um placar de 12½-9½. Antes desse confronto, a FIDE havia reconhecido que dar ao Campeão a vanta-gem do empate e também o direito de um match de revanche era simplesmente vanta-gem demais. Negou-se a Botvinnik o direito de um match de revanche, sobre o que ele queixou-se amargamente.

Tigran era um tipo de Campeão Mun-dial completamente diferente, alguém que o mundo jamais vira antes e que nunca se viu desde então. Era um jogador cauteloso, pa-ciente, que evitava confrontos táticos, pre-ferindo partidas longas manobradas, onde predominava o planejamento estratégico profundo. Nesses jogos com manobras ele era literalmente imbatível. Quando seus ad-versários perdiam a calma e partiam para o ataque com um lance arriscado ou sacrifício impetuoso, Tigran atacava e punia o agres-sor. Ele aceitava o sacrifício, neutralizava a dinâmica da posição e depois fazia valer sua vantagem material no final do jogo. Esse era o “ rótulo” e o modo como ele era descrito ao público de xadrez. Como veremos, trata-se de uma avaliação, sem dúvida, pouco pro-funda.

Um dos grandes gracejos sobre os Campeões Mundiais e seus sacrifícios diz mais ou menos assim: “Quando Tal faz um sacrifício, apanhe o material e depois pen-se. Quando Botvinnik faz um sacrifício, pense primeiro, depois apanhe o material. Quando Petrosian oferece um sacrifício, você já está perdido.”

Eu admirava muito o estilo de jogo de Petrosian, ainda que não pudesse imitá-lo. Ele parecia ter a capacidade de “jogar tanto o jogo do adversário quanto o seu”. Em ou-tras palavras, ele avaliava primeiro as possi-bilidades do adversário e depois as suas. Eu achava notável que Tigran conseguira passar pelos torneios interzonais e de Candidatos de 1961-1962 sem uma única derrota. Que eu saiba, ele é o único enxadrista que foi ca-paz de realizar esta façanha.

Bobby prestou uma grande homena-gem a Tigran: “Petrosian tinha uma incrível visão tática e um maravilhoso senso do pe-rigo... Por mais que você pensasse profunda-mente... Ele fareja qualquer tipo de perigo 20 lances antes.”

Era essa abordagem de “vencer na defesa” que era completamente nova para mim. Eu sempre tinha pensado que para vencer uma partida é preciso correr riscos e apostar. A abordagem de Petrosian era a do contra-ataque. Ele construía uma posi-ção neutra e deixava o adversário agitar-se. Depois, quando a oportunidade permitisse, atacava de maneira rápida e decisiva. Mes-mo sendo um grande estrategista, Tigran também era capaz de jogar taticamente quando necessário. Na verdade, ele era tam-bém um grande especialista em tática.

Mais elogios, desta vez de Boris Spassky, que disputou dois matches pelo Campeonato Mundial contra Tigran: “É uma vantagem para Petrosian que seus adversários nunca sabem quando ele repentinamente vai jogar como Mikhail Tal.”

Outra citação humorística é de Robert Byrne: “Petrosian era muito forte, estava jo-gando uma combinação defensiva para tro-car peças muito antes de você perceber que havia um ataque”.

Em 1966, Tigran Petrosian defendeu com êxito seu título contra Boris Spassky, vencendo um confronto de 24 partidas por 12½ a 11½. Em 1969, Spassky voltou e dessa vez venceu, com um placar de 12½ a 10½, tornando-se o décimo Campeão Mundial oficialmente reconhecido.

Antes de passar para Boris Spassky, gostaria de repercutir os sentimentos ex-pressos quase unanimemente por todos os meus colegas, assim como por Campeões e Desafiantes: Tigran Petrosian foi o jogador mais difícil de derrotar na história do xadrez.

Boris SpasskyBoris Spassky deve ter recebido uma das mais estranhas mãos do destino entre todos

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os jogadores de xadrez. Três anos depois de vencer o Campeonato Mundial de Xadrez em 1969 por um prêmio de cerca de 6.000 rubros, Boris foi dramaticamente lançado no palco mundial, onde 250 mil dólares esta-riam em jogo. Foi uma transformação espan-tosa. Boris foi pego em um redemoinho em que ele era apenas uma leve folha em meio a uma ruidosa tempestade.

Em meu círculo de amigos, todos que-ríamos que Bobby vencesse e “acabasse com o russo!” Ninguém sequer sabia ao cer-to se estávamos pronunciando o nome de Spassky corretamente ou não. Ele não era realmente um competidor ou esportista – ele era apenas o adversário de Bobby, um jogador que estava em seu caminho para vencer e trazer o título do Campeonato Mundial de Xadrez para os Estados Unidos. Era um tratamento cruel e injusto a Boris Spassky. Tenho orgulho de dizer que, no de-correr das décadas, tive a chance de conhe-cer Boris muito bem e o considero um bom amigo. Somente depois, quando comecei a me aperfeiçoar no jogo, tive a chance de admirar seu xadrez e seu caráter.

Em certa época, Bobby Fischer estabe-leceu um recorde tão improvável que pare-cia verdadeiramente imbatível: tornou-se Grande Mestre aos 15 anos de idade. De cair o queixo, inacreditável. Como era possível? Hoje, o recorde de Bobby é rotineiramente quebrado, e atualmente situa-se em torno da marca de 12 anos de idade...

Quando me tornei Grande Mestre (em janeiro de 1980) com 19 anos e 10 meses de idade, fiquei muito orgulhoso de mim, tendo começado a jogar no verão de 1972. Eu esta-va ansioso para me comparar com os outros “jovens” que haviam conquistado o título de Grande Mestre. Havia Bobby, é claro, que era o mais jovem. Quem era o seguinte? Fiquei surpreso ao saber que, naquela época, Boris Spassky era o segundo Grande Mestre mais jovem e o terceiro era Henrique Mecking do Brasil. Eu era o quarto Grande Mestre mais jovem.

Trinta anos atrás, havia apenas cerca de 100 Grandes Mestres; hoje existem mais de 1200. Quando comecei a jogar xadrez, as oportunidades de obtenção das normas de Grande Mestre eram poucas e espaçadas mas, hoje, torneios onde as normas estão disponíveis são realizados simultaneamente em todo o mundo.

Em 1972, Boris Spassky não era apenas um simples adversário pronto para dar-se por vencido. Esse cara era sério. Ele havia lutado e percorrido os ciclos duas vezes, de-molindo convincentemente alguns dos me-lhores enxadristas do mundo no caminho. Enfrentou o imbatível Tigran Petrosian e, em sua segunda tentativa, venceu. Spassky ha-via esmurrado contra ferro, e o ferro cedeu.

Revendo o match de 1972, Boris nun-ca havia perdido para Bobby e havia obtido três vitórias em suas cinco partidas anterio-res. Boris havia derrotado Bobby duas vezes com a Defesa Grünfeld, ganhou dele com um Gambito do Rei e, quando Bobby estava com as Brancas, havia empatado duas com uma Ruy López.

Eu já assisti a vídeos e li entrevistas em que Bobby alegava que os russos o refrearam, que conspiraram contra ele, que ele era o me-lhor jogador do mundo antes de disputar o match de 1972, e assim por diante. Tudo isso talvez seja verdade, mas, antes daquele con-fronto, o histórico pessoal frente a frente era muito mais favorável a Boris. Boris não era um frangote pronto para ser depenado. Ele tinha uma séria vantagem. Estou absolutamente convencido de que Boris estava confiante e achava que iria vencer o confronto. Bobby não tinha experiência em Campeonatos Mundiais e Boris havia sido forjado naquela fornalha duas vezes antes.

Boris tinha um estilo praticamente universal. Sentia-se confortável atacando, defendendo, disputando partidas estratégi-cas profundas ou partidas táticas dinâmicas. Com um robusto repertório de aberturas, um forte meio-jogo e um bom conhecimen-to de finais, ele não tinha debilidades óbvias

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e tinha todo os motivos para estar confiante. Por que não venceria?

Os acontecimentos que cercaram o confronto de 1972 foram tão intensos que qualquer um deles seria capaz de tirar qual-quer enxadrista de seu jogo normal. Quando tudo acontece depressa e ao mesmo tempo, e você está absolutamente despreparado para o turbilhão como o que este match provocou, é fácil que as coisas deem errado. Boris, um homem simpático, encantador e calmo, foi simplesmente tirado da rota. En-quanto o caos e o alarido pareciam alimen-tar a natureza combativa de Bobby e seu desejo de vencer, Boris tinha que se esforçar para se orientar e jogar seu melhor xadrez.

Embora muito já tenha sido escrito so-bre o confronto de 1972 e, ainda que eu es-creva com perfeita visão retrospectiva, acho que Boris Spassky cometeu um imenso erro estratégico no match que lhe custaria muito caro. Evidentemente, os organizadores is-landeses tinham feito tudo que podiam para sediar o tipo mais prestigiado de confronto. Eles tinham um salão e um palco adoráveis, onde os espectadores podiam ver os enxa-dristas e as partidas eram filmadas. Na pri-meira partida, em uma posição equilibrada destinada a um empate, Bobby, de Pretas, tomou espetacularmente um peão branco indefeso em h2 com seu bispo, permitindo que este ficasse aprisionado. Spassky em-pertigou-se na cadeira, pensando por um instante se tinha se enganado ao acreditar que o peão estava envenenado. E estava. Apesar do erro ousado de Bobby, provavel-mente o engano não era fatal. Isso se revela-ria posteriormente, e Boris venceu a primeira partida do match.

Depois da partida, Bobby reclamou rispidamente que o ruído das câmeras que estavam filmando a partida tinha interferi-do em sua concentração e pediu que elas fossem retiradas. Foram tomadas todas as medidas possíveis para silenciar e ocultar as câmeras, mas elas não foram retiradas. Bobby não compareceu na segunda partida.

Spassky agora tinha uma vantagem de dois pontos em um confronto no qual o empate o favorecia e seu adversário estava tendo o maior ataque de raiva que já se viu no xa-drez. A equipe de filmagem tinha adquirido os direitos legais de filmar as partidas no palco e Chester Fox insistiu em manter os di-reitos contratuais para o que tinha se trans-formado em um evento mundial. Uma nova solução teria que ser encontrada para que o match pudesse continuar.

Os jogadores aceitariam disputar as partidas no quarto do zelador contíguo ao palco? Desta forma, os anfitriões islandeses não quebrariam o contrato de permitir que a área do palco fosse filmada. Bobby não po-deria reclamar que as câmeras interferiam em sua concentração. A decisão de aceitar a mudança de local ficou com Spassky.

Em minha opinião, Boris não era so-mente o Campeão Mundial; ele representa-va o gabinete do Campeonato Mundial. Era seu dever garantir que a adequada execução do confronto ocorresse em condições de classe mundial. Jogar no quarto do zelador estava aquém da dignidade do Campeão Mundial de Xadrez bem como da realização do próprio Campeonato Mundial de Xadrez. Ele deveria ter rejeitado a solução oferecida.

Mas não rejeitou. Boris concordou em continuar o confronto fora do palco. Mais uma vez, tenho certeza de que Boris achava que, quer jogasse com Bobby em um palco, em um quarto ou em uma piscina nu, ele era melhor enxadrista e iria prová-lo. Bobby ven-ceu a terceira partida, e os soviéticos passa-ram o resto do match tentando determinar a causa do mau desempenho de Spassky, che-gando ao ponto de fazer testes de raios-X nas cadeiras dos jogadores. O resto é história.

Boris, depois de vencer duas partidas, poderia ter se levantado e dito: “Cavalheiros, desculpem, por favor, com licença. Eu sou o Campeão Mundial de Xadrez. Eu aceitei dis-putar este match no palco onde os jogado-res concordaram em jogar de antemão. Eu quero que o mundo todo veja como o Cam-

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peonato Mundial de Xadrez pode ser expos-to e apresentado aos fãs ao redor do mundo como um esporte emocionante e dramático. Eu queria um evento do qual poderíamos nos orgulhar legitimamente. Neste momen-to, estou preparado para jogar no palco e somente no palco.

Se meu adversário se recusa a jogar no palco, eu vou me despedir e voltar para Moscou. Por favor, compreendo que muito sacrifício foi feito por todos os islandeses e agradeço sinceramente os anfitriões por todos os seus esforços e hospitalidade. Sou realmente grato. Eu não insisto em receber o prêmio do vencedor em caso de outras de-

sistências. Esse dinheiro pode ser usado para recuperar os custos do evento. Lamento que essas coisas tenham acontecido. De verdade. Mas eu sou o Campeão Mundial de Xadrez e devo tratar o xadrez com o respeito que ele merece e, me desculpem, mas eu não vou jogar no quarto de vassouras do zelador.”

Se Boris tivesse dito isso, ou algo pare-cido, o mundo inteiro teria compreendido e, por Deus, ele estaria com a razão. Mas ele não o fez. E lendas nasceram.

Os capítulos sobre os 10o, 12o e 13o Campeões Mundiais serão longos. Vamos pular as demais pinceladas largas e dar início a nossos duelos.

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3

Vassily Smyslov

O primeiro enxadrista de classe mundial de verdade que eu vi na vida foi Paul Keres. Foi em 1975. Vancouver, uma linda cidade atravessando-se a fronteira por Seattle, se-diou um grande torneio aberto. Naquela época, eu costumava viajar para o norte a Vancouver, British Columbia, e para o sul a Portland, Oregon, jogando no máximo de eventos abertos no Noroeste do Pacífico que eu pudesse encaixar entre minhas au-las na escola. Eu era um jogador de “Classe A” a “Expert” naqueles tempos, o que signi-fica que eu ostentava um rating de 1900-2100 que oscilava bastante. O torneio de Vancouver, um evento de duas semanas de duração, coincidia com minhas aulas na es-cola, e foi uma decisão difícil deixar passar aquele grande acontecimento, especialmen-te quando fiquei sabendo que o legendário Paul Keres iria participar. Na véspera do iní-cio do torneio, amigos estavam saindo de carro para passar o dia lá e assistir à rodada de abertura, e eu fui também. Nossos olhos estavam colados em Paul Keres, observan-do todos os seus lances. Ele era um homem bem vestido e digno, com o que poderia ser chamado de uma atitude nobre. Ficamos to-dos profundamente impressionados.

Em sua partida, o adversário de Keres era Denis Allan, um forte mestre canadense que usou a Defesa Petrov, um homem difí-cil de derrotar. Estávamos ansiosos para ver como Keres poderia obter uma vantagem para que pudéssemos usar a mesma ideia. Feitos todos os anúncios, a partida come-çou com 1.e4 e5 2.Cf3 Cf6 e, então, sem ne-nhuma hesitação, Keres jogou 3.d3 como se esta fosse uma refutação matadora. Ficamos surpresos. A partida continuou ...Cc6 4.Cbd2 Bc5 5.c3 d5 6.Be2 dxe4 7.dxe4 a5 8.0-0 0-0, e Keres venceu tranquilamente em 25 lan-ces. Foi emocionante ver um enxadrista de classe mundial em ação. Sua maneira, sua postura, sua avaliação ponderada da posi-ção, a exatidão de seus lances e a precisão e maneira física com que ele fazia seus lances causaram uma profunda impressão. Senti--me especialmente propenso a observar o movimento físico das peças, enquanto ele cuidadosamente as posicionava bem no meio da casa para não irritar seu adversário. Na verdade, voltei para casa para praticar de modo que pudesse imitar os movimentos dele e também me esforçar o máximo pos-sível para jogar xadrez “corretamente” no ta-buleiro, para não perturbar meu adversário

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nem vencer por métodos desleais de distra-ção. Em suma, eu queria ser de classe mun-dial e me comportar como um enxadrista de classe mundial. Eu queira ser, ao menos no estilo, como Paul Keres.

Em minha imaginação juvenil, eu acha-va que todos os enxadristas de classe inter-nacional moviam suas peças com a mesma graça, precisão e exatidão que Paul Keres. Muitos realmente o fazem, e eu fiquei sur-preso ao descobrir que muitos não.

O mais surpreendente foi Vassily Smyslov. Nossa primeira partida foi dispu-tada em Montpellier, França, durante o tor-neio de Candidatos de 1985. Apresentamo--nos para a partida, apertamos as mãos cordialmente, sentamos e preenchemos nossas planilhas. Logo o gongo soou e o ár-bitro ligou nossos relógios. O primeiro lan-ce já foi uma surpresa. Vassily, um homem bastante alto com mãos grandes, pegou seu peão em d2 e, tateando, tropeçando, fa-zendo barulho, ele de alguma forma seguiu até a casa d4, onde o peão foi baixado com certo tremor e largado com dúvida, e o reló-gio foi batido. Essa não era a suave precisão de uma máquina bem lubrificada treinada para fazer milhares de lances com movi-mentos fluidos. Foi, isto sim, o movimento de alguém que sequer havia aprendido a pegar as peças. Cada um de seus lances ti-nha a mesma característica: pouca familiari-dade com pegar, segurar e mover as peças. As trocas eram situações estranhas: Vassily pegava meu peão ou outra peça com a mão e a levantava e retirava do tabuleiro, e de-pois pegava a peça ou peão que fazia a cap-tura da maneira mais desajeitada possível e a colocava na casa tomada. Embora isso fosse imensamente desconcertante no iní-cio, com o tempo eu me acostumei com seu modo de se movimentar e logo me esqueci disso, concentrando-me na partida propria-mente dita.

Posteriormente, eu compreenderia: Vassily estava perdendo a visão. De fato, as lentes de seus óculos eram muito grossas,

o que o obrigava a fazer um esforço quase míope para enxergar sua planilha e certifi-car-se do controle do tempo. Eu o informava quando o tempo tivesse se esgotado. Infeliz-mente, essa cegueira debilitante continuou, e atualmente ele está quase cego.

Independentemente de como as peças dele chegavam às casas pretendidas, o jogo de Smyslov nunca carecia de graça, elegân-cia e eficiência. A longevidade de sua carrei-ra deve-se, ao menos em parte, a seu estilo de jogo fluido e fácil.

Vassily Smyslov-Yasser Seirawan

Candidatos de Montpellier, 1985

Defesa Bogo-Índia

1.d4 Cf6 2.Cf3 e6Durante a maior parte de minha carrei-

ra, preferi a Defesa Nimzo-Índia, por gostar das disputas posicionais que se sucedem. Naquela época, eu tinha preferência ainda maior por um fianchetto do rei precoce, uma defesa que eu chamava de “Moderna” ou o “Rato”. Contudo, para um torneio de Can-didatos, a defesa do Rato era uma escolha muito arriscada e teria que esperar. Quando eu queria “forçar igualdade”, o Gambito da Dama Aceito era minha escolha.3.c4 Bb4+ 4.Cbd2 b6 5.e3 Bb7 6.a3 Bxd2+

Rumando para uma posição que eu já tinha jogado de ambos os lados e com a qual eu tinha muita experiência. Eu também poderia jogar 6...Be7, conservando o bispo, mas, depois de 7.Bd3 d5 8.0-0 0-0 9.b4, as Brancas estão em ligeira vantagem.7.Dxd2 0-0 8.b3?!

Um lance modesto. Com as Brancas, eu geralmente jogo 8.b4, dominando um pouco mais de espaço na ala da dama. Por algum motivo, o lance de Smyslov me en-

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cheu de confiança e ativou minha natureza mais agressiva.8...Ce4 9.Dc2 f5 10.Bd3 (Diagrama 1)

DIAGRAMA 1. Jogam as Pretas

10...d6Notavelmente, as Pretas chegaram

muito cedo a um momento decisivo na par-tida. A pergunta crucial é: será que as Pretas deveriam optar por subir sua torre no déci-mo lance? A questão é que, após a imediata 10...Tf6, a torre das Pretas ainda não está sob o fogo de um bispo em b2, o que neutrali-za um avanço d4-d5. Subitamente, e sem haver quaisquer linhas abertas, a posição assume um caráter agudo. Por exemplo, 10...Tf6 11.0-0?! Th6, e as Brancas veem seu rei colocado na linha de fogo. O que me fez hesitar foi 10...Tf6 11.Bb2 Tg6 12.Tg1, onde as Brancas farão o roque na ala da dama. De-pois dos lances posteriores 12...d6 13.0-0-0 Cd7, além do sacrifício temático, 14.d5 se-guido de Cf3-d4, eu comecei a me perguntar o que minha torre em g6 estava fazendo e se ela estava bem posicionada.

Outra linha de jogo completamente diferente era 10...Cg5 11.Cxg5 Dxg5 12.f3, quando as Brancas têm os dois bispos e uma ligeira vantagem. Mas, mesmo assim, as coi-sas não estão tão claras. As Pretas continua-riam com 12...d6 13.0-0 Cd7 14.e4 f4, quan-

do elas pretendem ...e6-e5, encontrando uma casa para seu cavalo.

Com o texto, eu queria aguardar que as Brancas declarassem um endereço para seu rei antes de decidir por onde atacar. No lin-guajar da época, eu decidi “manter minhas opções em aberto”.11.Bb2 Cd7 12.0-0

Nas palavras do herói do cinema, Ace Ventura – um Detetive Diferente, “Tudo bem então!” Agora que sabemos onde está o alvo, parecia natural fazer a torre subir.12...Tf6?!

Parece bom, mas o momento está er-rado. Uma escolha melhor e mais comedida seria jogar primeiro 12...De7 e ...Ta8-e8, vi-sando a ...e6-e5 e completando tranquila-mente o meu desenvolvimento. A possibili-dade de essa torre subir permanece.

As Brancas agora enfrentam um sério ataque e são obrigadas a responder no centro, senão as Pretas simplesmente se deslocarão para a direita, para a ala do rei com ...Tf6-h6, ...Cd7-f6-g4 e jogando apenas lances normais, vão saquear a ala do rei.13.c5!

Eu subestimei totalmente esse lance. As Brancas devem reagir no centro, mas a li-nha em que eu me concentrei foi 13.d5 Tg6 14.Bxe4 (14.dxe6 Cdc5) fxe4 15.Dxe4 Cc5 (a desvantagem de 8.b3), quando as Pretas re-cuperam seu peão com uma boa posição.

Agora eu lamentava não ter comple-tado meu desenvolvimento antes de a tor-re subir. Embora a posição após 13...bxc5 14.dxc5 Cdxc5 15.Bxf6 Dxf6 oferecesse justa compensação pela qualidade, eu não confiei totalmente na linha.13...Bd5 14.cxd6! cxd6 15.Tfc1!

Altamente irritante. Além de ameaçar uma invasão na casa c7, quando qualquer troca de damas põe um fim a meu incipien-te ataque, as Brancas liberam a casa f1 para um recuo defensivo do bispo. Já estando à margem do portão, eu começava a me sentir frustrado.15...Tg6 16.Bc4 Bb7

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Eu estava determinado a preservar o máximo número de peças possível – mesmo que apenas para justificar a subida de minha torre. Talvez 16...Cdf6 17.Bxd5 Cxd5 fosse uma escolha melhor.17.d5!

Um lance excelente para eliminar mi-nhas ambições de ataque. Eu acalentava so-nhos de jogar 17...Cg5 18.Ce1 Cf3+ 19.Cxf3 Bxf3 20.g3 Dh4, com ideias de um ataque para mate. Observe o papel de observador desempenhado pelo bispo em b2 nessa li-nha de jogo.17...e5 18.Bb5!

Droga, de novo! As Brancas não per-dem a chance de tirar a força de meu ataque. Eu nutria esperanças de jogar ...a7-a6, e de-pois completar meu desenvolvimento com...Dd8-e7 e ...Ta8-f8, com nuvens escuras carre-gadas se formando na ala do rei.18...Bxd5 19.Bc6! Bxc6 20.Dxc6 (Diagra-ma 2)

O sacrifício do peão das Brancas não foi apenas oportuno, foi brilhante. Não vamos esquecer que o xadrez é uma luta, uma ba-talha de ideias. Desde o início da partida, eu estive olhando para a ala do rei para construir um ataque ali, e o jogo das Brancas me afas-tou completamente dessas ambições. Sem dúvida, as Pretas agora precisam fazer alguns bons lances defensivos para determinar a va-lidade do sacrifício das Brancas.

DIAGRAMA 2. Jogam as Pretas

20...De8?E este não é um desses bons lances.

Com esse lance, eu achava que astutamente devolveria o peão para retomar a iniciativa. Em vez disso, facilitei o jogo das Brancas.

Agora era o momento de desistir de minhas ambições de atacar a ala do rei e em vez disso cuidar de meu peão a mais. O lance correto era 20...Te6!, levando minha torre de volta ao jogo. Eu temia que a linha 21.Dd5 De8 22.Tc7 Cdf6 23.Db7 favorece-ria as Brancas. Não é verdade. Em primeiro lugar, na posição, as Pretas têm 23...Df8, simplesmente protegendo o peão em g7. Mas muito mais importante, depois de Te6! 21.Dd5, as Pretas têm 21...Rf7!, um lance bom que protege a torre em e6 e também dá cobertura à casa c7. As Pretas estão pron-tas para ...Cd7-f6, e ...Te6-e7, cobrindo todos os pontos de entrada vitais. As Brancas ain-da teriam que provar suficiente compensa-ção para seu sacrifício de peão.21.Ch4! Te6 22.Cxf5 Cdc5!

Esse é o lance no qual pus muita fé. A fim de evitar perda material, as Brancas são empurradas para trás e eu achei que minha iniciativa seguiria adiante.23.Dd5 Cf6 24.Dc4 d5 25.Dc2 Td8

Essa é a posição que eu tinha imagina-do no 20o lance. Ela parecia ser inteiramente boa. As peças das Brancas estão amontoadas na ala da dama enquanto eu tenho o centro, bom desenvolvimento...26.Tab1! (Diagrama 3)

Um lance altamente cauteloso e tam-bém outro realmente importuno. Eu tinha esperado algo como 26.b4 Ca4 27.Td1 Tc8, quando eu poderia tomar a coluna c e trocar o perigoso bispo das Brancas. O texto pre-para um recuo do bispo para a casa a1 e co-loca a questão: “O que você vai fazer?” O tex-to também frustra minha possível ameaça de 26...Db5 27.b4 Cd3 com uma iniciativa, pois agora 26...Db5 27.Ba1 é uma resposta simples.

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DIAGRAMA 3. Jogam as Pretas

26...e4!?Definitivamente, não é o lance que

eu gostaria de fazer nessa posição. Ao fazer meu lance, lembrei das palavras de Fischer: “Para conseguir casas, você precisa dá-las.” Sim, eu ganho o controle da casa d3, mas em troca abro mão da longa diagonal e também do posto avançado em d4. Essa troca me parece favorecer as Brancas. Muito simples-mente, fiz esse lance por frustração. Eu não tinha certeza de como prosseguir. O direto 26...g6 27.Cg3 d4 28.exd4 exd4 29.Dc4 não é atraente, ao passo que 26...Db5 27.Ba1 Cd3 28.Td1 não leva a nada. O que mais fazer?

Meu maior problema era que neste ponto eu achava que estava melhor e estava ansioso para mostrar minha superioridade. Uma visão mais fria e mais objetiva da po-sição era necessária. Na verdade, a posição é mais ou menos equilibrada e, em vez de meu lance de alto comprometimento, algo como 26...Dg6 ou 26...Dh5, ativando a dama, era necessário.27.De2!

Uma sutileza importante. É vital para as Brancas manter uma torre na coluna c após Cc5-d3, senão as Pretas posteriormen-te tomariam posse da coluna c.27...Dg6 28.Cd4 Ted6 29.h3 (Diagrama 4)

Colidindo contra mais um bloqueio na estrada. Mais uma vez, eu não via outra forma de avançar a não ser como joguei, o que permite um empate imediato. Para manter a tensão, agora era um bom mo-mento para “esconder meu rei” e esperar a evolução. Um lance como 29...h6, seguido por...Rg8-h7, era a ideia mais sensata, com igualdade aproximada. A paciência é uma virtude.

DIAGRAMA 4. Jogam as Pretas

29...Cd3?! 30.Tc7! T8d7??Ah não! Esse não era o jeito de forçar

uma repetição. A linha correta era 30...T6d7 31.Tc6 Td6, com um provável empate imi-nente.31.Tc8+ Td8?! 32.Cc6!

Bum! Eu simplesmente não vi esse tiro. Por que não escondi meu rei antes? Agora sou obrigado a perder material e estou per-dido. Com um coração pesado, preciso me separar de minha dama.32...Txc8 33.Ce7+ Rf7 34.Cxg6 hxg6 35.Td1 Tdc6 36.Txd3!

Muito simples. Com a eliminação do cavalo, todos os meus peões tornam-se al-vos e a combinação de dama e bispo domi-nará a posição.36...exd3 37.Dxd3 Td8 38.f3 Td7 39.Rh2 Tcc7 40.h4 Tc6 41.g4

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A partida foi adiada nesse ponto, e eu passei uma noite difícil me repreendendo. Meus assistentes Ulf Andersson e Miguel Quinteros experimentaram muitos tipos de “fortalezas”, mas não conseguimos fazer nada funcionar.41...Te6

O lance secreto.42.Bd4 Ce8 43.Rg3 Re7 44.a4 Rd8

Essa é a melhor defesa que consegui-mos imaginar. As Pretas esperam que suas torres segurem o centro e a ala do rei, en-quanto seu rei protege o peão em b6. Com certeza, permanecer na ala do rei, com o tempo, levaria a uma avalanche de peões e a um ataque com mate.45.a5

De modo algum um lance ruim, mas ele me permite montar a desejada defe-sa. O lance que eu mais temia era 45.Da6!, quando eu jogaria 45...Re7, retornando com meu rei.45...Cc7! 46.axb6 axb6 47.f4 Rc8! 48.f5 gxf5 49.Dxf5 g6! (Diagrama 5)

DIAGRAMA 5. Jogam as Brancas

Foi uma tremenda sensação de alívio ter sido capaz de mover este peão para uma casa branca. Embora ainda em situação difí-

cil, estou fora da zona “claramente perdida”. Melhor ainda, eu estou dificultando a vitória de Vassily o máximo possível. Oferecer boa resistência em uma má posição pode esva-ziar seu adversário de seu instinto matador.50.Df8+ Rb7

Mais um consolo. Agora meu rei está seguro.51.Dg8 Tde7 52.Dd8 Te8 53.Dd7 T6e7 54.Dd6 Te6 55.Db4 Tc6 56.Dd2 Tce6 57.Dd3 Rc6 58.Dc2+ ½-½

Com esse último lance, Vassily propôs um empate, que eu avidamente aceitei. Es-capei por um triz. Na posição final, o lance ...Cc7-b5 é muito difícil de encarar.

Minha impressão geral desta partida foi a de que ela me confundiu bastante. Eu pensei que meu adversário tinha dificulda-des diante de um ataque potencialmente sério e, de alguma forma, por ele ter feito um sacrifício defensivo, minha posição foi perdendo força. Eu deixei de mudar meu pensamento e de desistir de minhas ambi-ções de ataque quando era melhor manter a vantagem de um peão a mais. Não era co-mum eu ser derrotado quando tinha uma “vantagem” ou, pelo menos, uma posição de que eu gostasse. Vassily fez isso parecer fácil.

Nosso encontro seguinte ocorreu no Aberto de Nova Iorque em 1987. Louis Statham tinha falecido, e o torneio suíço “fechado” mais forte nos Estados Unidos foi organizado por Jose Cuchi, que montou uma ótima competição. Tentei participar o máximo possível, mas perdi muitos dos torneios dele. Para vencer um torneio suí-ço, você precisava ter uma ótima pontua-ção. Parece que Vassily não estava muito ambicioso e escolheu uma linha de empa-te típica contra minha Defesa Pirc, o que não contribuiu para nenhuma de nossas chances.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 59

Vassily Smyslov-Yasser SeirawanAberto de Nova Iorque, 1987

Defesa Pirc

1.d4 d6O lance que eu queria jogar em nos-

so encontro de Candidatos, mas não tive a ousadia. Eu estava curioso para ver como Vassily trataria essa linha.2.e4

Uma grande surpresa, pois eu espera-va que ele fosse jogar algo como 2.Cf3, ou mesmo 2.g3, de acordo com seu estilo de jogo posicional fechado.2...Cf6 3.Cc3 g6 4.Cf3 Bg7 5.Be2 0-0 6.0-0 Bg4 7.Be3 Cc6 8.Dd2 e5 (Diagrama 6)

DIAGRAMA 6. Jogam as Brancas

9.dxe5Com esse lance a música para, quando

as trocas por atacado tiram a vitalidade da posição. Em vez disso, com 9.d5, as Brancas mantêm uma pequena vantagem.

9...dxe5 10.Tad1 Dc8 11.Dc1 Td8 12.Txd8+ Dxd8 13.Td1 Df8 14.h3 Bxf3 15.Bxf3 Td8 16.Txd8 ½-½

Empatado por proposta de Vassily.Mais uma vez, voltamos a jogar no ci-

clo do Campeonato Mundial. Dessa vez jo-gamos nos Interzonais, um nível abaixo do torneio de Candidatos, realizados em Biel, Suíça, um lugar absolutamente lindo. E des-sa vez eu estava com as Brancas.

Yasser Seirawan-Vassily SmyslovInterzonal em Biel, 1993

Abertura Inglesa

1.c4 e5 2.Cc3 d6 3.e3Uma tentativa de dar um rumo dife-

rente à partida. Em centenas de jogos em torneios, 3.g3 tinha sido minha escolha automática. Eu queria despojar Vassily dos eventuais preparativos que tivesse feito para nossa partida.3...g6 4.d4 Cd7 5.Cge2 Bg7 6.g3 Cgf6 7.Bg2 0-0 8.b3 Te8 (Diagrama 7)

DIAGRAMA 7. Jogam as Brancas

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60 Yasser Seirawan

A partida se tornou uma espécie de Defesa Francesa invertida, onde as Pretas jogam uma formação de Ataque Índio do Rei. As Brancas gostariam de ver as Pretas se comprometerem a jogar ...e5-e4, espe-cialmente antes de as Brancas terem feito o roque na ala do rei. Assim, eu precisava usar um tempo fazendo um lance útil.9.a4!?

É difícil dizer se isso é bom ou ruim. Eu queria reservar a opção de fazer o ro-que grande, em caso de ...e5-e4, e manter a opção de Bc1-a3, caso a diagonal a3-f8 se tornasse útil.9...c6 10.h3

A espera continua. Mais uma vez es-tou tentando instigar as Pretas a se esten-derem no centro.10...exd4

As Pretas esgotaram seus lances úteis. A direta 10...e4 11.g4 h6 12.Ba3 Cf8 13.Cg3 d5 14.cxd5 cxd5 15.Cb5 era o tipo de linha que eu esperava para a partida. Se as Pretas tentam manter a tensão com 10...h5, um lance questionável, então 11.Ba3 Cf8 12.dxe5 leva a uma vantagem para as Brancas. Observe que, nesta última linha, 12...dxe5 13.Dxd8 Txd8 14.a5! justifi-caria meu nono lance.11.exd4

Após 11.Cxd4?! a5!, as Pretas teriam uma ótima posição Índia do Rei, pois têm excelente controle da casa c5.11...d5 12.a5! Ce4 13.Cxe4 dxe4 14.0-0 c5!

As Pretas não devem protelar esse avanço. As Brancas estão prontas para jo-gar Bc1-e3, Dd1-d2 e Ce2-c3, com uma po-sição muito harmoniosa. As Brancas têm que acelerar o ritmo da partida e lutar por casas enquanto completam seu desenvol-vimento, senão seu jogo vai ficar difícil.15.Be3 cxd4 16.Bxd4 Ce5 (Diagrama 8)

DIAGRAMA 8. Jogam as Brancas

A posição está muito tensa e o resulta-do da partida depende do equilíbrio durante os próximos lances. O que jogar? À primei-ra vista, 17.Bxe4 é atraente, pois, forçando com 17...Bxh3 18.Bxb7 Bxf1 19.Dxf1, parece ser um bom sacrifício de qualidade. Mas, se continuarmos a linha mais um ou dois lan-ces, descobrimos que 19...Tb8 20.a6 Txb7 21.axb7 Cf3+ 22.Rh1 Cxd4 ganha uma peça para as Pretas. Irritante. Tampouco 17.Bxe4 Bxh3 18.a6 é satisfatório, pois com 18...bxa6! as Pretas também ficariam contentes por fa-zer um sacrifício de qualidade.

A ameaça das Pretas de 17...Cf3+ me obriga a fazer alguma coisa. Havia uma ideia profilática de 17.Rh1, evitando a ameaça de xeque. Ah! Brilhante. Mas qual a qualidade da posição das Brancas depois de 17...f5 18.Cf4 Be6? Eu não tinha certeza se havia alguma vantagem. Outro proble-ma é que 17.Rh1 Cd3! 18.Bxg7 Rxg7 19.f3 e3! é simplesmente melhor para as Pretas. Essa variante me faz lembrar do ditado “Cui-dado com o tigre que você convida para jantar. Ele pode te devorar.”17.Bxe5!?

Uma solução meio radical, optar por abrir mão de dois bispos para perseguir uma iniciativa na ala da dama.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 61

17...Bxe5 18.Dxd8 Txd8 19.Tad1 Bc7 20.Txd8+ Bxd8 21.Ta1

Ameaçando 21.Bxe4, pois, depois de 21...Bxh3, a torre das Brancas não seria mais atacada e as Brancas continuariam com 22.Bxb7, tomando um peão.21...Tb8 22.Cf4

As Brancas renovam a ameaça de Bg2xe4 por protegerem seu peão em h3.22...f5 23.b4 (Diagrama 9)

DIAGRAMA 9. Jogam as Pretas

Esta é a posição que eu queria. Se eu puder deslizar em Ta1-d1 e f2-f3, os bispos das Pretas podem ser facilmente domina-dos.23....Bd7 24.Cd5 Be6 25.Td1 Bxd5?!

Um final com bispos de cores opostas não teria sido minha escolha. Vassily preocu-pava-se que, com f2-f3 e uma futura c4-c5, ele seria sufocado. Eu não compartilhava sua crença de que as coisas seriam tão defini-das e secas. Por exemplo, 25...Rf7! 26.f3 exf3 27.Bxf3 Bg5 28.c5 Td8, apesar de passiva (o peão em b7 é uma preocupação constante), oferecia muitas oportunidades excitantes.26.Txd5 Be7 27.c5!

Com esse lance, as Pretas têm proble-mas a resolver, pois as Brancas estão fazendo séria pressão na ala da dama. Eu agora espe-rava 27...Td8! 28.Bf1 Txd5 29.Bc4 Rf8 30.Bxd5,

ganhando o peão em b7. Mesmo assim, o final com bispos de cores opostas pode permitir que as Pretas empatem. Eu nutria esperanças de vitória porque os peões da ala do rei das Pretas estavam todos em casas brancas. Com as Pretas, eu teria saltado para esse final.27...b6?

Um lance ruim, pois permite às Bran-cas um peão passado em a. Como observa-do, as Pretas deveriam ter trocado as torres. Se você vai defender um mau final, escolha aquele que contém apenas bispos de cores opostas. As chances de empate nesse caso são quase sempre muito maiores.28.cxb6 axb6 29.Tb5!?

Embora fosse atraente continuar com a pressão na ala da dama, a imediata 29.a6! era mais forte. Eu não vi o fato de que depois de 29...Bxb4 30.a7 Ta8 31.Td7 b5 as Pretas não têm tempo de executar ...Bb4-c5xa7, pois 32.Tb7!, com a ameaça de 33.Tb8+, vence.29...Bd6

Esperando montar um bloqueio na casa b8 depois de 30.axb6, que devo, defi-nitivamente, evitar.30.a6!

O peão passado em a, por outro lado, é um vencedor.30...Bc7 31.Bf1 Rf8 32.Td5 b5

O peão em b das Pretas cai de qual-quer forma. Essa é a única chance de blo-queio das Pretas, pois, do contrário, as Brancas jogarão Bf1-b5-c6, e depois sim-plesmente avançarão o peão da coluna a.33.Bxb5 Bb6 34.Td6 Ba7 35.Td7 Ta8 36.Txh7

Um pouco sádico. Em finais com bis-pos de cores opostas, é uma boa ideia tomar o máximo de peões possível. Em vez disso, 36.Bc6 Bxf2+ 37.Rxf2 Txa6 38.b5 era suficien-te para a vitória, mas eu não queria correr ne-nhum risco e então capturei o peão em h7.36...Bd4 37.Td7 Bb6 38.Tb7 Bd4 39.Td7 Bb6 40.Td6 Ba7 41.Bc6

Neste ponto, senti “coragem suficiente” para fazer esse lance.

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62 Yasser Seirawan

41...Re7 42.Txg6O mesmo comentário anterior. Conti-

nue tomando enquanto isso for bom.42...Tf8 43.Tg7+ Tf7 44.Txf7+ Rxf7 45.Rf1 Rf6 46.Re2 Re5 47.f4+ exf3+ 48.Rxf3 Rf6 49.Bd7 1-0

Depois da partida, Vassily me disse: “Eu não sei como fui perder neste final”. Devo confessar que foi muito bom derrotar no fi-nal um dos melhores jogadores de finais da história.

Nas décadas de 1980 e 1990, o tor-neio Interpolis em Tilburg, Holanda, era um destaque no calendário. Invariavelmen-te, era um torneio round robin fechado do mais alto gabarito. Contudo, na edição de 1994, os organizadores mudaram para um sistema de nocaute com minimatches e eu peguei Vassily. Estas seriam nossas duas úl-timas partidas um contra o outro.

Yasser Seirawan-Vassily SmyslovPrimeira Partida do Match, Tilburg, 1994

Defesa Bogo-Índia

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cf3 Bb4+ 4.Cbd2Invertendo os papéis de nosso encon-

tro no torneio de Candidatos em 1985.4...c5?!

Eu não gosto dessa combinação de lances. As Pretas voluntariamente abrem mão de seu bispo das casas pretas e enfra-quecem sua casa d6. Por incrível que pareça, naquela época esse sistema era muito popu-lar. Posteriormente, 4...0-0 5.a3 Be7 6.e4 d5 7.e5 Cfd7 seriam favorecidos.5.a3 Bxd2+ 6.Bxd2 d6?!

Meus sentimentos em relação a esse lance não são uma simples questão de gosto – ele certamente coloca as Pretas em apuros.

A escolha usual era 6...cxd4 7.Cxd4 d5, liqui-dando os peões do centro.7.dxc5! dxc5 8.Dc2! Cbd7

As pretas estão indo para uma posi-ção sem vitalidade. Vassily queria evitar blo-quear a diagonal longa a1-h8 com 8...Cc6 9.0-0-0 De7 10.Bc3 e5, que entrega a casa d5, mas essa era uma escolha melhor.9.0-0-0

Nada mau, mas não o melhor. Aqui, pensei em 9.g4!, iniciando atividade na ala do rei. A questão é que as Brancas preci-sam fazer uma pergunta mais importante: “O que eu vou fazer com meu bispo em f1 e como vou completar meu desenvolvimen-to?” É interessante pensar que 9.e4, 10.Bd3 e 11.e5 poderiam ser jogados com domí-nio do centro. O problema é que 9.e4 e5 embola a posição e me deixa pensando o que fazer com meu bispo em f1. Outra ideia não tão ruim é 9.g3 b6 10.Bg2 Bb7 11.0-0 0-0 completando meu desenvolvimento. Mas, nesse caso, os bispos das casas bran-cas neutralizam-se mutuamente, e pensei que a posição não daria mais do que uma pequena vantagem para as Brancas. Daí minha hesitação e busca por uma solução mais drástica.

Na verdade, 9.g4! é um lance muito forte, pois força as Pretas a responderem à ameaça de g4-g5, ao mesmo tempo dando ao bispo em f1 alguma flexibilidade. Por exemplo, 9...0-0 10.g5 Ch5 11.Bh3 poderia rapidamente levar a um desastre. Igual-mente, 9...Cxg4 10.Tg1 Cgf6 11.Txg7 é uma troca muito favorável para as Brancas. As-sim que Bd2-c3 for jogado, as Pretas terão graves dificuldades na diagonal longa. Isso faz com que 9.g4 h6 10.Rg1 b6 seja a linha de jogo mais provável. Mas, depois, 11.g5 hxg5 12.Cxg5! De7 13.Bg2 Tb8 14.0-0-0 dei-xa as Pretas em um dilema – onde elas vão colocar seu rei? Com o custo de enfraque-cer seu peão em h2, as Brancas completa-ram seu desenvolvimento e todas as peças estão em posição ativa. O jogo das Pretas seria difícil.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 63

9...Dc7! (Diagrama 10)Eu meio que subestimei esse lance

ao fazer o roque. As Pretas tentam impedir Bd2-f4-d6, quando as Brancas estão domi-nando. Eu esperava 9...De7 10.Bc3 0-0 11.e3 b6 12.Bd3 Bb7 13.Cg5, quando poderia apli-car uma “agradável pressão” à posição.

Neste momento eu tive a nítida im-pressão de que Vassily tinha seriamente mis-turado a ordem de lances de sua abertura e que alguma punição devia ser administrada. A combinação de lances das Pretas ...c7-c5, ...Cb8-d7 e ...Dd8-c7, inclusive abrir mão de seu bispo das casas pretas, cria uma impres-são lastimável e eu agora estava disposto a brigar. Mas como estalar o chicote?

DIAGRAMA 10. Jogam as Brancas

10.g3!?Parece um bom começo. Eu queria jo-

gar Bd2-f4, para induzir ...e6-e5, o que cria-ria debilidades no campo das Pretas.10...Cg4?!

Realmente, muito provocativo. Sem completarem seu desenvolvimento, as Pre-tas estão usando táticas para resolver seus problemas estratégicos. Eu sentia que agora uma combinação vitoriosa “devia” existir.11.Bf4

A mais tentadora, mas, de novo, a se-gunda melhor. Eu poderia evitar as complica-

ções depois do texto e optar por uma vanta-gem mais segura e clara jogando 11.Bc3! 0-0 (11...Cxf2 12.Bxg7 Tg8 13.Dxh7 Txg7 14.Dxg7 Cxh1 15.Cg5! é muito perigosa para as Pre-tas) 12.e3, quando as Brancas têm os dois bispos e um desenvolvimento superior. A linha poderia continuar com 12...b6 13.Cg5! g6 14.Bh3 Cgf6 15.Td2 Bb7 16.Thd1, quando o jogo das Brancas é o quadro da harmonia. Sacrifícios contra o peão e6 são prováveis e a defesa das Pretas seria difícil. O texto se ba-seou em minha certeza de que uma combi-nação vitoriosa logo seria oferecida.11...e5 12.Bh3 h5 (Diagrama 11)

Mais uma vez, as Pretas não podem to-mar o peão em f2: 12...Cxf2? 13.Bxd7+ Bxd7 14.Bxe5, seguida por 15.Bxg7, com grande vantagem para as Brancas.

Chegamos a uma posição que eu achava que tinha que conter uma combina-ção vitoriosa. Afinal, o desenvolvimento das Pretas é terrível, pois não fizeram o roque e suas torres não estão conectadas. Eu fiquei quebrando a cabeça mas não conseguia encontrar a vitória e comecei a ter um senti-mento de frustração.

DIAGRAMA 11. Jogam as Brancas

13.Bxg4!Eu poderia ter jogado 13.Be3 com um

jogo aproximadamente equilibrado, mas eu

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64 Yasser Seirawan

estava determinado a queimar minhas pon-tes neste momento. Não havia retorno!13...hxg4 14.Cxe5!

Pegando o touro pelos chifres. Mais uma vez, eu me senti obrigado a “seguir adiante”. Infelizmente, o sacrifício de 14.Txd7 Dxd7 15.Cxe5 De7 16.Td1 0-0 parece levar a um beco sem saída.14...Cxe5 15.Td5 Th5!

Evidentemente, o único lance defen-sivo. Depois de 15...f6 16.Bxe5 fxe5 17.Dg6+ Rf8 18.Thd1, as Pretas estão perdidas.16.Txe5+?

Aliviando a tensão e tornando a tare-fa defensiva das Pretas muito mais fácil. Eu tenho uma antiga expressão de sabedoria: “Ao atacar, convide todos para a festa”. Daí, o lance mais natural na posição é também a melhor: 16.Thd1! leva a torre em h1 para o ataque. Para permanecer no jogo, Vassily teria que encontrar 16...Rf8!, um lance mui-to contraintuitivo. A escolha natural e a que eu temia era 16...f6?. Então, 17.Bxe5 Txe5 18.Dg6+ Df7 19.Txe5+ fxe5 20.Td8+ Re7 ven-ce para as Brancas. É constrangedor admitir, mas eu simplesmente não vi a vitória depois de 20...Re7. Eu fiquei procurando e procuran-do, mas com minha dama e minha torre en prise, eu achava que a linha era um beco sem saída. Mas 21.Dd6! resolve todos os proble-mas das Pretas, pois é xeque-mate.

Embora 16.Thd1 Be6 17.Txe5 Txe5 18.Dh7 seja uma versão muito superior da partida, as Pretas devolveriam uma torre inteira com 18...Td8 19.Txd8+ Dxd8 20.Bxe5 g6, quando as Brancas teriam um peão a mais e boas perspectivas de vitória.

Assim, depois de 16.Thd1! as Pretas poderiam ter aguentado? Boa pergunta. Depois de 16...Rf8! 17.Txe5 Txe5 18.Dh7 f6 19.Bxe5 fxe5 20.Dh8+ Rf7 21.Td8 eu fico com uma peça a menos, mas as Pretas ficam com uma peça cravada sem escapatória. Na prática, eu consideraria que as chances de vitória das Brancas são muito maiores do que as chances de empate das Pretas.16...Txe5 17.Dh7 f6 18.Td1?

Tarde, e também ruim. A linha neces-sária era 18.Bxe5! Dxe5 (18...fxe5?? 19.Dg8+ Rd7 20.Td1+ Rc6 21.De8+ vence) 19.Td1 Rf7 20.Td8, com uma posição igual pois recupe-ro o bispo em c8.18...Rf7! 19.Dh8? (Diagrama 12)

Caramba, uma desgraça nunca vem só, e os erros se sucedem. Triste admitir, essa era a posição para a qual eu estava jogando 16.Txe5?, pois na minha cabeça, eu achava que as Pretas não poderiam impedir Td1-d8, depois do que as Brancas poderiam assediar o rei das Pretas. Mais uma vez, com 19.Bxe5 fxe5 20.Dh5+! Rf6 21.Dh8!, visando a Td1-d8, a partida deveria empatar.

DIAGRAMA 12. Jogam as Pretas

19...Dc6!Esse bom lance defensivo foi um tre-

mendo choque. Minha pretensão de “vitória” com 20.Bxe5 fxe5 21.Td8 ignorava 21...Dh6+!, trocando as damas e dando fim a meu ata-que. Sem dúvida, eu tinha perdido o controle da partida.20.Td8?

Agora eu entrei em alguma espécie de “ciclo giratório” no qual estou tonto com lances ruins. As Pretas ainda teriam que tra-balhar por sua vitória depois de 20.Bxe5 fxe5 21.Dh5+ Dg6 22.Dxe5 Be6 23.Td6, com dois peões pelo bispo.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 65

20...Te8!E agora tudo acabou. As Pretas têm

uma torre inteira de vantagem e o ataque se acabou. Minha combinação vencedora não deu em nada.21.Dh5+ Re7 22.Td6 De4 23.Td3 Be6?!

Depois de esperar tanto, Vassily estava compreensivelmente ansioso para se de-senvolver. Honestamente, não sei o que eu poderia fazer depois de 23...Rf8!, quando as Pretas pretendem saltar com seu rei para a casa g8. Contudo, o texto é bom o suficiente. Nos lances finais, estou me debatendo, não querendo admitir a derrota.24.Bd6+ Rd8 25.Be5+ Bd7 26.Df7 Df5 27.Bf4 g5 28.Be3 De6 29.Dg7 b6 30.Td5 De7 31.Txg5 Dxg7 32.Txg7 Rc7 33.b3 Txe3!

Vassily decide-se pelo mesmo tipo de simplificação de nossa partida de Candida-tos. Desta vez, não existe defesa milagrosa.34.fxe3 Th8 35.e4 Txh2 36.Rd2 Tg2 37.Tf7 Txg3 38.e3 Tf3 39.Re2 0-1

Esta partida foi realmente um golpe nocauteante. Imagine como me senti ator-mentado quando, de volta em meu quarto de hotel, descobri que a linha 16.Thd1! f6? 17.Bxe5 Txe5 18.Dg6+ Df7 19.Txe5+ fxe5 20.Td8+ Re7 21.Dd6 era xeque-mate. Sus-piro. Meu único consolo foi ver que minha intuição estava certa – a posição permitia de fato uma forte combinação. Agora, para per-manecer no minimatch de duas partidas, eu precisava vencer com as Pretas.

Vassily Smyslov-Yasser SeirawanSegunda Partida do Match, Tilburg, 1994

Defesa Caro-Kann

1.e4!Há muito tempo penso que o melhor

lance quando você precisa empatar de Brancas é 1.e4, pois em muitas das princi-pais linhas forçadas é muito difícil que as Pretas obtenham boas chances de vitória.1...c6 2.d4 d5 3.Cc3 g6

Uma tentativa de manter a vivacidade da partida o máximo possível. As principais linhas tendem a levar a uma igualdade in-sossa ou a uma ligeira vantagem para as Brancas. O texto é uma tentativa de tirar vantagem do terceiro lance das Brancas. Na verdade, em minha opinião, o lance mais correto é 3.Cd2, o qual permite um futuro c2-c3, mantendo a longa diagonal a1-h8 fe-chada.4.h3 Bg7 5.Cf3 Ch6 6.Bd3 0-0 7.0-0 f6 8.Te1 Cf7 9.b3!? Te8 10.Bb2 e6

Tentando manter a posição tranquila e o mais duradoura possível.11.Ce2

Planejando c2-c4, para tornar o jogo o mais concreto possível. As Brancas poderiam jogar também 11.De2! para impedir que as Pretas desenvolvam seu cavalo em b8 com o jogo melhor.11...Cd7 12.c4 dxe4 13.Bxe4 f5 14.Bc2 (Diagrama 13) 14...c5!

A única forma de desequilibrar a posi-ção é criar uma maioria central.15.Tb1 cxd4 16.Cexd4 e5 17.Cb5 e4 18.Bxg7 Rxg7 19.Ch2

Tudo bem, não é muita coisa, mas eu saboreei o fato de ter empurrado o cava-lo para a passiva casa h2. Vassily continua com seu plano de simplificação.

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66 Yasser Seirawan

DIAGRAMA 13. Jogam as Pretas

19...Cf6 20.Dxd8 Txd8 21.f3 Bd7 22.Cc3 exf3 23.Cxf3 Bc6 24.Tbd1 Bxf3

Mais uma vez, fazendo o máximo para criar um desequilíbrio. Separar os peões da ala do rei branco e jogar pelas casas pretas é minha escolha mais promissora.25.gxf3 Txd1 26.Txd1 Cg5 27.Rg2 Te8 28.h4 Ce6 29.Ce2 Tc8

Mantendo um olho na ala da dama para que as Brancas não se expandam facil-mente com b3-b4 e c4-c5.30.Rf2 Rf7 31.Cd4 Cxd4 32.Txd4 Re7 33.Re3 Tc6 34.b4?! a5! (Diagrama 14)

DIAGRAMA 14. Jogam as Brancas

35.Ba4As Brancas estão tendo alguns proble-

mas e precisam permitir que seus peões da ala da dama também se separem. Elas de-vem evitar 35.a3? axb4 36.ab4 Tb6! 37.b5 (37.c5? Txb4 38.Txb4 Cd5+ ganha um peão) 37...Te6+, quando as Pretas continuam com ...Cf6-d7, conquistando o ótimo posto avan-çado em c5. Com o seguimento ...b7-b6, a maioria da ala da dama das Brancas ficaria fixa em favor das Pretas.35...Ta6! 36.bxa5 Txa5 37.Bb3 Cd7

De modo geral, eu agora estava en-cantado com o resultado da abertura e do meio-jogo. Eu consegui obter uma clara vantagem, pois o cavalo é uma peça mais bem colocada nessa posição do que o bis-po. Além disso, a estrutura desordenada dos peões das Brancas oferece bons alvos às Pretas.38.Td2 Cc5 39.Rd4 Ce6+ 40.Rc3 Te5 41.Rb4 Cc7 42.Bd1 Ca6+ 43.Rc3 Cc5 44.a4 b6 45.Rb4 Ca6+ 46.Rc3 Te1!

As Pretas ativam sua torre, convidando as Brancas a trocar torres para simplificar. Na verdade, eu esperava 46.Te2+ Txe2 47.Bxe2 Rd6 48.Rd4 Cc5 49.Bd1 Ce6+ 50.Rc3 Rc5 com uma clara vantagem.47.Td5 Cc7 48.Td2 Th1 49.Be2 Txh4 50.Tb2 Th2 (Diagrama 15)

DIAGRAMA 15. Jogam as Brancas

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 67

51.c5Vassily havia posto suas esperanças

nesse lance, apostando que um segundo sa-crifício de peão garantiria um contra-ataque suficiente com o peão passado em a. Eu fi-quei feliz em tomar outro peão.51...bxc5 52.a5 Rd6 53.Td2+ Re5?!

Ingênuo demais. Eu estava sonhan-do com 54.a6? Cxa6 55.Bxa6 Txd2 56.Rxd2 Rf4 57.Re2 Rg3, escoltando meu peão até a promoção. Em vez disso, o simples 53...Rc6 54.a6 Cd5+ 55.Rb3 Rb6! era uma maneira melhor de jogar pela vitória.54.Rc4! Th4+ 55.Rxc5 Ta4 56.Rc6 Ce6 57.Td5+!

Um lance-chave que eu subestimei. Eu tinha me concentrado em 57.a6 Cd4+ 58.Rb6 Cxe2 59.Txe2 Rf4 60.Th2 Rxf3 61.Txh7 g5 como minha linha-chave, na qual eu achava que tinha algumas chances de vitória.57...Rf4 58.Rb6 h5 59.a6 h4 60.a7 h3 (Dia-grama 16)

DIAGRAMA 16. Jogam as Brancas

61.Bf1!?A linha mais tranquila. Eu estava ten-

tando entender tanto 61.Ba6 h2 62.a8=D h1=D, que deveria favorecer as Pretas quan-to a bem mais complicada 61.Bb5!? Txa7 62.Rxa7 Cc7 63.Td4+ Re5 (63...Rg3!?) 64.Tb4 (64.Th4) Cxb5+ 65.Txb5+ Rf4, quando eu

não tinha certeza se podia vencer ou não, mas gostava de minhas chances.61...h2 62.Bg2 Rg3 63.Td2!

Óbvio, mas também o único lance. Após 63.Bh1? Ta1 64.Rb7 Txh1 65.a8=D Tb1+, as Pretas também promovem seu peão.63...Cc5?

Isso elimina minha última chance de vencer. Eu precisava tentar o direto 63...Cf4! 64.Bh1 Ta1 65.Tb2 Txh1 66.a8=D Tf1 67.Txh2 Rxh2, quando teria uma torre e um cavalo contra a dama, com o potencial dos peões passados e boa segurança do rei.64.Bh1 Rh3 65.f4 Ce4 66.Td8 Rg3 67.a8D Txa8 68.Txa8 Cf2 69.Ta3+ Rg4 70.Ta2! Rg3 71.Ta3+ Rg4 72.Ta2 Cxh1 73.Txh2 Cg3 74.Th6 Rxf4 75.Txg6 ½-½

Foi quase, mas quase não vale pontos. Vassily venceu nosso minimatch, tirando--me do torneio e avançando. Um par de par-tidas interessantes com muitas ideias para se pensar a respeito.

Post mortemNas Olimpíadas de Moscou em 1994, ga-nhei uma medalha de ouro como prêmio de tabuleiro individual (8½ pontos em 10 partidas). Contudo, a cerimônia de fecha-mento foi um evento meio caótico. Como ganhador de medalha, fui convidado para uma cerimônia que seria realizada em um dos Palácios do Kremlin. Entretanto, minha equipe não teve permissão para me acom-panhar. Eu nunca estive em uma Olimpíada em que as equipes não fossem convidadas e, por isso, recusei o convite para participar da cerimônia de fechamento “fechada” so-mente com as equipes russas e outros me-dalhistas. Quando meu nome foi chamado para receber a medalha de ouro, eu não es-tava lá. Depois da segunda chamada, Vassily Smyslov levantou-se e tomou o meu lugar. Ele recebeu a medalha, remeteu-a para Ele-na Akhmilovskaya-Donaldson em Seattle, e Elena entregou-a para mim. Eu, por minha vez, doei todas as minhas medalhas olímpi-

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cas para o Museu do Hall da Fama do Xadrez Mundial em Miami, Flórida.

Isso revela muito sobre o encanto e a classe que caracterizavam o sétimo Cam-peão Mundial.

Vou concluir este quadro de Vassily Vasilievich Smyslov com uma citação de Gar-ry Kasparov: “Smyslov era um praticante, ao passo que Botvinnik era um pesquisador. Vas-sily Vassilievich jogava um xadrez mais intui-tivo. Botvinnik queria estudar todas as nuan-ces, e o jogo de Smyslov era como um fluxo de consciência enxadrística. Mas, em seu me-lhor período, seu princípio era muito simples: ‘Eu faço 40 lances bons, e, se meu parceiro fizer 40 lances bons, então há um empate.’ ”

Partidas clássicas contra Vassily Smyslov

Smyslov-Seirawan, Montpellier, França, 1985: ½-½

Smyslov-Seirawan, Nova Iorque, EUA,1987: ½-½

Seirawan-Smyslov, Biel, Suíça, 1993: 1-0

Seirawan-Smyslov, Tilburg, Holan-da,1994: 0-1

Smyslov-Seirawan, Tilburg, Holanda, 1994: ½-½

Seirawan: uma vitória, uma derrota, três empates. Placar clássico: 2½-2½

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4

Mikhail Tal

De todos os Campeões Mundiais, Mikhail Tal, ou “Mischa”, como todos o chamavam, foi o mais querido, admirado e, sim, amado pelos colegas e fãs do xadrez no mundo in-teiro. Era uma pessoa notavelmente bondo-sa e simpática. Tinha uma voz suave e uma adorável capacidade de ironizar a si mesmo com graça. Jamais o ouvi pronunciar uma palavra áspera em sua vida, mesmo quando perdia uma partida difícil. Seus olhos cinti-lantes se iluminavam sempre que havia um tabuleiro de xadrez por perto. Seus escritos o revelam como uma pessoa mundana e compassiva. Não sei quantas línguas falava, mas seu inglês era excelente. Quando multi-dões se reuniam nas salas de imprensa para ouvi-lo, ele mudava de um idioma para o outro com facilidade. Andava e movia suas peças com uma facilidade quase desleixa-da, pronto para qualquer oportunidade que a vida lhe apresentasse dentro ou fora do tabuleiro. Mesmo quando as tensões no tabuleiro estavam em sobre-excitação, seus lances era fluidos.

A primeira vez que vi Mischa foi na Le-tônia, em 1979. Viajei para o Interzonal de Riga como assistente de James Tarjan dos Estados Unidos, carinhosamente conheci-

do como “Toejam” entre os amigos. Eu pas-sara o verão de 1979 como convidado de Jim em seu apartamento em Hollywood, na Califórnia. Eu poderia contar muitas his-tórias de nosso verão juntos. Uma de que gostei muito foi assim: geralmente acordá-vamos tarde, em torno do meio-dia, depois de passar uma longa noite analisando. Es-sas sessões muitas vezes se estendiam até a madrugada. Quando acordávamos, caso es-tivéssemos em condições para tanto, entrá-vamos em seu Volkswagen branco surrado, ou Fusca se você preferir, e descíamos até Venice Beach para tomar uns cappuccinos, e onde ficávamos olhando as moças que pas-savam andando de patins.

Um dia, meio adormecidos, tínhamos entrado no carro e começado nosso pas-seio de rotina. Os olhos de Jim estavam na estrada e eu estava despertando e come-çando a examinar o carro. “Impressionante, Jim”, eu disse, “você limpou o carro”. Fiquei admirado com a inesperada limpeza. “Que?”, disse Jim, que continuou dirigindo. Passou mais um tempo e eu notei que havia uma gargantilha pendurada no espelho retro-visor. Embaixo havia uma foto de uma mu-lher bonita em um pingente. “Quem é essa

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mulher?”, perguntei, apontando para a foto. “Ah, merda!”, gritou Jim. Estávamos no carro errado. Voltamos voando para o apartamen-to dele e estacionamos o carro exatamente no mesmo lugar onde o havíamos encontra-do. Isso por si só já era algo incrível, pois as vagas para estacionar em Hollywood eram sempre muito escassas.

Aliviados por estarmos fora do carro se-questrado, olhamos para aquele fusca bran-co de novo e ele parecia tão surrado quanto possível para ser o de Jim. Até os pontos de ferrugem estavam nos lugares certos. Saímos à caça do carro dele. As chaves do carro de Jim tinham funcionado perfeitamente, e pas-samos o resto do dia rindo do acontecido. Se tivéssemos sido presos por roubo de carro, fico pensando se o juiz iria concordar com nossa defesa. “Veja bem, meritíssimo, não vi-mos a diferença. O senhor vê?”

Naqueles tempos, os Interzonais eram torneios round robin longos com 20 ou mais jogadores. Somando os dias de adiamento, os dias livres e afins, o Interzonal de Riga durava mais de um mês. Foi minha primei-ra viagem à União Soviética e tive uma boa dose do gigante comunista.

Como todos os que viajam para a União Soviética, minha primeira parada foi em Moscou e uma estadia no Hotel Metro-pol por alguns dias antes de ser “liberado” para seguir viagem para Riga. Depois de aprovado, fui para um aeroporto “domés-tico” em Moscou e viajei para Riga, onde todos nos hospedamos no Hotel Latvia. Era um hotel com muitos andares, semelhante a um forte, com seguranças por toda parte, inclusive em cada andar do hotel. Recebi um cartão de hóspede e me avisaram para mantê-lo comigo o tempo todo. Ele era ve-rificado toda vez que eu chegava ao hotel ou ia pegar a chave de meu quarto. Mesmo depois de eu já estar hospedado há mais de um mês, os seguranças, que conheciam o meu rosto muito bem, conferiam o meu cartão de identidade como se fosse a pri-meira vez.

Evidentemente, o Interzonal era em Riga, a cidade natal de Mischa, e, como ele era o favorito do torneio, havia uma quan-tidade simplesmente imensa de pessoas assistindo às partidas. Muitas vezes, o salão tinha os assentos esgotados, com lugar ape-nas para assistir de pé. Mischa teve o tipo de torneio com o qual só podemos sonhar. Tudo correu em seu favor. Simplesmente tudo. Más posições que ele salvou ou venceu; boas posições que explorou plenamente. Ele chegou à vitória de maneira absolutamente sensacional. Tudo pareceu muito fácil. Uma verdadeira farra até a linha de chegada. Na cerimônia de fechamento, ele foi coberto de flores e troféus pela vitória, bem como por “Melhor Jogo”, “Brilhantismo”, “Melhor Novidade”, etc. Imagine cerca de meia dúzia de idas e vindas da cadeira para o palco e a cadeira de Mischa totalmente preenchida no fim da cerimônia, na beira da qual ele se sen-tava. As pessoas aplaudiam vigorosamente a cada prêmio recebido, batendo os pés. Essas cenas se repetindo a cada prêmio recebido são algo que eu jamais tinha visto nem iria ver novamente em minha vida, em qualquer outro evento de xadrez. Pareceu-me que Riga tinha em Mischa um verdadeiro herói e ele os amava em retribuição.

Mischa já foi descrito como uma “má-quina de jogar xadrez”, o que considero uma caracterização injusta. Ela não lhe faz jus, pois ignora a emoção que ele levava ao jogo. Mischa amava o xadrez. Ele estava disposto a qualquer hora, dia ou noite, a analisar, jogar, resolver problemas, sugerir lances e conver-sar sobre xadrez. Ele adorava analisar, jogar e escrever sobre xadrez. E isso aparecia.

Em Riga, Mischa tinha uma equipe de auxiliares e assistentes. Um de seus treina-dores era um jovem com aproximadamente a minha idade, um letão nativo chamado Aleksander Wojtkiewicz. “Sasha” e eu nos tor-namos grandes amigos durante minha esta-dia. Seu inglês era simplesmente excelente, e passávamos parte de nosso dia no Centro de Imprensa jogando partidas rápidas, anali-

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sando partidas ou apenas conversando. Du-rante uma de nossas sessões de Blitz, Mischa estava saindo apressado para uma entrevis-ta coletiva e parou para comentar: “Eu acho que ele é muito bom”, referindo-se a seu assistente Sasha. Esse comentário me esti-mulou a redobrar meus esforços na partida. Mischa demorou apenas o suficiente para exclamar: “Eu acho que você é muito bom também!” Rimos juntos. Sasha fez as apre-sentações enquanto continuávamos nossa partida. Mischa falou rapidamente que se “eu precisasse de alguma coisa enquanto es-tivesse em Riga, era só pedir ajuda que ele falaria com as autoridades”. Logo depois saiu e, embora não tenhamos apertado as mãos, foi bom sentir que o herói de Riga estava do “meu lado”.

Um dia fui ao Salão de Jogos e o en-contrei extraordinariamente lotado. Foi di-fícil entrar, pois a entrada estava bloqueada por uma multidão de pessoas que mal con-seguiam se mexer. Passando com esforço através daquele grupo, foi-me difícil encon-trar um espaço até junto às paredes. Mas de alguma forma consegui e vi Sasha cravado contra uma parede por corpos por toda par-te. Fui me espremendo até ele e me vi preso também. Ele me disse com excitação: “Está mais lotado do que um ônibus em Kiev!” Eu não conhecia Kiev, mas entendi. Por que todo aquele alvoroço? A rodada daquele dia seria do confronto entre Tal e Bent Larsen. Embora estivesse com as Pretas, Bent tinha as melhores chances até concordarem por um empate disputado. A multidão adorou o jogo emocionante e aplaudiu ruidosamente, pois Mischa salvou a partida e defendeu-se de um importante rival.

Como já disse, nossa estadia em Riga foi longa. Jim teve um bom começo, jogando bem contra o contingente soviético, sobre o qual tínhamos concentrado nossos prepara-tivos em Hollywood. Mas, na segunda meta-de, ele simplesmente ficou sem combustível. Os Grandes Mestres americanos não esta-vam acostumados com torneios tão longos.

Nossos torneios são principalmente Abertos, e o mais longo deles, o Aberto dos Estados Unidos, durava apenas duas semanas. O Campeonato era um round robin, mas com apenas 12 ou 14 participantes. A maioria de nossos torneios era de 7 ou 9 rodadas. Já os Interzonais eram de 18 ou 20 rodadas de partidas. Uma labuta brutal de preparação, partida, adiamento, análise, partida, prepara-ção, adiamento e análise, ininterruptamente, por mais de um mês. Sempre havia trabalho a fazer. Na verdade, esses exaustivos eventos eram mais ou menos excepcionais. Adicione a isso nossas circunstâncias no “forte” e a co-mida não muito boa e, no final do mês, está-vamos completamente exaustos.

Edmar Mednis também competiu pelos Estados Unidos. Edmar nasceu na Letônia e “fugiu” para os Estados Unidos para natura-lizar-se. Edmar precisava de ajuda e eu o au-xiliava quando Jim se sentia suficientemente preparado. Apesar de gostar do trabalho extra, senti-me exausto quando o torneio terminou.

Houve uma história muito engraçada que, de certa forma, foi tão estranha que conseguiu captar adequadamente a rivali-dade comunista/capitalista muito peculiar que existia então e ainda muito mais depois. Foi mais ou menos assim: Edmar tinha um parente em Riga, uma tia-avó que visitamos. Ela era bem pequenina e as tristezas da vida pareciam tê-la oprimido muito. Edmar que-ria dar-lhe um presente e perguntou-lhe o que ela mais queria. O rosto dela se ilumi-nou. Ela gostaria de ir a uma “loja especial”, só para clientes estrangeiros – aquelas em que se paga com dólares americanos. Ela queria ter um par de botas grossas. Botas para homens. Aquelas que têm isolamento térmico e mantêm os pés aquecidos nos dias mais frios do inverno. Poderíamos fazer isso? Fazer compras dentro da loja era algo que ela só podia imaginar. Olhamos um para o outro. Por que não?

Edmar, Jim, “nossa” tia-avó e eu fomos à loja. Os três americanos foram recebidos calorosamente pelos vendedores, mas olha-

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ram muito soturnamente para nossa tia--avó, que pareceu encolher diante de seus olhares. Nossa presença lhe dava coragem. Superando seus medos, ela perseverou e foi ao setor de calçados masculinos onde experimentou uma bota atrás da outra. Ela levou várias horas para ter absoluta certeza de que tinha escolhido o tamanho certo e o melhor modelo. Nesse meio tempo, Edmar pensou: quanto dinheiro dispúnhamos em conjunto? Somando nossos recursos, desco-brimos que tínhamos, notavelmente, um to-tal de exatamente 100 dólares e nada mais. Edmar perguntou sobre a taxa de câmbio, e, como o rublo estava mais alto do que o dó-lar americano, nosso “poder de compra” era de aproximadamente 96 rublos. Tínhamos muitos rublos, mas não tínhamos permissão para usá-los. Edmar perguntou quanto cus-tava o par de botas mais caro. A boa nova era que na loja toda, o par mais caro custava um pouco mais do que 95 rublos e alguns cope-ques. Poderíamos pagar.

A tia-avó de Edmar passou mais tem-po experimentando várias botas quando, por fim, declarou-se satisfeita. Havia en-contrado o par de botas perfeito. Fomos pagar. Para nosso espanto, disseram-nos que o rublo tinha se valorizado nas horas que passaram. Nossos 100 dólares nos dei-xaram com 25 centavos de dólar a menos do que o preço da compra. Não podería-mos comprar as botas. Nossos corações murcharam e logo começamos a pensar se tínhamos algum trocado no hotel. Mas bem naquele momento outro turista ame-ricano, que nada tinha a ver com o torneio de xadrez, entrou na loja. Pedimos-lhe uma moeda. “Sem problemas!” Com satisfação ele nos deu aquele pouquinho que faltava, e a compra foi feita.

Uma vez em posse das botas, nossa tia-avó calçou-as imediatamente, ainda na loja, colocando seus sapatos velhos na cai-xa das botas. Por fim, saímos da loja. A es-tranheza de toda a tarde continuou. Nossa pequenina tia-avó começou a procurar po-

ças d’água. Assim que via uma delas, ela ia e pisava e pulava em cima dela, como uma criança, para assegurar-se de que suas no-vas botas eram mesmo “à prova d’água”. Fi-cou exultante porque elas desempenhavam como garantido e mostrou um dos sorrisos mais doces que já vi em uma senhora de idade. Lembre-se de que estas eram botas de couro grossas com sola pesada, para mi-litares, amarradas acima dos calcanhares, sendo usadas por uma idosa pulando den-tro de uma poça d’água. Esta é uma imagem que jamais esquecerei. Fiquei muito feliz por Edmar ter-me permitido contribuir para um presente tão especial. Foi o dinheiro mais bem empregado na minha vida.

Outra lembrança marcante de Riga está ligada à partida entre Bent Larsen e Ru-ben Rodriguez das Filipinas:

Ruben Rodriguez-Bent LarsenInterzonal de Riga, 1979

Defesa Grünfeld

1.d4 Cf6 2.c4 g6 3.Cc3 d5 4.Cf3 Bg7 5.Da4+ c6 6.cxd5 Cxd5 7.e4 Cb6 8.Dc2 Bg4 9.Ce5 Be6 10.Be3 0-0 11.Td1 C8d7 12.Cf3 Dc8 13.h3 f5 14.Cg5 Cf6 15.f3 Rh8 16.Cxe6 Dxe6 17.Db3 Dxb3 18.axb3 fxe4 19.fxe4 Ch5 20.g4 Cg3 21.Tg1 Tf3 22.Txg3 Txg3 23.Rf2 Txe3 24.Rxe3 Bh6+ 25.Re2 Td8 26.Bg2 Bf4 27.e5 g5 28.Be4 Cd7 29.Bf5 Cf8 30.Ca4 Rg7 31.b4 b6 32.Td3 Bh2 33.Td1 Rf7 34.Bc2 Cg6 35.Bxg6+ hxg6 36.Cc3 Bf4 37.Ce4 Re6 38.b3 Th8 39.Td3 Ta8 40.Td1 Th8 41.Td3 Rd7 42.Tf3 Rc7 43.Rd3 a6 44.Rc3 Rd7 45.Rc4 Re6 46.Rd3 Bc1 47.Cc3 Ba3 48.Rc4 Td8 49.Ce4 b5+ 50.Rd3 Bxb4 51.Cxg5+ Rd5 52.Cf7 Ta8 53.h4 a5 54.h5 gxh5 55.gxh5 a4 56.h6 axb3 57.h7 Ta1 (Diagrama 17)

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DIAGRAMA 17. Jogam as Brancas

58.h8=D b2 59.Dd8+ Bd6 60.Re3 b1D 61.Cxd6 Dc1+ 0-1

Quando a posição diagramada surgiu após o 57o lance das Pretas, eu estava no salão de jogos. Como era uma sessão de prorroga-ção, o salão estava meio vazio e eu consegui garantir um assento na fila da frente com uma clara visão dos jogadores. Ruben estava pon-derando sobre a posição e estendeu o braço para pegar a dama branca para promoção. Ele a segurou e a movia entre os dedos enquan-to pensava. Estava claro para mim que, se ele promovesse seu peão, ele perderia. Por outro lado, se ele jogasse o defensivo simples 58.Tf2, ele empataria. Os minutos se passavam, e Ruben se manteve calculando e esfregando a dama. Bent mantinha-se sentado absoluta-mente imóvel, com uma expressão facial to-talmente neutra. Estoico como uma rocha. Por fim, Ruben promoveu o peão e apertou seu relógio. Bent venceu alguns lances depois.

No jantar naquela noite, eu disse a Bent que observara atentamente o que havia acontecido e tinha uma pergunta a lhe fa-zer. “Enquanto Ruben movia a dama branca entre os dedos, quais eram os exatos pensa-mentos que iam pela sua cabeça?” perguntei.

“Eu estava pensando sobre a regra to-cou-jogou”, respondeu Bent, “se eu poderia ir ao árbitro e dizer: ‘Meu adversário tocou em

sua dama, que está fora do tabuleiro, e deve promover seu peão’. Eu achava que a regra tocou-jogou não se aplicava. Se eu tentasse forçar Ruben a promover, isso teria desperta-do sua desconfiança e talvez feito ele notar o recuo do bispo que bloquearia seu xeque. Decidi não tentar fazer valer a regra e, em vez disso, tentei manter-me o mais calmo possível.” Rimos bastante juntos.

Meu primeiro encontro propriamen-te dito com Mischa ocorreu um ano depois, durante a Olimpíada de Malta. As equipes americanas ficaram hospedadas em um blo-co de apartamentos fora de Valletta. Os apar-tamentos eram grandes, mas meio escassos. Eu dividia um apartamento de dois dormitó-rios com Larry Christiansen, mas tínhamos um grande problema: Larry era alto demais para sua cama e, na maioria das vezes, aca-bou dormindo no sofá da sala. O sofá ficava mais largo com o passar dos dias à medida que Larry “crescia” nele, afastando as laterais cada vez mais com seus pés. Minha outra lembrança é que, por algum motivo, nosso apartamento recebia dois pães grandes por dia. Isso era mais do que seríamos capazes de comer, e os pães se acumularam no decorrer do evento.

Esta era minha primeira Olimpíada e, no meu íntimo, assim como no de toda a equipe, estávamos apavorados – embora também ansiássemos por isso – com um emparceiramento contra o formidável es-quadrão soviético. “Apavorados?”, você per-gunta. Bom, considere que o sexto tabuleiro para os soviéticos era Garry Kasparov...

Pal Benko, nosso capitão, todas as noites passava algum tempo verificando os líderes de cada rodada para ver a possível iminên-cia de um emparceiramento de EUA e URSS. Nesse caso, gostaríamos de ter o máximo de tempo de preparação possível para escolher nossa formação e assim por diante. A equipe americana não tinha se saído muito bem nem muito mal, e por isso não estava claro se nos encontraríamos. Naturalmente, o emparceira-mento aconteceu quando menos se esperava.

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Eu estava dormindo tranquilamente quando ouvi batidas fortes na porta de meu quarto. Era Larry e ele gritava: “Pegamos os so-viéticos! Você joga contra Lev Polugaevsky. De Brancas!” Suspiro. Naquele exato momento, eu com certeza não estava a fim de jogar con-tra ninguém, muito menos contra os soviéti-cos. E o que é que eu sabia sobre as partidas de Lev Polugaevsky? Eu sabia que havia uma siciliana com seu nome, mas o que ele fazia de Pretas contra a Abertura Inglesa? Enquanto pensava na cama, tentei me lembrar das par-tidas de Lev no Interzonal de Riga, buscando alguma ideia. Passei o resto da manhã exa-minando as Informants, que eram a bíblia do enxadrista naquela época. Cada membro da equipe carregava um número adequado para o evento para formar um conjunto completo. Depois de me certificar de analisar todas as partidas que eu pudesse encontrar, quase me atrasei para o grande confronto. Esperando por mim no tabuleiro estava Mikhail Tal. Eu estava ferrado. Todos os meus preparativos fo-ram por água abaixo – ninguém poderia dizer que Tal e Polugaevsky jogavam igual. Pratica-mente no momento em que eu cheguei na mesa, o gongo soou e as partidas se iniciaram. Mischa e eu apertamos as mãos...

...e pela primeira vez, percebi que Mischa tinha um defeito congênito conhe-cido como sindactilia complexa. Em sua mão direita, o dedo mínimo e o anular se fundiam, assim como o indicador e o dedo médio. O efeito disso era que ele parecia ter dois dedos grossos e um polegar.

“E daí?”, você poderia dizer. E com razão. Mas a revelação foi um choque para mim e tão inesperada que passei a primeira parte da partida pensando sobre isso. Por que a condição dele não era conhecida no mundo do xadrez? Em todas as minhas leituras sobre Mikhail Tal, inclusive em seus próprios escri-tos, eu não me recordava de nenhuma alusão a seu problema. Nas muitas fotos, ele parecia esconder a mão. Por que o segredo? Era por vergonha ou constrangimento? Não havia motivo para envergonhar-se – ele nascera as-sim e não tinha nada de mais.

Meus pensamentos estavam por toda a parte enquanto eu contemplava a condi-ção humana e não a posição à minha frente. Mikhail poderia ser um exemplo para todas as pessoas que casualmente eram diferentes. Ele havia superado sua afecção, se era isso que ela era, e se tornado o Campeão Mun-dial. Mischa era a encarnação viva da verda-de de que qualquer conquista por qualquer pessoa era possível. Somos mais limitados pelo que acreditamos do que por nossos atri-butos físicos ou pelo que os outros podem pensar sobre nós. Que inspiração ele era para milhões de jogadores de xadrez. Se não ti-vesse escondido sua condição, não seria para milhões de outros? Mas quem era eu para falar? Aquilo era um assunto dele, não meu.

Tantos pensamentos giravam em mi-nha cabeça que, mesmo com o tempo pas-sando no relógio, tive muita dificuldade em me concentrar na partida. Eu também estava tentando deixar para pensar depois no castigo adequado para Larry por ter er-roneamente me feito estudar as partidas de Polugaevsky a manhã inteira...

Yasser Seirawan-Mikhail TalOlimpíada de Valletta, 1980

Abertura Inglesa

1.c4 e5 2.Cc3 Cf6 3.Cf3 Cc6 4.g3 d5 5.cxd5 Cxd5 6.d3?

O quê? Que tipo de lance foi esse? Não sei explicar por que fiz esse lance. Em cente-nas de jogos, sempre joguei o normal 6.Bg2, fazendo o cavalo preto em d5 fugir com 6...Cb6, e só então continuar com d2-d3 em algum momento no futuro. Ao não incluir 6.Bg2, não há motivo para o cavalo em d5 se mover e as Brancas não conquistam absolu-tamente nada com a abertura.6...Be7 7.Bg2 Be6!

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Agora, para meu desespero, percebi o efeito de ter comprometido meu peão em d prematuramente. Por exemplo, a or-dem correta dos lances 6.Bg2 Be6 7.0-0 Be7 8.d4! dariam às Brancas uma conhecida vantagem de abertura. Agora 8.d4, com as Brancas tendo perdido um tempo, não faz sentido.

Zangado comigo mesmo, eu sabia que era hora de esquecer a condição física de Tal, ele parecia bastante feliz, e me esquecer de minha preparação inútil e me concentrar na maldita partida. Num piscar de olhos minha concentração estava recuperada.8.0-0 0-0 9.a3 Dd7 10.Bd2

Com o cavalo das Pretas na ativa casa d5, em oposição à passiva b6, é muito difícil para as Brancas desenvolverem uma inicia-tiva na ala da dama com b2-b4 e adicional expansão. Provavelmente era uma ideia me-lhor continuar com 10.Cxd5 Bxd5 11.Be3, jo-gando por igualdade.10...f6 11.Tc1 Tfd8 12.b4 Cxc3 13.Bxc3 Bd5 14.Dc2?!

Uma decisão automática e ruim na-quela posição. Era melhor jogar 14.Dd2 a5!? 15.bxa5 Bxa3 16.Ta1, quando as Brancas fi-cam ligeiramente piores.14...a5! 15.b5 Cd4 16.Bxd4 exd4 (Diagra-ma 18)

DIAGRAMA 18. Jogam as Brancas

Sem dúvida, a abertura favoreceu as Pretas. Elas têm bom domínio do centro, os dois bispos e também a perspectiva de ex-plorar os peões avançados da ala da dama das Brancas.17.Db2

Cobrindo os peões em a3 e b5. As Bran-cas certamente não podem jogar 17.Dxc7? Bxa3!, trocando o peão em c7 pelo peão em a3, pois, depois de 18.Tc2 Bb4, eu considero que estou quase perdido, com o peão em a5 das Pretas pronto para descer o tabuleiro. É claro que 14.Dc2 visava pressionar o peão em c7 com pretensões de ser um lance ativo. Com o texto, eu agora “assumo a defensiva”.17...c6

Com certeza, uma escolha sensata e talvez até um dos melhores lances em ofer-ta. Mas, por algum motivo, fiquei satisfeito por vê-lo. Eu estava mais preocupado com 17...a4!, onde eu temia ficar eternamente algemado para defender meu peão em a3. Por exemplo, considere a posição depois de 18.Cd2 Bxg2 19.Rxg2 b6 20.Cc4 Bc5. As Bran-cas deveriam estar satisfeitas, certo? Afinal de contas, elas têm um cavalo fabuloso em c4. Mas, se examinarmos a posição um pou-co mais de perto, veremos que, na verdade, isso é tudo de que elas podem se gabar. O bispo preto em c5 é ótimo, e está claro que as Pretas em breve irão dirigir suas principais peças contra o peão e2, e as Brancas podem se preparar para um longa e penosa defesa.18.bxc6 bxc6 19.a4!

Embora eu não tenha nada do que me orgulhar, fiquei contente ao fazer esse lance, pois agora não precisava me preocupar em ficar ancorado à defesa de meu peão em a3.19...c5 20.Dc2 Tab8 21.Cd2! Be6 22.Tb1 Tb4 23.Txb4!

Sem causar dano, dou a Mischa um peão passado protegido e vantagem a lon-go prazo. De qualquer forma, não havia mui-to o que fazer. Se as Brancas não trocassem as torres, além de ameaçarem tomar o peão em a4, as Pretas se duplicariam na coluna b com uma posição dominante.

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23...cxb4 24.Tc1! Dd6 25.Db2!Com o texto, eu sonhava jogar Tc1-c6 e

Cd2-c4, com um bom jogo nas casas brancas.25...Tc8!? (Diagrama 19)

Mais uma vez, talvez esse seja um bom lance e talvez o melhor na posição. Mas, pessoalmente, fiquei satisfeito em vê-lo e o considerei duvidoso. A linha que mais me preocupava era 25...De5! 26.Bf3 Bc5, e eu simplesmente não via como poderia jogar por uma vitória. Por exemplo, 27.Cc4 Dc7 28.Cd2, convidando para uma repetição, poderia ser recusada por 28...Da7, dando pe-quena vantagem às Pretas. Ao permitir-me trocar torres e tirar a casa b3 do controle do bispo em e6, eu achava que meu jogo tinha melhorado.

Segundo minha planilha, com seu 25o lance, Mischa me ofereceu um em-pate. É claro que eu estava aliviado que meu erro anterior não tinha causado um grande acidente e pude “escapar” sem um arranhão. Nossa estratégia consistia no se-guinte plano: “Em caso de ofertas de em-pate, deveríamos ir até nosso capitão, Pal Benko, informá-lo e perguntar o que fazer. Talvez um empate combinado em outros tabuleiros poderia ser oferecido.” Esse era o pensamento profundo antes do match. Assim, condizente com nossa grandiosa e abrangente estratégia para o match e como um bom soldado da equipe, fui até Pal para dar-lhe a excelente notícia. Pal não parecia nada bem. Na verdade, ele parecia ter engolido um sapo de gosto desagradável. Lev Alburt, no primeiro ta-buleiro, tinha sido brutalmente esmagado por Anatoly Karpov, e Garry Kasparov es-tava vencendo estrategicamente no quar-to tabuleiro. O terceiro tabuleiro seria um empate, e eu estava pior desde o gongo de abertura. Pal obviamente temia uma derrocada de 3½-½.

DIAGRAMA 19. Jogam as Brancas

“Pal, Tal me ofereceu um empate. O que devo fazer?” O humor e o rosto de Pal se iluminaram consideravelmente. “É mes-mo? Isso é bom!” Sem dúvida, Pal compre-endia, como eu, que eu estava pior e ele queria que eu aceitasse o empate. Da mes-ma forma, Pal deixou claro que a escolha era minha, pois não havia nada a “negociar” nos outros tabuleiros.

Voltei para meu jogo. Tal levantou-se e, inclinando-se em minha direção, estendeu um pouco o braço para um cumprimento de mão e um acordo de dividir o ponto. “Eu gostaria de jogar”, eu disse. Mischa deu-me um olhar que dizia muito. O que havia de er-rado comigo? Será que eu não compreende-ra que eu estava perdendo? E, a propósito, quem era eu para recusar uma oferta de um ex-Campeão Mundial? Sim e sim. Eu com-preendia tudo isso.

Sim, as Pretas estão bem na posição. Mas, veja bem, existem muitas posições em que um enxadrista pode estar “pior” e sentir--se confortável. Para mim, nossa partida era uma dessas posições. Pela primeira vez desde o início da partida, eu me sentia realmente

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confortável. Eu tinha um bom jogo nas casas brancas e não via como poderia perder. Por exemplo, se um ou dois lances antes as Pre-tas tivessem jogado 24...Tc8 25.Dxc8+ Dxc8 26.Txc8+ Bxc8, então 27.Bd5+ Rf8 28.Cb3 Bd7 29.Cxa5 Bxa4 30.Bb3 deixaria o peão b4 fir-memente bloqueado para sempre.

Na verdade, a continuação que tinha me preocupado envolvia uma pesada con-cessão a ser feita pelas Pretas; mais cedo, elas deveriam esquecer seu orgulho e sua alegria, seu peão passado protegido em b4, jogando 24...b3! 25.Cxb3 Dxa4 26.Dc7 Bxb3 27.Dxe7 Dd7, com um provável empate. Com certeza, se alguém tinha chance de vi-tória aqui, seriam as Pretas.

Assim, continuei jogando.26.Txc8+

Visivelmente irritado, Mischa franziu os lábios, deu-me seu famoso “olhar” e sintoni-zou sua frequência em “modo punitivo”. Esse jovem pretensioso precisava aprender uma lição. Mischa baixou a cabeça e realmente começou a se concentrar na partida. Pelo canto do olho eu vi que Pal tinha jogado as mãos para cima e estava conversando com alguém de forma verdadeiramente anima-da. É claro que eu compreendia o desalen-to dele: eu estava pior e não “entendi” que a oferta de empate era um presente a ser acolhido e aceito. Por dentro, eu tinha que rir. Eu sabia que Pal estava se amaldiçoando por ter aceito o papel de capitão da equipe sem “condições”. Duas das quais ele podia escrever naquele momento:

1. Os jogadores não devem irritar o ca-pitão da equipe.

2. Eles aceitarão ofertas de empate em posições nas quais estejam piores.26...Bxc8 27.Cb3!

Ponto meu. Agora, ambos os peões em d4 e a5 são atingidos. Com as torres no tabuleiro, o peão em d4 não era vulnerável. Agora ele é.27...De5 (Diagrama 20)

DIAGRAMA 20. Jogam as Brancas

28.f4!Um lance de sonho para mim. Em mui-

tos casos, as Brancas ficam contentes por ter uma casa f2 livre como espaço de fuga para o rei. O peão em f4 pode se tornar muito útil, especialmente se o peão em d4 cai e peões passados protegidos aparecem. Por fim, ao atrair a dama preta para a casa e3, existe a possibilidade de ela ser aprisionada. Um lan-ce com benefício triplo. Excelente!

O dano que eu tinha que superar ao fazer esse lance é que eu enfraqueço a casa e3. É verdade. Mas não é se a dama tão po-derosa ficar ali sozinha. Se as Pretas tivessem um cavalo nessa posição, evidentemente eu pensaria duas vezes em relação a esse lance.28...De3+ 29.Rf1 g5?

Mischa agora está afundando rápido e não percebeu que sua vantagem tinha desa-parecido. Em vez de ainda “jogar pela vitó-ria” ou continuar no “modo hora de punir o jovem pretensioso”, era hora de considerar a defesa: 29...Bd8! 30.Dxd4 Dxd4 31.Cxd4 Bb6 32.Bd5+ Rf8 33.Cc2 era minha linha princi-pal. Daí as Pretas devem ir atrás do peão em h2 jogando 33...Bh3+ 34.Re1 Bg1 e devem ser capazes de conseguir um empate. Por esse motivo, eu provavelmente teria jogado 33.Ce6+, convidando para uma posição com

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bispos de cores opostas que eu achava que guardava algumas chances para mim.30.Cxa5!

De repente, a situação para as Pretas tornou-se realmente muito séria. Além de ganhar um peão e obter o meu próprio pas-sador, posso assediar a dama das Pretas com Ca5-c4 e Db2xd4, obtendo um segundo peão além de ameaças adicionais.30...Be6 31.Cc6! Bc5 32.Cxb4! (Diagrama 21)

DIAGRAMA 21. Jogam as Pretas

Meu cavalo é um herói da classe ope-rária. O antes poderoso peão passado pro-tegido em b4 e toda a ala da dama foram varridos da cena. E o melhor ainda era que eu não via ameaças ao meu rei, e dois peões a mais, afinal, são dois peões a mais.32...gxf4

Por fim, Mischa empreende sua “ameaça”, pois era mais ou menos a única coisa que ele podia fazer. Mas ela se revela uma ameaça vazia.33.Cd5! Bxd5 34.Bxd5+ Rg7 35.Db7+

Essa posição de dama e bispos de cores opostas é uma batalha totalmente desigual. Como é bem conhecido, nessas posições o atacante tem uma imensa vantagem pois o defensor não tem como se equiparar a seu adversário em “suas casas pretas”. Devo sa-

lientar que, quando joguei 25.Db2, eu nem sonhava em fazer este lance. Mischa agora tinha 4 minutos para atingir o controle de tempo no lance 40.35...Be7?

A pressão do tempo mostra o seu lado feio. Mais uma vez, eu achava que a última chance de luta das Pretas era 35...De7, ru-mando para um final com bispos de cores opostas. Eu não tinha certeza se eu iria per-mitir isso ou se jogaria 36.Dc8, mantendo as damas no tabuleiro. Eu provavelmente man-teria as damas.36.Be4!

Agora a posição está vencida.36...Rf8 37.Dc8+ Rg7 38.Dg4+ Rf8 39.Bxh7!

Como antes, não apenas tomando mais um peão mas ganhando também outro peão passado distante.39...Bd6 40.gxf4! Bxf4 (Diagrama 22)

DIAGRAMA 22. Jogam as Brancas

Foi uma ótima sensação estar toman-do peões nos dois últimos lances do contro-le de tempo.41.Rg2

E também mantendo o prêmio. O rei das Brancas está maravilhosamente seguro. Esse foi meu lance secreto e a análise confirmou que as Pretas não podiam sustentar a posição.

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41...Bd6 42.Be4 Dd2 43.h4 Be5 44.h5 Re7 45.Bf3 Rd6 46.Dg6!

Simplesmente escoltando meu peão em h até a coroação. As Pretas não têm como assediar meu rei.46...Df4 47.h6! Dh2+ 48.Rf1 Dh3+

Se 48...Bg3, eu jogaria 49.Bg2, bloquean-do a ameaça de mate 49...Df2, onde as Pretas batem numa parede sólida. Eu apreciava parti-cularmente o fato de que as Pretas tinham um peão em f6 que impedia que seu bispo cobris-se a casa h8.

Agora entramos num jogo de ciranda, onde as peças ficam rodando e eu ganho um tempo a cada volta.49.Bg2 Dc8 50.Rf2 Dc1 51.Bf3 De3+ 52.Rg2 Df4 53.h7 Dh2+ 54.Rf1 Dh3+ 55.Bg2 Dc8 56.Rf2 Dc1 57.Bf3 1-0 (Diagra-ma 23)

DIAGRAMA 23. Jogam as Brancas

Já estivemos nessa posição antes, mas nesse meio-tempo meu peão em h foi avançando. Esse foi o lance secreto e Mischa abandonou a partida antes da segunda re-tomada.

(Nota: algumas bases de dados apre-sentam os lances adicionais 57...De3+ 58.Rg2 Dg5+ 59.Dxg5 fxg5 60.a5, mas eles nunca foram feitos – são apenas uma análise de al-guém que foi acrescentada ao registro.)

Os membros e o capitão de minha equipe foram calorosos em seus cumpri-mentos. Eu mesmo mal podia acreditar em minha boa sorte. As ideias de advertir Larry por nossa “excessiva preparação” desapare-ceram completamente.

Para os leitores interessados, a Inside Chess (Volume 2, número 3, página 4) publi-cou uma foto de Catherine Jaeg em que a condição física de Mischa é visível.

Pensamentos finais sobre a Olimpía-da de Malta: meu primeiro de dez eventos olímpicos me convenceu de que os eventos em equipe podem produzir alguns resulta-dos individuais desiguais que não deveriam contar para as normas. Os competidores po-dem ter um número excessivo de partidas com as Brancas. Podem escolher com quais adversários jogar ou evitar e até combinar o resultado das partidas com os outros (se o capitão da equipe negociar um match de empate de 2-2, por exemplo.) Espera-se que as normas sejam conquistadas a partir do resultado de um indivíduo, mas o jogo em equipe é muito diferente. Embora eu aprecie isso, em muitos países, os Jogos Olímpicos representam a melhor (e talvez única) opor-tunidade de obter normas de título, há algo muito errado quando as cores podem ser tão desequilibradas, acordos embalados por em-pates em todas as partidas podem ser feitos, e os competidores podem escolher jogar ou não contra adversários. Isso tudo perverte a noção de uma norma individual. Talvez “nor-mas de Olimpíadas” devessem contar, mas somente com a metade do valor das “normas regulares” de eventos individuais. O jogo em equipe é um tipo diferente de xadrez.

Em Malta eu obtive uma Medalha de Prata pelo segundo tabuleiro. Mais uma lem-brança dessa Olimpíada vem de minha par-tida contra Zoltán Ribli. Durante a partida, o delegado da USCF Don Schultz me informou que o Comitê de Títulos da FIDE tinha confir-mado meu título de Grande Mestre. Fiquei exultante e muito orgulhoso de mim. “Agora eu sou um Grande Mestre!” foi o pensamento

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que girava em minha cabeça. Eu perdi aquela partida – minha primeira derrota como Gran-de Mestre e minha única derrota em Malta.

Meu encontro seguinte com Mischa ocorreu em Nikšić, Iugoslávia. Naquela época, a Iugoslávia era um paraíso para enxadristas, pois grandes eventos eram realizados em todo o país. Em 1983, Nikšić tinha uma galáxia de estrelas do xadrez: os ex-Campeões Mundiais Mikhail Tal, Boris Spassky e Tigran Petrosian, assim como o futuro Campeão Mundial Garry Kasparov. Retornaremos a Nikšić muitas vezes neste livro. Eu tive um desempenho muito irregu-lar, vencendo e perdendo partidas a torto e a direito. Esta partida foi uma das mais felizes.

Yasser Seirawan-Mikhail TalNikšić, 1983

Defesa Nimzo-Índia

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cc3 Bb4 4.Dc2 d5 5.cxd5 exd5 6.Bg5 h6 7.Bxf6!

Eu não marco esse lance com um pon-to de exclamação por ele ser o melhor. Pelo contrário, é uma variante completamente calma para as Pretas. Eu o marco por ele ser-vir tão bem contra meu adversário. Eu não pretendia embarcar nas variantes agudas de 7.Bh4 g5 8.Bg3 c5 9.dxc5 Ce4, quando, de-pois de lances subsequentes como ...Dd8-a5 e ...Bc8-f5, a partida se transforma em uma disputa tática. Lutar de peito aberto com os outros, sim. Mas com Tal? De jeito nenhum!

Em vez disso, eu queria que a partida ingressasse nas águas calmas de uma bata-lha disputada estrategicamente com poucas operações táticas. Isso significa trocar peças e tentar entediar meu adversário até a morte.7...Dxf6 8.a3 Bxc3+ 9.Dxc3 (Diagrama 24)

A posição é uma conhecida estrutura de peões do Gambito da Dama Recusado, com dois pares de peças menores elimina-dos do tabuleiro. Conduzirei a estratégia co-nhecida de um ataque da minoria na ala da dama, tentando prender as Pretas com uma debilidade (peão em c6), enquanto elas pro-curam chances pela ala do rei e no centro. As linhas de batalha estão claramente traçadas. Na verdade, não há muito que as Pretas pos-sam “atacar”, e as chances de vitória das Bran-cas são modestas, mesmo após o melhor ce-nário em que elas aleijam as Pretas com um peão em c6 fraco. Tudo isso me servia muito bem. Eu seria um buldogue mordendo um osso. Se conseguisse encontrar um.

DIAGRAMA 24. Jogam as Pretas

9...0-0 10.e3 Bf5!Oferecendo seu peão em c7 como um

sacrifício, o qual eu não pretendia aceitar. Esterilidade tranquila e firme avante era minha atitude.11.Ce2 Tc8?!

Mas esta tentativa de infundir um jogo ativo à posição é equivocada. É evidente que as Pretas querem jogar ...c7-c5 mas, colocado de forma simples, essa ruptura libertadora traz vantagem para as Brancas. Mischa deve-ria ter se contentado com 11...c6 12.Cg3 Bg6 e

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levado seu cavalo para a casa f6 o mais rápido possível, mantendo uma posição equilibrada.12.Cg3 Be6 13.b4!

Pondo um fim a quaisquer ideias de ex-pansão pela ala da dama. Agora não há dúvi-da de que a torre está mal posicionada em c8.13...a5?!

Continuando seu malfadado tratamen-to da posição. Mais uma vez, Mischa quer um jogo concreto, forçado. Uma aborda-gem melhor era 13...Cd7 14.Tc1!? a5!? 15.Bd3 axb4 16.axb4, com uma pequena vantagem para as Brancas. O texto cai bem nas minhas mãos e me ajuda a criar uma debilidade na ala da dama das Pretas.14.Be2 axb4 15.axb4 Txa1+ 16.Dxa1 De7 17.Dc3 Cc6 18.b5 Cd8 19.0-0 c5

Por fim, as Pretas realizam sua desejada saída ...c7-c5. Mas tudo que elas consegui-ram fazer foi ajudar as Brancas a empreender seu ataque minoritário b2-b4-b5.20.bxc6 bxc6 21.Tc1! (Diagrama 25)

Com a ajuda de Mischa, a missão inicia-da no sétimo lance foi cumprida. As Pretas têm uma debilidade em c6 com nada para compensá-la, nem mesmo um pouquinho do centro ou um ataque pela ala do rei. Eu? Estou feliz com meu osso para roer.

DIAGRAMA 25. Jogam as Pretas

21...Bd7 22.Da5 Rf8?

É realmente um desafio explicar esse lance. Eu não sou capaz. Se a posição fosse apresentada como um diagrama a uma am-pla seleção de, digamos, 100 Grandes Mes-tres e pedíssemos a eles que apresentassem seus candidatos a melhor lance, não tenho certeza se alguém sugeriria esse. Eu acha-va que poderia causar problemas em caso de 22...Ce6 23.Cf5, com intenção de Da5-a7, para assediar as peças das Pretas. Minha prin-cipal preocupação era como evoluir depois de 22...Tb8, visando a ...De7-b4, por exemplo. Afinal, meu cavalo em g3 está muito distante de um posto avançado em c5 ou e5.

A única forma que tenho de explicar o lance é que Mischa era um calculador incri-velmente profundo e em algumas linhas an-tecipou uma invasão Da5-a7 e uma possível troca de damas, quando o rei está habilmen-te centralizado. Eu, evidentemente, não es-tava disposto a ajudar as Pretas com trocas nessa posição.23.Da7 Be6 24.Db6 Dc7 25.Db1! Rg8 26.Bd3!

Os últimos lances de sondagem foram bem-sucedidos. As Pretas não melhoraram a posição de suas peças, especialmente o voluntarioso cavalo em d8. Ao passo que minhas peças menores estão prontas para ganhar vida.26...De7 27.Dc2

De olho atento para prevenir a ruptura ...c6-c5.27...Bd7 28.Bh7+! Rh8 29.Bf5!

Um bom lance jogado sem precon-ceito. As Pretas têm um “bispo mau” em d7, que só serve para defender o peão em c6, mas é aí que chegamos a um ditado eluci-dativo do romeno Mihai Suba: “Bispos ruins defendem peões bons”. Este é o motivo de meu lance. Estou disposto a trocar meu bis-po bom pelo bispo mau das Pretas a fim de atacar seu bom peão em c6.29...Bxf5 30.Cxf5 Dd7 31.Ch4! (Diagrama 26)

Pode não parecer, mas na verdade estou progredindo seriamente para chegar à debi-

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lidade em c6. A troca de bispos possibilitou operações na casa f5 e agora estou apenas a um ou dois lances de Ch4-f3-e5, concentran-do minhas intenções no peão em c6.

DIAGRAMA 26. Jogam as Brancas

31...Ce6 32.Df5 c5É estranho que a partida inteira pare-

ça ter girado em torno desse avanço. Agora é a hora:33.dxc5 De7??

Mischa é o primeiro a piscar e isto lhe custa um peão. As Pretas eram obriga-das a continuar com 33...Txc5 34.Txc5 Cxc5 35.Dxd7 (35.Cg6+ fxg6 36.Df8+ Rh7 37.Dxc5 terminaria num final empatado de damas) Cxd7 36.Cf5, com um final de cavalos com mí-nima superioridade para as Brancas. Parece que Mischa teve uma momentânea crise de cegueira. Ele achou que nesse final de cavalos ele seria forçado a jogar ...Rh8-h7, protegen-do seu peão em h6 antes de jogar ...g7-g6, em cujo caso as Pretas sem dúvida estão em apuros: 36...Rh7? 37.Ce7 Cb6 38.Rf1 g6 39.Re2 Rg7 40.Rd3 Rf6 41.Cc6 e, jogando Rd3-d4, as Brancas têm algumas chances de torturar.

Entretanto, se as Pretas continuarem com 36...g6!, elas poupam um tempo-chave:

37.Ce7 (37.Cxh6? Rg7 38.Cg4 f5, aprisiona o cavalo das Brancas) Cb6 38.Rf1 Rg7 e o rei das Pretas chega a tempo e com segurança ao centro, com um provável empate.

Por outro lado, o texto é um erro cras-so por pressão do tempo. Aliado à crise mo-mentânea de cegueira, é fatal.34.g3! Dd7?

Horrível. Com 34...Txc5 35.Txc5 Cxc5 36.Dxd5, as Pretas perdem um peão mas po-deriam resistir por mais tempo. Com o texto, a posição das Pretas desmorona.35.c6! Txc6 36.Txc6 Dxc6 37.Dxf7

Esse final de dama, cavalo e quatro peões contra dama, cavalo e três peões é completamente diferente. O peão que falta em f7 versus segurar o peão isolado em d5 é uma vitória certa para as Brancas.37...Cg5 38.Df5 Df6 39.Dxf6 gxf6 40.Cf5 Rh7 41.h4 1-0

Com a pressão do tempo acabado e o jogo adiado, está claro que as Pretas não têm esperança de defender a posição. Por exem-plo, depois de 41...Ce6 42.h5, o rei das Pretas está algemado ao peão em h6, ao passo que o rei das Brancas vai direto ao peão em d5 e à vitória. Mischa abandonou a partida.

Nosso terceiro encontro leva-nos de vol-ta ao torneio de Candidatos de Montpellier – o evento onde tive um empate animado com Vassily Smyslov.

Uma das virtudes consideráveis de Mischa é que ele era capaz de jogar qual-quer abertura ou qualquer defesa. Além da Defesa Nimzo-Índia, ele usava regularmente as posições Benoni e Índia do Rei, além de Gambitos da Dama e assim por diante. De alguma forma, eu e minha equipe supomos acertadamente que ele escolheria a Semies-lava, procurando uma partida complicada. Decidi me preparar arduamente para a Va-riante Meran...

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Yasser Seirawan-Mikhail TalCandidatos de Montpellier, 1985

Defesa Semieslava

1.d4 d5 2.c4 e6 3.Cf3 Cf6 4.Cc3 c6 5.e3 Cbd7 6.Bd3 Bb4!?

Mais do que irritante. Eu estava pron-to para a linha principal da Variante Meran 6...dxc4 7.Bxc4 b5, onde eu estava todo preparado para uma discussão teórica lon-ge. O texto era completamente novo para mim e me tirou de minha preparação. Eu estava só. Parece estranho oferecer a tro-ca do bispo das casas pretas pelo cavalo em c3, mas as Pretas não têm essas inten-ções. Elas têm uma ideia mais profunda: 7.a3 Ba5!? 8.b4 Bc7, quando a diferença em relação às linhas normais de 6...Bd6 é que o bispo fica menos vulnerável na casa c7 – um ponto tático fundamental – e não está claro se as Brancas se beneficiam de sua expansão na ala da dama. Passei um bocado de tempo tentando pesar as sutis diferenças nas variantes-chave, sem êxito. O sexto lance das Pretas é, sem dúvida, muito inteligente e fico surpreso por ele não ser mais popular.7.0-0 0-0 8.Bd2

Não exatamente inspirado, mas isso foi o melhor que encontrei. As Brancas agora ameaçam 9.Cxd5, com trocas favoráveis.8...De7 9.Db3

Renovando minha ameaça anterior. Ambos os jogadores estão se preparando para romper com seus peões na coluna e, e desejam fazê-lo em seus próprios termos.9...dxc4

Mischa quebra a tensão. Eu achava que as Brancas ficavam um pouco melhor depois de 9...Bd6 10.e4 dxc4 11.Bxc4 e5 12.Tae1, mas essa posição é bastante complexa. Se as

Pretas quisessem, poderiam jogar 12...exd4 13.Cxd4 Bxh2+ 14.Rxh2 De5+ 15.Rg1 Dxd4, ganhando um peão em troca da perda do par de bispos. Minha intenção era apenas le-var minhas torres para o centro com 9...Bd6 10.Tfe1 e 11.Tad1 depois atacar com e3-e4 e esperar que tivesse alguma coisa.10.Dxc4 Bd6 (Diagrama 27)

DIAGRAMA 27. Jogam as Brancas

Nesse momento, tive a sensação desa-gradável de que estava menos preparado. Minha dama certamente não estava con-fortável na casa c4, e linhas com 11.e4 e5 realmente me pareciam perigosas. Era hora de reavaliar a posição. Certamente, minha posição não é ruim, mas quais são os meus trunfos? Decidi forçar algumas trocas e ver se não podia tirar vantagem de meu desen-volvimento superior.11.Ce4! Cxe4 12.Bxe4 e5 13.Dc2 g6 14.Bc3

Tudo bem, não receberei o prêmio de “preparação do ano”, mas, no momento em que fiz o modesto lance 8.Bd2, eu tinha sé-rias dúvidas sobre qualquer “vantagem”. Com o texto, senti-me bem em relação ao posicionamento de minhas peças, para va-riar. Depois de levar minhas torres para o centro, o jogo das Brancas vai parecer ainda melhor.14...Te8 15.Tfe1 f5

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Não é o lance mais atraente, mas ou-tras sugestões não brotam facilmente. As Pretas devem tomar cuidado para não abrir a posição, pois após 15...exd4? 16.exd4!, sua falta de desenvolvimento torna-se evidente.16.dxe5 Cxe5 17.Cxe5!?

Uma concepção muito profunda sobre a qual eu tinha dúvidas. Eu abro mão do par de bispos e também do controle da casa d3, em troca de um bispo poderoso em c3 e um rei seguro. Depois de 17.Bxe5 Bxe5 18.Cxe5 Dxe5 19.Bf3 Be6, a posição é apenas um pouco melhor para as Brancas.17...fxe4!?

Aceitando o desafio. Após 17...Bxe5 18.Bf3, uma diferença fundamental compa-rada com a nota anterior é que a dama das Pretas não está no elevado poleiro em e5. Para ativar o bispo em c8, as Pretas precisam jogar 18...Bxc3 19.Dxc3 Be6, quando as Bran-cas têm uma versão superior à da nota aci-ma. Tradução? A posição continuaria sendo apenas um pouco melhor para as Brancas.

Com o texto, há muito mais jogo para ambas as partes.18.Cc4 Bc7 19.Cd2! Bf5 20.Cf1 (Diagrama 28)

DIAGRAMA 28. Jogam as Pretas

Essa era minha ideia. Um passeio e tanto do cavalo pelo tabuleiro. Na posição

resultante, a questão é: qual dos lados tem um melhor conjunto de peças menores? No momento, o bispo em f5 não é grande coisa.20...Tad8 21.Cg3

Ameaçando 22.Db3+ e 23.Dxb7, pois não há retaliação com ...Bc7xh2+.21...Td5 22.Tad1 Ted8 23.Txd5 Txd5 24.Td1 Bxg3 (Diagrama 29)

DIAGRAMA 29. Jogam as Brancas

Sem dúvida, jogada com um peso no coração. Essa troca significa que as Pretas só podem esperar um empate, pois, mais uma vez com um final de bispos de cores opostas, o atacante tem a vantagem. E, para determi-nar qual dos lados tem o papel de atacante, considere a situação dos respectivos reis.25.fxg3!!

Meu melhor lance no torneio. Captu-rando com o peão em f, estou preparando o lugar perfeito para o meu rei na casa h2, onde ele vai ficar encasulado. Capturar com o peão em h2 não é tão bom, pois as Pretas sempre teriam a chance de xeque perpétuo.25...Txd1+ 26.Dxd1 Dd7 27.De1!

Outro ótimo lance. Minha dama se ar-rasta pela fileira de trás aguardando a chance de entrar na briga. O texto prevê linhas que envolvem h2-h3, g3-g4 e a possibilidade de De1-g3-e5, criando uma bateria mortal.27...Be6 28.b3 c5 29.h3 b5 30.Df1

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 85

E, inesperadamente, as Pretas estão perdidas. Não há como impedir que a dama das Brancas seja ativada e então seu rei será um alvo fácil.30...b4 31.Be5 Dd8 32.Db5!

A dama das Brancas está livre e não há defesa possível.32...Dc8 33.Rh2!

Um lance difícil de encarar. As Brancas escondem seu rei e perguntam ao adversá-rio: “O que você vai fazer para jogar?”33...Bd5 34.Bd6

Indo colher os peões.34...a6 35.Da5 Rf7 36.Bxc5 Dc6 37.Dxb4 Be6 38.Bd4

Coleta completa. Agora é hora de ata-car o azarado rei das Pretas.38...h5 39.Db8 Re7 40.De5

Ao jogar 17.Cxe5, eu sonhei com essa bateria.40...Dd5 41.Df6+ 1-0

Superado o controle de tempo, Mischa abandonou a partida.

Uma imagem da qual me lembrarei por muito tempo do torneio de Candida-tos de Montpellier de 1985 ocorreu na ce-rimônia de encerramento. Todos os joga-dores estavam em um palco com um mesa comprida à sua frente. Na frente de cada jogador havia tabuleiros e peças de xadrez dispostas na posição de abertura. Quando chegava a hora de receber seu prêmio, cada jogador se levantava e andava atrás dos outros enxadristas até o pódio, trocava um sorriso e um aperto de mão com o orador, recebia seu cheque num envelope e volta-va andando por trás dos jogadores senta-dos até sua cadeira. Depois de receber seu prêmio, Mischa virou para a direita e não para a esquerda, andou em frente aos mes-tres reunidos e começou a dar um lance em cada tabuleiro como se estivesse fazendo uma exibição simultânea. A plateia rompeu em risos e aplaudiu ruidosamente. Os joga-dores também se uniram à plateia. Ouso di-

zer que ele era o único entre nós que pode-ria ter pensado ou feito algo assim. Ele era uma pessoa muito especial.

O final da década de 1980 e início dos anos de 1990 foram uma idade de ouro para o xadrez, com a fundação da Associação de Grandes Mestres (GMA). Muito será dito sobre a GMA nos capítulos sobre Garry Kasparov. Os eventos da Copa do Mundo foram uma série fantástica de seis torneios distribuídos duran-te dois anos e com a presença das melhores estrelas do mundo do xadrez. Cada enxadrista participou de quatro eventos com seus esco-res coletivos constituindo suas posições finais. Eu joguei com Mischa duas vezes na série da Copa do Mundo. Na primeira partida, joguei com as Brancas mais uma vez, a quarta con-secutiva.

Yasser Seirawan-Mikhail TalBruxelas, 1988

Defesa Nimzo-Índia

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cc3 Bb4 4.Dc2Comecei a jogar a linha clássica da

Nimzo-Índia muito antes de ela se tornar po-pular. Contudo, depois que Kasparov adotou a linha e a impregnou de um rico caldo de ideias originais, ela pareceu se tornar o tra-tamento usado por todos. Claramente insa-tisfeito com o desfecho de nosso encontro em Nikšić, Mikhail adota uma abordagem diferente.4...0-0 5.Bg5 d6!?

Evidentemente, não há nada absoluta-mente errado com esse lance ou, sem dúvi-da, com toda a linha. As Pretas terão um jus-to desenvolvimento e uma posição razoável, mas não consigo me livrar do sentimento de que as Pretas são negligentes demais ao ce-der o par de bispos. Em minha opinião, toda

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essa linha de desenvolvimento garante uma vantagem de longo prazo para as Brancas, mesmo que concordemos que nada há de errado com as Pretas.6.e3 Cbd7 7.Bd3 h6 8.Bh4 c5 9.Cge2 b6 10.0-0 cxd4

Alerta! As Brancas ameaçavam mover seu cavalo em c3 e tomar o bispo em b4, suspenso no ar.11.exd4 Bb7 12.a3! Bxc3 13.Cxc3

É muito importante observar que, na operação das Brancas para ganhar o par de bispos elas não jogaram a2-a3 e Dc2xc3; as Brancas recapturaram na casa c3 com o cavalo a fim de obter um emprego mais harmonioso de suas peças. As Brancas pu-deram fazer isso porque o quinto lance das Pretas, 5...d6, foi comedido e não realizou nenhuma pressão central imediata sobre a posição das Brancas.13...Dc7 14.b4! (Diagrama 30)

Agora alcancei exatamente o tipo de posição que esperava: possuo o par de bis-pos, um justo controle do centro e espaço na ala da dama como bonificação. A meu ver, tudo que eu precisava fazer era centralizar minhas torres, jogar f2-f3 para bloquear a longa diagonal (h1-a8), e a posição das Bran-cas está estrategicamente ganha.

DIAGRAMA 30. Jogam as Pretas

Mischa pensou profundamente, e pude notar que ideias idênticas também estavam passando por sua cabeça. Onde está o jogo das Pretas? Obviamente 14...d5? 15.c5! é um desastre estratégico, assim como 14...e5? 15.d5, e em ambos os casos o bispo em b7 está morto. Mas, se as Pretas são incapazes de forçar as coisas no centro e optam por jo-gar devagar e esperar, qual a melhor maneira de fazerem isso? Vamos supor que são feitos os lances 14...Tfe8 15.Tfe1 Tac8 16.Tac1 Db8 17.Dd2 Da8 18.Bf1. O que as Pretas conse-guiram “jogando devagar”? Absolutamente nada. Na verdade, a cada lance, a vantagem das Brancas parece ter aumentado. Depois dos futuros 19.f3, 20.Bg3 e 21.Ce4, o peão das Pretas em d6 será atacado e as Pretas serão obrigadas a jogar na defensiva sem te-rem cometido nenhum erro visível.

Pude “sentir”, pela linguagem corporal de Mischa, que seu nível de preocupação com a posição estava se tornando elevado. Nesses momentos, ele tinha o hábito de franzir os lábios e inclinar a cabeça para frente sobre o tabuleiro. Às vezes, eu também me inclino sobre o tabuleiro e avanço a cabeça. Às vezes, nossas cabeças chegavam muito perto.14...Ba6?!

Embora eu considere esse um lance ruim, só posso moderar minha crítica dizen-do que não tenho uma boa sugestão para um lance melhor. Não é fácil jogar nessa po-sição das Pretas e esse lance acelerou o mo-vimento na trajetória descendente.15.a4!

Uma réplica muito forte. O bispo das Pretas em a6 parece especialmente infeliz e a ameaça ao peão em c4 será bloqueada por 16.Cb5. Essa também é a resposta das Brancas para 15...Bxc4?, o que custaria uma peça. Como as Pretas não podem tomar em c4, elas tentam aumentar a pressão, mas seu lance seguinte não realiza muita coisa.15...Tfc8 16.Cb5! Dc6

Nada com que se alegrar, pois o texto não ajuda nada. Após 16...Bxb5 17.axb5 e5 18.Db2 Ch5!? 19.Tfc1 Cf4 21.Be4 Tab8 22.d5,

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eu achava que a posição era um desastre es-tratégico para as Pretas. A posição das Pretas pode não ter mais salvação.17.Bg3 e5 18.Db2! d5 19.Tfc1! De6 (Dia-grama 31)

DIAGRAMA 31. Jogam as Brancas

Finalmente, Mischa tem uma posição onde o “jogo concreto” e os poderes de cálcu-lo estão em ascendência. Infelizmente, para as Pretas, a posição está prestes a se abrir em um momento em que as Brancas têm os trun-fos do par de bispos e um desenvolvimento superior. Agora é hora de ganhar material.20.cxd5 Dxd5 21.Txc8+ Txc8 22.Cxa7!

Alcançando nosso estado mais sagra-do de ser: ter um peão a mais.22...Bb7

Não há consolo com 22...Tc7 23.Bxa6 Txa7 24.Bb5 exd4 25.Td1, pois as Brancas ga-nharão o peão em d4 e terão um peão sau-dável para sempre com dois bispos em uma posição aberta. O que significa uma vitória fácil. O texto, mantendo as peças no tabu-leiro ameaçando mate com 23...Dxg2, era a melhor chance de Mischa.23.Bf1 Tc4

Só se pode andar para a frente! Eviden-temente, é um salto de fé e esperança de que os deuses do xadrez tenham bons olhos para um jogo tão corajoso... De minha parte,

se eu puder “evitar o mate” (reconsidere a se-gurança do rei das Brancas), a vitória é certa.24.Cb5

Provavelmente 24.dxe5 era mais sim-ples e mais forte, mas eu calculei a seguin-te linha: 24...Cg4 25.Te1 Te4 26.Txe4 Dxe4 27.Cb5 Cxe5 28.Cd6 Cf3+ e estremeci, es-quecendo que 29.gxf3 Dxf3 30.Cxb7! elimi-na o pavoroso bispo. Quer o texto seja ine-xato ou não, não posso me criticar por trazer meu cavalo de volta ao jogo. É sempre uma boa ideia manter suas peças proveitosamen-te empregadas. Agora um futuro Cb5-d6 eli-minará o temido bispo.24...exd4 25.Td1! (Diagrama 32)

DIAGRAMA 32. Jogam as Pretas

Mudando de ideia. Minha intenção original era 25.Cd6 Tc3 26.Cxb7 Dxb7 27.Td1 Dd5 28.f3, com o que eu considerei uma po-sição vitoriosa. Mas quanto mais eu pensava sobre ela, mais parecia que a torre das Pretas em c4 estava simplesmente “presa” e eu po-deria conseguir uma troca. Olhei e verifiquei duas vezes, mas não consegui identificar uma compensação para Tal.25...Bc6 26.Cxd4 Ch5 27.f3!

É exatamente por isso que mudei de ideia. Com a longa diagonal fechada, a torre das Pretas em c4 fica parecendo extrema-mente exposta.

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27...Bxa4 28.Bxc4 Dxc4 29.Ta1 Dd3 30.Bf2! b5

Mesmo com toda a assombrosa capa-cidade de cálculo de Mischa, simplesmente não há truques que ele possa evocar. Se as Pretas não protegerem o bispo em a4 e ten-tarem 30...Cf4, então 31.Dc1! vence de vez. Eu cubro a casa d1, tornando Ta1xa4 possível, ao mesmo tempo atacando o cavalo em f4. As Pretas sequer podem se safar com 31...Dxd4, pois 32.Dc8+ sai do garfo do cavalo na casa e2 com tempo e ganha a dama das Pretas.31.De2! Dc3 32.De1!

Talvez seja exagero agraciar-me com pontos de exclamação por meus dois últi-mos lances – afinal, a posição é vitoriosa. Contudo, acredite que sempre que você coloca um desses caras legendários con-tra a parede, a precisão é imprescindível. Você não pode dar a eles a menor chance de fuga. Eles a encontrarão. Com essa ma-nobra, eu ponho minha dama em jogo com tempo e mantenho todos em minha equipe protegidos.32...Dd3 33.De8+ Cf8 34.Cc6 1-0

Diante das massivas perdas materiais, Mischa foi obrigado a parar os relógios.

Incrível. Quatro partidas, quatro vi-tórias para mim. Como foi possível? Real-mente, eu mesmo não sei explicar. Ao dizer o seguinte, sei que estou me dando um ta-pinha nas costas, mas é preciso assinalar.

Mischa tem uma merecida reputação por correr riscos, ousando aventuras de al-turas em que um único escorregão poderia levar a uma queda fatal em um instante. Essa refinada imagem nos obriga a admi-rar o ousado acrobata na corda bamba. Na realidade, é engraçado, mas as estatísticas mostram que Tal era um dos jogadores mais difíceis de derrotar. Ele tem duas das maiores sequências de jogos sem derrota na história moderna do xadrez. Tal era o hábil acrobata que não caía. Na verdade, derrotá-lo uma vez já era uma excelente realização; portanto, derrotá-lo quatro ve-

zes também está absolutamente além de minha compreensão.

Em relação aos dois períodos sem der-rota de Tal: de julho de 1972 a abril de 1973, ele atingiu o recorde de 86 partidas consecu-tivas sem nenhuma derrota (47 vitórias e 39 empates). Ele então melhorou seu recorde entre outubro de 1973 e outubro de 1974, quando jogou 95 partidas consecutivas sem derrota (46 vitórias e 49 empates). Essas são as mais longas sequências de invencibilida-de na história moderna do xadrez.

Todo mundo conhece as situações em que o jogador “A” derrota o jogador “B” roti-neiramente, o jogador “B” derrota o jogador “C” rotineiramente, e mesmo assim o joga-dor “C” derrota o jogador “A” rotineiramente. Ninguém chega a parte alguma. Nesse caso, só posso dizer que, de alguma forma, Mischa não combinava bem comigo. Ele foi incapaz de executar os tipos de partidas complica-das de dois gumes no qual se sobressaía, ao passo que eu consegui manter as parti-das nos canais estratégicos tranquilos claros que me eram convenientes. Por tentar obter os tipos de posições de que gostava, ele só piorou as coisas. Essa “explicação por estilo” explica muita coisa (não posso deixar de lembrar de meu bom amigo, o Grande Mes-tre canadense Duncan Suttles, e seu bom histórico contra o mais forte Bent Larsen, e seu histórico ainda pior contra o classicista Svetozar Gligorić), mas quatro vitórias con-secutivas? Às vezes é preciso buscar explica-ções nos Deuses do Xadrez...

Por fim, devo mencionar, obviamen-te e sem me envergonhar (não foi culpa minha), que eu estava com as Brancas nas quatro partidas. E, sem dúvida, é bom jogar com as Brancas.

Nossa partida final foi disputada em Skellefteå, Suécia. Mischa não estava ten-do maiores complicações comigo e, em uma posição típica, ofereceu-me um em-pate antes mesmo de termos deixado a teoria para trás.

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Mikhail Tal-Yasser SeirawanSkellefteå, 1989

Defesa Semi-Tarrasch

1.e4 c6 2.d4 d5 3.exd5 cxd5 4.c4 Cf6 5.Cc3 e6 6.Cf3 Be7 7.cxd5 Cxd5 8.Bd3 Cc6 9.0-0 0-0 10.Te1 Bf6 11.Be4 Cce7 12.Ce5 ½-½

Empate proposto por Mischa.A propósito, você notou que a abertu-

ra foi rotulada de Defesa Semi-Tarrasch (uma linha do Gambito da Dama Recusado) em vez de Defesa Caro-Kann? Essas são as ex-centricidades da classificação de aberturas. Ao que parece, a posição alcançada na par-tida geralmente resulta da seguinte ordem de lances: 1.d4 d5 2.c4 e6 3.Cc3 Cf6 4.Cf3 c5 5.e3 Cc6 6.Bd3 cxd4 7.exd4 Be7 8.cxd5 Cxd5 9.0-0 0-0 10.Te1 Bf6 11.Be4 Cce7 12.Ce5, com a mesma posição e daí a classificação Semi--Tarrasch do GDR. A mesma posição também pode resultar de outras aberturas.

Mischa passou a maior parte de sua vida com problemas de saúde, sofrendo de disfunção hepática e renal. Em Skellefteå, ele parecia esquelético e desgastado. Todos temíamos pelo pior, e ele de fato faleceu em junho de 1992.

Não pense sequer por um momento que uma vitória sobre Mischa em seu anos de queda não deva ser saboreada. De forma alguma. Em 1988, Mischa venceu o Campeo-nato Mundial de Blitz em St. John, Canadá, superando tanto Karpov quanto Kasparov. Foi um espetáculo incrível de assistir. Na Fi-nal, Mischa derrotou Rafael Vaganian, e eu, como muitos outros, estava lá ao lado das mesas para assistir à ação. Eu estava em St. John (perdendo um match de Candidatos para Jonathan Speelman), onde eu e Mischa jogávamos partidas de Blitz, preparando--nos para o torneio. Para minha honra, venci todas as partidas de Blitz que disputamos

(cerca de cinco) até Tal dizer: “Perfeito! Obri-gado! Agora estou pronto para o torneio”. E de fato o venceu.

Outra lembrança de Mischa que gosta-ria de compartilhar vem de um evento em Reykjavik, Islândia. Estávamos na “sala dos jogadores”, onde podíamos nos servir de café, bebidas e sanduíches durante os jo-gos. Eu tinha um frasco com suco de laranja e estava procurando um copo; Mischa tinha um cigarro aceso com uma cinza enorme e estava procurando um cinzeiro. Quase nos batemos, olhamo-nos por um segundo e ele disse: “Você tem os seus problemas, eu tenho os meus”. Rimos e continuamos nossa busca. De alguma forma, aquela declaração resume toda a vida.

Como nota de rodapé àquele even-to em Reykjavik, lá foi o primeiro onde era proibido fumar. Contudo, os organizadores fizeram uma exceção para Mischa. A “mesa” dele tinha permissão para fumar. Havia muitos enxadristas no evento que queriam ser emparceirados com Mischa para pode-rem fumar.

No ano de 1990, foi realizado o quin-to e último match do Campeonato Mundial da FIDE entre Kasparov e Karpov, em Nova Iorque e Lyons. Eu tinha sido contratado por Bessel Kok para ser um comentarista para a “Suíte SWIFT,” onde convidados especiais poderiam ficar bebendo e comendo salga-dinhos enquanto viam os jogadores por um monitor. Eu tinha um tabuleiro de demons-tração e comentava as partidas e respondia perguntas dos convidados. Mischa era assis-tente de Karpov e, com frequência, visitava a suíte SWIFT, onde conversava, parava para dar autógrafos e posar para fotos.

Certo dia, acredito que era o Dia das Bruxas, um amigo muito íntimo meu, Min Yee, veio até minha suíte. Min trabalhava para a Microsoft como presidente da Micro-soft Press e teve um papel importante no enorme sucesso da empresa desenvolvendo a tecnologia do “CD”. Min, como ele mesmo admitia, era meio “vira-lata”. Um homem

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grande de cerca de um metro e oitenta e 125 quilos, “meio chinês, meio índio americano, meio irlandês, meio...” Ele adentrou a sala vestindo um casaco de pele de lobo cinza de corpo inteiro com capuz. Dizer que ele era um ímã para olhares seria pouco. Trocamos um abraço, ele tirou o casaco e instalou-se na primeira fila de meu tabuleiro de de-monstração e começou a me bombardear com perguntas.

Em certo momento, Min ficou excitado com um lance que ele achava que Karpov deveria fazer. Não, eu sabiamente o informei, o lance sugerido não funcionaria e lhe custa-ria um peão. Mas, de fato, Karpov fez o “lance de Min”, e Min explodiu de entusiasmo sobre a cadeira, batendo contra o senhor sentado a seu lado. Eu, é claro, fiquei horrorizado. Min então pegou suas enormes mãos, agarrou o sujeito pelo cangote e o colocou de volta em sua cadeira. “Ai, Deus, me perdoe por isso. Eu me entusiasmei. Me desculpe”, disse Min.

“Está tudo bem”, respondeu o convida-do ferido. “Sem problemas. Eu também me entusiasmo”.

Feliz porque o cavalheiro aceitou o acontecido tão bem, Min estendeu-lhe a mão para cumprimentá-lo. “Olá. Meu nome é Min Yee”, disse ele.

“Prazer em conhecê-lo. Meu nome é Milos Forman”, respondeu o cavalheiro, e apertaram as mãos.

Sem demora, Min respondeu, “Milos Forman? Milos. Eu gosto do seu trabalho. Grandes filmes!” Min virou-se para olhar o tabuleiro de demonstração e concentrou os olhos em mim. “Certo. E agora?”, gritou.

Eu estava de cara. Felizmente, Min não machucou mais ninguém e a noite transcor-reu bem. Em certo momento, Min me puxou para o lado e disse: “Yasser, eu gostaria de convidar todos para um grande jantar chi-nês esta noite. Vou alugar umas limusines e fazer reservas. Convide todos os Grandes Mestres amigos seus que puder, com seus cônjuges também, diga-lhes que haverá muita comida e bebida. Eu só tenho uma

condição: eu quero que Mikhail Tal esteja presente. Você acha que pode convidá-lo?” Eu tinha minhas obrigações a cumprir e logo depois encontrei Mikhail.

“Mischa, um amigo meu gostaria de dar um jantar festivo. Muita comida e bebi-da. Haverá uma limusine esperando às oito e muitos Grandes Mestres irão. Mas meu ami-go Min têm uma condição.”

“Qual?”, perguntou Mischa.“Ele quer que a festa seja em sua ho-

menagem. Ele é um grande admirador seu. Se você aceitar, faremos a festa. Se recusar, não haverá festa”, expliquei.

“Vamos fazer a festa”, disse Mischa.E assim fizemos. Duas limusines bran-

cas nos levaram a um restaurante muito luxuoso e cerca de 18 pessoas participaram do jantar. Min nos conduziu ao restaurante vestindo seu casaco de pelo de lobo cinza e “desempacotamos” do frio de Nova Ior-que. Todos os Grandes Mestres estavam de terno e gravata, sendo comentaristas para o público, mas Min estava sem o paletó. O maître olhou com desconfiança e informou Min de que a política do restaurante exigia um paletó, mas para esses casos o restau-rante tinha uma seleção à mão. “Não me importa a cor, traga o maior que você tiver”, vociferou Min. O maître voltou com o maior paletó que tinha e Min mal conseguiu se apertar dentro dele. Ele parecia mal conse-guir respirar.

Fomos para a mesa sentar-nos. Min fez os pedidos, deu as boas vindas a todos, agra-deceu Mischa por ter vindo e então pediu desculpas aos convidados. O paletó estava sufocando-o, e Min arqueou as costas e o pa-letó fez um som alto de rasgado e quase se partiu em dois. Min ficou com a metade do paletó em um ombro e braço e a outra me-tade no outro ombro e braço. Caímos todos na gargalhada e Mischa, mais do que todos, estava tendo um ataque de riso. O maître passou por nossa mesa, deu uma olhada em Min, retomou o paletó e declarou que o re-

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gulamento era inadequado para aquela noi-te. O jantar foi maravilhoso. Obrigado, Min!

Outra coisa que definitivamente devo mencionar: além de ser um grande enxadris-ta, Mischa tinha talento para escrever. Per-gunte a qualquer enxadrista versado quais são seus dez títulos de xadrez prediletos e invariavelmente dois de Tal estarão incluí-dos na lista. Seu livro Tal-Botvinnik 1960, uma descrição altamente pessoal de seu match contra Botvinnik pelo Campeonato Mundial, e The Life and Games of Mikhail Tal são, em minha opinião, dois dos melhores livros de xadrez já escritos. Todo enxadrista deveria ter essas duas obras. São simplesmente ex-traordinárias. O que as torna tão especiais é sua honestidade. Ele viu algo, não viu algo, sua cabeça não estava na partida; o que quer que estivesse acontecendo no andar de cima, ele contava a seus leitores. Ele não tentava provar a validade de cada combi-nação – pelo contrário, ele nos contava que estava apostando e tateando seu caminho.

Os escritos de Mischa eram comple-tamente diferentes dos de outros autores: professores nos ensinando o que era certo e errado. Eis um autor que lutava com suas decisões, sofria com um golpe perdido ou descobria que a oportunidade chamava inesperadamente. Na maioria das vezes, ele encontrava seu equilíbrio. As lutas eram tão intensas que eu sentia como se estives-se sentado ao lado dele. Era estimulante ler sobre os momentos felizes e também sobre os infelizes. Esta honestidade aproximou Mischa de seus leitores e o tornou benquis-to por eles. É impossível ler estes livros sem sorrir e rir alto.

Sobre outro assunto, Tal era famoso por seu “olhar”. No folclore do xadrez, ele olhava para seus adversários e os hipnotizava. De que outra forma explicar por que tantas com-binações, não muito sólidas, atingiam seu objetivo? Na verdade, não era nada. Como muitos pensadores profundos, Tal tinha um olhar “distante”. Ele podia estar falando com você, mas dava para ver que sua mente esta-

va em outro lugar. Ao calcular combinações profundas, ele simplesmente olhava para cima e em direção a seus adversários. Ele não estava “olhando para eles”. Na verdade, eu chego a duvidar de que ele via seus adver-sários; ele estava simplesmente calculando e parecia calcular melhor quando não olhava fixamente para as peças. Eu tenho absoluta certeza de que ele não fazia isso para per-turbar seus adversários. Em nossas partidas, quando eu o olhava rapidamente, percebia que ele estava olhando “através” de mim, como se eu não estivesse ali.

De modo semelhante, lembro-me de um amigo meu de Seattle, Michael Spiegel, me avisar que os soviéticos tinham jovens en-xadristas com imenso talento: Boris Gelfand e Vassily Ivanchuk. Joguei com ambos. No tabuleiro, Boris tinha o hábito de olhar para baixo. Literalmente olhando para a casa “e0” enquanto calculava. Inversamente, Vassily olhava para o teto para calcular. Em um de-terminado lance, eu acho que Vassily levou cerca de 50 minutos, e o tempo todo ele ficou olhando para o teto. Em algum momento em torno dos 40 minutos de seu pensamento, eu também comecei a olhar para o teto, buscan-do insights.

Quando voltei a Seattle e falei com Michael, ele estava empolgado com minhas partidas com Boris e Vassily. “Como foi jogar contra eles?”, perguntou com excitação.

“Michael, você tinha razão”, respondi. “Eles são incrivelmente talentosos. Entre um e outro, a micro e a macro visão do mundo têm cobertura completa.”

Os seguintes são trechos interessan-tes do livro Three Days with Bobby Fischer & Other Chess Essays (página 30) de Lev Alburt e Al Lawrence:

“De modo geral, Botvinnik preferia começar um match importante com certo desapreço pelo adversário, ou ao menos cer-ta distância psicológica dele... A queixa de Botvinnik sobre Tal? Ele confidenciou a Lev Alburt o fato condenatório: ‘Eu não consegui me fazer desgostar dele.’ Por exemplo, quan-

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do, em 1961, Botvinnik, afinal o Desafiante, aproximou-se de Tal para saber o que ele achava das luzes ou das peças e do tabulei-ro que gostaria, Tal disse apenas que tinha certeza de que qualquer coisa que Botvinnik escolhesse estaria bem.

“Tal não tinha nenhuma das manobras, tensões ou histrionices antes da partida que caracterizaram o comportamento de Fischer fora do tabuleiro. Na verdade, Tal colocava todo o seu comportamento ‘incorreto’ nos lances que fazia, ao passo que Fischer colo-cava todo seu comportamento ‘correto’ em seus lances. Fischer, com seu classicismo ultrasseco, não se arriscava deliberadamen-te no tabuleiro e saboreava o momento em que ‘esmagava o espírito de seu adversário’. Tal sacrificava uma peça caso não visse refu-tação direta, mesmo em uma partida em um Campeonato Mundial! Ele saboreava a poe-sia explosiva que consistentemente encon-trava debaixo do nariz de seus colegas mais práticos por sua própria beleza intrínseca.”

Este tema do comportamento ou dos truques psicológicos “fora do tabuleiro” gera muita discussão porque incidentes desse tipo são muito raros e a mídia adora enfocá--los. Embora seja verdade que alguns joga-dores preferem desgostar de seus adver-sários, tendo dificuldade para jogar contra àqueles com quem têm relações amistosas, minha experiência geral após três décadas e meia jogando é que os truques psicológicos são realmente mínimos.

A grande maioria dos meus adversários teve genuíno espírito esportivo. Sem inten-ção de distrair ou de vencer de modo duvi-doso, esperam que o único caminho correto para a vitória seja jogando bem. Em especial, e sem ordem, meus adversários com melhor

comportamento, “cavalheiresco”, incluem Ulf Andersson, Alexander Beliavsky, John Nunn, Jan Timman, Arthur Yusupov, Lubomir Ftacnik, Judit Polgar, John van der Wiel e mui-tos, muitos outros. Todos eles comportaram--se de modo impecável fora do tabuleiro. A própria ideia de deliberadamente distrair seu adversário lhes pareceria ridícula.

Vou concluir este capítulo com uma citação de Garry Kasparov: “Calculamos: ele faz isso, eu faço aquilo. E Tal, através de suas densas camadas de variantes, via que em torno do 8o lance seria assim e assim. Algu-mas pessoas são capazes de ver a fórmula matemática, são capazes de imaginar o qua-dro inteiro instantaneamente. Um homem comum precisa calcular, pensar sobre aqui-lo, mas elas simplesmente vêem tudo. Isso ocorre com grande músicos e com grandes cientistas. Tal era absolutamente único. Seu estilo de jogo era evidentemente singular. Eu calculava as variantes com suficiente rapi-dez, mas os insights de Tal eram incompará-veis. Ele era um homem em cuja presença os outros sentiam sua própria mediocridade.”

Partidas clássicas contra Mikhail Tal

Seirawan-Tal, Valetta, Malta, 1980: 1-0Seirawan-Tal, Nikšić, Iugoslávia, 1983:

1-0Seirawan-Tal, Montpellier, França,

1985: 1-0Seirawan-Tal, Brussels, Bélgica, 1988:

1-0Tal-Seirawan, Skellefteå, Suécia, 1989:

½-½

Seirawan: quatro vitórias, um empate. Placar clássico: 4½-½

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Tigran Petrosian

De todos os Campeões Mundiais, Tigran Vartanovich Petrosian (1929-1984) é o mais difícil de categorizar. Todos queremos boas definições, rótulos que possamos afixar às pessoas ou coisas para nos sentirmos con-fortáveis ao dar-nos uma referência para compreender. Chamamos algo de “martelo” ou alguém “semelhante a um martelo” e fi-camos imediatamente satisfeitos. Sabemos o que é um martelo e estamos prontos para conversar mais sobre as qualidades da pes-soa semelhantes a um martelo. Por quê? Conhecemos positivamente o camarada e estamos prontos para elucidar mais!

Ficamos satisfeitos chamando Mikhail Tal de “um gênio da combinação”, “um tá-tico sem pares” ou “um mágico tático”. Isso certamente nos ajuda a nos sentirmos mais pertos de Tal e podemos definir o enxadris-ta, ao menos um pouco, para nós mesmos, mesmo que tal definição seja ridiculamente limitada. Tal nunca jogou um final de parti-da em sua vida? Puxa, ele era capaz de jogar finais de partida? Ou ele polvilhava sua po-eira tática mágica sobre todas as posições, inclusive reis expostos, produzindo fogos de artifício num instante?

O que nos leva a Tigran. Cada um dos Campeões Mundiais trouxe, de seu modo especial, alguma coisa para o esporte, im-buindo o pool do conhecimento do xadrez e tornando-o mais profundo e alguma com-preensão especial do esporte – sua interpre-tação de uma posição ou seu estilo de jogo. Todos os campeões transmitiram e com-partilharam conosco seus legados. Pode ser banal dizer que Tigran era um “homem duro de derrotar” ou “um pensador profundo com ideias estratégicas enfadonhas” ou que “ele tinha um agudo senso de perigo”. (Qual Campeão Mundial não tem?) Sim, ele tinha todas essas coisas, mas esses rótulos são me-ras descrições que não nos ajudam a com-preender o enxadrista. Ao contrário, elas nos desencaminham. Isso porque ele era todas essas coisas e também uma mistura de ou-tras qualidades.

Para começar, Tigran tinha talento táti-co e podia calcular como os melhores. Obser-ve sua partida contra Kasparov em Tilburg, onde superou Garry no cálculo em um entre-veiro tático impetuoso. Tigran era um ótimo jogador estratégico, mas não se limitava a essa área; jogava uma ampla variedade de aberturas e defesas, trazendo insights únicos

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a um grande número de posições de meio--jogo. Embora fosse mais bem-sucedido em posições fechadas, também jogava muito bem em posições abertas.

Tigran também era implacável ao apro-veitar uma vantagem. Todos nós desperdiça-mos posições ganhas, faz parte do trabalho, mas minha impressão das partidas de Tigran era a de que ele era muito bom em aprovei-tar a coisa inteira quando tinha o controle da posição. Em suma, se você caísse em uma má posição, era o fim – você não iria escapar.

Tigran foi criticado por não ser especial-mente ambicioso. Essa crítica provocou pon-derada concordância de uma ampla gama de Grandes Mestres. A piada que circulava era que, se Petrosian estivesse determinado a empatar uma determinada partida, nada era capaz de detê-lo, nem mesmo uma posição ganha. Uma piada engraçada e encantadora. Contudo, Tigran foi um dos mais bem-sucedi-dos enxadristas modernos no que se refere a ciclos do Campeonato Mundial. Para desem-penhar bem nesses ciclos brutais, é preciso ambicionar a conquista do mundo inteiro. Em 1963, ele derrotou Mikhail Botvinnik por 12½-9½ e, em 1966, derrotou Boris Spassky (o segundo mais jovem Grande Mestre até en-tão) por 12½-11½. Depois, em 1969, perdeu o título para Spassky por 12½-10½ mas, em 1971, pôs fim ao alvoroço de Bobby Fischer no match final de Candidatos, vencendo a segunda partida depois de perder a primeira em posição muito melhor. Bobby venceu o match e se tornou o Desafiante. Que diferen-te a história poderia ter sido se Tigran tivesse vencido as duas primeiras partidas daquele match.

Assim, vamos tentar situar Tigran na hierarquia dos grandes do xadrez: ele der-rotou Botvinnik, uma das maiores lendas do Campeonato Mundial; tanto derrotou quanto perdeu para Boris Spassky, o “Cam-peão Universal”; e foi preciso um meteórico Bobby Fischer para detê-lo em sua persegui-ção de um terceiro match contra Spassky.

Essa me parece uma extraordinária história de conquistas, mas, apesar disso, pensa-se que a Petrosian faltava ambição?

Ainda pior, Tigran muitas vezes é des-considerado como um jogador “defensivo”, que sabia prever e depois “frustrar” os planos de seu adversário antes de (rancorosamen-te) “contra-atacar”. Essas caracterizações pa-recem tão piegas e engraçadas que só posso rir. E o que dizer das inúmeras partidas em que Tigran absolutamente tritura Grandes Mestres fortes, sem dar-lhes a menor chan-ce? Uma trituração total do começo ao fim. E as partidas nas quais os adversários de Tigran, de Brancas, foram tão intimidados que recorreram à segurança da variante de empate mais próxima e deram graças a Deus quando as planilhas estavam assinadas? Onde se encaixam essas centenas de parti-das em nossos lindos rótulos e definições de “grande defensor”? Não se encaixam.

Quando os críticos se dispersam ou fazem uma pausa, um raio de luz aparece. Atacantes entusiasmados creditam a Tigran o sacrifício de qualidade – quase uma mar-ca registrada de seu jogo, onde ele tomba a carreta material pelo jogo dinâmico com as peças menores. Jogador defensivo, você diz? É mesmo? Só por divertimento, desafio você a fazer uma comparação estatística da por-centagem de empates obtidos por Petrosian e, digamos, pelas figuras de Tal ou Fischer. Você pode se surpreender.

Tigran foi um enxadrista sem igual porque era, na realidade, capaz de desem-penhar muitos papéis: o atacante oportunis-ta; o defensor cuidadoso; o contra-golpista hábil; o visionário mestre estratégico; o con-sumado jogador de finais; e sim, o jogador com nervos mais fortes. Evidentemente, as partidas de Tigran cintilam em sua extraor-dinária capacidade de resistir e salvar posi-ções difíceis, virando-as como se por magia. Por sua inigualável habilidade, nós o rotula-mos dessa maneira. Na verdade, ele era um jogador universal, perfeitamente à vontade

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diante de um entreveiro tático, mas simples-mente excepcional, sem par, quando preci-sava “manter” a posição.

Eu seria negligente se também não chamasse atenção para o excelente histórico olímpico de Tigran. Ele jogou para dez Sele-ções Soviéticas de 1958 a 1978 quando sim-plesmente ser cogitado para inclusão não era pouca coisa. Seu histórico foi o de fasci-nantes 78 vitórias, 50 empates e uma única derrota. Ele com certeza era um enxadrista que eu iria querer no meu time!

Outra piada comum é a de que era tão difícil vencer o Campeonato Soviético quan-to o título mundial. Tigran venceu o Cam-peonato Soviético quatro vezes – em 1959, 1961, 1969 e 1975 – durante um período de 16 anos e, no entanto, não é considerado um grande jogador de torneios. Acho incrí-vel que sucessos tão extraordinários atraiam tantas críticas.

Conheci Tigran no Aberto de Lone Pine em 1976 e o encontrei novamente na edição de 1978 do mesmo torneio. Foi no evento de 1976, quando eu tinha 16 anos, que aconte-ceu o seguinte episódio.

Durante o torneio, fiquei surpreso ao ver que Tigran estava mantendo um nítido interesse por minhas partidas. Muitas vezes quando eu levantava os olhos do tabuleiro ou andava pelo salão do torneio, eu via que ele estava assistindo a minhas partidas. Eu não sabia absolutamente o motivo para isso. Nem mesmo eu achava minhas partidas in-teressantes assim. Contudo, eu achava que as partidas dele era ótimas!

Foi durante um dos dias livres. O edifí-cio Town Hall, onde jogávamos, também ti-nha uma sala de análise onde Miguel Najdorf estava sendo admirado. Ele estava jogando Blitz e esmagando jovens jogadores ame-ricanos um atrás do outro. Depois que per-dia, o jovem desocupava o assento para dar lugar para o próximo de uma pequena fila de jogadores. A cada vitória, Miguel gritava rindo para toda a sala: “Sangue! Eu preciso

de sangue jovem! Vocês são velhos demais para mim! Sangue! Mais sangue jovem!” Ele fez isso repetidas vezes, e estava claramente se divertindo enquanto ajustava os relógios dos melhores enxadristas jovens dos Estados Unidos. Mesmo em idade avançada, Miguel era um jogador formidável na modalidade Blitz. Meus amigos me pressionaram para entrar na fila dos jovens, pois sabiam que eu era um jogador de Blitz muito capaz e era hora de derramar um pouco de sangue ve-lho. Não sei ao certo o que pretendia fazer no dia livre, mas ser humilhado por Don Miguel certamente não. Mesmo assim, deixei-me ser persuadido a entrar na fila.

Por fim, chegou minha vez de jogar com Miguel. Ele estava a pleno vapor, berran-do sua necessidade de mais sangue jovem. Apertamos as mãos para posicionar as peças. Minha vez! Eu sabia que Miguel estava que-rendo briga e sua punição era merecida. Exa-tamente naquele momento, Miguel recebeu um tapinha no ombro. Virou-se para olhar e viu Tigran Petrosian pedindo para ocupar sua cadeira. Miguel perguntou a Tigran em russo se ele realmente queria seu lugar. Tigran con-firmou seu desejo e Miguel saltou da cadeira e num instante a cedeu para Tigran.

Muito inesperado! Eu também me le-vantei, presumindo que Tigran quisesse as peças e a mesa para analisar ou talvez mos-trar algo de suas próprias partidas. Não, não! De forma alguma! Ele acenou com as mãos para cima e para baixo para dizer que eu devia retomar meu assento. Ele queria jogar Blitz comigo. Que legal!

De repente, todos os que estavam ape-nas meditando ou vagueando pelo local de jogos encontraram um motivo para se apro-ximar e se amontoaram na sala de análise, que rapidamente ficou lotada. Petrosian es-tava jogando Blitz! Enquanto ajustava os re-lógios, ouvi o grito de Walter Shawn Browne: “3 para 1 em Petrosian. Quem leva a aposta?” Todos desatamos a rir. E agora havia Vassily Smyslov também; ele ocupou uma posição

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de pé atrás de Tigran e deu-lhe um delicado abraço de urso, falando em russo. A fofoca era que Vassily não queria que Tigran pre-judicasse o ânimo dos jovens enxadristas e que deveria ter clemência com todos. Todos pareciam estar de bom humor e Vassily e Ti-gran riram muito juntos.

Logo estávamos prontos. Eu come-cei com as Brancas e joguei uma Abertura Inglesa. Embora não houvesse muitos co-mentários à volta, havia um considerável volume de “ruído”, onde “ohs” e “ahs” sau-davam um bom lance ofensivo ou uma boa defensiva moderada. Não sei direito como, mas consegui superar Tigran, que tinha fama de grande jogador de Blitz, e venci a partida.

Todos estavam chocados. Eu tam-bém. Levantei-me para ceder o lugar para o próximo jovem na fila. Que grande honra jogar contra Petrosian! Não, não! De novo, ele acenou com as duas mãos para que eu me sentasse novamente. Ele queria uma segunda partida.

Novamente, enquanto arrumávamos as peças e o relógio, ouviu-se a voz de Walter Shawn Browne gritando forte: “Tudo bem, meio a meio! Quem pega minha aposta?” E de novo caímos na gargalhada, aproveitan-do a farra do momento. Desta vez, Vassily não persuadiu Tigran a ter misericórdia com os pobres enxadristas jovens, tendo agora “permissão” para jogar com toda a força. E outra vez, Tigran, com seu rosto muito ex-pressivo, começou a rir alto.

Eu estava, é claro, com as Pretas, mas esta partida desapareceu completamente de minha memória. Eu “acho” que joguei uma formação triangular de peões de Botvinnik. De algum jeito consegui ganhar de novo. A vitória não foi por tempo e tampouco casual. Eu venci uma boa partida. Será que estava possuído?

Outra vez, comecei a me levantar, mas desta vez Petrosian foi muito mais claro com o movimento das mãos: “Sente-se!” E outra

vez, enquanto arrumávamos as peças para a terceira partida, a voz inconfundível de Walter Shawn Browne foi ouvida em meio ao burburinho: “3 para 1 em Seirawan! Quem leva minha aposta?” Todos caímos na garga-lhada. Walter se orgulhava de ser também um bom apostador!

Eu estava no paraíso. Minha última lembrança clara é que fui totalmente tritu-rado nas duas partidas seguintes. Para meu alívio, Tigran encerrou o confronto e me deu um aperto de mão. Puxa! Dois a dois! Subita-mente, parecia que todos estavam me dan-do a mão para me parabenizar. Eu acho que, como eu, ninguém parecia acreditar.

De passagem, quero assinalar que, du-rante o Aberto dos Estados Unidos de 1977, em Columbus, Ohio, venci o Campeonato de Blitz de cinco minutos com um placar de 7½ de um total de 8. Eu não era mole no Blitz. Mas Petrosian também não!

Como mencionado anteriormente, fui assistente de Victor Korchnoi em sua campanha no Campeonato Mundial de 1980/1981. Seu primeiro match de Candi-datos foi na Áustria contra Tigran Petrosian. Que match duro foi aquele, cheio de ten-são. Os adversários eram inimigos mortais e nenhuma das partes cedia um milíme-tro. No fim, Victor conseguiu uma vitória apertada. Demos graças a Deus e partimos ansiosamente. Foi durante aquele match que eu passei a ter uma real consideração pela força de Tigran. Vou ser claro: eu acha-va Victor Korchnoi o melhor jogador do mundo ou, ao menos, o segundo melhor, e Tigran o testou em todas as partidas. Foi somente com absoluta determinação que Victor venceu. Na disputa em matches, Ti-gran era realmente formidável.

A única partida clássica em torneio que Tigran e eu disputamos foi novamen-te no torneio de superestrelas de Nikšić. Aquele em que meus resultados alternaram entre vitórias e derrotas. Empates pareciam raros.

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Yasser Seirawan-Tigran PetrosianNikšić, 1983

Defesa Nimzo-Índia

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cc3 Bb4 4.Dc2 d6 5.Bg5 Cbd7 6.e3 c5

Terrível. Aqui estou eu escrevendo um livro sobre minhas partidas contra os Campeões Mundiais e agora percebo, pela primeira vez, que Smyslov, Tal e agora Pe-trosian usaram todos o mesmo fraco siste-ma defensivo, por transposição, contra a variante da Nimzo-Índia. Talvez eles todos tenham lido o mesmo vangloriado livro de aberturas da “Escola Soviética de Xadrez”, que recomendava este sistema para as Pre-tas. Honestamente, não vejo como este sis-tema poderia ser atraente para quem joga com as Pretas, muito menos para as lendas do tabuleiro.7.dxc5!? dxc5?

Esse lance me surpreendeu bastan-te pois eu simplesmente a considerava um erro. A posição resultante é passiva para as Pretas, com poucas chances de criar jogo. Minha principal linha era 7...Cxc5 8.Ce2 h6!? (8...Cce4 9.Bxf6 Cxf6 10.a3) 9.Bh4 b5!. Eu con-siderava este último lance “absolutamente necessário” para que as Pretas criassem con-tra-jogo, caso contrário, elas seriam compri-midas nas primeiras fileiras. Depois de 10.a3 Bxc3+ 11.Cxc3 bxc4 12.Bxc4 Bb7 13.0-0 0-0, a posição é aproximadamente equilibrada.8.0-0-0 Bxc3

Não é uma troca voluntária jogada pelas Pretas na Nimzo clássica. Normalmente, as Pre-tas esperam por a2-a3, o que custa às Brancas um tempo antes que as Pretas se despeçam de seu bispo em b4. O problema concreto aqui é que o cavalo das Brancas em c3 está ameaçan-do escapar com Cc3-e4, quando o bispo em b4 fica encalhado sem nada para fazer.

9.Dxc3 De7 (Diagrama 33)Tigran não estava interessado em dar-

-me o endereço de seu rei. Depois de 9...0-0 10.Bd3!, eu sonhava com Bd3-b1 e Dc3-c2, com uma bateria perigosa. Observe que, de-pois de rocar prematuramente na ala do rei, as Pretas não poderão se libertar da cravada de g5 com ...h7-h6, pois h2-h4! será uma respos-ta forte. Assim, para romperem a cravada de g5 com ...h7-h6, as Pretas devem fazer aquele lance antes de fazerem o roque. Com o texto, as Pretas deixam claro que querem manter a opção de rocar na ala da dama.

DIAGRAMA 33. Jogam as Brancas

Examine o diagrama da posição por um instante. Eu sei que parece estranho, mas é precisamente aí que eu sentia que ti-nha uma posição estrategicamente ganha. Por quê? Bem, pense de uma outra manei-ra: imagine que as Brancas joguem f2-f3 e Dc3-c2; o que exatamente as Pretas farão para contra-atacar? A cravada em g5 é irri-tante, o cavalo das Brancas de g1 será po-sicionado na casa c3 e a as Brancas podem construir sua posição. Acrescente a vanta-gem do par de bispos e as outras vantagens posicionais das Brancas vão aumentando.

Dito isso, eu agora estava procurando pelo posicionamento mais preciso de mi-nhas peças. Elas teriam que estar prontas

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para tirar vantagem de onde quer que as Pretas fizessem o roque, ao mesmo tempo tentando assumir o pleno controle do cen-tro. Em suma, devido ao erro das Pretas no sétimo lance, como vencer com minha po-sição superior?10.Bd3!

Pensei por algum tempo, mas foi muito difícil encontrar a sequência dos próximos lances por causa dos numerosos posicionamentos possíveis. Por fim, fiquei satisfeito por ter encontrado o melhor. Fal-sas trilhas incluem 10.Cf3 b6!? (10...e5!?) 11.Bf4 Bb7 12.Bd3 0-0-0 13.Bc2, que pare-cia muito atraente, mas, após o estranho recuo 13...Cb8, não sabia ao certo o quanto tinha de vantagem.

Outra linha de jogo muito atraente também era a simples 10.Ce2 h6 11.Bh4 b6 12.Dc2 Bb7 13.Cc3 0-0 14.f3, quando as Pre-tas ficam em uma posição muito desagra-dável. O contra-ataque das Pretas mal pode ser visto e, podendo jogar como querem, as Brancas jogarão g2-g4, Bh4-g3 e um gradual avanço pela ala do rei.

Por fim, decidi que gostava mais do texto.10...b6 11.f4! Bb7 12.e4! e5 13.Cf3!

Graças à ordem precisa dos lances, as Pretas estão em sério perigo de serem des-manteladas. Minha autoconfiança estava nas alturas. A posição está prestes a se abrir e eu tenho o par de bispos.13...De6!

Em termos práticos, o único lance. As Pretas precisam sair da cravada antes que o centro estoure.14.fxe5

Mais uma batalha interna difícil ocor-reu com esse lance. As Pretas estão próxi-mas de completa asfixia após 14.f5 De7 15.Bc2 0-0-0 16.The1, quando mal podem jogar e as Brancas têm todo o tempo para se prepararem para Bg5-h4, g2-g4-g5 e Bh4-g3, e as Pretas poderiam falecer sem reclamar.

Escolhi o texto porque tive certeza de que abrir a posição seria favorável. Tendo a posição novamente, eu provavelmente iria preferir a opção da “grande compressão” mencionada acima.14...Cg4!

Subestimei totalmente esse lance. Por algum motivo eu me fixei e calculei 14...Cxe4 15.Bxe4 Bxe4 16.Td6 Df5 como minha linha principal. Eu havia preparado a resposta muito poderosa 17.Dd2!, quando, graças a uma série de ameaças, inclusive e5-e6, eu considerava a posição vencedora.

O texto, por outro lado, realmente me pegou desprevenido por algum motivo. Eu tinha rejeitado 14...Cg4, por causa de um sacrifício de qualidade em d7 e agora era obrigado a reverificar o planejado sacrifício que eu achava que não poderia ser permiti-do pelas Pretas.15.Bc2 Cgxe5 (Diagrama 34)

O momento da verdade chegou. Ob-viamente, em vista da devastadora ameaça de Td1-d6, as Pretas têm que capturar o peão em e5. Agora, surge o eterno lamento do enxadrista: sacrificar ou não sacrificar? (Neste caso, a torre em d1.)

DIAGRAMA 34. Jogam as Brancas

16.Ba4?

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Droga, droga, droga! E mil vezes droga! Não confiei em minha intuição mais profun-da e evitei a linha crucial. Imediatamente depois da partida, Tigran apontou para seu cavalo em d7, fez uma cara extremamente azeda e indicou claramente que não gos-tava de sua posição após a natural 16.Txd7 Cxd7 17.Dxg7 Tf8. Com certeza, era fácil cal-cular até aí, mas então vem a pergunta: “E depois?” Infelizmente, a simples proposição dessa pergunta me desligou de toda a linha. Às vezes, esquecemos que o xadrez é só uma disputa. E ainda que não sejamos capazes de identificar uma vitória concreta, precisamos compreender que às vezes uma coisa boa a fazer é colocar nosso adversário em uma posição que não o agrade. E isso também é muito, muito bom para nós.

Evidentemente, eu não via uma vitória certa após 17...Tf8, pelo simples motivo de que ela não existe. Em vez disso, o que real-mente existe é uma posição onde as Brancas têm um bispo e um peão pela qualidade, talvez com um segundo peão num futuro próximo. As Pretas não completaram seu de-senvolvimento e as Brancas têm boas chan-ces de ataque. Mas, outra vez, a abordagem correta da posição era imaginar uma linha de jogo contra a qual meu adversário simples-mente detestaria jogar. Desta perspectiva, havia duas linhas após 17...Tf8. A primeira op-ção era 18.e5!?, mantendo o rei preto preso no centro e a segunda, 18.Td1, simplesmen-te pondo a torre em jogo. A principal linha que examinei durante a partida foi 18.Dxh7?! (uma velha fraqueza minha – tomar tantos peões quanto possível) 18...f6 19.Bf4 0-0-0, o que não traz problemas para as Pretas.

Na prática, após 16.Txd7! Cxd7 17.Dxg7 Tf8 18.e5, as Pretas têm uma decisão difícil para tomar. Deveriam ser gananciosas e to-mar o peão em c4? Não... Isso parece muito perigoso. Deveriam jogar 18...Bxf3 e tomar o peão e5? Por exemplo, 18...Bxf3 19.gxf3 Dxe5? Resposta: não. Após 20.Dxe5 Cxe5 21.Ba4+, as Pretas levam xeque-mate em poucos lances. Que surpresa desagradável.

Assim, tomar o peão em c4 parece perigoso demais e abrir mão do bispo em b7 não aju-da, o que deixa somente 18...f6 como possí-vel defesa. Mais uma vez, o caminho parece meio estreito, mas também direto: 19.Bxf6 Bxf3 (uma captura forçosa, pois 19...Cxf6 20.Dxb7 faz as Pretas perderem) 20.gxf3 Cxf6 21.exf6 0-0-0 22.Dxa7, chegando a nosso dia-grama de análise (Diagrama 35).

DIAGRAMA DE ANÁLISE 35. Jogam as Pretas

Mais uma vez, chegamos a uma posi-ção em que não se pode falar em nenhuma “vitória” definitiva, mas somente em qual dos lados tem mais facilidade para jogar. No momento, as Brancas têm um bispo e alguns peões pela qualidade e é altamente provável que as Brancas tenham um xeque perpétuo a qualquer momento em que pre-cisarem, tendo, é claro, chances de mate. A questão – volto a dizer – é que às vezes você só precisa compreender que o xadrez é uma briga. Você tenta pressionar seu adversário e aumenta as ameaças, na esperança de que ele ceda. Às vezes, você deve seguir sua in-tuição e fazer o lance que parece certo.

Esta linha e esta partida me incomo-daram não apenas a noite toda, mas toda a semana. De alguma forma, as Pretas pre-cisavam ser punidas por este fraco jogo de

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abertura e passei muito tempo analisando variantes. Por fim, lembrei-me de meu pró-prio velho provérbio: “Convide todos para a festa.” De repente, a linha sobre a qual eu não me concentrei durante o jogo tornou-se es-pecialmente atraente: 16.Txd7 Cxd7 17.Dxg7 Tf8 18.Td1! f6 19.Bxf6 Txf6 (senão, 19...Dxf6 20.Dxd7 é mate e 19...Cxf6 20.Dxb7 é bom para as Brancas) 20.Txd7, quando tenho dois peões pela qualidade. As Pretas podem con-tinuar cavalgando um tigre com 20...Txf3 21.Txb7 Tf1+ 22.Rd2 0-0-0+! 23.Rc3, posição que, a meu ver, me favorece, mas depois de 23...Td7! as Pretas estão bem mais uma vez. O xadrez pode ser um jogo duro.

Frustrado por não encontrar a vitória, eu tinha que deixar a partida de lado. Talvez um dia o futuro possa me mostrar definiti-vamente onde errei. Embora minha intuição me diga que o sacrifício de torre estava certo, eu poderia simplesmente estar equivocado.

Depois de decidir rejeitar o sacrifício de torre, meu novo foco era 16.Cxe5 Dxe5 (16...Cxe5? 17.Bf4! é muito forte para as Brancas.) 17.Dd2, que parecia mais atraente. Então eu vi 17...Bc6! – um lance realmente irritante. Mas, mesmo assim, digamos que, depois de 18.Thf1, as Brancas têm uma pe-quena vantagem graças aos dois bispos.

Com minha cabeça rodando com to-das essas variantes, de repente ocorreu-me simplesmente cravar o cavalo em d7, quan-do os cavalos das Pretas estão “atrelados” um ao outro. Em minha visão, a “única” forma de romper essa cravada seria jogar ...Bb7-c6, em cujo caso, após uma troca de bispos, eu plantaria uma torre na casa d5. Infelizmente, depois do texto, as Pretas têm tempo sufi-ciente para escapar.

Finalmente, um lance que eu não con-siderei suficientemente foi 16.Bf4 f6 17.Cxe5! fxe5 18.Ba4 0-0-0 19.Bxd7+, quando as Bran-cas terão vantagem em um meio-jogo com

bispos de cores opostas. A ideia de abrir mão do controle sobre a casa d8 simplesmente não me ocorreu.16...0-0! 17.Bf4 f6 18.The1

Ao fazer esse lance defensivo, compre-endi que minha vantagem inicial na abertu-ra tinha terminado. Contra um adversário do calibre de Tigran, as oportunidades são tão fugazes!18...Tf7

Um daqueles lances altamente surpre-endentes que eram uma marca registrada do jogo de Tigran. Eu mal dei consideração ao texto, esperando 18...Tfd8, que eu julgava equilibrado.19.h3

Jogado tanto por frustração quanto por outro motivo. Existem algumas linhas em que as Pretas poderiam jogar ...De6-g4, então pensei em acabar com esta oportunidade.19...Cxf3 20.gxf3 Taf8 21.h4 ½-½

Empate proposto por Tigran. Sem fa-zer um lance, ele cruzou seus dedos para oferecer um empate. Eu aceitei, pensando que a maior parte de minha vantagem ti-nha desaparecido. Após a óbvia 21...Ce5, considerei o jogo equilibrado. Para ambos os jogadores, os problemas de tempo se-riam sérios e o resultado da partida seria decidido por um final Blitz. Emocionante para espectadores, mas estressante para os jogadores. Mais uma de minhas partidas complicadas com os Campeões.

Infelizmente, Tigran faleceu em 13 de agosto de 1984 com apenas 55 anos de ida-de. O mundo do xadrez lamentou a perda deste talentoso enxadrista sem par, que de-safiava qualquer caracterização.

Nosso placar em torneios clássicos de xadrez termina com um empate, além de quatro das mais memoráveis partidas de Blitz que já disputei.

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Boris Spassky

Boris Vassilievich Spassky ocupa um lugar especial para todos os enxadristas: ele foi o Campeão que perdeu seu título para Bobby Fischer em 1972. Mesmo hoje, quase quaren-ta anos depois, o público americano tende a conhecer os nomes de dois Grandes Mes-tres acima de todos os outros: Bobby Fischer e Boris Spassky. Certamente, não é a forma como Boris gostaria de ser lembrado, mas assim são os caprichos do destino. De modo semelhante, não era a intenção de Heitor cair perante Aquiles no saqueio de Troia quando escolheu competir em um duelo que não precisava aceitar. Uma derrota para a qual será lembrado até o fim dos tempos.

Para mim, Boris Spassky foi um enxa-drista verdadeiramente “universal”, capaz de jogar todas as facetas do jogo igualmente bem. Sem dúvida, ele gostava mais do pa-pel do atacante, para o qual ele era incrivel-mente formidável, mas era o “equilíbrio” de seu jogo que mais me impressionava. Ele se sentia confortável com todo tipo de posi-ção. Na verdade, é difícil diferenciar o estilo de Spassky. Como diria Miguel Najdorf, não havia tanto um “estilo” – ele apenas era mui-to bom em tudo.

Boris foi um Campeão Mundial ex-cepcional. Ele estava no auge de sua força de 1969 a 1972 enquanto deteve o título. Depois, a derrota no match pelo Campeo-nato Mundial em 1972 “bateu” e as coisas deram terrivelmente errado. A perda do tí-tulo mundial não o afeiçoou às autoridades soviéticas e ele sofreu a perda de privilégios e restrições por não ter conseguido manter a Coroa do Xadrez. Seu segundo casamento terminou em divórcio: “Éramos dois bispos de cores opostas”, Boris dizia. Na Semifinal de Candidatos em 1974, Spassky estava tentan-do recuperar a chance de uma revanche com Bobby Fischer quando deparou-se com o jo-vem Anatoly Karpov. Karpov venceu o con-fronto e tirou Spassky do ciclo. Eu era muito jovem naquela época para seguir os eventos de xadrez de perto, mas aquele match me pareceu muito estranho. Para o confronto de 1972 com Bobby, Efim Geller foi o segundo de Spassky e já o havia sido por muito tempo. Então, antes de seu confronto com Karpov em 1974, Geller mudou e repentinamente passou para a equipe de Karpov. Aquilo deve ter sido um golpe duro para Spassky, pois seu repertório de aberturas seria conhecido por Karpov.

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Boris continuou a competir nos ciclos do Campeonato Mundial. Em 1976, ele não conseguiu se classificar no Interzonal de Manila para o evento de Candidatos, mas, devido à desistência de Bobby, Boris obte-ve uma colocação no torneio de Candidatos no lugar de Bobby. Com essa oportunidade, Boris batalhou até o match das Finais de Candidatos de 1977-1978 em Belgrado, per-dendo para Victor Korchnoi. Em seu match de Candidatos de 1980 com Lajos Portisch, os enxadristas lutaram até um impasse em 7 a 7. Portisch avançou graças a mais vitó-rias com as Pretas. No Interzonal de Toluca de 1982, Boris não conseguiu se classificar por meio ponto, enquanto que, no torneio de Candidatos de 1985 em Montpellier, ele obteve um placar de 8/15 e não conseguiu avançar. Seus melhores dias de sucesso em competições estavam ficando para trás.

Embora Boris não tenha desertado da União Soviética em si, fez-se para ele uma rara exceção: ele obteve permissão para se mudar para a França com sua terceira es-posa, podendo viajar livremente como lhe aprouvesse. Ele fez um acordo especial com as autoridades soviéticas: em troca desta condição especial, Boris seria apolítico e não falaria publicamente sobre a URSS, e muito menos de qualquer forma depreciativa. Ele não seria um refusnik* nem um “desertor”. Tornar-se-ia apenas um pacato cidadão rus-so vivendo e trabalhando no exterior.

Minha primeira partida em torneio con-tra um Campeão Mundial foi em 1980 contra Boris Spassky no torneio de Tungsram em Baden, Viena. Minha segunda partida contra um Campeão Mundial, Mikhail Tal, ocorreu um mês depois na Olimpíada de Malta de 1980. Lembro-me muito bem de algumas coisas sobre o evento em Baden. Tungsram era um fabricante de lâmpadas elétricas lo-calizado na Hungria, mas era mais fácil para a empresa organizar um evento, convidar

enxadristas e obter aprovações oficiais na Áustria do que na Hungria. Na época, isso me pareceu realmente muito estranho. Uma esquisitice digna de um episódio do seriado Além da Imaginação, por assim dizer. Eviden-temente, em países comunistas aconteciam todos os tipos de coisas econômicas absur-das com frequência e isso, portanto, não era de surpreender, mas deixou uma forte im-pressão em mim.

Na cerimônia de abertura, tudo cor-reu bem: os discursos corretos, os sorteios, as bebidas e aperitivos, tudo como o pro-gramado. Houve uma calmaria enquanto as pessoas circulavam e falavam umas com as outras. Descobri-me andando pelo prédio e cheguei a “uma sala de biblioteca semelhan-te a um gabinete” que achei muito atraente. Sentei-me à escrivaninha e pareci entrar em um estado de espírito meditativo maravi-lhosamente tranquilo. Foi incrível. Senti-me tão relaxado e em casa nesta sala agradável. Mais tarde, fui “perturbado” quando um dos organizadores veio me informar que íamos embarcar no ônibus que nos levaria de vol-ta ao hotel. Percebendo o quanto eu parecia tranquilo, ele disse: “Ah. Então você gosta do gabinete de Beethoven”. Ao que parece, eu estava sentado na cadeira da escrivaninha da grande personalidade, completamente es-quecido de minhas circunstâncias. Só sei que era uma sala maravilhosa para inspiração.

Outra lembrança deste evento fez com que conhecesse melhor os honorários que os Grandes Mestres recebiam. (Lembre-se de que eu estava recém entrando na arena naquela época.) Em muitos eventos em que joguei, os prêmios eram pequenos, pois os organizadores davam garantias ou ho-norários iniciais aos enxadristas que eram negociados individualmente. O(s) título(s) e o rating de um enxadrista determinavam grande parte de seu salário, é claro, mas po-deria ainda haver uma grande discrepância entre dois enxadristas com título e rating semelhantes, cabendo aos enxadristas ne-gociarem suas próprias condições.

* N. de T.: Designação para judeus russos aos quais era recusada a permissão para emigrar da União Soviética.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 103

Infelizmente, havia acontecido uma confusão nos honorários pagos. Os organi-zadores deram a Boris Spassky o envelope para Alexander Beliavsky e, é claro, Beliavsky recebeu o envelope para Spassky. Como Spassky era um ex-Campeão Mundial, po-deríamos pensar que o envelope dele era o maior dos dois. Mas não. Beliavsky é que saía perdendo em consequência dos envelopes trocados. Os organizadores foram colocados na desconfortável posição de pedir aos en-xadristas que trocassem seus envelopes en-tre si. Aí Boris fincou pé. Como ex-Campeão Mundial, queria receber o mesmo que Belia-vsky. Embora a diferença não fosse grande, os organizadores ficaram muito desconten-tes com Boris. Afinal, ele tinha aceito seu convite e honorário antes do evento. Essas “discussões” pareceram durar uma boa parte do torneio. No fim, não fiquei sabendo como as coisas se resolveram.

Desde o momento em que nos conhe-cemos, Boris me pareceu uma pessoa ex-tremamente amigável e divertida. Sorrisos rápidos e frequentes iluminavam todo o seu rosto. Eu gostei dele desde que fomos apre-sentados. Ele mexia as peças com um movi-mento suave, fácil e experiente que fez eu me lembrar de Paul Keres. Ele parecia ser tudo o que se quer em um Campeão Mundial.

Boris Spassky-Yasser SeirawanBaden, 1980

Defesa Caro-Kann

1.e4 c6Neste ponto em minha carreira, eu ti-

nha três defesas básicas para 1.e4: minha favorita, a Defesa Pirc/do Rato/Moderna, que consistia em 1...g6 e 2...d6 (e pode ser jogada em qualquer circunstância, não ape-

nas numa abertura do peão do rei); a Defesa Francesa 1...e6; e a Caro-Kann 1...c6, minha escolha para esta partida.

Ao jogar contra 1.e4, devemos pensar as defesas em dois tipos. No primeiro, estão aquelas que atacam o peão e4 diretamen-te no início da partida. Aí a Escandinava, a Alekhine, a Francesa, a Petrov e a Caro-Kann vêm à cabeça. O segundo tipo não consiste em atacar diretamente o peão em e4; em vez disso, as Pretas contornam o peão e4. Aqui, as Defesas Siciliana, Pirc e Ruy López Fechada vêm à cabeça. De modo geral, as defesas que procuram “atingir” cedo o peão e4 são as mais concretas, em termos de linhas de força. Aquelas que dançam ao redor da questão do peão e4, tais como a Siciliana, tendem a ter um amplo escopo de planos flexíveis.

A Caro-Kann me atrai porque é uma daquelas defesas em que as principais linhas de jogo são claras e fáceis de aprender. En-xadristas amadores parecem evitar a Caro--Kann devido a sua fama de enfadonha ou porque as posições resultantes não são su-ficientemente dinâmicas ou excitantes. Uma pena. Praticamente todo Campeão Mundial, em algum momento, jogou a Caro-Kann. Tentar convencer as pessoas a usar a Caro--Kann faz-me lembrar de uma piada de Tal:

“Em uma de suas partidas, ele estava em uma situação de ter que vencer e jogava com as Pretas. Ele escolheu a Defesa Caro--Kann, mas só conseguiu obter um empate. Quando um repórter indagou sobre a es-colha de uma abertura tão discreta e algo afiado como a Defesa Siciliana, Tal respon-deu: ‘Uso a Defesa Siciliana quando preciso de um empate, mas, quando quero ganhar, uso a Defesa Caro-Kann!‘” – Grande Mestre Greg Serper, Chess Life (Setembro de 2007, página 33).

Até aqui estou em terreno firme...2.d4 d5 3.Cc3 dxe4 4.Cxe4 Bf5

Meu lance de linha principal predile-to. Outros usuários da Caro-Kann, incluindo Anatoly Karpov, preferem ...Cd7, enquanto a

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opção de David Bronstein, 4...Cf6, me atrai de vez em quando.5.Cg3 Bg6 6.Cf3

Não é a linha mais exigente. Hoje, dé-cadas depois, a linha essencial continua sendo o “Tratamento de Spassky”, 6.h4 h6 7.Cf3 Cd7 8.h5 Bh7 9.Bd3 Bxd3 10.Dxd3 e6, posição que alcancei em muitas ocasiões. O texto, que não inclui “o enfraquecimento” do peão h2, tenta dar às Brancas uma van-tagem nas posições resultantes baseada no “espaço”. O peão em d4 vai controlar mais casas do território do adversário do que o peão em e6. Não é muita superioridade das Brancas, mas uma espécie de vantagem. Portanto, da perspectiva das Pretas, se elas puderem jogar ...c6-c5 e trocar seu peão em c6 pelo peão em d4, tirarão a vantagem de espaço das Brancas e, ao menos, equilibra-rão a partida.6...Cd7 7.Bd3 e6 8.0-0 Cgf6 9.c4 Be7 10.Bf4 0-0 11.Bxg6

Pergunta difícil de responder: que lado se beneficia mais com essa troca? Por um lado, os peões dobrados em g são uma fraqueza. A estrutura da ala do rei das Pretas perde flexibilidade, e as Brancas ganham a casa g5 para que um cavalo seja posiciona-do na zona do adversário e perto do objeti-vo: o xeque-mate. Isso significa que existem chances de ataque latentes para as Brancas na posição resultante. Por outro lado, as Pre-tas ganham espaço (ar) para seu rei (uso da casa h7) sem perder um tempo. Isso pode ser importante para a batalha de meio-jogo, e, finalmente, mesmo que você queira cha-mar os peões dobrados em g de fraqueza inflexível ou não, o rei das Pretas tem muitos guardas a seu redor, o que é uma coisa boa.11...hxg6 12.De2 Db6! (Diagrama 36)

Uma importante mudança de planos. Em vez de jogar o usual ...c6-c5, o texto an-tevê um plano de desenvolvimentos em espera. Minha intenção é vigiar o peão em d4 atentamente, expandir-me pela ala da dama e fazer qualquer troca no centro que aparecer no caminho.

DIAGRAMA 36. Jogam as Brancas

13.Tfd1 Tfd8 14.b3 a5! 15.Ce4 Cxe4 16.Dxe4 a4! 17.Tab1 axb3 18.axb3 Ta2!

Até aqui, as coisas andaram como num sonho: troquei um par de peças menores, não existem problemas importantes com meu rei e meu último lance, ativo e bom, fará as Brancas trocarem mais peças.19.h3 Tda8 20.Be3 Cf6 21.Df4 Ch5 22.De4 Cf6 23.Df4 ½-½

Empate proposto por Boris. Fiquei ab-solutamente encantado com um “empate sólido” de Pretas contra um ex-Campeão Mundial em minha primeira partida.

Depois das longas discussões sobre honorários, Boris e Alexander Beliavsky divi-diram o primeiro lugar e honrarias máximas com os impressionantes placares de 10½/15. Boris não sofreu derrota e venceu sua parti-da individual contra Beliavsky, levando o tro-féu. Os resultados finais deixaram-me ainda mais contente com meu sólido empate.

Nossa segunda batalha juntos ocor-reu no evento Phillips & Drew em Londres, 1982. Foi um torneio muito forte que me-xeu muito comigo. Venci seis partidas, in-clusive, uma contra Anatoly Karpov e per-di três, tirando o terceiro lugar. Em minha partida contra Boris tive, triste dizer, um desempenho realmente ruim, pavoroso.

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Preparem-se – os que têm estômago forte não terão problemas, mas os que possuem um aparelho digestivo sensível são aconse-lhados a saltar esta partida.

Boris Spassky-Yasser SeirawanLondres, 1982

Defesa Caro-Kann

1.e4 c6 2.d4 d5 3.e5A Variante do Avanço da Caro-Kann

tem um história tumultuada, com opiniões categóricas expressas com frequência. As Brancas “desperdiçam” tempo para avançar no centro, sem atacar coisa alguma. Diferen-te, por exemplo, do que ocorre na Alekhine e em algumas versões da Defesa Francesa, 3.e5 não ataca um cavalo em f6 e o terceiro lance das Brancas pode facilmente parecer um desperdício. As Pretas usarão seu tempo extra a seu favor para se desenvolverem rapi-damente e contra-atacar o centro avançado das Brancas, esperando ficar com a iniciativa ao longo do caminho. As Brancas pretendem controlar a partida mantendo seu centro avançado e a vantagem de espaço que o acompanha ou expulsando as Pretas do ta-buleiro caso tentem minar o centro das Bran-cas a qualquer custo. As Brancas também esperam que seu peão em e5 favoreça um ataque na ala do rei ou apenas lhes permita jogar uma partida longa e mesmo um final, onde o peão avançado favorece as Brancas por manter uma constrição de longo prazo sobre as peças pretas.

É interessante assinalar que os Gran-des Mestres mais dinâmicos da atualidade consideram que a Variante do Avanço ofe-rece as melhores chances de as Brancas ga-rantirem uma vantagem na abertura contra a Caro-Kann.

3...Bf5!Como todos os usuários da Defesa

Francesa sabem, sua defesa predileta tem apenas uma desvantagem: o bispo em c8. Desenvolvê-lo antes de definir o centro é o sonho do jogador da Defesa Francesa. Sem dúvida, o que poderia ser mais doce? Resol-ver todos os nossos problemas de abertura em apenas três lances.4.h4!?

Um lance muito difícil de tentar expli-car. Nem sei se sou capaz. A teoria básica dela diz mais ou menos assim: o peão avan-çado das Brancas em e5 restringe o desen-volvimento natural da ala do rei das Pretas e as Brancas esperam ser capazes de criar um ataque na ala do rei graças à sua influência. Com o texto, as Brancas desejam fixar a es-trutura de peões na ala do rei. Uma vez fixa, as Brancas podem então posicionar suas pe-ças nas casas que controlam. Essa é a teoria. Realmente, parece ridículo avançar o peão de h2, tendo recém avançado os peões do centro. As Brancas estão movendo apenas os peões.4...h5!?

Acompanhando o programa das Bran-cas. Boris obtém a casa g5; eu tomo a casa g4. Bastante justo. Observe que, dessa for-ma, as Pretas também mantêm o posto f5 avançado para o bispo. Mais uma vez, um acordo justo para ambos os jogadores.

Em partidas posteriores, eu tentava pegar meu bolo e comê-lo também. Isto é, eu jogava para manter o controle sobre a casa g5 com 4...Dd7, a fim de deter o avan-ço g2-g4. A ideia seria 4...Dd7 5.c4 h6!? 6.Cc3 e6, quando as Pretas disponibilizaram a casa h7 para seu bispo e não entregaram a casa g5. Elas estão prontas para brigar no centro. Uma ideia semelhante é jogar 4...Dc8, man-tendo a casa d7 livre para o cavalo em b8.

Finalmente, outra linha interessante de jogo resulta de 4...h6, preparando um possível recuo para a casa h7. As Brancas são praticamente forçadas a continuar com 5.g4, mas então, as Pretas podem demonstrar a

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flexibilidade de sua posição com 5...Bd7! (5...Be4 6.f3 Bh7 7.e6! é um sacrifício de peão difícil de ser encarado pelas Pretas) 6.h5 e6, transpondo-a para uma posição Francesa Avançada onde as Brancas têm um ataque muito acelerado em andamento pela ala do rei. Mas não está claro que todos esses tempos tenham sido um sábio investimen-to, pois as Pretas farão o roque na ala da dama e o impressionante avanço pela ala do rei pode simplesmente falhar e errar o alvo completamente.5.c4 Bxb1??

Suspiro. Mal acredito que fiz esse lance. No que eu estava pensando? Constrangedor de dizer, sei exatamente o que eu estava pensando: eu achava que poderia ganhar um peão. Em resumo, eu tive um delírio tá-tico realmente ridículo. Dito isso, havia tam-bém um elemento de querer “punir” as Bran-cas por terem feito tantos lances com peões.

Uma vez que não há “punição” vin-doura, não havia motivo para abrir mão de meu bom bispo em f5 por um cavalo b1 não desenvolvido (doloroso imaginar que eu realmente fiz essa troca). Talvez o segundo ponto de interrogação seja excessivamente severo, pois não perco peças após esse lan-ce, mas eu realmente obtenho uma posição estrategicamente morta sem necessidade.6.Txb1 e6

Não o grandioso “ganho de um peão” que eu tinha antevisto. Meu plano era 6...Da5+ 7.Bd2 Dxa2, capturando um peão e desafiando as Brancas a fazer alguma coi-sa a respeito. Se as Brancas jogarem 8.Bc3, pretendendo encurralar minha dama, en-tão 8...dxc4 é minha salvação, pois assegu-ro a casa b3. Então, em minha imaginação, começo a ver um problema se construindo. Continuando a linha, as Brancas poderiam jogar 9.b3, mais uma vez ameaçando Bf1xc4 (ou b3xc4) e Tb1-a1, encurralando minha dama. Eu seria forçado a tomar novamente 9...cxb3, longe de ganhar um peão, eu te-ria devorado três! Depois as Brancas jogam

10.Bd3 e, para salvar minha dama, preciso jogar 10...b2 (Diagrama 37).

DIAGRAMA DE ANÁLISE 37. Jogam as Brancas

De nosso diagrama de análise, eu agora vi 11.Ch3 ou 11.Ce2 e não queria fazer mais nada com a linha. As Pretas não têm desen-volvimento e as Brancas estão prontas para salvas de tiros no rei das Pretas com e5-e6 e também muito mais. Na verdade, se retor-narmos para 6...Da5+ 7.Bd2 Dxa2, também há forte justificativa para o sacrifício do po-deroso peão em e6! Graças a seu controle so-bre a casa g5, as Brancas estão prontas para o desenvolvimento natural Cg1-f3-g5 e Bf1-d3, e domínio completo. Enquanto meu rei é sa-queado, tento manter o peão de a2 como mi-nha grande recompensa? Ridículo!

Percebendo que toda a minha linha de jogo era um jarro de esterco, vi meu âni-mo cair e joguei mal... No post mortem, per-guntei a Boris se ele pretendia jogar 8.e6, sacrificando um segundo peão ou não. Sua resposta foi: “Você quer dizer depois de 6...Da5+ 7.Bd2 Dxa2? Eu só vi 8.Th3! Eu não ganho sua dama?” Também não vi isso. Sus-piro novamente.7.a3!

Não, não se trata de Boris tentar sal-var seu peão em a2, na verdade ele ficaria

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contente em sacrificá-lo. Esse lance foi para prevenir ...Bf8-b4+, o que ajudaria as Pretas a trocar peças, reduzindo assim a influência do centro das Brancas.7...Cd7 8.Cf3 g6?

Terrível. As pretas desperdiçam um tempo inteiro para criar ainda mais debili-dades na ala do rei. Embora não haja muita coisa boa a dizer sobre a posição das Pretas após 8...dxc4 9.Bxc4 Cb6 10.Bd3 Ce7, pre-tendendo ...Ce7-f5, ...Cb6-d5 e ...Dd8-d7, eu poderia tapar alguns buracos em minha po-sição e propor uma boa briga. O texto passa longe da chave da posição.9.Bg5 Be7 (Diagrama 38)

DIAGRAMA 38. Jogam as Brancas

10.cxd5!E esta é a chave óbvia e simples. No

diagrama, é fácil ver que as Brancas têm uma boa dianteira no desenvolvimento, o par de bispos e uma cunha central podero-sa. Todos são boas vantagens. Mas elas pre-cisam transformar essas vantagens em algo concreto e o modo adequado de fazer isso é abrir a posição pela troca de peões. Por isso, essa troca, abrindo a coluna c, favorece muito as Brancas, por isso que eu deveria ter jogado 8...dxc4, como mencionado acima.10...cxd5 11.Bd3 Tc8 12.0-0 Rf8

A posição das Pretas é tão humilhante quanto parece. As Brancas podem pratica-mente vencer a partida em qualquer uma das alas.13.Tc1 Txc1 14.Dxc1 Rg7 15.Df4 Bxg5 16.Cxg5 Ch6 17.Tc1! (Diagrama 39)

DIAGRAMA 39. Jogam as Pretas

Sem dúvida, minha posição está sendo dominada e as coisas podem não ter mais conserto, mas minha “resistência” agora en-tra direto na categoria de “patética”.17...Db6?

Posicionando mal a dama. Por pior que estejam as coisas, e elas estão muito ruins, as Pretas deveriam tentar 17...Cf8, para depois jogar ...Cf8-h7 e desafiar seu robusto semelhante na casa g5. Nesse caso, as Pretas também poderiam aspirar jogar ...Th8-e8-e7-c7, desafiando a coluna c. Tudo bem, eu desprezo minha posição, mas era minha obrigação oferecer a me-lhor resistência que pudesse.18.b4 Te8 19.Tc3!

As Brancas não precisam fingir, mas podem telegrafar abertamente seus lan-ces. O texto está preparando para 20.Cxf7 e 21.Bxg6, quando a torre desliza ao longo da terceira fileira com efeito decisivo.19...Te7?

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Evidentemente, não era o meu dia. Minha última chance era 19...Cf5, quando recomenda-se rezar.20.Tc8!

Simples e decisivo. É como se todas as minhas peças estivessem desnorteadas. E todas estão. As Pretas estão perdidas.20...Cg8 21.g4!

Eu achava que esse era um lance muito forte e queria abandonar a partida. Mas de-sistir tão cedo? Eu não queria imortalidade num livro de miniaturas, e assim prossegui tropeçando.

Na sala dos comentaristas, a combina-ção 21.Bxg6!! fxg6 22.Te8! foi identificada e devo admitir que aquele poderoso lance era ainda melhor do que o texto.21...hxg4 22.h5 f5

Eu não gostava do meu papel no rotei-ro que Boris tinha escrito depois de 22...gxh5 23.Cxf7 Txf7 24.Dg5+, mas o texto também não ajuda.23.exf6+ Cdxf6 24.De5!

Muito bem jogado.24...g3 25.Txg8+! Rxg8 26.Dxf6 gxf2+ 27.Rg2 Dc7 28.Dxg6+ Rf8 29.Df6+ 1-0

Eu esperava agora estar fora da “zona de perigo de miniatura a ser publicada” e abandonei a partida. Este plano, pelo me-nos, parece ter funcionado. (Tinha que ter algo de bom nesse monte de estrume.)

Não me acontece com muita frequên-cia, mas, de vez em quando, sou totalmente esmagado, como vocês acabaram de tes-temunhar. Ai! O que realmente me irritou a respeito desta derrota é que, depois de meu erro na abertura 5...Bf5xb1, um lance que eu sabia que tinha que ser ruim mesmo enquan-to o fazia, não me esforcei para salvar a par-tida; em vez disso, eu pareço ter jogado mal o tempo inteiro. Não há nada de errado em perder uma boa briga. Apenas lembre-se de lutar bem. E, embora eu seja o primeiro a ad-mitir que Boris é um dos maiores atacantes na história do xadrez, mal o pus à prova...

Voltaremos ao torneio de Phillips & Drew de 1982 em nosso próximo capítulo.

O Interzonal de Toluca de 1982 foi mi-nha primeira tentativa no ciclo de três anos do Campeonato Mundial. Eu me classifiquei pelo Zonal dos Estados Unidos e fui com meu segundo/técnico, o Grande Mestre Lubomir Kavalek, bem preparado e muito animado. Meu Interzonal apresentava seis enxadristas do Oriente: contra os quatro soviéticos, Boris Spassky, Lev Polugaevsky, Arthur Yusupov e Yuri Balashov, obtive um placar de 2-2; contra a dupla húngara de Lajos Portisch e András Adorján, ambos Candidatos anteriores, con-segui ganhar. Com um placar de 4/6 contra os favoritos do pré-torneio, eu achava que a classificação estava garantida. Mas não! Eugene Torre das Filipinas, primeiro Grande Mestre da Ásia, surpreendeu-nos a todos, derrotando-me no caminho de sua classifica-ção e chegando e dividindo o primeiro lugar com Lajos Portisch. Foi um resultado eletri-zante para os fãs asiáticos de xadrez. Perdi a classificação por um ponto. Isso significava uma espera de três anos para outra tentativa.

Boris Spassky-Yasser SeirawanInterzonal de Toluca, 1982

Defesa Caro-Kann

1.e4 c6 2.d4 d5 3.Cc3 dxe4 4.Cxe4 Bf5 5.Cg3 Bg6 6.Cf3 Cd7 7.Be2?!

Um lance não muito inspirado e certa-mente não superior a 7.Bd3, que Boris jogou em nossa partida em Baden. Uma olhada na posição deixa as coisas claras: o bispo em g6 é uma peça excelente e deve ser trocada.7...e6 8.0-0 Bd6 9.Te1 Cgf6 10.Bf1!?

Eu estava tendo dificuldade para se-guir os lances de Boris. Eu tinha certeza de que ele queria jogar 10.Ch4 e ganhar o par

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de bispos. Em resposta, eu queria jogar para ...Bd6-f4 para trocar dois bispos. O texto pa-rece um desperdício de tempos.10...Dc7 11.c4 0-0 12.Bd2 c5! (Diagrama 40)

DIAGRAMA 40. Jogam as Brancas

Como mencionado anteriormente em minhas notas sobre as defesas para 1.e4: na principal 4...Bc8-f5, linha clássica da Caro--Kann, quando as Pretas fazem esta saída libertadora, elas eliminam o peão em d4 e tiram qualquer vantagem de espaço que as Brancas possuíam. Sem dúvida, com um peão central a mais em e6, a vantagem pode facilmente passar para o segundo jogador, como veremos a seguir.13.Bc3 Tfd8!? 14.De2

Rejeitando meu desafio. Eu esperava induzir o avanço 14.d5 exd5 15.cxd5 Cb6!? 16.Bxf6 gxf6 17.Ce4 Rg7 18.Cc3 c4, quando eu queria isolar e destruir o peão em d5 das Brancas.14...cxd4 15.Cxd4 a6! 16.Ted1 Cc5

As Pretas ficaram em vantagem e po-dem pensar sobre como jogar pela vitória.17.Cf3 Cce4 18.Be1 Cxg3 19.hxg3

Ironicamente, dessa vez são as Brancas que têm peões dobrados em g.19...e5

Essa parecia a maneira mais consequen-te de melhorar minha posição. O problema é

que as Brancas têm um sacrifício de peão que ajuda Boris a simplificar. Ele imediatamente prosseguiu com o sacrifício. Vendo em retros-pectiva, as Pretas podem e deveriam aumen-tar a tensão com 19...a5! para prevenir b2-b4. O plano das Pretas seria avançar lentamente com 20...Bc5 e 21...Ce4, quando as Brancas têm um percurso difícil para a igualdade.20.c5! Bxc5

No caso de 20...Dxc5?! 21.Tac1 Db6 22.Cxe5, as Brancas se saem bem.21.Dxe5 Db6 (Diagrama 41)

DIAGRAMA 41. Jogam as Brancas

22.b4!Antes desse lance, eu estava bastante

otimista em relação à minha posição. As Pre-tas ameaçam 22...Ce4, e, se as Brancas não souberem o que fazer e jogarem 22.Ch4?, então 22...Bxf2+ 23.Bxf2 Dxf2+ 24.Rxf2 Cg4+ ganha um peão. Eu não tinha certeza do que Boris iria fazer quando entendi que o texto poderia levar as Brancas a um final jogável.22...Txd1 23.Txd1 Bxb4 24.Db2 Bc5 25.Dxb6 Bxb6 26.Ce5 Td8?

Isso ajuda muito as Brancas. Eu deveria ter jogado para conservar as peças, espe-cialmente meu bispo em g6. A melhor linha era a manobra incomum 26...Bc2! 27.Tc1 Ba4! 28.Bc4 Be8!, a qual parece um conceito muito estranho, pois as Pretas estão recu-

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ando um bispo bem posicionado. Contudo, nesse caso, as Brancas terão que lutar com um peão a menos sem o benefício do par de bispos. Com um saudável peão a mais, eu di-ria que minhas chances de vitória são boas. O bispo das Brancas em e1 deveria ter me alertado para a mesma possibilidade para as Pretas...

Uma segunda tentativa, ainda superior à da partida, era 26...Bh5 27.Tb1 Bc7 28.g4 Bxe5 29.gxh5 b5, com um final semelhante ao que foi jogado mas com chances de vitória muito melhores graças à presença das torres.27.Txd8+ Bxd8 28.Cxg6! hxg6 29.a4!

Agora acordei para a percepção de que, com dois bispos, as Brancas se mantêm com bastante conforto. Uma oportunidade perdida...29...Bb6 30.Bc4 Bc5 31.Rf1 Rf8 32.Re2 Re7 33.f3 Ce8 34.Bd5?!

34.a5 era mais forte, limitando as ações na ala da dama.34...b5 35.axb5 axb5 36.Ba5 Cf6 37.Bb3 Ch5 38.Bc7 g5 39.g4 Cf4+

Aceitando o empate, mas não é real-mente possível que as Pretas progridam mantendo seu cavalo.40.Bxf4 ½-½

Nosso encontro seguinte foi em Lina-res, em 1983, um torneio que marcou tanto a mim quanto a Boris para sempre de ma-neiras muito diferentes. De minha parte, eu tive um problema com o organizador Luis Rentero desde o primeiro dia. Minha concor-dância em participar exigia reembolso para viagem aérea desde minha casa em Seattle até Madrid, além do reembolso para a via-gem de Madrid a Linares; despesas com hotel e refeições durante a estadia em Linares; e honorário em torno de 1.500 dólares. Os fun-dos para premiação eram muito modestos, pois a maior parte do dinheiro ia para os ho-norários dos melhores enxadristas. Aceitei o convite pela simples razão de que Linares es-tava adquirindo fama de ser um dos eventos

mais fortes do ano. Naquele ano, o Campeão Mundial Anatoly Karpov estava jogando, e eu queria participar das competições as mais fortes possíveis, independentemente de mi-nha modesta remuneração. Claro.

Mas pareceu-me que Linares em 1983 foi um torneio em que “tudo deu errado desde o sinal de largada”. Quando pedi ao Sr. Rentero meu reembolso pela viagem aé-rea, apresentei à sua equipe os bilhetes de passagem e achei que isso seria uma coisa simples. Eu tinha comprado uma passagem com desconto de Seattle a Nova Iorque e Madrid e volta e, na realidade, “economizei” algum dinheiro para os organizadores por ter reservado a passagem com muita ante-cedência. Não tão rápido. O Sr. Rentero me disse que ele tinha chamado seu agente de viagens e tinha conseguido uma passagem duzentos dólares mais barata para Madrid. O que? Eu sabia que era impossível porque eu tinha usado uma agência que tinha os melhores descontos. Em segundo lugar, mesmo que tal proeza fosse possível, o que eu tinha a ver com isso? Eu paguei uma quantia com a promessa de que seria reem-bolsado.

Houve alguns dias de barganhas, e eu estava realmente ficando irritado. Por fim, conseguimos esclarecer uma ideia errada: eu morava em Seattle, Washington. No Es-tado de Washington, o Sr. Rentero obteve uma oferta de seu agente de viagens para uma passagem de Washington DC (Distrito de Columbia), capital dos Estados Unidos, na costa leste e, portanto, muito mais perto de Madrid. Consegui apontar este simples erro e que, na verdade, eu morava a milhares de quilômetros de Washington DC, no Estado de Washington.

Achei que o problema estava resolvi-do. Absolutamente não. O Sr. Rentero recu-sou o reembolso “completo” e me ofereceu “rachar a diferença” entre o que ele estava disposto a pagar e o que eu já tinha pago. Fiquei chocado. Que porcaria é essa? Acei-tei sua “oferta de meio-termo” e deixei claro

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 111

ao Sr. Rentero que aquele seria meu último evento em Linares.

Compartilhei com meus colegas mi-nhas infelizes “negociações”. Fiquei ainda mais surpreso quando todos me conta-ram que tinham tido “problemas” com o Sr. Rentero. Ele parecia capaz, por capricho, de distribuir um prêmio em dinheiro para uma partida de que gostou ou “multar” enxadris-tas no mesmo dia por não se envolverem em uma luta completa. Seu único critério parecia ser o número de lances dados em uma partida. Vença uma partida curta e ganhe uma gorjeta; empate uma partida curta, mesmo com um xeque perpétuo, e ganhe uma multa. Essas gorjetas e multas não constavam dos acordos e os enxadris-tas afetados ficavam compreensivelmente encantados ou furiosos, mas sempre confu-sos. O mais impressionante era que isso vi-nha ocorrendo há anos. Mas ano após ano, os enxadristas que tinham ficado furiosos com o Sr. Rentero voltavam educadamente no ano seguinte para lhe puxar o saco. Bom, tudo bem, eu disse: “Malditos sejam todos”. Os enxadristas e o Sr. Rentero se mereciam. Quanto a mim, deu para Linares.

Mesmo escrevendo isso agora, muitos anos depois, ainda fico zangado. Evidente-mente, o dinheiro não tinha tanta importân-cia – era o princípio de como eu era tratado que me enfurecia. E agora, ao hotel de Lina-res, onde todos os enxadristas se hospeda-ram. O Hotel Anibal era um desses prédios ladrilhados muito comuns na Espanha – ha-via ladrilhos por toda parte. Ladrilhos nos pisos, nos banheiros, nas paredes, no forro... você imagina. Ladrilhos podem ser bonitos e enfeitar. No verão são adoráveis e refle-tem o calor; no inverno são frios. Gelados. Meu dormitório parecia não ter calefação e o chão ladrilhado irradiava frio. Peguei um resfriado horrível com uma tosse convulsiva, assim como muitos enxadristas, e o tossir e fungar da cama para o salão de jogos, alia-dos aos prolongados problemas organiza-cionais, fizeram do evento uma experiência

terrivelmente desagradável. O toque final, é claro, foi que joguei muito mal. Eu mal podia esperar que o evento terminasse.

Não tenho certeza se Linares em 1983 foi o pior evento de minha vida (sofri cinco derrotas e apenas uma vitória para terminar quase em último lugar), mas por todos os critérios pelos quais avalio os torneios, foi certamente o pior evento de que participei.

Uau! Uma história de horror para vo-cês. Boris Spassky, por outro lado, teve uma experiência dissonante no extremo oposto – ele venceu tranquilo, sem derrota, meio ponto à frente do Campeão Mundial Anatoly Karpov. Maravilhoso, você diz. Bem, sim e não. Sua vitória teve consequências. Naque-la época, Karpov era o símbolo nacional, o porta-bandeira da “força do xadrez soviéti-co”. Os outros enxadristas pareciam “reveren-ciar” Karpov quando estavam fora da União Soviética. Eu acho que, durante todo o tem-po em que foi Campeão Mundial, de 1975 a 1985, Karpov jamais perdeu uma partida para outro soviético fora da União Soviética. Ele venceu ou empatou todas as partidas contra seus conterrâneos. Sem dúvida, um histórico impressionante, ainda que, atrevo--me a dizer, estatisticamente improvável. Como os soviéticos eram com frequência os enxadristas mais fortes no torneio, passar por toda a formação soviética com um pla-car igual ou positivo era uma excelente fór-mula para êxito no torneio.

Como mencionado, Boris venceu o evento e recebeu um grande impulso co-migo. Ele venceu nossa partida “duas vezes”, ambas em posições perdidas. Na ultima ro-dada, Karpov, de Brancas, precisava de uma vitória contra mim para alcançar Boris. Eu segurei o jogo enquanto o Embaixador So-viético na Espanha observava, aguardando a inevitável vitória de Karpov.

O resto da história é do próprio Boris: “Yasser, estou em grande dívida com você e obrigado. Graças a você, fui o vencedor do torneio. Voltei a Moscou e as autoridades so-viéticas decidiram que, por causa de minha

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112 Yasser Seirawan

vitória em Linares, eu não tinha mais direito a receber meu ordenado de rublos como Grande Mestre. A reação deles fez com que eu tomasse um caminho duro. Mudei-me para a França. Houve um briga muito feia, mas eu estava furioso e não aceitaria um acordo. Eu estava indo embora e isso era tudo. Concordei em não fazer um estarda-lhaço, não falar, não denunciar. Nada. Eu teria uma vida tranquila em Paris. Obrigado. Adeus. Foi o que fiz e como vim morar em Paris. Linares de 1983 foi o evento que de-sencadeou tudo e mudou completamente toda a minha vida.”

Então, como eu estraguei tudo e trans-formei um russo em um francês?

Boris Spassky-Yasser SeirawanLinares, 1983

Defesa Índia da Dama

1.Cf3Novamente com as Pretas, mas, feliz-

mente, Boris estava por ora cansado de nos-sas partidas com a Caro-Kann. A última, em que ele não conseguiu coisa alguma, pode tê-lo feito tentar uma abertura diferente.1...Cf6 2.c4 e6 3.d4 b6 4.Cc3 Bb4

Na época, Kasparov estava populari-zando a “Variante Petrosian” 4.a3, além da ordem de lances 4.Cc3 Bb7 5.a3, uma linha que eu queria evitar. Daí minha escolha.5.Bg5 Bb7 6.e3 h6 7.Bh4 Bxc3+

Naquela época, as principais linhas eram 7...g5 8.Bg3 Ce4 9.Dc2 f5 10.Bd3 Bxc3+ 11.bxc3 d6 12.d5 com aventuras de arrepiar para ambos os jogadores. Como eu preferia as Brancas nas linhas principais, escolhi o texto menos decisivo, o qual, por acidente, poderia facilmente ser transposto.8.bxc3 d6 9.Bd3 Cbd7 10.0-0 De7 11.Cd2!

Uma necessidade. Para tentar obter uma vantagem, as Brancas precisam lutar para controlar a casa e4. O texto prevê a oportunidade de jogar f2-f4 e e3-e4, com uma falange central impressionante. Sem dúvida, se as Brancas alcançassem seu ob-jetivo, as Pretas seriam destruídas. A única maneira de revidar contra esse plano é pela ala do rei.11...g5 12.Bg3 0-0-0

As linhas de batalha foram traçadas; uma luta intransigente está à frente. Os jo-gadores fizeram o roque em lados opostos e farão o máximo para machucar o outro rei.13.c5 (Diagrama 42)

De uma perspectiva estratégica, esse sacrifício é tão natural quanto o sorriso de um bebê. Mas, antes de começarmos a dis-tribuir prêmios de brilhantismo, não vamos nos esquecer que combinações bem-sucedi-das ocorrem porque um erro foi cometido. O que as Pretas fizeram que estava tão errado? Por que elas deveriam ser punidas?

DIAGRAMA 42. Jogam as Brancas

De minha perspectiva, eu estava me perguntando qual ataque seria mais rápido após 13.Da4 Rb8 14.Tab1 h5 15.f3 h4 16.Be1, quando as intenções violentas das Brancas são Tb1-b3-a3, e, no caso de ...a7-a5, sacrifi-car um cavalo contra o peão em a5. Inversa-

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 113

mente, terei algumas dificuldades para “ras-gar” a ala do rei.

Depois do texto, fiquei muito feliz. Não somente por ter um peão a mais, muitíssimo obrigado, mas agora eu tenho o posto avan-çado em d5 para meu cavalo para ajudar a conduzir operações também na ala do rei.13...dxc5 14.Da4 Rb8 15.Tab1 Cd5! 16.Tb3 f5! (Diagrama 43)

DIAGRAMA 43. Jogam as Brancas

E essa também é a razão da minha alegria. Como Robert Byrne gosta de dizer, “Contra-ataque simples e ordinário”. Se eu puder chegar a ...f5-f4 vou, além de ganhar uma peça, abrir algumas linhas contra o rei das Brancas.17.Ba6!?

Com esse lance, Boris queima suas pon-tes e não há retorno. Minha linha principal era 17.e4 Cf4 (17...Cxc3!? 18.Bxc7+ Rxc7 19.Txc3 Rb8 também era interessante) 18.Ba6, quan-do eu não sabia como avaliar a posição. “Dina-micamente equilibrado” ou “ambos os lados têm chances” parecem bons comentários.17...cxd4 18.exd4?

Com esse lance, Boris realmente vai longe demais. É óbvio que 18.Bxb7? Cc5! é um desastre para as Brancas, então elas de-vem tomar o peão em d4, mas com 18.exd4? as Brancas recapturam com o peão errado.

A única linha que me passou pela cabeça foi 18.cxd4 f4 19.Ta3 Db4! quando eu não sofria mate. Na verdade, eu havia contado com isso com a defesa ...De7-b4, de modo que Boris deve ter lido meus pensamentos e pensado: “Não permitirei ...De7-b4 sob quaisquer circunstâncias”. O texto dá uma peça por ameaças fantasmas.18...f4

Obrigado.19.Cc4

É difícil dizer o que as Brancas de-veriam fazer. Depois de 19.Bxb7 Rxb7 20.Cc4, um lance defensivo muito robusto é 20 ...Cb8!, protegendo muitas casas e pre-parando ...De7-e8, desbaratando completa-mente o ataque. Mas permitir que as Pretas mantenham os bispos dificulta muito o ata-que das Brancas.19...Ba8! 20.Bb5

Por algum motivo, esse lance me pare-ceu misterioso. Como as Brancas poderiam estar atacando, por um lado, e ainda assim desperdiçando tempo jogando suas peças de um lado para o outro? É claro, o lance tem um objetivo: as Brancas se preparam para atacar o peão a7 das Pretas.

Neste ponto, mergulhei em longa refle-xão e, quando voltei, comecei a entrar em pâ-nico. Não sei explicar por quê. Permita-me di-zer “fora de forma” para desculpar meu jogo. Nossos predecessores rotulariam esta condi-ção com “Quem muito pensa muito erra”.20...c6?!

Há um erro lógico grave com este lan-ce que só pode ser explicado como pânico. Com meu lance anterior, evitei a troca de bispos; com o texto, eu dou um peão para forçar uma troca de bispo. Hmm.

Passei a maior parte, ou talvez todo o tempo, concentrado no direto 20...C7f6!, preparando uma defesa lateral do peão a7 com minha dama. Depois, 21.Ce5 (21.Ta3?! c6! 22.Bxc6 Bxc6 23.Dxc6 Tc8, seguido por 24...Txc4, vence para as Pretas) 21...Ce4! pa-rece um pouco assustadora à primeira vis-ta, pois a casa c6 parece muito vulnerável.

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114 Yasser Seirawan

Contudo, as Pretas nada têm a temer após 22.Cc6+ (22.Bc6 Cexc3 23.Da6 Cb4 24.Txb4 Dxb4 25.Bxa8 Rxa8 26.Cc6 Da4 vence) Bxc6 23.Bxc6 Dd6, e as Pretas estão vencendo. En-quanto avaliava essa linha/posição, ocorreu--me que seria legal sacrificar uma qualidade e livrar-me do irritante bispo em c6. Portanto, o lance 23...Td6 parecia promissor. Infelizmen-te, 24.Dxa7+ seria um sacrifício disponível para mate. E foi aí que o pânico se instalou. Eu agora “me esqueci” do vencedor 23...Dd6, e só lembrei que o bispo em c6 era assustador e que 23...Rd6 era proibido. Foi com medo de ameaças-fantasma assim que joguei o texto.21.Bxc6 Bxc6 22.Dxc6 Tc8 23.Ca5 Txc6??

Ai, meu Deus. Isso é pura tolice e leva o pânico a um novo extremo. Após a calma 23...Tc7 24.c4 Thc8 25.Da4 Ra8! 26.cxd5 exd5!, as duas peças menores das Brancas estão penduradas e as Pretas estão simplesmente vencendo. Lá se vai minha “primeira vitória”.24.Cxc6+ Rc7 25.Cxe7 Cxe7 26.c4?! (Dia-grama 44)

DIAGRAMA 44. Jogam as Pretas

Chegamos a um final que, embora me-lhor para as Pretas, também é viável para as Brancas. Mas o texto foi impreciso. As Bran-cas deveriam primeiro jogar 26.Bxf4.26...Cc6?!

Retribuindo o favor. Com 26...fxg3! 27.fxg3 Cc6, as Pretas têm uma versão mui-to superior da partida, pois minha estrutura na ala do rei é menos vulnerável ao ataque, ao passo que os peões das Brancas estão dobrados.27.Bxf4+! gxf4 28.Td1 Tf8

Apesar de meus tropeços para chegar a essa posição, ela ainda me favorece muito. O tempo para ambos está se esgotando e a partida começou a ficar tensa.29.Th3 Tf6 30.Th5 e5! 31.dxe5 Cdxe5 32.Td5 Te6!

Apesar de minha escassez de tempo, joguei bem e minha vantagem aumentou.33.h4 f3!

O ataque com 33...Cg4 34.Rf1 Cb4 35.Td1 era tentador, mas preferi o texto por-que minhas peças estão posicionadas com mais harmonia.34.gxf3?

Um lance muito ruim que joga a ques-tão de volta para mim. Minha principal linha era algo como 34.Tf5 fxg2 35.Rxg2 Cxc4, com uma posição superior e chances de vi-tória.34...Cxf3+ 35.Rg2 (Diagrama 45)

DIAGRAMA 45. Jogam as Pretas

35...Cfe5??

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 115

Mistério, misticismo ou magia negra? Não compreendo como não joguei a óbvia 35...Ccd4!, preparando ameaças de xeque--mate (36...Tg6+!) e vencendo imediata-mente. Eu tinha visto 36.Rg3 Tf6? 37.Rg4 e parei de olhar. Se eu tivesse identificado 36.Rg3 Cg1!, ameaçando 37...Cge2+, a his-tória do xadrez teria sido escrita de outra forma. O texto joga fora a segunda chance de vitória.36.c5! b5??

Ignorando completamente o moti-vo do 36o lance das Brancas, que pensei ser apenas uma tentativa de trocar peões. Considerando meu problema de tempo, eu deveria simplesmente forçar um empa-te com 36...Tg6+ 37.Rh3 Cf3 38.Td6 Cg1+ 39.Rh2 Cf3+ e xeque perpétuo. Eu vi essa linha e esse empate durante a partida, mas, em vez disso, sonhei com um peão passa-do na ala dama.37.Td6! Txd6?!

O último lance das Brancas me surpre-endeu e reagi por instinto (ganhando um peão). Talvez 37...Te7 fosse melhor, mas, de-pois de 38.Tdxh6, as Brancas agora podem escolher.38.cxd6+ Rxd6 39.Txh6+ Rd5 40.h5 a5?!

O costumeiro errado último lance do controle do tempo, enquanto me agarro a meu sonho de um peão passado na ala da dama. Envergonhado, fiquei atordoado ao descobrir que minha posição estava perdi-da. Os cavalos simplesmente não podem enfrentar uma torre e peões passados na ala do rei. Nas palavras de Nikolay Minev, “O de-sastre agora está completo”.41.Tf6! Cd8?!

Minha melhor chance, 41...Cg4 42.Tf5+ Cce5 43.Tg5, não teria salvado a partida, mas ofereceria uma defesa mais teimosa.42.h6! Cef7 43.h7 a4 44.Rg3 Ch8 45.Tb6 Rc4 46.a3 Cdf7 47.Rf4 Rc5 48.Tb8 Rd6 49.Txb5 Re6 50.Ta5 Cg6+ 51.Re3 Rf6 52.Txa4 Rg7 53.Ta7 1-0 (Diagrama 46)

DIAGRAMA 46. Jogam as Brancas

Uma daquelas derrotas realmente mui-to dolorosas sofridas durante o pior evento de sua vida. Essas partidas casam perfeita-mente com esses eventos.

Antes de deixar Linares, 1983, vamos acrescentar a gota d’água que mostrou como os deuses estavam zangados comigo. Por algum motivo, em 1982/83 tive vontade de escrever um livro. Um romance/aventura. Surpresa! A história me ocorreu em uma tor-rente de inspiração e me vi escrevinhando por horas seguidas durante vários meses. Comprei um dos cadernos espiralados po-pulares entre universitários para escrever minha história. Preenchi o primeiro, depois outro e, por fim, completei meu romance com cinco cadernos espirais grossos de ta-manho A4. Juntos, eles formavam um pa-cote bem volumoso, e até este evento eu os estivera transportando em minha “baga-gem de mão”. Mas agora que o romance es-tava concluído, pareceu-me sensato colocar os volumosos cadernos em minha bagagem de despacho no voo que saía de Madrid. Mi-nha bagagem do voo de Madrid nunca che-gou. Fui indenizado pela seguradora pela mala extraviada, mas meu romance se per-deu. É claro que, como ele foi escrito todo à mão, eu não tinha cópias... (Levei 22 anos para retomar o romance.)

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116 Yasser Seirawan

A seguir, retornamos mais uma vez ao torneio de superestrelas de Nikšić para ana-lisar a décima rodada de nossa rivalidade pessoal.

Yasser Seirawan-Boris SpasskyNikšić, 1983

Gambito da Dama Recusado

1.d4Como meu manuseio das peças pre-

tas contra Boris não tinha trazido muito sucesso, devo dizer que foi bom jogar com as Brancas para variar. Tenho certeza de que Mikhail Tal sentiu a mesma coisa durante nossa quinta partida.1...Cf6 2.c4 e6 3.Cf3 d5 4.Cc3 Be7

Nesta época, o Campeão Mundial Anatoly Karpov jogava o Gambito da Dama Recusado e desafiava qualquer um a furar suas defesas. Poucos eram capazes. Por con-seguinte, em vez de adotar o caminho mais trilhado com 5.Bg5, optei por uma impor-tante variante lateral de Boris do match do Campeonato Mundial de 1972.5.Bf4 0-0 6.e3 b6?!

Isso conduz a partida ao GDR onde o bispo revela-se mais favoravelmente posi-cionado na casa f4 do que em g5. A teoria corretamente considera 6...c5 praticamente obrigatória em termos de luta por igualdade.7.cxd5 exd5!? (Diagrama 47)

Em princípio, as Pretas geralmente procuram trocar um par de peças por cau-sa do que é percebido como um déficit de espaço e permitir um jogo livre. Eu espe-rava 7...Cxd5 8.Cxd5 exd5 9.Tc1 quando, segundo a teoria da abertura, as Brancas estão melhores.

DIAGRAMA 47. Jogam as Brancas

8.Bb5!?Uma tentativa de perturbar o esquema

de desenvolvimento das Pretas. As Pretas querem ...Bc8-b7, ...c7-c5 e ...Cb8-d7, desa-fiando as Brancas a encontrarem uma falha no centro das Pretas.8...Bb7 9.0-0 c6 10.Ba4 Cbd7 11.De2?!

Certamente, era mais prudente jogar 11.h3!, mantendo o bispo de f4 por disponi-bilizar a casa h2.11...Ch5! 12.Be5! f6 13.Bg3 Cxg3 14.hxg3 f5

As Pretas têm o par de bispos, mas com certo preço: avançaram seu peão f7, criando muitas debilidades na ala do rei, assim como na casa e6. Por outro lado, se as Brancas não podem tirar vantagem dessas casas brancas fracas, o peão em f5 vai se mostrar útil no controle do centro e as Pretas vão se bene-ficiar. Considerei a posição dinamicamente equilibrada.15.Tfc1 Bd6 16.Dd3 De7 17.Ce2 Tac8 18.Tc3!?

Possivelmente, o precursor da perda de um tempo. A linha 18.Tc2 c5 19.dxc5 Cxc5 20.Dd4 De4 parecia melhor para as Pretas. Ob-serve que, nessa linha, 19.Bxd7 c4! também é melhor para as Pretas. Colocando minha torre na casa c3, possibilito o recuo Ba4-c2.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 117

18...Cf6Embora as Pretas pudessem jogar

18...c5 19.dxc5 Cxc5 20.Dd4, recebi com prazer a oportunidade de jogar contra o peão da dama isolado. O texto parece bas-tante sensato, simplesmente estacionando o cavalo na casa e4. Por fim, observe que as Brancas também dispõem de um intrigan-te sacrifício de dama em 18...c5 19.Bxd7 c4 20.Bxc8 cxd3 21.Bxb7 Dxb7 22.Txd3, quando as Brancas têm compensação, mas achei que o sacrifício não era favorável.19.Tac1 c5 20.dxc5 bxc5 21.T3c2 g6?

Esse enfraquecimento adicional da ala do rei é difícil de explicar. As Pretas deve-riam jogar 21...Ce4, com ao menos igualda-de. Na verdade, eu tenho ligeira preferência pela posição das Pretas e sentia falta de meu segundo bispo.22.Cf4 Tb8 (Diagrama 48)

DIAGRAMA 48. Jogam as Brancas

23.Dd1!Quero forçar o peão em d5 ou o peão

em c5 a avançar a fim de ganhar casas para minhas peças. O texto é um prefácio para Ba4-b3, para atingir este objetivo.23...Ba8 24.Bb3 c4 25.Ba4 Tb6 26.b3!

Missão cumprida. Agora, pela primei-ra vez, eu estava mais do que satisfeito com minha partida. Parece que Boris e eu lemos

o mesmo roteiro sobre como a partida deve-ria prosseguir, mas chegamos a conclusões diferentes.26...Ba3 27.Tb1 Tfb8 28.De2 Ce4 29.Td1 Df6

Depois desse lance, Boris tinha menos do que oito minutos sobrando para o con-trole de tempo do lance 40.30.Cxd5!

Sacrificando uma qualidade por dois peões, o que geralmente é mais do que compensação suficiente. Eu achava que a posição resultante era melhor para as Bran-cas, ao passo que Boris a considerava equi-librada.30...Bxd5 31.Txd5 Cc3 32.Dxc4 Cxd5 33.Dxd5+ Rh8 34.Ce5! Te6 35.f4 Tbe8??

Agora com sério problema de tempo, Boris cometeu um equívoco horrível que termina a partida. Minha linha principal era 35...Te7 36.Cc6 Tc7 37.b4!, quando eu gosta-va de minha posição, pois estava nutrindo ideias de encurralar o bispo das Pretas em a3.36.Bxe8

Boris afundou na cadeira e sacudiu a cabeça. Todo mundo entende que o proble-ma do tempo causa coisas estranhas em um enxadrista. Às vezes os processos mentais entram em curto-circuito e se destroem.36...Txe8 37.Tc6 De7 38.Txg6 Tf8 39.Tc6 Dg7 40.Rf2 1-0

Tudo bem, não foi uma das vitórias mais satisfatórias. Boris deu a partida de pre-sente. Por outro lado, eu tinha sido mais do que generoso nas partidas anteriores. Eu es-tava simplesmente grato e feliz pela vitória.

Enquanto estava em Nikšić, Jan Timman me contou que os organizadores do mais for-te torneio do mundo, o Tilburg, gostariam de me convidar para a edição daquele ano. Pedi a Jan seu conselho em relação a um hono-rário inicial, e ele sugeriu que eu dobrasse a oferta dos organizadores e pedisse 5.000 flo-rins neerlandeses. Minha contraproposta foi aceita.

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118 Yasser Seirawan

O torneio de Interpolis foi tudo o que eu esperava que fosse e tudo o que Linares não foi. Os organizadores e toda a equipe foram maravilhosamente profissionais; as condições de jogo foram simplesmente excelentes; o hotel e a comida eram bons e os enxadristas foram tratados como es-trelas.

Tendo recém tecido elogios aos orga-nizadores, não me recordo qual foi a his-tória da partida seguinte. Tenho vergonha de dizer que, se os organizadores fazem ofertas e esforços extraordinários, devo corresponder e dar o melhor de mim. Esta partida certamente não é o que de melhor posso oferecer. Não é mesmo!

Yasser Seirawan-Boris SpasskyTilburg, 1983

Defesa Índia do Rei

1.d4 Cf6 2.c4 g6 3.Cc3 Bg7Embora Boris tenha um amplo reper-

tório de aberturas, sua escolha da Defesa Ín-dia do Rei (DIR) foi surpreendente. Naquela época, todo mundo, inclusive os jogadores mais fracos, jogavam o GDR bem como a Defesa Índia da Dama. Gerações de enxa-dristas soviéticos enriqueceram a teoria da DIR, mas naquela época a DIR parecia estar em algum deserto de suspeitas. Foi neces-sário o surgimento de Garry Kasparov para reabilitar a DIR.4.e4 d6 5.Be2 Cc6 6.Cf3 Bg4 7.Be3 0-0 8.0-0 Te8?!

Por meio de uma ardilosa ordem de lan-ces, apanhei Boris em uma posição em que prefiro as Brancas. A imediata 8...e5 9.d5 Bxf3 10.Bxf3 Cd4 11.Bxd4 exd4 12.Dxd4 ganha um

bom peão. O texto prepara essa linha criando um ataque ao peão das Brancas em e4.9.d5! Bxf3 10.Bxf3 Ce5 11.Be2 c6 12.f3?!

Eu não deveria ter feito esse lance, pois ...Cf6-g4 não é uma grande ameaça. O simples 12.Db3! dá às Pretas problemas con-cretos para resolver. Se jogassem 12...Dd7 13.Tfd1, a dama das Pretas não estaria con-fortável na casa d7. Eu achava que as Pretas jogariam 12...Db8 e, neste caso, ótimo. Na-quele caso, a torre não está tão bem em a8.12...e6

Oferecendo o sacrifício de uma peça.13.dxc6?

Tendo jogado f2-f3, não fiquei emocio-nado com 13.f4 Cxc4 14.Bxc4 exd5 15.Bd3 Cxe4 16.Bxe4 dxe4 17.Bd4 d5, quando as Pretas têm três bons peões pela peça.

O que realmente me irritou depois da partida é que, nesses tipos de posição, eu sa-bia que 13.dxe6 é a captura correta. Invaria-velmente, isso leva as Pretas a uma posição inoportuna. Se 13...Txe6 14.Db3, as Brancas têm dois bispos e um bom peão atrasa-do em d6 para roer. As Brancas dobrariam na coluna d e as Pretas não teriam contra--ataque. Ou 13...fxe6 14.f4 Cf7 15.Db3 Dc7 16.Tad1, e as Brancas desfrutam de vanta-gem de espaço bem como do par de bispos. Mais uma vez, as Pretas têm poucas chances de desenvolver um contra-ataque, pois em-bora seu cavalo seja um excelente defensor de f7, ele nada mais tem a fazer.12...Cxc6 14.Db3 De7 15.Tad1 Tad8 ½-½ (Diagrama 49)

Empate proposto por Boris. Não com-preendo por que concordei com o empa-te nesta posição, que ainda é favorável às Brancas. Vamos chamar isso de “poder da estrela”. As Pretas não têm compensação pelo par de bispos. Depois de 16.Da3, se-guido pela duplicação na coluna d, as Pretas teriam por muito tempo uma posição sólida mas constríta.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 119

DIAGRAMA 49. Jogam as Brancas

Uma história divertida do torneio de Tilburg: o hotel onde os enxadristas ficaram tinha um canal de filmes em circuito interno, e, uma noite, o filme O Iluminado de Stanley Kubrick foi exibido. Os que estão familiariza-dos com o filme vão se lembrar do assusta-dor mergulho de Jack Nicholson na loucura. Como o filme ficou cada vez mais tenso, em certo momento decidi assistir ao resto dele no saguão e não sozinho em meu quarto. Quando cheguei ao saguão, os aplausos fo-ram ensurdecedores. Ao que parece, todos os outros enxadristas que estavam assistindo ao filme também estavam no saguão. Cora-joso, eu fui o último a me unir a eles.

Meu próximo encontro com Boris foi no Aberto de Zurique, um evento que co-memorou os 175 anos de existência do mais antigo clube de xadrez do mundo.

Boris Spassky-Yasser SeirawanAberto de Zurique, 1984

Defesa Pirc

1.e4 d6Como já disse, a Pirc/Rato era real-

mente minha defesa predileta. Eu sabia que ela era arriscada, mas tinha que tentar, pelo menos uma vez, contra um Campeão Mundial. Um torneio aberto parecia a oca-sião perfeita.2.d4 Cf6 3.Cc3 g6 4.Cf3 Bg7 5.h3 0-0 6.Be3 a6 7.a4!?

Uma abordagem pouco comum de Boris para uma abertura. Seus lances ini-ciais implicam que ele quer atacar pela ala do rei baseado em Be3-h6 em conjunção com o roque na ala da dama. Tudo muito sensato, mas o texto não se encaixa nesse plano.7...b6!?

Um pouco provocativo, mas eu pen-sei que 7...Cc6, pretendendo ...e7-e5, leva-ria a uma posição estagnada depois que as Brancas fazem trocas na casa e5.8.Bc4!?

Uma decisão de ataque intuitiva al-tamente ambiciosa. Torneios abertos obri-gam os enxadristas a se arriscarem um pouco mais para levar o prêmio máximo, e é isto que eu e Boris estávamos fazendo. Eu esperava 8.Be2 Bb7 9.Cd2, com uma posi-ção equilibrada. Nesse caso, meu plano era jogar 9...e6 e 10...c5, corroendo paulatina-mente o centro das Brancas.8...Bb7 (Diagrama 50)

Continuando da mesma maneira provocativa altamente ambiciosa. Talvez a mais modesta 8...e6 fosse melhor ou sim-plesmente prudente. Eu vi a continuação da partida, ganhando material, e achei que, embora eu não tivesse feito nada de “errado”, os dois lances h2-h3 e a2-a4 não se coadunavam bem; e que, no máximo, as Brancas tinham feito alguma coisa errada. Mais uma vez, para ganhar é preciso correr riscos e nós dois estávamos com vontade de apostar...

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120 Yasser Seirawan

DIAGRAMA 50. Jogam as Brancas

9.e5Em um sentido mais amplo, esse lan-

ce é forçado e ambos os jogadores seguem um caminho tático estreito. Sem dúvida, linhas como 9.d5?! c6! e 9.Cd2 d5! ajudam as Pretas.9...Ce4 10.Cxe4 Bxe4 11.Cg5

Mais uma vez, o mesmo comentário de antes. As Brancas não têm mesmo escolha. Se 11.0-0 dxe5 12.Cxe5 Cc6, as Pretas têm uma boa posição.11...Bxg2 12.Tg1 Bc6

Uma decisão sensata. Eu pensei que poderia haver uma variante onde um defen-sivo ...Bc6-e8 poderia ser conveniente. Com a alternativa 12...Bb7, eu manteria a diago-nal e8-a4 aberta e isto poderia ser útil se eu quisesse jogar ...Dd8-e8, atacando o peão em a4. Não foi uma escolha fácil e foi mais a intuição do que o cálculo que me persuadi-ram a tentar o texto.13.Dg4!

Definitivamente, considerei isso mui-to irritante, pois as Brancas simplesmente concentram peças na ala do rei. Eu espera-ra 13.e6? f6 14.Cf7 Dc8!? 15.d5 Be8 16.Ch6+ Rh8, quando as Brancas se expandiram em demasia.13...e6 14.0-0-0 Cd7!?

Continuando provocativo como sem-pre. Um lance mais cauteloso era 14...De7, para fortificar os peões em f7 e e6.15.h4!? (Diagrama 51)

Enquanto Boris pensava sobre esse lance, eu estava começando a me preocu-par com 15.Cxf7 Txf7 16.Dxe6 Df8 quando, se quisessem, as Brancas poderiam ganhar uma qualidade com 17.Dxf7+ Dxf7 18.Bxf7+ Rxf7 19.d5 Bxd5 20.Txd5 Cxe5, com vanta-gem para as Brancas.

DIAGRAMA 51. Jogam as Pretas

Agora enfrento o velho ataque do ho-mem das cavernas. As Brancas simplesmen-te pegam suas clavas e começam a bater na posição da maneira mais cruel possível. Na verdade, eu estava meio contente de ver isso, pois achava que o ataque não funcio-naria. Mesmo assim, a defesa das Pretas não é fácil e agora é o momento de as Pretas to-marem uma decisão fundamental.

Tomar ou não tomar o peão em e5? Eis a questão.15...dxe5

Com a captura imediata, abro a coluna d e “permito” que Boris sacrifique uma quali-dade. Por outro lado, a linha 15...De7 16.h5 dxe5 17.Cxh7! era realmente desconcertan-te. Minha continuação dessa linha era 17...Rxh7 18.hxg6+ Rg8 19.gxf7+ Txf7 20.Bxe6

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 121

Rf8 21.d5!? Cf6 22.Dh3 e, em poucas pala-vras, eu não gostava de meu jogo. De fato, o que há para gostar? As Brancas estão fican-do com toda a diversão.

Com o texto, obrigo as Brancas a res-ponderem à ameaça de ...Cd7-f6 e retardo seu ataque por um lance...16.dxe5 De7 17.Txd7!

Forçado e bom. As Brancas jogam com o mesmo élan com que começaram ao jogar 8.Bc4, desde o qual os jogadores estiveram à mercê dos ventos poderosos.

Como antes, as Brancas não poderiam pausar para 17.f4? Tfd8! 18.h5 Cf8!, quando solidifiquei minha ala do rei e gosto de meu jogo. Logo será minha vez de começar a tro-car (...Td8xd1) ou empreender um ataque (...Bc6xa4; ...b6-b5), quando a iniciativa será minha.17...Bxd7 18.h5 (Diagrama 52)

DIAGRAMA 52. Jogam as Pretas

Boris é uma máquina que não para de atacar. Mesmo assim, eu tinha a impressão de que “deveria estar vencendo”, mas não via minha vitória. Para começar, eu estive-ra preocupado com o sacrifício Cg5xh7 por um bom tempo e isso estava me irritando. A vitória que eu queria tinha que começar tomando o peão e5 com ...Bg7xe5, depois jogando ...De7-b4 para prosseguir na ofen-

siva. Essa é a vitória com a qual eu estava contando por algum tempo. A linha que realmente confundia era 18...Bxe5? 19.Cxh7! Db4 (minha vitória) 20.Bd4! Dxc4 21.Bxe5 Dxg4 22.Cf6+ Rg7 23.h6+!!, e as Brancas fi-cam muito melhor. Essa linha realmente me abalou. Passar da vitória para pior? Fiquei perdendo tempo “analisando” essa linha como um disco arranhado. Eu tinha certeza de que ela continha minha vitória ilusória, que eu nunca encontrei. Foi com muita relu-tância que parei de pensar nela.

A outra continuação forçada, indo atrás do rei das Brancas, era 18...b5!?, que parecia ser totalmente errada. Por que for-çar o bispo em c4 a uma diagonal mais pe-rigosa? Não obstante, fiz um esforço para examinar essa “linha errada” – afinal, é uma tentativa de chegar ao rei das Brancas. A li-nha continuava com 19.Bd3 bxa4 20.Cxh7! a3! 21.hxg6 axb2+ 22.Rd2, o que nos leva ao diagrama de análise (Diagrama 53):

DIAGRAMA DE ANÁLISE 53. Jogam as Pretas

Claro que eu não sabia o que estava acontecendo aqui: 22...f5 23.exf6 Txf6 pare-cia “forçar” e agora os jogadores podiam fa-zer um sorteio para decidir quem vence.

Esta segunda linha me fez pensar que 18...b5 era apostar ou mesmo apostar demais.

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122 Yasser Seirawan

Ela também provocava uma sensação de que uma defesa lateral do peão h7 era necessária.18...f5?

Um lance ruim que só serve para en-fraquecer minha ala do rei. Revela-se que 18...b5 era o lance necessário. Havia apenas uma outra linha engraçada que parecia ter-rível, mas eu não me preocupei em refutá--la: 18...h6!? 19.Ce4 g5 20.f4 parece apavo-rante para as Pretas, mas 20...Rh8 não é tão fácil para as Brancas.19.Dh3!

Muito bem jogado. As Brancas evitam 19.exf6 Dxf6, que me ajudaria a defender meu rei e ao mesmo tempo ganharia um tempo contra o peão em b2.19...f4?

De repente, minha posição não é mais muito atraente, mas isso joga o jogo fora imediatamente. Eu tinha que jogar 19...gxh5 20.Dxh5 h6 21.Ch3, que é bom para as Bran-cas. Contudo, depois de 21...Rh8! 22.Cf4 Df7, eu posso continuar jogando. Não que eu gostasse da posição.20.hxg6! Bxe5

Não era absolutamente minha inten-ção. Quando joguei 19...f4, eu achava que tinha 20...h6, atacando duas peças brancas. Eu tinha armado esse plano barato – 21.Cxe6 Rh8!!, pretendendo 22...Tae8 – quando subi-tamente me dei conta de que, após 20...h6, eu não tinha absolutamente como ameaçar tomar o cavalo em g5. As Brancas poderiam simplesmente ignorar minha “ameaça” e jogar 21.Bd2, e deu, estou em sérias dificul-dades. As Brancas estão prontas para jogar Cg5-f7 e vencem. Infelizmente, o texto tam-bém não ajuda. Talvez eu devesse ter jogado minha pretendida 20...h6, afinal.21.Cxe6! Bxe6 22.Bxe6+ Rg7

Ou 22...Rh8 23.Th1 e eu posso abando-nar.23.gxh7+ 1-0

Uma vitória muito boa de Boris. Um jogo efervescente, de fato. Perdi minha chance de resistir com 18...b5 e, depois dis-so, foi só uma descida para mim. Certos dias

você tem apenas que tocar o seu chapéu e dizer: “Muito bem. Parabéns!”

O Aberto dos Estados Unidos é há mui-to considerado o torneio aberto de maior prestígio na história americana do xadrez. Participei pela primeira vez na edição de 1973 em Chicago, quando tinha 13 anos de idade, e daquele evento guardo grandes lembranças, assim como da edição de 1975 em Lincoln. No Aberto dos Estados Unidos de 1985, empatei com Boris Spassky e Joel Benjamin em primeiro lugar, levando o tro-féu nos desempates. Esta foi nossa partida decisiva.

Yasser Seirawan-Boris SpasskyAberto dos EUA, Hollywood, Flórida, 1985

Defesa Índia da Dama

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cf3 b6De forma alguma inesperado. Na ver-

dade, teria ficado surpreso se Boris tivesse jogado um Gambito da Dama Recusado ou uma Índia do Rei. Como já dissemos, naquela época a Defesa Índia da Dama era a última moda e parecia que todo mundo a usava.4.Cc3 Bb7 5.Bg5

Além do texto, existem duas outras opções: 5.a3, a Variante Petrosian, que Kasparov estava usando para dilacerar o mundo; e 5.g3, oferecendo uma transposi-ção para a linha principal da Índia da Dama onde a ordem dos lances negam às Pretas a oportunidade de jogar linhas com ...Bc8-a6. Pensei que o texto seria o mais intransigente.5...Be7!

Droga. Esse lance me abateu. Eu espe-rava ver a variante 5...h6 6.Bh4 g5 7.Bg3 Ch5 8.e3 Cxg3 9.fxg3! Bg7 10.Bd3 no tabuleiro, pois tinha visto algumas partidas em que

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Valery Salov pareceu manobrar muito bem. O texto é uma espécie de linha híbrida do GDR e Índia da Dama que se encaixam bem.6.Dc2

Graças à ordem de lances das Pretas, elas ameaçam o lance libertador 6...Ce4 com um bom jogo. O texto cobre a casa e4, mas quem vai saber se a dama das Brancas está na posição ideal?6...h6! 7.Bh4 d5 8.cxd5

Sem muita escolha aqui. As Pretas es-tão prontas para jogar ...d5xc4, dirigindo-se para o tipo de posição do Gambito da Dama Aceito onde as Brancas jogaram Dd1-c2, que não é muito boa nestas posições.8...Cxd5 9.Cxd5?!

Jogando fora qualquer pretensão de obter uma vantagem na abertura. O melhor para as Brancas era 9.Bxe7 Dxe7 10.e4 Cxc3 11.bxc3 0-0 12.Bd3 c5 13.0-0 quando, na mi-nha cabeça, eu via que as Pretas jogariam ...Ta8-c8, ganhando um tempo contra minha dama em c2. Eu achava que isso significaria igualdade suficientemente fácil. Talvez não. Muitas vezes a manobra Dd1-c2-e2 é jogada pelas Brancas nessas posições e elas ainda têm a falange central para se agarrar.9...Bxd5 10.Bxe7 Dxe7 11.Tc1

A grande ideia. Espero ganhar o peão c7.11...0-0 (Diagrama 54)

DIAGRAMA 54. Jogam as Brancas

12.e4?!Muito irritante. Joguei para ganhar o

peão c7 e agora mudo de ideia. Falo de não ser muito coerente. É claro, compreendo que “ganhar” o peão c7 não me daria uma posi-ção ganha ou algo do gênero; em vez disso, eu sabia que as Pretas teriam “compensação suficiente”. Mas existe uma diferença entre compensação suficiente e igualdade. Eu te-mia que, se eu tomasse o peão c7, as Pretas ganhariam “igualdade total”. Por isso o texto.

Eis o que eu calculei: 12.Dxc7! Dxc7 13.Txc7 Ca6! 14.Tc3 Cb4 15.a3? Ca2!, quando eu preferia a posição das Pretas. O proble-ma é que 15.a3, esperando para ganhar um tempo contra o cavalo, é um erro grave. Em vez disso, 15.a4 (15.Rd2!?) é o caminho cer-to adiante. A linha continuaria com 15...Tfc8 16.Rd2 Ca2 17.Ta3! (o ponto importante – as Brancas não são forçadas a trocar torres, o que ajuda a iniciativa das Pretas), quando as Pretas jogam 17...Cc1 (17...Cb4? 18.Ce1!), sobre a qual as Brancas jogam 18.e4, devol-vendo o peão em nome do desenvolvimen-to. Depois 18...Bxe4 19.Ba6 Tc2+ 20.Re3 Bd5 nos leva a nosso diagrama de análise (Dia-grama 55):

DIAGRAMA DE ANÁLISE 55. Jogam as Brancas

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124 Yasser Seirawan

Cheguei até 21.Tc3! Txc3 22.bxc3 Cb3, e a partida “parecia equilibrada”. Isso é verda-de, mas eu não dei suficiente consideração à posição no lance 18. Eu acho que, em vez de 18.e4, as Brancas podem tentar 18.Ce5, quando as Pretas ainda têm que provar seu sacrifício de peão.

Nota de acréscimo: Uma linha diverti-da que me atrai seria 18.Ce5 Cb3+ 19.Rd3 f6 20.e4 fxe5 21.exd5 Cxd4 22.Re4, onde o ge-neral leva seu exército à batalha.

De qualquer forma, eu deveria ter joga-do 12.Dxc7 e apenas devolvido o peão a2.12...Bb7 13.Dxc7

Não é um lance que possa ser descrito como “no momento mais oportuno”. Após 13.Bd3 Tc8 14.0-0 c5, as Pretas têm plena igualdade. Pensei que o texto deu chances para um favorável desequilíbrio da estrutura de peões.13...Db4+! 14.Dc3 Dxc3+ 15.bxc3 Bxe4 16.Ce5 f6! 17.f3 Bh7!

Essa última sequência de lances foi muito bem jogada por Boris. Sem os dois últimos pequenos lances em especial, eu achava que poderia obter uma vantagem na posição.18.Cg4 Cc6 19.Bc4 Tfe8 20.Re2!? Ca5 21.Ba6 Tad8 22.Thd1 (Diagrama 56)

Tudo bem, confissão completa. Não estou exatamente balançando o mundo do xadrez com um jogo brilhante, mas eu achava que aqui as Pretas poderiam facil-mente cair em uma posição difícil. As Bran-cas têm uma vantagem de espaço, peças ligeiramente mais ativas e a possibilidade de reiniciar com Cg4-e3, seguido por uma ofensiva na ala do rei. O que estão real-mente fazendo o cavalo em a5 e o bispo em h7, afinal de contas? Em suma, a posi-ção tem um pouco de veneno e as Pretas podem facilmente ser levadas a uma falsa sensação de segurança. Na verdade, é pre-ciso jogar com exatidão e Boris responde bem ao desafio.

DIAGRAMA 56. Jogam as Pretas

22...Te7! 23.Ce3 Bg6!Droga! Bom jogo defensivo, sem dúvi-

da. As Pretas imediatamente buscam ativar seu bispo com ...Bg6-e8-a4, quando, em con-junção com ...b6-b5, logo posso encontrar meu bispo mal posicionado em a6.24.Bb5 Be8 25.Bxe8 Texe8

Graças à boa operação de troca de bis-pos das Pretas, as chances que podiam haver na posição foram embora.26.f4 h5 ½-½

Empate proposto por Boris. Em minha opinião, estas duas últimas partidas destaca-ram o melhor de Boris, atacante consumado e defensor talentoso.

Voltamos, mais uma vez, a Montpellier e ao torneio de Candidatos na França, onde antes eu enfrentara Vassily Smyslov e Mikhail Tal. De todas as nossas competições juntos, esta foi a partida mais dolorosa e a que me deixou mais chateado com Boris.

A história foi assim: nossa partida es-tava programada para a nona rodada do torneio. Eu e meus assistentes Ulf Anders-son e Miguel Quinteros alugamos uma casa fora da cidade e íamos de carro juntos para a cidade e para o local dos jogos. Chegamos

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 125

no salão de jogos na hora normal bem an-tes do início da partida, fui até minha mesa e preenchi minha planilha, esperando Boris e o começo da partida. Então o árbitro veio me comunicar que Boris estava com dor de ouvido e que, para não prejudicar Boris por isso, ele, o árbitro, tinha reprogramado a partida para o dia seguinte, que era de folga. E era isso, exatamente assim. Bom, é claro que isso me irritou muito. Eu tinha planos para o dia de folga, e se soubesse que não iria jogar naquele dia teria ficado em casa.

Daí eu cometi um erro terrível. Fiquei para ver as partidas. Lourdes, a esposa de Ulf Andersson, insistiu que eu fosse para casa e “aproveitasse o dia livre”. Ela sabia algo que eu não sabia. Deixei de seguir seu sábio conselho. Quando retornamos, toda a observação e análise das partidas me dei-xou com a impressão de que tinha partici-pado da rodada.

No dia seguinte, comparecemos ao sa-lão de jogos. O local estava completamente vazio, sem enxadristas nem espectadores – somente alguns árbitros, Boris e eu. Foi uma sensação estranha. Não consegui me livrar da sensação de que estávamos “jogando fora do torneio” e de que o jogo ficou des-vinculado do “torneio real”.

Boris parecia ótimo. A dor de ouvido tinha passado.

Agora passamos para um aspecto to-talmente diferente da história: as regras. Co-locado de maneira simples, naquela época as regras permitiam que os enxadristas e ár-bitros mudassem o cronograma de partidas facilmente. Assim, para deixar claro, Boris estava absolutamente dentro das regras ao requisitar um dia de folga por causa de sua enfermidade. Por outro lado, existem as re-gras e existe o espírito esportivo. É claro que eu fui negativamente afetado pela alteração da programação. Minha opinião não foi con-sultada, nem meu consentimento foi dado. Boris sabia de antemão que a partida tinha

sido transferida; eu não. Atualmente, es-tas mudanças não são permitidas. Ou você joga no horário previsto ou você perde. O enxadrista simplesmente tem que seguir a programação das partidas. Eu gosto das re-gras atuais. Já joguei com dores de cabeça lancinantes, estômago revirado e horríveis jet lags, mas nunca pedi um adiamento nem remarquei uma partida.

Boris Spassky-Yasser SeirawanCandidatos de Montpellier, 1985

Gambito do Rei

1.e4 e5Eu tinha começado a usar a Defesa

Petrov e gostava das posições que estava obtendo.

Boris começou a virar a cabeça para frente e para trás e da esquerda para a di-reita, e fez movimentos com a mão como se atirasse uma moeda imaginária para cima, pegando-a e virando-a para ver o que iria jogar.2.f4!

O Gambito do Rei. Por falar em me pegar desprevenido. É claro, eu sabia que Boris, vez ou outra, jogava o Gambito do Rei, mas de alguma forma eu tinha tira-do isso da cabeça ou fora do terreno das possibilidades. Comecei a pensar e pensar. Será que eu poderia jogar algo fora do co-mum e talvez pegar Boris em sua própria especialidade?2...exf4 3.Cf3 Ce7?!

Uma combinação de inspiração no tabuleiro e fraca análise em casa. Eu esta-va tentando lembrar das principais linhas e de uma sessão de Blitz que tive com Ro-bert Byrne. Ele também gostava de jogar o Gambito do Rei de Brancas e eu tinha me

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126 Yasser Seirawan

saído muito bem naquelas partidas. A linha de que eu mais gostava para as Pretas era 3...g5! 4.h4 g4 5.Ce5 d6 (muita atenção tam-bém foi dada para 5...De7 6.d4 d6) 6.Cxg4 Cf6, devolvendo o peão para um “desenvol-vimento confortável”. Minha preparação, caso alguém jogasse o Gambito do Rei con-tra mim, continuava com 7.Cxf6 (7.Cf2 Tg8 8.d4 Bh6 parece bom para as Pretas) Dxf6 8.Cc3 Cc6! 9.Cd5 Dg6 10.Df3 Cd4! 11.Cxc7+ Rd8 12.Dc3 Dg3+ 13.Dxg3 fxg3 14.Cxa8 Cxc2+ 15.Rd1 Cxa1, com um tipo de posi-ção tipicamente fragmentária que eu mais ou menos analisei como conducente a um empate.

Então, por que eu não joguei minha “principal” preparação? Bem, um pensa-mento me ocorreu enquanto eu pensava no que jogar. Havia um enxadrista, Jacob Yuchtman, um desertor da União Soviética, com quem eu costumava jogar Blitz quando visitava a cidade de Nova Iorque. Ele tinha recomendado o texto e tínhamos analisado--o superficialmente e, de alguma forma, ele parecia ser adequado para tirar a partida do caminho conhecido. Eu esperava pegar Boris desprevenido.4.d4 d5 5.Cc3 dxe4 6.Cxe4 Cg6?

E esta é a coisa importante. As Pretas simplesmente defendem “seu” peão em f4 e desafiam as Brancas a mostrar compensa-ção. Evidentemente, não se pode permitir às Pretas ...Bf8-e7 e ...0-0, quando elas simples-mente ficam muito melhor, se não perto da vitória. As Brancas precisam atacar rápido e com força, desmontando o esquema de de-senvolvimento das Pretas, senão ficarão pio-res. Por sinal, 6...Cd5 é sensato para as Pretas e é o melhor lance.7.h4!

Sem esse lance, as Brancas ficam pio-res. Meu problema é que eu não pensei que as Brancas pudessem jogar isso.7...De7? (Diagrama 57)

DIAGRAMA 57. Jogam as Brancas

Colocado de maneira simples, pensei erroneamente que o jogo das Brancas agora estava refutado. Após a “forçosa” 8.De2 h5, as Pretas podem ficar confiantes quanto ao resto da partida. Eu completaria o meu desenvolvi-mento com ...Bc8-g4, ...Cb8-c6 e ...0-0-0, en-quanto me agarrava a meu peão em f4. E meu jogo literalmente andaria sozinho.

Em retrospecto, o texto é um erro. Eu deveria ter continuado com 7...Bf5 8.Bd3 (8.Qe2 Bb4+! 9.c3 0-0! é bom para as Pretas.) 8...Be7 9.h5 Ch4, com um jogo aproximada-mente equilibrado. Eu mal dei consideração a essa linha porque eu achava que, na posição diagramada, as Brancas estavam em apuros.8.Rf2!!

Bombástico. Um lance poderoso que sa-cudiu totalmente as minhas bases. Como em nossa partida em Zurique, meu jogo deveria me trazer uma vitória esperada (...Bg7xe5 e ...De7-b4) que simplesmente não existia. Mi-nha análise tinha simplesmente parado em 8.De2 e não considerei mais nada, muito me-nos o texto. O lance refuta minha armação.8...Bg4

Era atordoante como eu tinha desnor-teado gravemente minhas próprias peças. Minha dama na casa e7 está claramente mal

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 127

posicionada, interferindo no desenvolvi-mento de meu bispo em f8, o que, por sua vez, mantém meu rei no centro...

Evidentemente, as Brancas pretendem jogar h4-h5, afugentar o cavalo em g6 e cap-turar o peão em f4, com um desenvolvimento maravilhosamente harmônico. Não posso jo-gar 8...h5, que entrega a casa g5. Na verdade, depois de 9.Ceg5 estou perdido. As Brancas estão prontas para 10.Bd3 e 11.Te1, sem falar em 10.Bc4, quando eu odeio minha posição.

Em minha opinião, as coisas estão tão mal que eu provavelmente deveria ter sacri-ficado minha dama com 8...Dxe4!? 9.Bb5+ c6 10.Te1 De7! 11.Txe7+ Bxe7 12.Bd3 Bg4 13.De1 Bxf3 14.Bxg6 Bd5!, quando certa-mente as Brancas têm clara vantagem, mas ainda existem algumas chances de defesa.9.h5! Ch4 (Diagrama 58)

DIAGRAMA 58. Jogam as Brancas

Isto também não era o que eu preten-dia jogar. Pensei que poderia me salvar com 9...Bxh5!? 10.Txh5 Dxe4, quando eu certa-mente não confiava em minha posição mas tampouco achava que estava perdido. Entre-tanto, quanto mais eu pensava em 11.Bc4!, pior parecia ficar minha posição. Além de ameaçar Bc4xf7+, também havia a ameaça de Bc4-d5, ganhando a torre em a8. Eu não

vi nada melhor do que 11...De7 e então ha-via 12.Ce5 e, o mais horrível de tudo, a torre em h5 também está esplendidamente posi-cionada. Nossa partida reagendada estava se transformando em um pesadelo.10.Bxf4

Um momento de alegre triunfo para jo-gadores do Gambito do Rei. Difícil imaginar peças pretas em posição mais burra e peças brancas em posição mais harmoniosa. Suspiro.10...Cc6 11.Bb5!

Garantindo que meu rei não encontre conforto na ala da dama. Depois do texto, sem surpreender, as Pretas estão basica-mente perdidas.11...0-0-0 12.Bxc6 bxc6 13.Dd3! Cxf3 14.gxf3 Bf5 15.Da6+ Rb8 16.Cc5 Bc8 17.Dxc6 Txd4 (Diagrama 59)

DIAGRAMA 59. Jogam as Brancas

18.Tae1!Plaft. E, sem mais nem menos, estou

perdido. Boris jogou o resto da partida com estilo muito preciso. Uma vitória merecida, até mesmo inspirada.18...Txf4 19.Db5+ Ra8 20.Dc6+ Rb8 21.Txe7 Bxe7 22.Td1 Tf6 23.Cd7+ Bxd7 24.Dxd7 Td8 25.Db5+ Rc8 26.Txd8+ Bxd8 27.Da4 g5 28.Dxa7 Tf4 29.Da6+ Rb8 30.Dd3 Be7 31.Dxh7 g4 32.Rg3 1-0

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128 Yasser Seirawan

Depois da partida, Boris desculpou--se comigo: “Yasser, desculpe por ter que remarcar nossa partida. Eu tentei telefo-nar para seu quarto no hotel para pedir sua compreensão, mas você não estava. Desculpe.” E assim foi. O que dizer? Coisas ruins às vezes acontecem.

Nossa última partida em torneios ofi-ciais de xadrez ocorreu na Copa do Mundo da GMA em Barcelona em uma grandiosa catedral. Fui para a partida com a ideia de misturar as coisas desde a abertura.

Boris Spassky-Yasser SeirawanBarcelona, 1989

Defesa Caro-Kann

1.e4 c6Ao ver esse lance, Boris cometeu uma

violação perfeitamente explícita do regu-lamento e disse abertamente para mim: “Yasser, por que você me tortura com esse negócio de Caro-Kann?” Eu não sabia o que dizer e só consegui rir com ele. Uma coisa é certa, com certeza era melhor do que per-der para um Gambito do Rei.2.d4 d5 3.Cc3 dxe4 4.Cxe4 Cf6 5.Cxf6+ gxf6 6.c3

Como eu já disse, de vez em quando eu gosto de usar a Variante Bronstein da Caro--Kann. O último lance das Brancas é consi-derado o tratamento correto, pois as Brancas mantêm a flexibilidade de seus esquemas de desenvolvimento. A precoce 6.Cf3 Bg4 permi-te uma cravada e fácil desenvolvimento para as Pretas, ao passo que agora, se as Pretas tentam desenvolver o bispo em c8 com 6...Bf5 7.Ce2 Cd7 8.Cg3 Bg6 9.h4 h5 10.Be2, as Brancas podem ir em busca do peão em h5, como na partida J.Peters-Y.Seirawan no Cam-peonato dos Estados Unidos em 1984.

6...Dd5 (Diagrama 60)

DIAGRAMA 60. Jogam as Brancas

Minha grande ideia. Eu simplesmente ponho minha dama no meio do tabuleiro ao estilo escandinavo e digo: “Vá em frente. Tente encontrar uma vantagem.”7.Ce2?!

Isso realmente não causa uma boa impressão. Eu achava que a melhor chan-ce das Brancas era 7.Cf3 Tg8!? 8.Db3 Dxb3 9.axb3 Be6 10.b4 Cd7, com pequena vanta-gem para as Brancas.

O texto apenas me estimula a executar meu plano de modo muito confortável.7...e5!

Prevenindo Ce2-f4 e tomando casas no centro.8.Be3 Be6 9.Dc2 Cd7 10.a3

Não exatamente um lance inspirado. Quando as Brancas precisam fazer um lance desses antes de fazer o roque grande, é hora de recuar e confessar que algo já deu errado. Infelizmente, de acordo com as regras, não é permitido voltar em nossos lances.10...0-0-0 11.0-0-0 Cb6

Boa o bastante para obter uma pe-quena vantagem, mas a segunda melhor e inexata. Uma linha mais forte era 11...Da2! 12.Db1 Db3! 13.Dc2 Cb6, primeiro levando minha dama para a casa b3 com um ganho

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 129

de tempo. Aí as Brancas têm um problema para resolver: como completar melhor seu desenvolvimento? O problema das Brancas é que elas não podem transpor para a parti-da com 14.dxe5, pois 14...Dxc2 15.Rxc2 Bb3+ 16.Rxb3 Txd1 é um sacrifício de torre que as Brancas poderiam não estar dispostas a fazer. Entretanto, se tentarem 14.Cg3 Ca4, as Pretas estarão fazendo uma gradual migração das peças para a ala da dama e em direção ao rei branco. Subitamente, continuações sacrifica-tórias começam a ser abundantes. As Pretas também podem considerar 14.Cg3 Dxc2+ 15.Rxc2 Cc4, jogando nas casas brancas além de ganharem o par de bispos.12.dxe5!

Bem jogado. As Brancas fogem para um final equilibrado, em oposição a um meio--jogo desagradável. Senão, com ...Cb6-c4, na agenda, as Pretas têm um bom jogo nas casas brancas.12...Dxd1+ 13.Dxd1 Txd1+ 14.Rxd1 fxe5 15.Cg3 f5 16.Bd3 e4 17.Be2 c5 18.Ch5 ½-½

Empate por sugestão de Boris.

Nosso escore total em torneios clás-sicos de xadrez terminou com uma vitória, quatro derrotas e cinco empates, i.e., um placar geral de 3½-6½ a favor de Boris.

Nosso encontro final em torneios ocor-reu durante o match pelo Campeonato Mun-dial de Kasparov contra Karpov em 1990 na cidade de Nova Iorque, no Hudson Theater. Entre as partidas do Campeonato Mundial, o Bankers Trust patrocinou um match dos EUA contra o Mundo. As condições de jogo eram uma série de minimatches de duas partidas cada. O controle de tempo era de 15 minutos por jogador para a partida inteira. No caso de empate de 1-1, os jogadores continuariam partidas de cinco minutos até haver um ven-cedor. Meu match com Boris foi o mais com-prido desses minimatches.

Comecei com uma vitória com as Pre-tas, o que significava que o match estava

praticamente terminado. Compreendendo a situação tenebrosa em que se encontra-va, Boris deixou a cautela de lado e tentou 1...b5?!, que funcionou como uma mágica. Houve um segundo sorteio das cores e, des-ta vez, dois empates, mas novamente Boris se safou com 1...b5 de Pretas. Depois, um ter-ceiro sorteio sem possibilidade de “vingan-ça”. Dessa vez, Boris foi para o buraco com 1...b5 usado com demasiada frequência, e eu venci nosso minimatch.

Surpreendentemente, os Estados Uni-dos venceram o match por 11-9; veja a Inside Chess, número 24, de 10 de dezembro de 1990, página 9, para detalhes completos do desempenho individual.

Boris Spassky-Yasser SeirawanPrimeira Partida do Match, EUA contra o

Mundo, Nova Iorque (rápido), 1990Defesa Caro-Kann

1.e4 c6Na época deste encontro, os contro-

les de tempo para “xadrez rápido” não esta-vam firmemente estabelecidos. Enquanto os controles clássicos de tempo (partidas de seis horas) e de Blitz (cinco minutos para cada jogador) estavam mais ou menos cla-ros, as partidas de xadrez rápido podiam ser definidas como desde 15 minutos para cada jogador até uma hora por jogador para toda a partida. Havia, portanto, a questão de se durante as partidas de xadrez rápido os jo-gadores deveriam manter o registro das par-tidas – isto é, anotar seus lances.

Com o uso de tabuleiros eletrônicos, decidiu-se que não precisaríamos anotar nossos lances e poderíamos deixar que o tabuleiro eletrônico os registrasse. O que suscita outros tipos de problemas. Como os

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130 Yasser Seirawan

jogadores saberiam que houve uma tripla repetição? E a regra do 50o lance? E assim por diante. Essas questões ficaram sem res-posta. Jogávamos com espírito esportivo.

Mais uma vez, gostaria de enfatizar uma distinção: considero que o Blitz e o xadrez rápido são tipos de xadrez que diferem to-talmente das partidas clássicas. A qualidade de jogo diminui à medida que o controle de tempo anda mais rápido. Nesta série, as par-tidas número Um e Dois são “rápidas” e as de número Três, Quatro e Cinco são “Blitz”.2.d4 d5 3.e5

De volta à Variante do Avanço.3...Bf5 4.Cf3 e6 5.Be2!?

Na época, Nigel Short estava introdu-zindo uma abordagem totalmente nova da Variante do Avanço. A principal ideia de Nigel era dizer: “Muito bem. Você tem um bispo em f5. Mas eu acho que ele não vai fa-zer nada útil para você ali”. Ele teve algumas vitórias fabulosas com seu sistema, mas eu acho que é uma enganação para as Brancas e chamei sua abordagem de Defesa Short. Em minha opinião, as Brancas logo assumi-rão a defensiva. Desnecessário dizer, Nigel tentou corrigir minha “difamação” de sua variante. Com certo sucesso, devo confessar.5...Ce7 6.0-0 Cd7 7.c3 c5 8.Be3 Cc6 9.Cbd2 Be7 (Diagrama 61)

DIAGRAMA 61. Jogam as Brancas

Alcancei uma “Defesa Francesa” muito agradável com meu bispo frequentemente séptico em c8 posicionado na casa f5. Eu já prefiro a posição das Pretas. Desculpe, Nigel!10.Re1 0-0 11.a3!?

Tentando forçar uma resolução da ten-são central ameaçando um avanço b2-b4.11...c4

Por minha vez, tentando manter mi-nha vantagem ao evitar trocas. Eu achava que as Brancas se sairiam bem depois de 11...cxd4 12.Cxd4! Cxd4 (12...Cdxe5 13.Cxf5 é compensação suficiente para as Brancas) 13.Bxd4, com um jogo equilibrado. Com o texto, eu esperava um rolo compressor na ala da dama com ...b7-b5, ...Cd7-b6-a4, e as-sim por diante.

Eu certamente não temia, graças ao peão em e5, enfrentar um ataque de mate na ala do rei, pois o bispo em f5 é uma boa sentinela.12.b4 cxb3 13.Dxb3 Ca5 14.Da2 Tc8 15.c4 dxc4 16.Cxc4 Cxc4 17.Bxc4 Cb6 18.Bb3 Be4!

Com um jogo simples, ganhei uma po-sição superior. O bispo em f5 ganha vida.19.Tec1 Dd7 20.a4 Bd5 21.a5 Bxb3 22.Dxb3 Cd5 23.Bg5 Txc1+ 24.Txc1 Tc8 25.Ta1?

Embora eu esteja ligeiramente melhor, esse é um erro grave que eu absolutamente não compreendo. Eu achava que 25.Tc4 h6 (25...Bf8!?) 26.Bxe7 Cxe7 seria a linha mais sensata de jogo, quando eu esperava que o peão em a5 poderia provar-se uma debi-lidade fatal. Talvez Boris sentisse da mesma forma, mas abrir mão da coluna c?25...Bf8!

Lembre-se de que, em seu nível mais bási-co, o xadrez é um jogo em que você quer preservar suas “peças boas” e você quer sobrecarregar seu adversário com as peças ruins dele.

Neste caso, o bispo em g5 das Brancas é ape-nas um mau bispo.26.Bd2 h6 27.h4 Ce7! (Diagrama 62)

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 131

DIAGRAMA 62. Jogam as Pretas

O cavalo em d5 pinta um quadro glorio-so, sem dúvida, mas é um ser vazio açoitando o nada. Agora é hora de colocá-lo pra funcio-nar atacando alguns peões brancos fracos.28.Tb1 Tc7 29.Dd3 Da4 30.g4?! (Diagrama 63)

DIAGRAM 63. Jogam as Pretas

Tudo bem, serei o primeiro a admitir que Boris já desfrutou de alguns momen-tos excelentes de sucesso quando atacou o meu rei. Eu entrei em pânico, engasguei e, de modo geral, joguei como um idiota de-fensivo quando pressionado por ele. Mas

partir para o ataque quando claramente a defesa era para as Brancas a tarefa numero um? Hm. Já chega!30...Td7 31.Db3?!

Bem, tudo certo, Boris pensou melhor sobre 31.g5 h5, desistindo da casa f5. Mas o texto joga direto para minhas mãos, pois agora posso me concentrar em atacar os fra-cos peões em d4 e a5.31...Dxb3 32.Txb3 a6! 33.Rf1 Cc6 34.Re2 Be7! 35.Rd3 Bd8 36.Ta3 Td5! (Diagrama 64)

DIAGRAMA 64. Jogam as Brancas

Missão cumprida – agora a partida está ganha.37.Tb3 Bxa5 38.Bxa5 Cxa5 39.Tb6 Rf8 40.Cd2?!

Isso também ajuda um pouco.40...Cc6 41.Cf3 Td7! 42.g5 hxg5 43.hxg5 g6!

Com a ala do rei agora trancafiada e se-gura, posso arrastar meu rei ao longo da pri-meira fileira e até a ala da dama, onde os pe-ões passados conectados decidem a partida.44.Rc4 Re8 45.Tb1 Rd8 46.Th1 Rc7 47.Th4 b5+ 48.Rc3 Rb6 49.Cd2 a5 50.Tf4 a4 51.f3 Tc7 52.Rb2 Cb4 53.Rb1 Cd5?

Muito mais simples era 53...a3, assim como 53...Cd3!, atacando a torre em f4 e pre-parando ...Tc7-c1+-c2+, ganhando o cavalo

Page 130: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

132 Yasser Seirawan

das Brancas. Por outro lado, o texto é tão ma-ravilhosamente “posicional.”54.Th4 b4 55.Ce4 Cc3+ 56.Cxc3 Txc3 57.d5 Tb3+ 58.Ra2 exd5 59.Tf4 Rc5 60.Txf7 Te3 61.f4 Te2+ 62.Rb1 b3 63.f5 a3 64.Tc7+ Kd4 65.fxg6 a2+ 66.Ra1 Te1+ 0-1

Yasser Seirawan-Boris SpasskySegunda Partida do Match, EUA contra o

Mundo, Nova Iorque (rápido), 1990Defesa Polonesa

1.d4 b5Por que não? Quando você tem que

vencer com as Pretas, jogar algo incomum como isso tem seu valor. A propósito, não tenho certeza sobre a origem do nome dessa defesa. Os poloneses realmente rei-vindicam o crédito? Ou seria a culpa? Acho que foi Tartakower que a iniciou na era “mo-derna”, jogando 1.b4 no famoso torneio de Nova Iorque de 1924 com a história de que dedicou a partida a um orangotango que viu no zoológico. A abertura às vezes tam-bém recebe esta denominação.2.e4 Bb7 3.f3 a6 4.c4?!

Definitivamente útil às Pretas. Eu pensei que tinha encontrado uma opor-tunidade de colocar Boris em um forte aperto. Em retrospectiva, 4.a4 seria minha escolha atual.4...bxc4 5.Bxc4 e6 6.Db3 Dc8 7.d5!?

Esse avanço foi o que eu tinha em mente. Se as Pretas jogarem mal no próximo ou nos próximos dois lances, a partida pode-ria terminar rapidamente.7...Cf6 8.Be3 (Diagrama 65)

DIAGRAMA 65. Jogam as Pretas

Esta era a posição que eu queria. Visu-almente, parece que as Brancas têm um con-trole maciço da posição. Como as Pretas vão desenvolver suas peças na ala da dama? Evi-dentemente, se as Brancas se mobilizarem com Cb1-c3 e Ta1-c1 e as peças das Pretas ficarem empacadas em sua posição inicial, a partida está acabada.8...a5!

Um lance muito bom, sem o qual as Pretas estariam estrategicamente perdidas. Agora, as Pretas são capazes de resolver seu desenvolvimento na ala da dama e, além disso, obtêm um jogo razoável. Em palavras simples, eu não considerei esse lance ao jo-gar toda a linha. Eu acho que o terceiro lance das Pretas me impressionou tanto que eu supus que o peão em a6 ficaria grudado na-quela casa pelo resto da partida.9.Cc3 Ca6 10.dxe6?!

A continuação do jogo se baseia em algo que não vi. Eu acho que 10.Cge2 era melhor, com um jogo equilibrado.10...fxe6 11.e5?!

No momento em que dei meus últimos dois lances, eu achava que as coisas estavam bem e ainda seguiam o meu jeito.11...a4? 12.Dd1 (Diagrama 66)

Page 131: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 133

DIAGRAMA 66. Jogam as Pretas

12...Cg8?Cegueira mútua. Qual é a ideia básica

de um fianchetto precoce na ala da dama? Ora, jogar ...Bb7xg2, é claro. 11...Cg4! ou 12...Cg4! teria sido um pouco constrange-dor, com vantagem para as Pretas em am-bos os casos.13.Cge2?!

Mais sensato era 13.Cxa4, tomando o peão e impedindo qualquer molestamento na ala da dama. Uma vez que fico muito feliz quando tomo um peão, ter deixado de fazê--lo é especialmente estranho.13...a3! 14.Tb1 Ce7 15.0-0 Cf5 16.Bf2 axb2 17.Txb2 Bc5 18.Dd2

Não é um lance ruim, mas, em virtu-de da situação do match, era aconselhá-vel apenas ir em busca do empate com 18.Db1! Bc6 19.Bd3 0-0 20.Bxf5 Txf5 21.Cd4 Txe5 22.Cxc6 dxc6 23.Ce4, com um final equilibrado.18...0-0 19.Cg3 Bxf2+ 20.Dxf2 Ce7 21.Tfb1 Bc6 22.a4 Rh8 23.De3 Cg6 24.Bb5 Cb8 25.Cce2?!

Isso perde alguns tempos. Simples-mente 25.Cge2 e Cd4 é melhor para as Brancas.25...Dd8 26.Tc2 Bd5 27.Cc3 c6 28.Bd3 Cf4 29.Bf1 Ca6 (Diagrama 67)

DIAGRAMA 67. Jogam as Brancas

Até aqui, nada demais realmente acon-teceu, além de um embaralhamento das pe-ças. Consegui manter uma pequena vanta-gem. Agora 30.Cge4, visando a g2-g3 e f3-f4, mantém tudo sob controle.30.Tb7 De7 31.Db6? Dc5+!

Que constrangedor. Eu simplesmente não vi que esse lance era taticamente pos-sível. Eu achava que o cavalo das Pretas es-tava encurralado e que eu estava chutando--o de volta para a casa b8 e para perdição. Como 31...Cc5? 32.Cxd5 ganha uma peça, eu achei que o mesmo era verdade após o texto: 32.Dxc5 Cxc5 33.Cxd5, mas esqueci que minha torre em b7 estava en prise com 33...Cxb7, ganhando uma qualidade.32.Rh1 Bc4!

Um lance muito ardiloso que resolve os problemas das Pretas. Eu equivocadamente pensava que a posição das Pretas estava tati-camente por um fio quando, na verdade, era uma corda forte.33.Dxc5

As táticas de repente começaram a ficar um pouco cabeludas. Eu achava que 33.Bxc4 Dxc4 34.Txd7 ainda me segurariam ou talvez até me favorecessem, mas percebi que 34...Cd5 35.Db2 Cab4 36.Tc1 Cd3 37.De2 poderia facilmente terminar em um trágico acidente.

Page 132: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

134 Yasser Seirawan

Infelizmente, essa troca de damas é simples-mente excelente para as Pretas. No final que está por vir, meu peão em e5 é muito fraco.33...Cxc5 34.Tb4 Bxf1 35.Cxf1 Ccd3 36.Te4 Cc5?! (Diagrama 68)

36...Cg6 era muito mais forte. O texto me dá uma oportunidade inesperada.

DIAGRAMA 68. Jogam as Brancas

37.Te3?Indo silenciosamente para o longo boa

noite. Minha melhor chance era 37.Txf4! Txf4 38.Ce2 Tfxa4 39.Txc5 T8a5 40.Txa5 Txa5 41.f4 Ta2 42.Cfg3 Ta1+ 43.Cg1 c5 44.Ce2 c4 45.g3, com boas chances de defesa.37...Cxa4 38.g3 Cxc3 39.Texc3 Cd5

Agora com um peão a mais e uma tre-menda mula em d5, as Pretas estão simples-mente vencendo.40.Tb3 Tfb8 41.Tcb2 Txb3 42.Txb3 Rg8 43.Tb7 c5! 44.Tb2 c4! 45.Tc2 c3 46.Tc1 Ta2 47.f4 Tb2 48.Rg1 Rf7 49.h3 h6 50.Ch2 c2 51.Rf2 Cb4 52.Re3 g5 53.fxg5 hxg5 54.Cf3 Rg6 55.g4 Tb3+ 56.Re2 Txf3 57.Rxf3 Cd3 0-1

Tudo bem, ninguém gosta de perder. Especialmente com as Brancas. Mas para 1...b5? Foi realmente um insulto! Para deci-dir o minimatch, agora tínhamos que jogar

uma série de Blitz. Boris foi sorteado com as Brancas.

Boris Spassky-Yasser SeirawanTerceira Partida do Match, EUA contra o

Mundo, Nova Iorque (Blitz), 1990Defesa Caro-Kann

1.e4 c6 2.d4 d5 3.Cc3 dxe4 4.Cxe4 Cf6 5.Cxf6+ exf6?!

Tenho dúvidas sobre isso, consideran-do a posição resultante vantajosa para as Brancas. Minha escolha foi motivada pelo de-sejo de manter o rei o mais seguro possível.6.c3 Bd6 7.Bd3 0-0 8.Ne2 Re8 9.Be3 Cd7 10.Dc2 Cf8 11.Cg3?!

As Brancas deveriam prescindir desse lance e jogar 11.0-0-0 imediatamente.11...g6 12.0-0-0 f5 13.Ce2 Da5 14.Rb1 Be6 15.b3 Dc7 16.Dd2 a5 17.h4 a4 18.b4 b6 19.Bf4 b5 20.Bxd6 Dxd6 21.Cf4 Bd5 (Dia-grama 69)

DIAGRAMA 69. Jogam as Brancas

Não aconteceu muita coisa e a partida está aproximadamente equilibrada.

Page 133: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 135

22.Tde1 Ce6 23.Cxd5 Dxd5 24.f3 Cg7! 25.Txe8+ Txe8 26.Te1 Txe1+ 27.Dxe1 Ce6 28.De3 Rg7 29.Rb2 h6 30.g3 f6!?

Uma tentativa interessante de provar que, se algum dos lados tem uma vantagem, é o lado da dama e do cavalo contra o lado da dama e do bispo.31.Be2 g5 32.hxg5 hxg5?! (Diagrama 70)

DIAGRAMA 70. Jogam as Brancas

Com 32...fxg5, recuperando a plena funcionalidade de minha estrutura na ala do rei, eu teria uma pequena chance.33.Bd3 f4 34.gxf4 Cxf4 35.Bc2 Ce6?!

35...Rf7 era melhor, para jogar ...f6-f5, embora a partida ainda deva terminar em empate.36.De4 Dxe4?

Este parece um erro arrepiante por problema de tempo. A simples 35...Cf4 asse-gura um empate confortável. Agora as Bran-cas têm uma grande vantagem.37.Bxe4 Cd8 38.c4! bxc4 39.Rc3 Rf7 40.Rxc4 Re6 41.Rc5 f5 42.Bd3??

Isso também parece ser um erro terrível por problema de tempo. Ambos possuíamos o mesmo ponto cego. 42.Bxc6 era um lance óbvio e bom. Depois, 42...Cxc6 43.d5+ Rd7 44.dxc6+ Rc8 45.b5 g4 46.fxg4 fxg4 e, en-quanto 47.b6 apenas empata, 47.Rd4!, perse-guindo e capturando o peão em g, venceria.

42...g4 43.fxg4 fxg4 ½-½Uma oferta de empate de minha parte

por cortesia, pois Boris provavelmente teria perdido por tempo.

Yasser Seirawan-Boris SpasskyQuarta Partida do Match, EUA contra o

Mundo, Nova Iorque (Blitz), 1990Defesa Polonesa

1.d4 b5Boris precisava de uma vitória de Pre-

tas, e isso funcionou uma vez. Decisão sen-sata fazer outra tentativa? Decidi não refutar a linha, mas jogar tranquilamente.2.Bf4 Cf6 3.Cf3 Bb7 4.e3 a6 5.h3 e6 6.Bd3 d6 7.0-0 Cbd7 8.Cbd2 c5 9.c3 Be7 10.a4 Db6 11.axb5 axb5 12.Txa8+ Bxa8 13.De2 c4 14.Bc2 d5 15.Ta1 0-0 (Diagrama 71)

DIAGRAMA 71. Jogam as Brancas

16.Dd1?!Um jogo tranquilo e depois colocando

a posição para dormir. Pode-se argumentar que, com 16.e4, ainda pode haver alguma coisa na posição para as Brancas.

Page 134: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

136 Yasser Seirawan

16...Bc6 17.b4 cxb3 18.Bxb3 Ta8 19.Txa8+ Bxa8 20.Qa1 Bb7 21.Ce5 Cxe5 22.Bxe5 Ce8 23.Bd1 Cd6 24.Be2 Cc4 25.Cxc4 bxc4 26.f3 f6 27.Bg3 Rf7 28.Bd1 Da6 29.Dxa6 Bxa6 30.Rf2 ½-½

Nenhuma proeza mística mágica que atiçaria o coração dos poetas.

Agora a situação era morte súbita. O vi-torioso na próxima partida venceria o match. Um terceiro sorteio e fiquei com as Brancas na quinta partida, uma Blitz, de cinco minutos como as duas anteriores.

Yasser Seirawan-Boris SpasskyQuinta Partida do Match, EUA contra o

Mundo, Nova Iorque (Blitz), 1990Defesa Polonesa

1.d4 b5Agora era demais. Era hora de jogar

para uma refutação.2.e4 Bb7 3.Bd3! e6 4.Cf3 a6 5.0-0 d6 6.c3 Cd7 7.a4! Cgf6 8.Te1 Be7 9.axb5 axb5 10.Txa8 Dxa8 (Diagrama 72)

DIAGRAMA 72. Jogam as Brancas

11.e5!O jogo direto e consequente tem suas

recompensas. As Brancas agora estão melho-res.11...dxe5 12.dxe5 Cd5

Não haveria compensação depois de 12...Bxf3 13.Dxf3 Dxf3 14.gxf3 Cd5 15.Bxb5, pois os peões dobrados em f não são tão im-portantes quanto o par de bispos.13.Bxb5 Bc6 14.Bxc6 Dxc6 15.Cd4 Db7 16.Dg4!

Um peão a mais e também a iniciativa. A posição está quase ganha.16...g6 17.Cd2 c5?

Fiquei contente de ver esse lance, pois o peão em c5 limita a atividade tanto do ca-valo em d7 quanto do bispo em e7.18.C4f3 h5 19.De4 Dc7 20.Cc4 h4? 21.Bg5! Bxg5 22.Cxg5 Th5? 23.Cxe6! 1-0

Desastre total e Boris perdeu o match.

Gostaria de concluir este capítulo so-bre Boris Vassilievich Spassky com a seguin-te história. Ele mesmo gosta de contá-la, e a conta muito bem:

“Era um Campeonato Soviético. Isso significava que também havia um Cam-peonato Soviético Feminino acontecendo simultaneamente. Eu estava no refeitó-rio/restaurante com meu segundo, Isaac Boleslavsky. Estávamos jantando quando uma mulher veio sentar-se com a gente. Ela estava com raiva. Muito zangada. Era evidente que tinha perdido sua partida na-quele dia. Ela implorou que Boleslavsky a ajudasse na próxima rodada.

“Boleslavsky acenou, concordando. (Ele respirou fundo, puxando o ar pesada-mente pelo nariz – Boris imita o segundo.) ‘Com quem você joga amanhã?’, Boleslavsky perguntou.

‘Com a fulana de tal’, veio a resposta.(Respiração profunda e lenta pelo nariz.) ‘Ela vai jogar 1.e4.’(Respiração profunda e lenta pelo nariz.) ‘Você vai jogar 1...e5.’

Page 135: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 137

(Respiração profunda e lenta pelo nariz.) ‘Ela vai jogar 2.Cf3.’(Respiração profunda e lenta pelo nariz.) ‘Você vai jogar 2...Cc6.’(Respiração profunda e lenta pelo nariz.) ‘Ela vai jogar 3.Bc4.’(Respiração profunda e lenta pelo nariz.) ‘Você vai jogar 3...Cd4.’(Respiração profunda e lenta pelo nariz.) ‘Ela vai jogar 4.Cxe5.’(Respiração profunda e lenta pelo nariz.) ‘Você vai jogar 4...Dg5.’(Respiração profunda e lenta pelo nariz.) ‘Ela vai jogar 5.Cxf7.’(Respiração profunda e lenta pelo nariz.) ‘Você vai jogar 5...Dxg2...’

“Eu, é claro, acompanhei a conversa atentamente. No dia seguinte, a mesma situação. Desta vez a mulher chega cor-rendo no restaurante e vai até nossa mesa extremamente entusiasmada. Ela vem até Boleslavsky e lhe dá um beijo na boca, agar-ra suas bochechas e diz: ‘Muitíssimo obriga-da! A partida transcorreu exatamente como você disse! Eu venci brilhantemente’. Daí, a mulher vira-se para mim, olha-me de cima a baixo com uma cara de nojo e diz: ‘Hã! Com um segundo desses, eu também poderia ser Campeã Mundial!’”

Para mim, Boris Vassilievich Spassky não foi apenas um de meus adversários mais fortes – ele é o quinto maior enxadrista que o mundo já teve.

Partidas clássicas contra Boris Spassky

Spassky-Seirawan, Baden, Áustria, 1980: ½-½

Spassky-Seirawan, Londres, Reino Uni-do, 1982: 1-0

Spassky-Seirawan, Toluca, México, 1982: ½-½

Spassky-Seirawan, Linares, Espanha, 1983: 1-0

Seirawan-Spassky, Nikšić, Iugoslávia, 1983: 1-0

Seirawan-Spassky, Tilburg, Holanda, 1983: ½-½

Spassky-Seirawan, Zurique, Suíça, 1984: 1-0

Seirawan-Spassky, Hollywood, Flórida, EUA, 1985: ½-½

Spassky-Seirawan, Montpellier, França, 1985: 1-0

Spassky-Seirawan, Barcelona, Espanha, 1989: ½-½

Seirawan: uma vitória, quatro derro-tas, cinco empates. Placar clássico: 3½-6½

Partidas rápidas contra Boris Spassky

Spassky-Seirawan, Nova Iorque, EUA, 1990: 0-1

Seirawan-Spassky, Nova Iorque, EUA, 1990: 0-1

Seirawan: uma vitória, uma derrota. Placar rápido: 1-1

Partidas Blitz contra Boris Spassky

Spassky-Seirawan, Nova Iorque, EUA, 1990: ½-½

Seirawan-Spassky, Nova Iorque, EUA, 1990: ½-½

Seirawan-Spassky, Nova Iorque, EUA, 1990: 1-0

Seirawan: uma vitória, nenhuma der-rota, dois empates. Placar Blitz: 2-1

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Anatoly Karpov, 1975-1985

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Este capítulo é dedicado ao Campeão Mundial de 1975 a 1985 Anatoly Yevgenyevich Karpov, um enxadrista de poderes extraordinários.

Enquanto o nome de Spassky está li-gado ao de Fischer, o nome de Karpov está inextricavelmente vinculado não a um, mas a dois grandes enxadristas: Robert James Fischer e Garry Kasparov. Anatoly, ou “Tolya”, foi, afinal, o vilão que recebeu a coroa do tí-tulo do Campeonato Mundial de Xadrez de Bobby Fischer por manter desistência. Para fãs como eu, sabíamos que, se Bobby tivesse disputado o match de 1975, ele teria venci-do. Depositar uma coroa de louros nos om-bros de Anatoly foi um insulto para os fãs do xadrez e uma traição do título. Para milhões de fãs dedicados do xadrez, o título “Cam-peão Mundial” deveria significar também o de “melhor jogador do mundo”. Eu estava convencido de que, em 1975, Bobby era o melhor enxadrista do mundo. Pouco me importava o que algum delegado nacional presente em uma Assembleia Geral da FIDE pudesse dizer sobre o assunto. A única opi-nião que contava – ao menos para mim – era a minha.

Quem é o dono do título?A concessão do título mundial a Karpov em 1975 levantou uma questão profunda e ex-tremamente perturbadora para o mundo do xadrez. Quem “é o dono” do título de “Cam-peão Mundial”? Antes de Mikhail Botvinnik, o público certamente reconhecia os Cam-peões Mundiais como “detentores do título”, mas eles eram donos dele?

O título não era uma propriedade que se pudesse passar para outra pessoa. Quando Emanuel Lasker tentou em 1920 conceder o título a seu Desafiante, José Raúl Capablanca, sem jogar, o público não queria saber daquilo e recusou-se a aceitar a decisão de Lasker. O match foi disputado em Havana após longos atrasos. Antes de começarem as partidas, Lasker insistia em ser tratado como o Desafiante. Como deixa claro em sua correspondência, ele já tinha entregado o título a Capablanca antes do match ter começado. Agora, pelo menos em seu modo de ver, ele estava jogando para re-conquistar a coroa perdida.

O público não compartilhava do pon-to de vista de Lasker. Lasker era o Campeão Mundial e reconhecido como tal pelo públi-co até o dia em que abandonasse o título

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em um match disputado. Mas ele não era um título ou propriedade que ele pudesse ceder ou entregar a um Desafiante, digno disso ou não. O Campeão Mundial possuía o título, como um zelador, mas não era dono dele. Quando Alekhine morreu como deten-tor do título, um novo evento era necessário. Ele tinha que ser organizado de tal forma que o público aceitasse que a disputa cria-va legitimamente um digno novo Campeão Mundial ou pelo menos alguém que tivesse feito o suficiente para poder-se dizer: “Bem, dos Candidatos, ele está perto o suficiente.” Perto o suficiente para reivindicar ser o me-lhor enxadrista do mundo.

O verdadeiro Campeão Mundial poderia jogar, por favor?Da morte de Alekhine enquanto ainda era Campeão Mundial, avançamos rapidamente no tempo até Anatoly Karpov em 1975. Ana-toly certamente havia realizado o que as re-gras exigiam para tornar-se Desafiante. Mas o sentimento geral das pessoas era que havia um abismo entre o Desafiante e o Campeão e que Bobby era simplesmente muito superior. Diferentemente de Alekhine, Bobby não tinha falecido e, embora Anatoly estivesse perto, ele não era a coisa de verdade. Ele não esta-va perto o suficiente. E aí estava a dificuldade: em 1975, Anatoly Karpov era um Campeão no papel e o público, certamente o público oci-dental, simplesmente não estava a fim de ser enganado pela FIDE. Assim, iniciou-se uma estranha interação de dinâmicas que duraria duas décadas, se não mais.

“Todo mundo” (isto é, fãs como eu) sabia que Bobby Fischer era o melhor en-xadrista do mundo, mas enquanto ele se mantivesse fora da competição nada havia a debater. O “verdadeiro Campeão” não esta-va jogando e não mostrava nada. Já Anatoly queria desesperadamente ser aceito como um genuíno Campeão Mundial, além de ser reconhecido como o melhor enxadrista do mundo. Sua missão era simples: se ele que-

ria ser tratado ou considerado o Campeão Mundial, teria que jogar contra os melhores enxadristas nos melhores torneios e vencer. E vencer com frequência. E o fez. Anatoly era o melhor enxadrista do mundo entre os Grandes Mestres ativos.

O primeiro teste de Anatoly como “Cam-peão defensor da FIDE” foi em 1978, quando enfrentou novamente Victor Korchnoi, des-ta vez sancionado como Campeão Mundial. Venceu o match com a estreita margem de 6 vitórias contra 5 derrotas e 21 empates. No final do match, Anatoly estava minguando, perdendo três das últimas cinco partidas. Sua vitória foi por muito pouco e não dissuadiu seus críticos, mesmo que relutantemente admitissem que derrotar Victor Korchnoi, o segundo enxadrista mais bem classificado, não era pouca coisa. A margem de vitória foi dolorosamente pequena.

Outro ciclo de três anos veio e se foi; Anatoly manteve-se um Campeão Mundial ativo, vencendo ou empatando em primeiro lugar em praticamente todos os eventos de que participou. Em 1981, ele enfrentou Victor Korchnoi pela terceira vez em um match para decidir o título mundial. Dessa vez o resulta-do foi um desempenho decisivo de 6 vitórias, 2 derrotas e 10 empates. Anatoly dominou o mais curto match pelo Campeonato Mundial na história do Pós-guerra. Um novo Karpov, versão 3.0, nasceu.

O Anatoly Karpov do período de 1981 a 1984 era um enxadrista que o mundo ra-ramente tinha visto antes. Esse não era um Campeão Mundial do tipo “primeiro entre iguais” – esse era um Campeão Mundial que tínhamos esperado que Bobby Fischer se tor-nasse: um Campeão Mundial de credenciais indiscutíveis, bem superior a seus colegas. Anatoly jogou em todos os principais even-tos e venceu a maioria. No período de 1977 a 1985, um novo tipo de evento estava nascen-do: o evento de Categoria 15 – um evento tão forte que, na história do xadrez, somente um punhado tinha sido realizado; eventos de Categoria 15 tornaram-se competições

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anuais e Karpov venceu ou dividiu o primeiro lugar em praticamente todos eles.

Todo enxadrista tem uma opinião so-bre o que teria acontecido em um hipotético confronto entre Bobby e Anatoly em 1975. Eu não sou diferente. Bobby teria vencido por 10 a 4 com aproximadamente 20 em-pates ao longo do caminho. Mas, em 1984, Anatoly Karpov tinha evoluído para um for-midável Campeão Mundial e teria derrotado qualquer Desafiante, inclusive, em minha avaliação ao menos, Bobby. É realmente ina-creditável como Anatoly estava bom duran-te esse período. Em minha opinião, Anatoly Karpov é o segundo melhor enxadrista que o mundo já teve.

Mas Karpov sofreu um destino cruel. Teve que lutar com um adversário que nin-guém podia superar – a sombra de Bobby Fis-cher. Por maiores que fossem suas realizações, ninguém podia saber com certeza se Karpov era o verdadeiro Campeão, pois ele jamais jo-gou contra seu maior rival. Isso foi uma tragé-dia para o mundo do xadrez, para Anatoly e, possivelmente, também para Bobby.

Apesar disso, Karpov compilou um histórico em torneios e matches que jamais será igualado, nem mesmo pelo maior en-xadrista de todos os tempos, Garry Kaspa-rov. Existe uma ironia verdadeira no segun-do golpe sofrido por Karpov pelos Deuses do Xadrez – ele era o Campeão Mundial quando Kasparov entrou em cena, e teve que lutar não apenas com uma sombra que não jogava, mas com um adversário real que jogava. Os dois disputaram um número estarrecedor de matches.

Antes de nos voltarmos para a rivali-dade entre Karpov e Kasparov, não estarei exagerando ao enfatizar que Karpov era muito mais do que a ponte entre Fischer e Kasparov – ele era um enxadrista incrivel-mente poderoso por seu próprio mérito e os enxadristas devem ser eternamente gra-tos por ele ter enfrentado seus rivais com tamanha determinação.

O infame Match de 1984Vamos fazer uma pausa para compreender a grandeza de Karpov. Em 1984, quando de-fendeu seu título, dessa vez contra um novo Desafiante, Garry Kasparov, no famoso pri-meiro match cancelado, Karpov liderava com cinco vitórias a zero. Pare para pensar sobre o fato por um instante. Garry Kasparov, que ascenderia para tornar-se o maior enxadrista de todos os tempos, estava sendo esmagado por 5 a 0 pelo Anatoly Karpov de 1984. Nos-sa, esta é uma distância com seus rivais que somente Bobby Fischer na safra de 1971 foi capaz de demonstrar.

Muitos especialistas, inclusive eu, su-geriram que, se Anatoly tivesse vencido o match de 1984 por 6 a 0 (desconsiderando os empates), Kasparov teria sido psicologi-camente destruído e não teria se tornado o Kasparov que conhecemos hoje; que, sem dúvida, impulsionado por tão imensa vitória, Karpov teria mantido seu título por mais dez anos e continuaria sendo o maior jogador de todos os tempos. Este é meu modo de ver: Karpov vence o match de 1984 com uma vitória esmagadora de 6 a 0, Garry nunca se recupera totalmente de tamanho desastre, e Karpov permanece no topo do trono por mais uma década. Depois de um total de 20 anos de supremacia, ele terminaria sua car-reira como o maior enxadrista de todos os tempos. Anatoly chegou perto assim desta história de grandeza no xadrez.

Mas não foi isso o que aconteceu. O que aconteceu é simplesmente surpreen-dente. Minha única descrição é “sobre-hu-mano”. Perdendo de 5 a 0 após 27 partidas, Garry Kasparov encontra recursos dentro de si que nem sabe que existem. Enfrentando a mais horrível provação possível para um pro-fissional do xadrez, Kasparov luta com cada pingo de determinação que pode reunir. Ele não pode perder uma única partida. Ele vai empatar e empatar – para sempre se ne-cessário – mas não vai perder. Ele não pode perder. O confronto não é mais um jogo ou

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um duelo esportivo – em vez disso, transcen-deu o xadrez e transformou-se em uma luta entre a vida e a própria morte. A perda de uma única partida significa a morte de uma carreira. Kasparov deve ficar com seu adver-sário, aguentando dia após dia, suportando o que de melhor Karpov tem a oferecer. Ne-nhum dos enxadristas está muito interessa-do em correr riscos. Karpov quer uma derro-cada de 6 a 0. Com a Partida 32, o pesadelo de Kasparov termina: é sua primeira vitória naquele match. Excepcional. A ameaça de perder de maneira desonrosa acabou. Caso Karpov agora vença o match, Kasparov terá o consolo de ao menos uma vitória.

Mais uma vez, a ação defensiva de “não dever perder nenhuma partida” continua. Karpov é incapaz de levar o match até a li-nha de vitória. Depois de cinco meses e 46 partidas, o match continua parado em 5-1. Os organizadores e jornalistas estão ficando exaustos e impacientes. Alguns repórteres foram colocados em Moscou desde antes do início das partidas e permaneceram por seis meses. Os quartos de hotel tornaram-se lares; as vozes de entes queridos no outro lado das linhas de telefone estão mudando; os orçamentos estouraram e ninguém sabe ao certo o tamanho do prejuízo.

Subitamente, o match interminável toma um rumo totalmente novo: Kasparov vence, consecutivamente, as Partidas 47 e 48. O placar do match é de 5 a 3 e, pela primeira vez em meses, as coisas ficaram interessantes. Um turbilhão de atividades acontece e os boatos são muitos: diz-se que Karpov está exausto; existe uma sugestão de médicos não identificados de que a saúde dos competidores poderia estar ameaçada; diz-se que os organizadores estão conside-rando mais uma mudança de local; existe a possibilidade de um adiamento de um mês como intervalo oficial antes da retomada do match; as autoridades da FIDE estão cogitan-do o cancelamento do match, programando um novo confronto com um número defini-do de partidas. Em suma, os boatos corriam,

e ninguém sabia ao certo o que aconteceria. De qualquer forma, para quando estava pro-gramada a Partida 49?

Nenhuma decisão da magnitude de cancelar o match de 1984/85 é tomada apenas por uma razão. Há sempre uma multiplicidade de causas para esse tipo de decisão e para o que acontece. Talvez jamais saibamos todos os fatores e a dinâmica. O que realmente sa-bemos é que o presidente da FIDE, Florencio Campomanes, tomou uma decisão de longo alcance: ele cancelou o match “sem resultado” e convocou um novo match de 24 partidas com um placar redefinido em zero a zero. O mundo do xadrez ficou em pé de guerra.

Muitas cargas de caneta foram gastas sobre o cancelamento, mas minhas opiniões são agnósticas. Não resta dúvida de que o match tinha ido muito além do que toda pessoa sensata poderia esperar. Cinco a seis meses para um evento esportivo? Os limites máximos do extraordinário há muito haviam sido ultrapassados. De todas as pessoas en-volvidas no match, Campomanes deveria ter compreendido que uma medonha possibi-lidade como a de um match infindável era real. Ele tinha sido o organizador do con-fronto de 32 partidas em Baguio City entre Karpov e Korchnoi em 1978 que terminou em 6 a 5. Aquele match, parecido com uma maratona, estava começando a testar a pa-ciência dos organizadores quando também chegou-se a uma súbita e furiosa conclusão: Korchnoi venceu três das últimas cinco par-tidas, mas perdeu a partida que Kasparov não perderia: a partida final.

Campomanes sabia que as regras de “precisar vencer seis partidas” tinham sido adotadas em 1975 como uma forma de apaziguar as exigências de Fischer para um match de “precisar vencer dez partidas”. Na época do confronto de 1984-1985, essas regras tinham perdido sua utilidade, pois tinham sido colocadas em vigor para atrair e tirar Bobby Fischer da aposentadoria e aquele gambito tinha falhado há muito tempo. Era hora de abolir aquele sistema e

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retornar ao formato de 24 partidas para o qual os organizadores poderiam fazer um orçamento adequado. O match cancelado de 1984/85 forçou essa decisão racional.

Mitos e lendasJá deve estar claro para o leitor que Campe-ões Mundiais são o material de lendas. As im-pressionantes habilidades de todo Campeão Mundial, de Steinitz a Kasparov, prestam-se à criação de mitos. Talvez sempre tenha sido verdade que os próprios Campeões Mun-diais desempenharam um papel na criação de seus próprios mitos, mas a mitologia em torno de Fischer, Karpov e Kasparov atingiu níveis nunca vistos.

Examinemos primeiramente o mito de Kasparov no confronto de 1984-1985.

O mito do Match RoubadoQuando o primeiro match Karpov-Kasparov foi cancelado, com o placar a favor de Karpov, a reação de Kasparov foi muito diferente do que talvez você tenha imaginado.

Surpreendentemente, o condenado, Garry Kasparov, e seus defensores no Oci-dente criticaram violentamente as ações de Campomanes, rotulando-as de “Dia da Vergonha”. Em uma descrição mais sinistra, Kasparov vê Campomanes como um ami-go íntimo e (mais sombriamente) talvez até como um parceiro de negócios de Kar-pov. (Nunca foram apresentadas provas de quaisquer transações comerciais mútuas.) Campomanes, fomos informados, “obede-ceu ordens” (provavelmente da KGB – aque-les c***lhas!) ou cancelou o match para “salvar” Karpov e seus acordos comerciais mutuamente lucrativos de uma derrota/colapso catastrófico! Sem dúvida, bilhões estavam em jogo.

Vamos pensar sobre estas alegações por um instante. Afora a conjectura quanto à motivação de Campomanes, é possível argu-mentar convincentemente que foi Kasparov, e não Karpov, quem mais sofreu com o tér-

mino do match? Eu acho que não – a decisão de Campomanes de cancelar o match servia a Kasparov perfeitamente. Ele receberia um novo match, uma planilha limpa, por assim dizer; o presente placar deficitário de 5 a 3 foi apagado. Dia da Vergonha? Vamos ser absolutamente claros: que tal um “Dia da Co-memoração”? E estourar o espumante. Não podia ter sido melhor para Kasparov.

Inversamente, a decisão de Campoma-nes foi terrível para Karpov. Sua liderança anterior de 5 a 0 tinha se evaporado, e sua li-derança presente de 5 a 3 também foi apaga-da. Percebendo o óbvio, Karpov queria que o match continuasse, alegando que não estava exausto e que quaisquer declarações em con-trário eram falsas. Não senhor, ele estava com todo o gás e ansioso para brigar.

Não sou médico e evidentemente não tive a chance de examinar Karpov para determinar seu estado de saúde quando o match terminou. Sua alegação de que ele estava em forma é tão improvável de ser verdadeira quanto as alegações de Kas-parov de que o match foi cancelado para salvar Karpov da derrota certa. Evidente-mente, o match teve um efeito adverso em Karpov, assim como ocorreu em seu exaus-tivo match contra Korchnoi em 1978. Mas as chances de Karpov perder três partidas contra vencer uma eram com certeza pe-quenas. Na época do cancelamento, Kas-parov estimou que sua chance de vencer o match de 1984/85 caso ele continuasse era de uma em três. Eu acho isso muito otimis-ta. Em minha opinião, as chances de vitó-ria de Kasparov eram no máximo de 25%, o que significa 75% de chances de que ele teria perdido.

Embora Kasparov ainda sustente sua hipótese do “Dia da Vergonha”, acusando “Karpomanes” (uma mistura dos nomes de Campomanes e Karpov) de ter cooperado com a Federação de Xadrez da URSS para salvar seu homem, é realmente hora de dei-xar a questão em suspenso. Embora eu dis-corde com a estimativa de Kasparov sobre

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suas chances, vamos dar a Garry o benefício da dúvida e aceitar seus 33% de chances de vencer. Isso significa 66% de chances de perder e, assim, quem se beneficiou mais com a decisão do cancelamento?

Recentemente, li um artigo de Kasparov na New In Chess Magazine (2008, número 5, páginas 62-70). Referindo-se à Partida 48, ele escreveu: “Eu acho que esta partida não foi somente a melhor que joguei em cinco me-ses, mas também a melhor do match como um todo.” Aqui Garry demonstra um pendor pela história revisionista, talvez oriundo de seus primeiros anos na União Soviética. Ao que parece, Kasparov, depois de fazer uma apreciação mais profunda e objetiva do match, chegou a uma conclusão atordoante: as Partidas 47 e 48 foram duas das melhores partidas produzidas em todo o match! Se, como sugerido por Garry, ambos os joga-dores jogaram um xadrez de extraordinário alto nível naquele momento, deve ter sido por causa do aquecimento das 46 partidas... Mas onde isso coloca a alegação de Garry em 1985 de que Karpov estava exausto e de que, se ele era incapaz de continuar, deveria aban-donar o match?

Bem, se aceitarmos este revisionismo, peço a mesma oportunidade de também re-visar minhas opiniões. Dê-me um novo Kar-pov em plena forma e eu aumento minha estimativa de 75% de uma vitória de Karpov se o match tivesse continuado para 80 ou 90%. Se o Anatoly Karpov de 1984, jogando o melhor xadrez de sua vida, precisava ga-nhar apenas uma partida antes de perder três em um match no qual os empates não contam, sinto-me em terreno firme com mi-nha estimativa de 80%. Karpov era o melhor enxadrista do mundo em 1984-1985 e, cer-tamente, ninguém podia dar-lhe uma vanta-gem de 3 a 1. Qualquer coisa podia ter acon-tecido, mas vamos manter os pés no chão...

O resto, como se diz, é história. Kasparov venceu o match seguinte, tornando-se o mais jovem Campeão Mundial na história. Ele pas-saria a dominar o xadrez durante os vinte anos

seguintes, como descobriremos nos capítulos a seguir.

Com demasiada frequência, olhamos a vida com as lentes de nossos próprios olhos, deixando de considerar as opiniões de nossos opositores e se sua opinião é justa ou não. Muitas vezes já me perguntei o que Garry poderia ter dito se os papéis fossem invertidos e se sua liderança de 5 a 3 tivesse sido apagada. Neste caso, sua hipótese so-bre o “Dia da Vergonha” teria sido justificada. Na realidade em que a maioria de nós vive, a hipótese de Garry me parece absurda, mas ela tomou proporções mitológicas sem um bom motivo. Afinal, ele tornou-se Campeão Mundial no final de 1985.

O mito de Fischer como Davi contra GoliasVamos corajosamente afirmar o óbvio: todos somos tanto santos como pecadores. Anatoly Karpov não era nem é diferente de todos e de cada um de nós. Ele tem seus pontos bons e ruins, seus altos e também seus baixos. Tudo faz parte de nossa comédia humana. Nin-guém é perfeito.

Para quem pensa que vou pôr Karpov nas alturas, este capítulo será uma surpresa, e para quem pensa que, como fã de Bobby Fischer, vou jogar Anatoly na lama, errou também. Serei claro: eu tenho grande ad-miração por Anatoly. Suas partidas e reali-zações são incríveis e dignas de nosso maior respeito. Ele com certeza recebeu muita ajuda ao longo do caminho, mas frequen-temente a ascensão de “programa de espor-tes” de Karpov no Campeonato Mundial é contrastada com o mito de Fischer como o lobo solitário.

O público do xadrez há muito é alimen-tado com a fábula de que Bobby Fischer de-safiou sozinho o rolo compressor do xadrez soviético e, em reverência ao gênio indivi-dual, derrotou o sistema esportivo socialista soviético construído durante décadas. Que evocativo. O gênio solitário defendendo o

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direito contra a força; liberdade individual versus formação sistêmica em camisa de for-ça; Bobby lutando contra todo um aparelho governamental para arrebatar o Campeo-nato Mundial de Xadrez. Puxa! Visto deste ângulo, um brilhante enredo de cinema. Hollywood não poderia fazer melhor – deve haver um filme aqui em algum lugar. Quero dizer, não é legal isso? Legal, mas nonsense.

Para pôr as coisas em perspectiva, é verdade que, do ponto de vista do xadrez em si, Fischer era em grande parte autodi-data. Aquilo de que ele carecia da formação formal institucionalizada que caracterizava a “escola soviética de xadrez”, compensava com uma determinação obstinada e traba-lho árduo. Ele estudava as partidas dos me-lhores enxadristas soviéticos e lia a literatura de xadrez russa avidamente. No fim, Bobby “sovietizou-se mais do que os próprios sovi-éticos”, e fez isso apenas com modesto auxí-lio de seus colegas.

Mas isso é apenas parte da história. Va-mos começar com o fato mais simples: no ci-clo de três anos que Bobby venceu, ele não se qualificou. Bobby, “sem ajuda de ninguém”, retirou-se do ciclo porque boicotou o Cam-peonato dos Estados Unidos de 1969, que casualmente era também um qualificador zonal e a primeira etapa no ciclo do Campeo-nato Mundial. A lenda poderia ter terminado ali: “Desculpe-nos imensamente, Bobby, mas você está fora dessa. Você pode tentar nova-mente no próximo ciclo de três anos, o que começa em 1975. Tchau. Cuide-se bem”.

Foi a decisão de Pal Benko, o qual ti-nha se qualificado no Zonal dos Estados Unidos, de retirar-se e ceder sua vaga de qualificação em favor de Bobby que permi-tiu que ele competisse no Interzonal que o colocou no caminho do estrelato. Vou re-petir: Bobby estava fora e, somente porque Pal Benko foi capaz deste fantástico gesto esportivo, Bobby pôde crescer.

Assim como a tentativa de Lasker de dar seu título a Capablanca sem jogar, não esta-va sequer claro que Benko tinha o direito de

transferir sua vaga de qualificação a um enxa-drista de sua escolha. Se Pal queria se retirar do ciclo, não seria o jogador no Zonal, que era o próximo na fila, a subir para substituir Pal? Na verdade, todos os enxadristas americanos no Zonal teriam que concordar em deixar que Bobby tomasse a vaga de qualificação de Pal e abrir mão de seus direitos e reivindicações. Além disso, o Comitê Central da FIDE tam-bém teria que aprovar essa troca. As regras eram claras: os melhores jogadores do Zonal se qualificavam para as etapas seguintes da disputa. Jogadores ausentes não recebiam tratamento preferencial. Foi nesse comitê que as autoridades da USCF trabalharam imensa-mente para assegurar os votos necessários que permitiram que Bobby jogasse.

Escreveu-se que Pal recebeu dinheiro para ceder seu lugar. Isso não é verdade. Pal retirou-se pelo mais simples dos motivos: ele achava que Bobby tinha uma genuína chance de se tornar Campeão Mundial, cer-tamente uma chance melhor do que ele mesmo. Ele estava disposto a ceder seu lu-gar, mas somente para Bobby. Assim, só para começar, Bobby precisou e recebeu ajuda de Pal Benko. Se Pal tinha esperanças de remu-neração, só havia uma: se Bobby avançasse bastante no ciclo, talvez ele pudesse ser um técnico ou assistente.

Depois, todos os participantes no Zo-nal dos Estados Unidos de 1969 tinham que concordar com a decisão de Benko de trocar com Bobby. Se Benko queria sair, tudo bem, essa era sua decisão; mas o camarada atrás de Benko que teria se qualificado teria que abrir mão de seu direito. E assim por diante. Ne-nhum desses enxadristas foi pago para ceder seus direitos. Eles todos queriam ver Bobby jogar – vê-lo jogar e vencer.

Podemos ver que, fora do tabuleiro, Bobby precisou de ajuda para ter sua chan-ce no Campeonato Mundial, e a recebeu. E a história não termina aí.

Depois de ter garantido o lugar de Bobby no ciclo através da aprovação do Comitê Central da FIDE, a USCF veio em

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seu auxílio e o apoiou sem reservas. O di-retor executivo da USCF, o coronel Ed Edmondson, dedicou a maior parte de seu tempo e energia para garantir que Bobby recebesse todo o apoio de que precisava. Para citar o ex–diretor executivo da USCF Al Lawrence:

“Leroy Dubeck, presidente da USCF de agosto de 1969 a agosto de 1972, lem-bra que, quando assumiu, concordou com o então diretor executivo Ed Edmondson de concentrar todos os recursos da federa-ção de xadrez em um único objetivo monu-mental – dar a Fischer a chance de vencer o Campeonato Mundial. Para esse propósito, os dois inclusive redirecionaram todo o di-nheiro obtido com sócios vitalícios em vez de investi-lo.” (Chess Life, setembro de 2007, página 25.)

Junto com Leroy Dubeck e Ed Edmondson, havia Fred Cramer, também da USCF, que ajudou Fischer com acordos e numerosas questões jurídicas.

Os Grandes Mestres Bill Lombardy e Lubosh Kavalek estavam lá para oferecer seus serviços da forma como pudessem, as-sim como o Mestre Internacional Anthony Saidy, amigo íntimo de Bobby. Havia Lina Grumette, uma senhora de idade adorável, figura materna para Bobby, a qual, da mes-ma forma, dedicou-se a apoiá-lo. Por muitos anos na adolescência, Bobby hospedou-se em sua casa, onde ela devotou-se ao bem--estar dele. Existe uma história famosa de Lina no cinema com Bobby em Reykjavik em um momento crítico no match de 1972, dizendo-lhe resolutamente para apenas jo-gar e vencer. Havia torrentes de pessoas, or-ganizadores, fãs e jornalistas ansiosos para ajudar Bobby, desejando-lhe sucesso, insti-gando-o a seguir adiante.

Houve uma profusão de apoio de to-dos os cantos. Se Bobby tivesse feito um apelo público aos fãs do xadrez em 1975 e dito: “Por favor, preciso de sua ajuda. Envie 50 dólares para minha verba de treinamento e ajude-me a manter meu Campeonato Mun-

dial. Com seu apoio, eu prometo competir e, se a competição não acontecer, devolverei sua doação...”, suspeito que eu, um jovem de 15 anos com pouco dinheiro, e um milhão de outros fãs de xadrez dos Estados Unidos terí-amos feito a doação. E de bom grado. Bobby teria uma reserva de guerra de 50 milhões de dólares quase da noite para o dia, tamanho era o “apoio” que ele tinha. A própria suges-tão de que Bobby fez o que fez sozinho é um mito criado pela mídia e desvaloriza os imen-sos esforços das muitas pessoas sem as quais Bobby teria continuado sendo uma possibili-dade para o mundo do xadrez.

Para colocar a questão sem rodeios: sem ajuda, Bobby não chegou a parte alguma. Ele se retirou do ciclo. A verdade simples é que Bobby às vezes era seu próprio pior inimigo e isso lhe custava muito caro: às vezes ausenta-va-se, às vezes retirava-se e geralmente sabo-tava suas próprias campanhas. Foi a assistên-cia de algumas pessoas-chave em momentos decisivos que ajudou a empurrar, convencer e instigar Bobby a encontrar o seu destino. Não se esqueçam do telefonema do Dr. Hen-ry Kissinger que fez Bobby embarcar no avião para a Islândia. Sem ajuda? Por favor!

O mito de Karpov e da igualdade de condiçõesBobby Fischer foi o pior pesadelo da má-quina de xadrez soviética que se tornou realidade. Eles precisavam de um Karpov e, parafraseando um velho ditado, se Karpov não tivesse existido, teriam que inventá-lo. Inventaram? Karpov era um grande enxa-drista mas, como porta-bandeira do xadrez soviético e do Estado soviético, ele foi plena-mente apoiado com o máximo de privilégios possível. Nenhum enxadrista jamais desfru-tou tanto as doações oferecidas pelo Estado e pela FIDE quanto Anatoly Karpov. Poderia tê-lo feito sozinho? Karpov superou a som-bra de Fischer sendo um “Campeão ativo” que, merecidamente, deixava que suas pe-ças e peões falassem por si? Como veremos,

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Anatoly usufruiu de todas as vantagens possíveis e depois de algumas que jamais tinham sido imaginadas antes.

O “apoio do Estado” a Anatoly parece ter começado desde o início de sua carrei-ra. Depois o “trem da alegria” só acelerou. Ele obteve permissão para se mudar com a família para Moscou – permissão não con-cedida sem um bom motivo na União So-viética. Vamos recapitular os simples fatos do ciclo de três anos de 1972-1975, que o levou ao título por forfeit:

1. Anatoly qualificou-se no Zonal soviético. 2. Disputou no Interzonal soviético de

1973 em Leningrado, empatando invicto em primeiro lugar com Victor Korchnoi.

3. Disputou três matches de Candidatos, derrotando Polugaevsky pela primeira vez em sua cidade natal de Moscou.

4. Derrotou Spassky em Leningrado na Semifinal.

5. Derrotou Korchnoi na Final de Candi-datos de 1974 em Moscou por 3 a 2, com 19 empates. A cidade natal de Korchnoi era Leningrado, e Karpov morava em Moscou. O match foi em Moscou.

6. Por fim, obtendo o título em 1975 por muita desistência graças às maquina-ções da Federação de Xadrez da URSS na Assembleia Geral da FIDE. A USCF estava no outro lado das maquinações, apoiando o Campeão Mundial Bobby Fischer.

Em parte porque o Interzonal de que participou foi realizado em Leningrado e porque seus adversários nos torneios de Candidatos (Polugaevsky, Spassky e Korchnoi) eram todos enxadristas sovié-ticos (na época), aconteceu que Anatoly Karpov tornou-se Campeão Mundial sem jogar uma única partida fora da União Sovié-tica; ou, melhor dizendo: ele jogou todas as suas partidas na Rússia, e a maioria de suas partidas, incluindo a final de Candidatos, foi disputada em sua cidade, Moscou. Como

eufemisticamente diriam os britânicos, “isso ajuda”.

Ainda posso ver Bent Larsen queixan-do-se de que, para uma fase do prolongado ciclo de três anos, o Interzonal em que ele seria obrigado a competir seria disputado dentro da URSS. Fico pensando em como Larsen se sairia se todo o ciclo de três anos ti-vesse ocorrido em Copenhague.

Serei absolutamente claro: não estou fazendo acusações de fraude ou trapaça. Na época, Karpov já estava entre os dez melho-res do mundo. Estou apenas dizendo que seus esforços contaram com o total amparo e apoio da Federação Soviética de Xadrez e sem esse apoio ele poderia não ter sido bem-sucedido.

Depois que Karpov foi declarado Cam-peão Mundial da FIDE e a questão do empate em 9 a 9 de Fischer estava sendo debatida, a questão era: de que vantagem, se houver alguma, o Campeão deveria usufruir? As au-toridades da FIDE decidiram dar ao Campeão Karpov uma imensa vantagem: uma cláusula de revanche. Caso Karpov perdesse um ma-tch pelo título, ele teria direito a uma revan-che – precisamente o direito que Botvinnik exerceu com êxito antes de ser tirado dele por ser uma vantagem muito grande. O di-reito a uma revanche era simplesmente uma imensa vantagem para o Campeão Mundial e certamente muito maior do que qualquer coisa que Bobby tivesse pedido. Da perspec-tiva de Karpov, isso era muito natural. Por que ele iria se opor? Realmente, por quê?

Com sua ascensão ao trono do xadrez, Anatoly Karpov tornou-se uma figura de li-derança nos círculos do esporte soviético e da cultura soviética. Ele trouxera de volta a coroa que tinha sido levada pelo arrivista Bobby Fischer. Foi premiado com a Ordem de Lênin e duas vezes eleito Esportista Sovi-ético do Ano – uma realização digna de con-sideração em um país que produziu Cam-peões Mundiais em praticamente todos os esportes. Na época do match de 1978 com Victor Korchnoi, e especialmente no de 1981,

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a influência de Karpov na URSS era muito for-te. Seu adversário, um desertor, oficialmente um criminoso do Estado soviético aguardan-do julgamento, era o perfeito contraste para Anatoly. Ele empunhava a bandeira, preser-vava a honra da URSS e mantinha a coroa. Os Comissários tinham que ficar absolutamente encantados com Anatoly Karpov – ele era o perfeito “herói nacional da pátria.”

Karpov nunca jogou contra Fischer, mas três vezes derrotou o demonizado Victor Korchnoi, de maneira justa e hones-ta. Ou não? Em 1976, Korchnoi desertou da União Soviética enquanto disputava um torneio em Amsterdã. Deixou para trás uma esposa e um filho na União Soviética. Ele im-plorou ao Estado soviético que permitisse que seus familiares saíssem e se unissem a ele no Ocidente, mas sua solicitação foi rejei-tada muitas vezes. Em entrevistas à impren-sa, Korchnoi explicou que sua família estava sendo deliberadamente mantida como “re-fém” pelo Estado soviético e que, na véspera de suas partidas contra Karpov, seu filho Igor foi mandado para um campo de prisionei-ros, como de fato aconteceu em 1981.

É aqui que as coisas se tornam especial-mente interessantes: Korchnoi alegou que Karpov, se quisesse, poderia intervir e pedir ao Estado que libertasse seus familiares. Foi uma acusação que considerei muito convin-cente. O simples respeito por seu adversário deveria exigir que Karpov fizesse este pedi-do e permitir que a família se reencontrasse e pôr um fim a uma acusação muito forte e emotiva, ao mesmo tempo garantindo que a importante questão da supremacia do xadrez soviético fosse resolvida no tabuleiro.

Foi somente anos depois de Korchnoi ter deixado de ser uma ameaça ao título do Campeonato Mundial que sua esposa Bella e seu filho Igor tiveram permissão para sair da União Soviética e viver no Ocidente. Victor acabou se divorciando e casando novamen-te. Que eu saiba, Karpov jamais intercedeu em nome dos familiares de Victor.

Karpov era um enxadrista formidável, mas ele não adquiriu sua força sem ajuda. A União Soviética era a maior usina de xa-drez do planeta. Os melhores enxadristas do mundo vieram da URSS e Karpov passou sua vida inteira competindo com eles. O Estado patrocinava-o, seus treinadores e as sessões de treinamento, supria-o de livros e mate-riais de xadrez e garantia que ele fosse um profissional de xadrez em tempo integral e bem cuidado. Ele podia dedicar seu tempo e energia ao estudo e jogo e era simplesmen-te inevitável que seu talento lhe permitisse emergir como um forte Grande Mestre.

Em diversas ocasiões, li palavras de pessoas esclarecidas dizendo que Bobby Fischer foi “o primeiro profissional do xadrez” do mundo, como todos temos uma “dívida” com ele por seu “profissionalismo” e como ele preparou o caminho para que outros também se tornassem profissionais. Bobby tinha uma postura profissional, mas é risível considerá-lo o primeiro profissional do xa-drez. A URSS tinha enxadristas profissionais além de atletas profissionais muito antes de Bobby ter aprendido uma abertura. Os Gran-des Mestres e Campeões soviéticos tinham apartamentos, rendas, ordenados, carros, casas de verão, férias, treinadores, técnicos e pensões por décadas antes de Bobby. Es-ses enxadristas dedicavam suas vidas ao seu ofício. Eles eram o epítome dos profissionais.

O que Bobby fez foi popularizar o xadrez no Ocidente e possibilitar que seus partidários no Ocidente vivessem modestamente dis-so. Os profissionais orientais andavam muito bem muito antes disso, com rendas muito su-periores à do “homem comum” na rua.

Só para dar um exemplo, meu amigo e Mestre Internacional Nikolay Minev formou--se em Medicina na Bulgária. Depois de exer-cer a medicina por alguns anos, ele mudou de profissão. Tornou-se editor da revista Shakhmatna Misl da Federação Búlgara de Xadrez, além de ter um cargo fixo nos cam-peonatos búlgaros e na equipe nacional. Por

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quê? Nikolay ganhava três vezes mais como enxadrista do que como médico e, além dis-so, trabalhava menos horas. Como enxadris-ta, Nikolay tinha permissão para viajar para o exterior, o que era simplesmente impossí-vel como médico. Os profissionais de xadrez viviam muito bem nos países comunistas e, quando seus melhores dias de jogo acaba-vam, podiam facilmente passar aos postos de técnicos e treinadores recebendo assim apartamentos, salários e pensões. Não estou dizendo que viver nos países comunistas era fácil; mas viver em um país comunista era muito mais fácil se você fosse um Grande Mestre.

Anatoly Karpov era um enxadrista pro-fissional e devia sua subsistência ao Estado Soviético. À medida que foi acumulando sucessos, seus privilégios também aumen-taram. Ele dispunha dos melhores treinado-res, dos melhores técnicos e das melhores bibliotecas de xadrez que a URSS podia ofe-recer. Uma lista muito longa de enxadristas, incluindo Mikhail Botvinnik, Igor Zaitsev, Lev Polugaevsky, Efim Geller, Semyon Furman, Mikhail Podgaets e Mischa Tal, trabalhou para e em nome de Anatoly Karpov. A nata dos treinadores soviéticos ajudou Anatoly a afiar seu jogo. Se Bobby contava “só consigo mesmo” em seu treinamento e preparação, Anatoly era o extremo oposto e contava com o trabalho de muitos em seu auxílio. Mais uma vez, estamos falando sobre o me-lhor dos melhores – no mundo inteiro. Ana-toly estava no ápice de uma vasta pirâmide onde todas as coisas boas fluíam da base para o topo. Como o diretor de cinema Mel Brooks diria, “é bom ser rei!”

Como resultado de todo o treinamento rigoroso, auxílio de fortes Grandes Mestres e estudiosos de aberturas e competição com e contra os melhores enxadristas do mun-do diariamente, não é de surpreender que Anatoly tenha se tornado um dos melhores enxadristas do mundo. E, sempre que possí-vel, as autoridades soviéticas não deixavam nada para o acaso. De seu ponto de vista,

fazia todo o sentido que “seu” Campeão Mundial tivesse o melhor de tudo. Outra pa-ráfrase vem à cabeça, desta vez de George Orwell: “Algumas igualdades de condições são mais iguais do que outras...”

Com todas essas vantagens, poderia haver outro desfecho? Mais um detalhe me-rece ser mencionado: Anatoly era incrivel-mente talentoso. Isso também ajuda, é claro.

Karpov como enxadristaO que quero dizer quando digo que Anatoly era “talentoso”? Em minha concepção, Anatoly tinha talentos que poucos pos-suíam. Ele tinha uma grande memória (to-dos os grandes enxadristas têm); tinha fan-tásticas habilidades de cálculo, identificando variantes prolongadas com clareza, calcu-lando com precisão e julgando as posições resultantes muito bem. Além dessas habili-dades que podem ser ensinadas, ele tinha algo inato: uma capacidade de harmonizar suas peças que poucos jamais possuíram. Anatoly jogou centenas e centenas de gran-des e bons lances, cometeu pouquíssimos erros e ainda menos erros graves e, duran-te todo o tempo em que fazia seus lances, também ia tecendo uma alegre composição harmônica baseada em seu maravilhoso ta-lento intuitivo. Suas partidas eram a um só tempo uma mistura poderosa de arte, lógica e cálculo. Esta “coesão de forças” era quase instintiva para ele. Era uma habilidade que ninguém jamais foi capaz de imitar. Karpov não era perfeito; ele tinha estilo. Um estilo que ninguém jamais viu antes nem depois.

Derrotar Karpov era uma tarefa quase impossível. Por quê? Bem, a profundidade de seu conhecimento de aberturas era im-pressionante. Sua defesas e aberturas foram aprimoradas em profundidades nunca igua-ladas. Para vencer, você precisava obter uma vantagem na abertura, e seus treinadores trabalhavam noite e dia para garantir que isso não acontecesse.

Caso você conseguisse uma vantagem na abertura, então você teria que nutri-la du-

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rante o meio-jogo. De alguma forma, você te-ria que jogar melhor do que um dos enxadris-tas mais talentosos e diligentes que já se viu.

Depois de ter sido capaz de manter sua vantagem até um adiamento, você teria outra desvantagem completamente dife-rente: a formidável equipe de treinadores e assistentes de Karpov analisava a posição com uma profundidade nunca igualada. Essa equipe de treinadores de elite só ajuda-va a aperfeiçoar o esplêndido final de jogo de Anatoly. Possivelmente, ele foi o melhor jogador de finais desde Vassily Smyslov, tal-vez o melhor jogador de finais de todos os tempos.

Para recapitular, como costumava-se dizer sobre Alekhine, para derrotar Anatoly era preciso vencer três vezes para ganhar uma partida: na abertura, no meio-jogo e no adiamento/final. Além disso, você preci-sava derrotar não apenas Anatoly, mas, com efeito, seu exército de ajudantes. As derro-tas de Karpov em algum ano entre 1975 e 1985 geralmente poderiam ser contadas com os dedos de uma mão. E ele era um en-xadrista muito ativo.

Anatoly tinha dois amargos rivais, além da sombra de Fischer: Victor Korchnoi e Garry Kasparov. Enquanto Mohammed Ali tinha seu Joe Frazier, Anatoly tinha dois inimigos mortais e as disputas que eles produziam uns contra os outros. No fogo de seus três matches com Victor Korchnoi, pareceu-me que Karpov se aperfeiçoou, ao passo que, nos cinco matches pelo Campeonato Mundial sem precedentes entre Karpov e Kasparov, pareceu-me que Kasparov se aperfeiçoou.

Encontrando KarpovNão é de surpreender que meu primeiro encontro com Anatoly Karpov esteja ines-quecivelmente aliado a Garry Kasparov. Re-tornamos à Olimpíada de 1980 em Malta. Como mencionado, as equipes americanas estavam alojadas em um complexo de apar-tamentos fora de Valletta; as equipes soviéti-cas, em contraste, estavam no melhor hotel

de Valleta, do qual era fácil ir a pé até o local de jogos. Fora das rodadas de jogo, quase não víamos as equipes soviéticas.

Lembro-me da ocasião que gravou em minha mente muito bem a impressão que tive destes campeões: eu estava observan-do diretamente a equipe soviética masculi-na; eles estavam jogando contra a Bulgária, e os jogadores búlgaros estavam de costas para mim. Naquela rodada, os Estados Uni-dos jogavam contra a Hungria na “Mesa 1”. Eu podia observar as mesas dos jogadores desde Karpov no primeiro tabuleiro, jogan-do contra Evgeny Ermenkov ligeiramente à minha direita, até Garry Kasparov no quarto tabuleiro, jogando contra Krum Georgiev um pouco mais à esquerda. Eu tinha visão perfeita de tudo que estava acontecendo.

Eu sabia que Garry tinha cometido um erro grave na abertura/início do meio-jogo e estava em péssima posição. (Eu já tinha andado em volta das mesas antes obser-vando as partidas em andamento.) Anatoly deu seu lance no primeiro tabuleiro, levan-tou-se, atravessou para o “lado búlgaro” da mesa e começou a percorrer os tabuleiros, verificando as partidas até chegar à mesa junto à parede. Parou no tabuleiro de Kas-parov e começou a rir da difícil situação de Garry. Garry ficou furioso. Enrubesceu e dis-se rispidamente algo em russo acenando com a mão, “convidando” Anatoly a sair. Foi chocante, falando-se em espírito de equipe. Anatoly entendeu o recado e saiu arrastan-do os pés para pegar uma xícara de café.

Até aqui as coisas tinham sido apenas “divertidas”, mas agora elas se tornam real-mente sublimes. Garry decidiu-se por seu lance, fez um movimento drástico com a mão e a peça (no sentido físico), esmurrou o relógio, levantou-se e foi diretamente olhar a posição no primeiro tabuleiro. Estudou-a por alguns minutos e depois aproximou-se de Evgeny e sussurrou algo em seu ouvido.

Eu fiquei excitado. Esperei Garry sair e fui até Evgeny perguntar-lhe o que havia acontecido. Evgeny me contou que Garry

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dissera-lhe em russo: “Você está melhor. Em breve Karpov irá oferecer um empate. Não aceite!” Era muito engraçado. De passagem, devo mencionar que somente um regime comunista totalitário conseguiria manter estes dois homens na mesma equipe. Fala-rei mais sobre isso nos capítulos a seguir. A propósito, Garry estava absolutamente cer-to, e alguns lances depois Anatoly ofereceu mesmo um empate. Contudo, Evgeny não seguiu o conselho de Garry e aceitou a ofer-ta de empate.

Encontrei tanto Garry quanto Anatoly oficialmente durante a 11a rodada do match de União Soviética contra Estados Unidos, quando enfrentei Mischa Tal. Houve vários apertos de mão, e minha recordação era de que tanto Anatoly quanto Garry se compor-taram (ao menos naquela ocasião) muito profissionalmente, pelo menos comigo. Meu companheiro de equipe, Lev Alburt, jogando no primeiro tabuleiro, sentiu de outra for-ma. Lev tinha desertado da União Soviética e vinha se “fortalecendo” para jogar contra Karpov no primeiro tabuleiro. Estivera ansio-so para apertar a mão de Karpov – seria seu modo de dizer: “Veja. Estou aqui. Eu desertei, mas ainda estou vivo.” Karpov não aceitou. Quando Lev estendeu a mão para cumpri-mentá-lo, Karpov deixou claro que não have-ria gestos de cordialidade e recusou a mão. Lev ficou totalmente murcho e jogou uma péssima partida. Talvez a pior de sua carreira.

Fiquei decepcionado com Karpov por causa deste incidente. Muitos anos depois eu o questionei sobre isso. “Por que nem apertar a mão de Lev?”, perguntei inocentemente. Sua explicação revelou a quantos mundos de distância vivíamos: “Yasser, aquilo foi na época da União Soviética. Não se esqueça de que estávamos sendo constantemente vigiados. Tudo que fazíamos e dizíamos era monitorado ou ‘registrado’ de alguma forma. Lev era um desertor. De acordo com o Esta-do, oficialmente um criminoso. Se eu tivesse sido visto apertando sua mão, isso teria sido relatado e eu enfrentaria um inquérito e teria

que me explicar. ‘Por que você apertou a mão de um criminoso de Estado?’, perguntariam. Seria uma mancha na minha ficha.”

Vista daquele ângulo, compreendi a decisão de Anatoly. Eu não iria querer uma mancha na minha ficha na CIA. Mas eu te-nho uma ficha na CIA?

A vez seguinte em que encontrei Anatoly foi mais confusa. Lembro que eu estava na Espanha, talvez de férias, e que fiquei entediado e decidi por impulso dar uma chegada no torneio de Linares de 1981. Como Larry Christiansen e Lubomir Kavalek estavam participando, eu tinha um motivo para vadiar por uns dias. Enquanto estava lá, eu ajudava Larry um pouco a se preparar para suas partidas e também dizia palavras de incentivo antes de cada rodada. O que quer que tenhamos feito não foi mau. Larry empatou com Anatoly em primeiro lugar.

O incidente do qual me recordo (e real-mente penso que ele aconteceu em Linares durante esta visita) é que estávamos numa partida de bridge com apostas muito peque-nas em pesetas espanholas, quase insufi-cientes para pagar uma rodada de bebidas. Larry era meu parceiro e estávamos jogando com Kavalek e Karpov. Eu era de longe o pior jogador da mesa e Larry tinha que carregar a dupla, mas não estava sendo bem-sucedido o suficiente, infelizmente, pois eu e ele está-vamos sendo arrasados. (Ou seja, provavel-mente estávamos devendo duas rodadas de bebida.) Em um determinado momento, Lu-bosh foi até o bar para pegar uma rodada de bebidas enquanto Anatoly foi ao banheiro, de modo que eu e Larry ficamos sozinhos.

“Vamos mexer no baralho,” sussurrou Larry para mim.

“Que?”“Vamos arrumar a próxima mão de

cartas. Quando eles apostarem, você dobra, certo?”

Bom, vamos dizer que o diabo ficou por cima desta vez, e eu concordei. Num instante Larry tinha arrumado o baralho. Vamos ser claros, este não foi um momen-

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to de 007 contra o Foguete da Morte de Ian Fleming, em que James Bond faz a troca por um baralho falso. Larry fez a coisa quase ins-tantaneamente. Ele tinha prática? Quando Anatoly começou a caminhar de volta para a mesa, ele pôde ver que eu fiz um show ao “cortar” as cartas como ardil de que tudo es-tava direito. Lubosh voltou com as bebidas e ficou contente ao descobrir que uma mão muito boa aguardava sua chegada. Entre si, eu acho que eles tinham 34 pontos e come-çaram a “jogar” ligeirinho. Eu, é claro, dobrei – sem absolutamente nenhum motivo. As ofertas tinham sido totalmente unilaterais. Isso provocou um “redobre”, que causou muitas risadas, pois nossos adversários co-meçaram a reclamar que aquilo era um in-sulto...

No fim, Anatoly jogou o contrato, e Lubosh ficou feliz à beça de mostrar suas figuras. Anatoly começou com as palavras “Ai-ai-ai.” Compreendeu imediatamente que suas cartas duplicavam as figuras e que ele seria sem dúvida sortudo de fazer o contra-to. Bom, quis a sorte que todas as finesses deram contra ele. Anatoly, que Deus o aben-çoe, praguejou a cada vaza perdida. Eu defi-nitivamente tive a impressão de que o russo é uma língua rica em que se pode praguejar muito bem. Foi uma curtição e tanto.

Até hoje não sei como eu e Larry nos seguramos e não explodimos em risadas con-vulsivas. Lubosh deu a volta na mesa para ver o dilema de Anatoly e disse algo como “Ah, meu Deus. Vou pegar outra rodada...” e saiu. Bom, Anatoly desceu feio, algo como quatro vazas, vulneráveis, dobradas e redobradas. Quando Lubosh voltou, Anatoly começou uma explicação tortuosa do quanto suas car-tas estavam horríveis. Eu e Larry ficamos em-pacados – as queixas eram tão vociferantes que não conseguimos confessar. Em vez dis-so, continuamos jogando calmamente como bons cristãos. Suspeito que aquela única mão levou-nos a equilibrar o placar... Essa história tem uma continuação, mas vamos deixar isso em suspense por enquanto.

Uma outra aventura daquele torneio em Linares: em um dos dias livres, os enxa-dristas foram convidados pelos organizado-res a lutar contra touros. Eu e Larry aceita-mos, e assim fomos até o campo de touradas. Quero ser extremamente claro aqui: os “tou-ros” contra os quais tínhamos que lutar eram bezerros. Falo de animais de dois anos. Mes-mo nesta idade, eles são animais grandes e muito rápidos e travessos. Não direi que fi-quei “apavorado” de enfrentá-los, mas meus sinais de perigo estavam em alerta máximo e com frequência eu me virava e corria para trás de uma laje de concreto para me prote-ger. Nas fotos que tenho, Larry pareceu ter provado ser um toureiro melhor do que eu. Ele certamente tinha estilo. Uma coisa que posso definitivamente dizer sobre a expe-riência toda, qualquer que seja a opinião do leitor sobre as touradas, é que os toureiros que se colocam em frente a um touro adul-to precisam ser absolutamente destemidos. Eu jamais trocaria de profissão por um único momento sequer.

A vez seguinte em que encontrei Anatoly foi no match do Campeonato Mun-dial em 1981 com Victor Korchnoi. Lembro--me de estar no Hotel Palace em Merano quando Petra nos informou: “Os soviéticos chegaram.” Eles tinham chegado em um grande ônibus de viagem do aeroporto de Milão. O que mais a impressionara? “Contei 35 malas”. Era realmente um número im-pressionante. Quantas pessoas? Por que tanta bagagem? E sim, Karpov havia che-gado em um carro especial também. Nas palavras de Johnny Walker, um mestre de xadrez de Seattle, quando um patrocinador calculava um prêmio em dinheiro, “isso é o que eu chamo de patrocinador!” Em alguns aspectos, a notícia fez nossa pequena equi-pe de ajudantes de Korchnoi pensar. Estáva-mos enfrentando uma grande equipe com muitas pessoas.

Minha primeira partida contra Anatoly Karpov aconteceu em 1982 na primeira roda-da de um torneio realizado no famoso balne-

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ário de Mar del Plata, Argentina. Conheci sua primeira esposa lá também. Em geral, Anatoly estava muito calmo em Mar del Plata. Ele não jogou bem, possivelmente seu pior torneio em anos, e eu também não o vi muito; meus olhos estavam focados nas praias.

Todo mundo tem histórias de “um (pei-xe) muito, muito grande que escapou”. Bem, esta partida é uma dessas histórias. Na verda-de, é a pior história de minha carreira de algo grande que escapou. Até hoje, lembrar desta partida dói. Dói como a dor de uma antiga cicatriz feia. Só posso fazer uma careta e des-viar os olhos. Ainda não acredito que perdi esta partida; Anatoly estava tão perdido!

Publiquei comentários para esta parti-da na The Weekly, uma revista local de Seattle (edição de 10-17 de março de 1982, página 31), em um artigo intitulado, The Assault on Mt. Karpov (O Ataque ao Monte Karpov). As notas a seguir com a marca “The Weekly” são desses comentários. Observe que esses co-mentários destinavam-se ao público em ge-ral e, portanto, eram leves.

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanMar del Plata, 1982

Defesa Francesa

1.e4 e6Pirc, Caro ou Francesa? Essas eram mi-

nhas opções de defesa básicas em minha primeira partida contra o então Campeão Mundial. Não sei dizer por que fui de France-sa. Eu suponho que me pareceu certo.2.d4 d5 3.Cc3

Pessoalmente, como usuário da De-fesa Francesa, eu sempre gostei do dilema colocado às Brancas no terceiro lance. As linhas 3.e5, 3.Cc3 e 3.Cd2 são muito dife-rentes umas das outras, e é preciso escolher

uma. Alguns enxadristas ponderam sobre a escolha por vários minutos, ao passo que outros já escolheram sua linha com mui-ta antecipação. Minha planilha indica que Anatoly não tinha esse problema; ele deu seus três primeiros lances em menos de um minuto e seus cinco primeiros lances em menos de cinco minutos.3...Bb4 4.e5 Ce7!

Eu sempre achei que essa é a ordem correta de lances para as Pretas na Winawer.5.a3 Bxc3+ 6.bxc3 b6!

E essa é a razão. As linhas depois de 4...c5 são menos flexíveis e, às vezes, você só precisa surpreender seu adversário com uma escolha incomum. O texto serviu bem a esse propósito. Jogar a linha teórica prin-cipal contra Karpov naquela época não era a ideia mais inteligente. Com certeza, ele estaria melhor preparado. Afinal, ele havia jogado três matches com Victor Korchnoi, um especialista na Defesa Francesa. O tex-to tem uma ideia lastimavelmente simples: estou tentando me livrar de meu bispo mau em c8.

“Esta é uma conhecida variante da De-fesa Francesa, o sistema Winawer. Korchnoi é o maior partidário da Defesa Francesa, de modo que seja provável, portanto, que Kar-pov tivesse se preparado para esta posição. Mas Korchnoi nunca empregou uma Defe-sa Francesa em seu match do Campeonato Mundial.” – The Weekly7.Ch3!?

E lá se foi minha preparação. Eu então pensei por 40 minutos e finalmente decidi que o plano de Ch3-f4-h5 simplesmente tinha que ser impedido. Mesmo ao custo de colocar o meu próprio cavalo no lugar errado.

“Novidade. Uma nova ideia. Isso pro-vavelmente é o que Karpov havia prepara-do para Korchnoi. Contudo, eu mostro que Karpov não devia ficar tão satisfeito com sua ideia.” – The Weekly7...Cg6!? 8.a4!?

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Sem dúvida, muito ambicioso. Anatoly decide que quer o domínio sobre todo o ta-buleiro e prepara a4-a5 para restringir a ala da dama, ou Bc1-a3, com um altivo bispo. Eu estava mais preocupado com a modes-ta abordagem 8.Bd3 Ba6 9.0-0, quando as Brancas se preparam para f2-f4-f5 e, caso as Pretas troquem bispos, c2xd3 permite que o recém-produzido peão em d3 proteja algu-mas casas boas.8...Ba6 9.Bxa6?

Um erro que ajuda as Pretas. Os lances de abertura das Brancas não se aglutinam bem. Mais uma vez, 9.Bb5+ c6 10.Bd3 era a li-nha esperada, com vantagem para as Brancas.9...Cxa6 10.0-0 Cb8!

Fiquei absolutamente encantado com isso. Sonhos felizes de um dia chegar à ter-ra prometida de c4 enchiam minha cabeça. De qualquer forma, não há dúvida de que o cavalo está péssimo em a6 e precisa de um trabalho adequado.11.Dg4!?

Mais confusão. Por que não continuar com a tarefa principal de jogar 11.f4 e abrir linhas na ala do rei? Eu provavelmente teria jogado 11...Ce7, quando, com o seguimento 12.Dh5, as Brancas ainda têm escolha.11...Cc6

Eu já estava ficando otimista. Agora existe a possibilidade de ...Nc6-e7, impedin-do para sempre a saída das Brancas pela ala do rei.12.Cf4?

Isso foi definitivamente surpreen-dente. Voluntariamente trocar cavalos? 12.f4 ou 12.Cg5 pareciam lógicas. O texto se ba-seia em um cálculo enfadonho que contém uma falha fundamental. O resultado é que Karpov termina com um bispo absoluta-mente horrível.12...Cxf4! 13.Bxf4 Tg8

“Karpov realizou seu plano e ganhou espaço na ala do rei. Mas eu também realizei meu plano, que é enfraquecer Karpov com um bispo ineficaz.” – The Weekly14.Bg5 Dd7 15.f4? (Diagrama 73)

DIAGRAMA 73. Jogam as Pretas

Esta é a posição pela qual Karpov vem jogando há mais de seis lances. As primeiras impressões são, sem dúvida, favoráveis às Brancas. O rei das Pretas está imobilizado no centro, ao passo que f4-f5 está vindo rápido e furioso. Em suma, as Pretas parecem estar em apuros.

“Um erro terrível. Karpov usou 13 minu-tos para encontrar esse lance ruim, ignoran-do meu 21o lance. O Campeão Mundial agora está totalmente derrotado.” – The Weekly15...f5!

Lances forçados geralmente também são lances bons. Isso põe fim à saída do peão f das Brancas.16.Dh5+

Sem escolha aqui também. Se 16.exf6 gxf6 17.Tae1 (17.Dh5+ Df7 18.Dxf7+ Rxf7 19.Bh4 Ce7, com a ideia de ...Ce7-f5-d6, é simplesmente sensacional para as Pretas) 0-0-0 e as Pretas ganham uma peça por pouca compensação.16...g6 17.Dh6 Dg7 18.Dh3

A rapidez com que Karpov executou seus lances foi incrível. Ele parecia estar com pressa. Até aqui ele tinha visto tudo, calcu-lando que eu estava em apuros.18...Ca5! 19.Bf6 Df7 20.Dh6 (Diagrama 74)

Karpov jogou seus últimos seis lances em menos de seis minutos. É notável que ele

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tenha chegado exatamente à posição que pretendia no 12o lance. Ele simplesmente não via de que modo eu poderia desenre-dar minhas peças e defender a posição. As Brancas querem jogar a óbvia subida da tor-re, Tf1-f3-h3, e ganhar meu peão em h7, com boas chances de vencer, isto se a partida já não estiver ganha.

“Até este ponto, Karpov vinha jogando com rapidez e confiança. Mas, depois de mi-nha resposta, ele mergulhou em profunda reflexão. Karpov baseara sua estratégia em ganhar o peão da torre do rei. Mas eu tenho uma defesa simples.” – The Weekly

DIAGRAMA 74. Jogam as Pretas

20...c6!!Blam! A porta do alçapão está fechada

e chaveada. Sem mais nem menos, a partida chegou ao fim. As Brancas estão estrategica-mente perdidas. Não um pouco piores, nem em má situação, perdidas. Acabadas. Mortas e enterradas. Indo para a forca. A caminho do Criador. Fim da partida!21.Tf3

Jogado por inércia, se não por outro mo-tivo. As Brancas simplesmente não têm mais o que jogar. Digo com reserva que meu pro-grama de computador avalia a posição como ligeiramente vantajosa para as Brancas. Hum!21...Tc8!

Essa defesa lateral do peão em h7 é o que Karpov não viu. O resto da partida é jo-gar com uma única meta. As Pretas têm do-mínio total.22.h3 Cc4

Chegando à terra prometida! Como é que eu guardava receios?23.Td3

Protegendo contra a possibilidade de ...Cc4-d2-e4, quando o cavalo é um animal de beleza reverencial. Um Thor. Um deus nórdico do trovão.23...Rd7

A posição das Pretas na ala da dama é tão boa que o rei decide passear e olhar mais de perto.24.g4 Rc7 25.Rf2 Rb7 26.Bh4 (Diagrama 75)

DIAGRAMA 75. Jogam as Pretas

No jantar naquela noite, Bent Larsen disse de maneira prosaica: “Yasser, nestas po-sições, você pode evitar muitos problemas no futuro simplesmente jogando ...a7-a5 an-tes de colocar o seu rei em a6. Depois, você joga ...b6-b5, assegura um peão passado dis-tante em a5. Depois, você troca as torres na coluna b e vence.”

Como os Grandes Mestres simples-mente “sabem” essas coisas? Evidentemente, o que Bent diz faz perfeito sentido e era real-mente o modo mais simples de vencer.

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26...Ra6?“Tenho muitas formas de vencer a po-

sição. Talvez a mais simples fosse avançar o peão da torre da dama e depois o peão do cavalo da dama.” – The Weekly27.Re2 c5?

Na época, o texto fazia todo o sentido. Não é isso que as Pretas aspiram em uma Winawer? Eu sonhava em abrir a coluna c para minhas torres e, quem sabe, simples-mente, tomar alguns peões fracos na ala da dama. Na verdade, o texto dá ao bispo bran-co em h4 um possível papel na partida caso um peão c5 seja criado.

As Pretas deveriam ter se arrependido de seu último lance e usado o método vito-rioso descrito por Bent.28.Ta2

Realmente patético. Mas as Brancas têm que se proteger contra a possibilidade de ...Df7-e8 e ...Cc4-b2, ganhando o peão em a4. Além disso, o texto ajuda caso o peão em c2 precise de proteção.28...Tc7 29.Dg5 h5!

Lance agradável de empregar. Consi-go trocar o peão h7 potencialmente fraco e abrir a coluna h. Afinal, há um rei branco no meio do tabuleiro. A cada lance, a posição das Pretas vai ficando melhor.30.Tg3

Este não é o Karpov da coordenação harmônica. As peças das Brancas são real-mente tristes.30...hxg4 31.hxg4 Th8

“Realizei totalmente o meu plano e abri linhas contra o rei inimigo. E agora eu começo a atacar.” – The Weekly32.Tg2 De8

Agora era um bom momento de refle-tir um pouco sobre a posição. Embora, sem dúvida, o cavalo em c4 seja uma beleza, não me ocorreu que ocupar a terra prometida da casa c4 sufocava o meu ataque. Sem danos, agora era o momento apropriado de cogitar seriamente 32...cxd4! 33.cxd4. Eu poderia então mobilizar minhas peças para a tarefa concreta de ganhar material:

33...Ca5 34.Be1 Cc6 35.c3 De8 traz um tipo diferente de posição. O que as Pretas reali-zaram? Bem, dessa maneira eu mantenho o bispo e1 totalmente inativo e estou arman-do para ...Cc6-a5 e ...Tc7-c4, indo atrás do peão em a4.

Observe que nesta linha eu mantenho a posição do meu rei totalmente sólida e se-gura. Os peões em a7 e b6, o cavalo em a5 e a torre em c4 funcionam harmonicamente para garantir excelente proteção. Com o avanço da partida, você verá como a segurança do rei torna-se uma questão fundamental.

Contudo, não posso me criticar pelo texto. Na verdade, tudo está fluindo como por encanto.33.Bf2 Th3

Mais uma vez 33...cxd4 34.cxd4 Tch7! é apenas um exagero posicional para as Pretas.

“Este lance foi duvidoso. Melhor teria sido PxPD” – The Weekly34.gxf5 gxf5 35.dxc5!

Em um momento muito difícil da parti-da, Anatoly está alerta o suficiente para con-tinuar lutando e para criar uma fraqueza que seu bispo em f2 um dia pode abocanhar.

“Agora o Campeão Mundial cria um alvo.” – The Weekly35...bxc5 36.Tg3 Txg3?

Inacreditável. Esse é realmente um lan-ce repulsivo que me faz querer tomar um banho quente para me lavar. Todo mundo compreende a primeira regra simples de atacar: não troque boas peças atacantes por peças defensivas fracas. Não tenho descul-pas, nem explicação. Eu simplesmente não sei no que eu estava pensando.

Considero que a maneira mais fácil de vencer a posição é jogar 36...Thh7, seguida de ideias como ...De8-c6 e ...d5-d4. As Pretas podem então pensar em jogar ...Tc7-b7-b2, oferecendo uma troca de torres só para eli-minar o peão a4. Em toda parte que olho vejo frutas fáceis de colher. Uma linha temá-tica seria 36...Thh7! 37.Dg6 Dc6 38.Tg1 Tcg7 39.Dxg7 Txg7 40.Txg7 d4 41.cxd4 cxd4, com um ataque vencedor.

Page 154: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

156 Yasser Seirawan

“Melhor seria manter minhas forças de ataque e jogar 36...T-T7.” – The Weekly37.Dxg3 Dc6?

Vai ser preciso um esforço muito sério para não ganhar esta partida, então, por favor, aguente comigo enquanto procuro fazer o melhor possível. Lembram de nos-so deus Thor? Bem, agora seria uma hora oportuna de conhecê-lo: 37...Dh5+ 38.Df3 Dxf3+ 39.Rxf3 Cd2+ 40.Re3 Ce4 é um do-mínio posicional no final. O peão a4 das Brancas é fraco, o bispo é horrível e a torre das Brancas é patética. A vitória seria muito fácil: eu jogaria ...c5-c4, ...Rb6-a5 e ativaria minha torre.

Então por que eu não joguei a vitória simples acima? Certamente eu queria “mais”. Eu sonhava invadir e arrasar a posição das Brancas com uma ataque direto de mate. Era irritante que 37...Db8 38.Dg1 (forçado) 38...Tb7 39.Bxc5 Tb1 não vencia “diretamen-te”. As Brancas jogam 40.Dg6, atacando o peão em e6 e estão muito vivas.

O texto, por outro lado, parecia manter todos os meus trunfos, quer eles sejam úteis ou não. Fico de olho no peão a4 (...Cc4-b6xa4 é uma possibilidade); estou pronto para uma invasão na coluna b; cubro o peão c5 e me preparo para ...d5-d4 com um ataque ven-cedor – um dia. Foi fácil convencer-me do texto.

Mas nunca devemos nos esquecer de uma regra importante, apesar do que eu dis-se sobre ter que derrotar Karpov três vezes em cada partida: uma vitória por partida é o bastante. Na verdade, uma vitória por par-tida é tudo de que sempre precisaremos. Trocar as damas e ir para um final de partida vitorioso significava apagar as luzes e as ve-las e fechar as cortinas.

“Agora eu começo a jogar mal. Tendo aberto linhas na ala do rei, eu deveria usá-las. Por isso, D1TR teria sido melhor.” – The Weekly38.Ta1! Tb7?!

Infelizmente, 38...d4? 39.Dd3! não ofe-recia esperanças de um “ataque vitorioso”.

Sem preocupações, pensei. Eu apenas repo-sicionaria minha torre para coroar o ataque.

Torna-se cada vez mais insuportável de olhar. Com o óbvio 38...Db7!, preparando para invadir a coluna b, as Brancas ficam in-defesas: 39.Dd3 (39.Dg8 Db2 40.Dxe6+ Cb6 vence) Db2 40.Th1 Ra5! 41.Th6 Tc6 42.Ta7 a6, e as Brancas não podem impedir a perda do peão em a e da partida. As Pretas só mar-cham lentamente pela coluna a, onde o rei preto está totalmente seguro, e escoltam o peão a7 até a promoção.

O texto posiciona mal minha torre, que estava realmente muito bem colocada. É mi-nha dama que deveria estar atacando. Uma boa regra geral a lembrar é que a dama é um atacante mais poderoso do que a torre. Anote.39.Dg1!

“Excelente! Karpov defende com vigor.” – The Weekly39...Tb2?

“Defender o PB teria sido melhor.” – The Weekly40.Rd3!

Não me pergunte por que, mas esse lance me desequilibrou. Na verdade, as Bran-cas não tinham absolutamente nenhuma outra opção. Em caso de 40.Dd1 ou 40.Tc1, então 40...d4! é vencedor, pois as Bran-cas não têm mais tempo para a defensiva Dg1-h1, tentando proteger a casa e4. Tenho certeza de que pensei que o texto permitia 40...d4 e um ataque de mate. Eu fiquei pro-curando e procurando, mas 40...d4? 41.Dh1! é uma refutação fria como pedra.40...Rb6?

Chegando ao controle de tempo, continuei supremamente confiante de mi-nha posterior vitória. Mesmo assim, eu de-veria ter jogado 40...Db7 41.Tc1 (41.Dg8?? Txc2 42.Dxe6+ Ra5 e as Brancas sofrem mate em breve) 41...Dh7 42.Dg2 Dh6 43.Be3 Ra5! 44.Th1 Df8, quando as Pretas evoluem inexoravelmente.41.Dg8! Ra6?!

Era melhor jogar 41...Ra5.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 157

42.Dg1! Tb7 43.Bxc5 Th7 44.Bd4 (Diagra-ma 76)

DIAGRAMA 76. Jogam as Pretas

A posição adiada.“As cinco horas da primeira sessão

foram concluídas. Devo selar meu lance. Infelizmente, escolhi selar meu lance apres-sadamente. Se pensasse, perceberia minha vitória com 44...D1R. Em vez disso, eu selei o fraco lance 44...T6T+. Depois de três noi-tes de análise, compreendi que uma vitória não era mais possível. Pelo resto da partida, Karpov defende com precisão e assegura o empate.” – The Weekly44...Th3+

Meu lance selado. Esta partida foi adia-da por vários dias e quanto mais eu estuda-va a posição, mais frustrado eu ficava. Minha vitória “trivial” deixou de ser trivial e tornou--se fugidia. O anêmico bispo das brancas tornou-se uma torre de força defensiva ir-radiando da casa d4. Ainda pior, em muitas linhas, meu rei não usufrui mais de seu san-tuário. Em resumo, baguncei muito as coisas. Mesmo assim, era difícil acreditar que eu não deveria vencer...45.Re2 De8

Após dias de análise, isso foi o melhor que consegui. A tentativa de vitória consiste em me arrastar pela coluna h para chegar ao rei das Brancas.46.Dg5! Th2+ 47.Bf2

Até aqui, todos os lances desde o adia-mento poderiam ser descritos como força-dos ou forçantes. Agora, chegamos à posi-ção crítica que me tirou o sono por várias noites seguidas. Como prosseguir? Minhas duas tentativas mais objetivas falham:

Enquanto 47...d4 parece atraente, a defesa correta resolve a situação: 48.Dg3! (forçado) 48...Dh5+ 49.Df3 (forçado) 49...Txf2+ (49...Dxf3+ 50.Rxf3 dxc3 51.Rg3 não é um final problemático para as Brancas) 50.Rxf2 Dh2+ 51.Dg2 (forçado) 51...Dxf4+ 52.Df3 Dh2+ 53.Dg2 e as Pretas não conseguem nada melhor do que um xeque perpétuo.

Minha troca de peças menores ex-poria o rei das Brancas (e também o meu), mas por algum motivo eu não consegui abrir mão de meu glorioso cavalo. É preciso ter princípios mesmo quando se está ven-cendo uma partida! Sem dúvida 47...Cd2?? 48.Dg1!, vencendo para as Brancas, seria um erro grave trágico.

A troca de peças que eu analisei era 47...Ce3!, ameaçando ...Ce3-g4, vencen-do. As Brancas devem capturar 48.Rxe3, depois 48...Dc6, ameaçando 49...Dxc3+ e também 49...Dc5+, vencendo. As Brancas precisam se defender com 49.Tf1 Dxc3+ 50.Re2 Dxc2+ 51.Re1 Dc3+ 52.Re2, quando mais uma vez todos esses lances desde o adiamento poderiam ser descritos como “forçados”. Minha linha continuava com 52...Th3 53.Td1! Df3+ 54.Re1 e eu esbarra-va em uma parede. Eu vi 54...Th1+ 55.Bg1 De3+ 56.Rf1 e tudo que eu conseguia era um xeque perpétuo. Tragicamente, eu não vi que 54...Th2! (Diagrama 77) venceria imediatamente.

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158 Yasser Seirawan

DIAGRAMA DE ANÁLISE 77. Jogam as Brancas

Maravilhosamente simples! As peças das Brancas estão comicamente mal posi-cionadas. 55.Dg1 Th1 ou 55.Dg3 Th1+ são vitórias simples, ao passo que 55.Td2 Th1+ 56.Bg1 De3+! vence por atrair a torre das Brancas para a casa d2.

Outra vez, analisei profundamente, vi o xeque perpétuo, não vi a vitória e, no fim, simplesmente não consegui jogar uma linha em que eu me desfizesse de meu adorável cavalo em c4.47...Th7?

Como erroneamente julguei que a tentativa direta 47...Ce3! terminava em um xeque perpétuo, decidi simplesmente ir jo-gando por um tempo, tentando melhorar minha posição até dar um lance vencedor. A posição das Brancas é extremamente di-fícil de defender. Um único passo em falso de qualquer tipo e a posição é rapidamente vencida. Embora não estivesse esperando que Karpov fosse cometer um erro grave, pensei que apenas mantendo a pressão eu faria coisas boas acontecerem.48.Bd4 Ra5 49.Bf2 a6

Não sei dizer ao certo se foi uma boa ideia ou não, mas pareceu útil colocar meu peão a7 em uma casa branca.50.Bh4 Rb6 51.Bf2+

É claro que 51.Dd8+??, trocando da-mas, daria às Brancas um final perdido, pois o bispo em d8 está mal colocado e precisa estar na casa d4.51...Rc7 52.Bh4 Cb6 53.Rd2!

Karpov não tem intenção de cooperar colocando seu peão a4 em uma casa preta. 53.a5?? Cc4 me ajudaria muito.53...Rc6 54.Bf2 Th5 55.Dg3 Cc4+ 56.Re2 Th6 57.Dg5 Th3 58.Bd4 Th5

Infelizmente, 58...Dh5+ 59.Dxh5 Txh5 60.Tg1! permite que as Brancas se segurem confortavelmente graças ao forte bispo em d4.59.Dg3 Th6 60.Tg1!

Bem jogado. A torre faz uma aparição oportuna para salvar a situação. E pensar que anteriormente esta criatura também es-tava na casa a2. Ai, dói ver esta partida.60...Dh5+ 61.Df3 Dh2+ 62.Tg2 Dh1 63.Df1! (Diagrama 78)

Muito frustrante. Karpov faz um mara-vilhoso trabalho defensivo. Eu tinha uma ri-dícula fantasia de 63.Bg1?? Th3 64.Tg3 Dxf3+ 65.Txf3 Txf3 66.Rxf3 Cb2, quando, pela troca de peças maiores, eu venço facilmente o fi-nal com peças menores.

DIAGRAMA 78. Jogam as Pretas

63...Dxf1+ 64.Rxf1 Th4 65.Tg6! Txf4+ 66.Re2 Te4+ 67.Rf1!

Page 157: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 159

Em torno desses lances, eu estava real-mente ficando farto da precisão da defesa de Karpov. Ele continua jogando muito bem.67...Rd7 68.Tg7+ Rd8 69.Tg8+ Rd7 70.Tg7+ Re8 71.Ta7! Cxe5 72.Txa6 Rd7 73.Ta8 Cc6 74.a5!

E agora fica claro que aquele que não deveria ter escapado escapou.74...e5

Uma tentativa um pouco débil, mas 74...Cxd4 75.cxd4 Txd4 76.a6 Ta4 77.a7 Rc7 78.Te8 Txa7 79.Txe6 é um final de torres com empate morto.75.Bb6 Tc4 76.a6 Txc3 77.a7 Cxa7 78.Txa7+ Rd6 79.Ta2

“Excelente. A partida esteve empatada por algum tempo. Minha última esperança de vitória era que Karpov cairia na armadi-lha de 79. T6T. Isso teria levado à vitória com a cravada T3B. Agora o jogo se dissipou em um empate.” – The Weekly79...d4 80.Ba7 f4 81.Bb8+ ½-½

Empate proposto por Karpov. Eu fiquei extremamente decepcionado com o resulta-do desta exaustiva partida. Derrotar o então Campeão Mundial com as Pretas é algo a ser apreciado, ainda por cima em minha estreia. Tampouco este é um caso em que eu possa dizer “c’est la vie”. Dediquei horas de análise à posição adiada, e a vitória escorreu-me pe-las mãos. Fiquei deprimido durante quase todo o torneio.

“Neste momento, Karpov levantou os olhos e sorriu. ‘Ofereço um empate’, ele dis-se. Após uma silenciosa hesitação, eu tive que aceitar. O público aplaudiu vigorosa-mente e Karpov disse amavelmente: ‘Como é que você não ganhou?’” – The Weekly

Nossa segunda batalha juntos ocor-reu no torneio Phillips & Drew em Londres, em 1982. Comentei esta partida lance após lance em meu livro Winning Chess Brillian-cies. Sinceramente, não posso fazer melhor do que o que escrevi lá e por isso, caro lei-tor, você deve consultar aquele livro para

comentários mais abrangentes, pois minhas anotações aqui serão um pouco mais leves.

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovLondres, 1982

Gambito da Dama Recusado

1.Cf3 Cf6 2.c4 e6 3.Cc3 d5Minha ordem de lances pretendia

evitar a Defesa Índia da Dama e induzir um Gambito da Dama Recusado, a defesa fa-vorita de Anatoly. Enquanto me preparava com Victor Korchnoi, ele tinha descoberto uma nova ideia que eu estava ansioso para experimentar.4.d4 Be7 5.Bg5 h6 6.Bh4 0-0 7.Tc1 b6

Anatoly repete a variante que ele joga-ra no Campeonato Mundial em Merano em 1981. Prendi a respiração perguntando-me se eu teria a chance de executar o que tinha preparado.8.cxd5 Cxd5 9.Cxd5 exd5 10.Bxe7 Dxe7 11.g3!?

Uma abordagem totalmente diferen-te da linha principal: 11.e3, quando o bispo das Brancas tem dificuldade para encontrar uma função proveitosa. O texto antevê um fianchetto para fazer pressão imediata na longa diagonal.11...Te8!

Esta é a melhor abordagem das Pretas à posição. Em Merano, Karpov tinha tenta-do 11...Bb7?! e obtido uma má posição com sua tentativa. O texto é muito mais sensato. As Pretas usam a coluna e semiaberta a fim de pressionar o peão e2. Deste modo, ele espera demonstrar que o fianchetto na ala do rei foi imprudente.12.Tc3! (Diagrama 79)

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160 Yasser Seirawan

DIAGRAMA 79. Jogam as Pretas

Esta era a novidade de Korchnoi. Em al-gumas variantes, a torre pode oscilar pela ter-ceira fileira para bloquear o ataque das Pretas ao peão e2. Observe que o imediato 12.Bg2 Ba6! teria desfeito a estratégia das Brancas, pois o peão e2 torna-se um ponto sensível.12...Ca6

Karpov despendeu apenas 11 minutos pensando. A maioria dos Grandes Mestres, quando confrontada com uma nova ideia, cozinha por cerca de uma hora a fim de veri-ficar duas vezes as variantes. A rápida reação de Karpov fez com que um sinal de alerta disparasse em minha cabeça. Quem estava armando uma cilada para quem?13.Da4

Este também era o seguimento que Korchnoi e eu tínhamos analisado juntos. A ameaça de Tc3-e3 fez-me acreditar que Karpov estava com uma pilha de proble-mas. Quando levantei-me do tabuleiro e andei pelo salão de jogos, passei por Efim Geller, treinador de Karpov por muito tem-po. Geller tinha excitadamente pegado Jan Timman pelo braço e exclamado: “...c5!” Fin-gindo não ter ouvido, continuei meu passo. “13...c5 – não perde uma peça?,” pensei.13...c5?

Quando Karpov deu esse lance, meu coração se partiu. “Oh [bip]!” pensei. Eu ob-

viamente tinha caído na preparação dele. Karpov tinha previsto minha estratégia e preparado o sacrifício de uma peça. Ele não sacrifica suas peças baseado na intuição, mas sim quando tem 99% de certeza de que o sacrifício é correto. Ele pagou para ver. Pensei por 15 minutos sobre recusar o sacri-fício com 14.e3 c4!, mas neste caso, as Pretas teriam um jogo melhor.

Em uma partida rápida posterior em Hamburgo, como veremos, Karpov aper-feiçoou sua técnica com 13...b5!, ganhando uma partida muito boa.14.Te3!

Como não tenho escolha, posso muito bem cavalgar o tigre e assumir o risco. Em momentos como esse, quando estamos com medo de cair numa cilada fatal, ter alguma peça a mais à mão oferece algum consolo.14...Be6 15.Dxa6

Relutantemente aceitando o sacrifício de peça oferecido. Apesar da frenética análi-se, não vi uma linha vencedora para Karpov.15...cxd4

Abrindo a posição para ir atrás do meu rei. Meu problema imediato é lidar com ...De7--b4+, que eu preciso deter. As Pretas usarão a coluna c aberta para suas torres lançarem um ataque.16.Tb3

Prevenir ...De7-b4+ era minha priorida-de número um. Até aqui tudo tinha sido for-çado. Certamente, Karpov tinha preparado o sacrifício, mas agora ele me surpreendeu pensando por 34 minutos.16...Bf5!

O melhor lance. Enquanto Karpov estava pensando, eu vi que podia revidar o ataque de 16...Dc5 com 17.Dd3! Da5+ (17...Tac8 18.Cxd4 Da5+ 19.Tc3 salvaria a pele das Brancas) 18.Dd2 Dxa2 19.Cxd4 Tac8 20.f3!! (dando espaço para Re1-f2, es-capando para a ala do rei) 20...Db1+ 21.Rf2 Tc1 22.Cxe6! fxe6 23.Dd3 Da1 24.Ta3!, e as Brancas vencem.

Ainda mais fácil teria sido 16...Tac8 17.Cxd4 Tc1+ 18.Rd2 Tc4 (18...Dc5? 19.Tc3!

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 161

vence) 19.Cxe6 fxe6 20.e3, quando as Bran-cas ficam com um bispo a mais.

Embora o texto ameace 17...Bc2, en-curralando minha torre em b3, foi também um certo alívio. Agora eu teria tempo sufi-ciente para salvar o meu rei.17.Bg2 Bc2

As Pretas não têm escolha a não ser capturar a torre em b3. A tentativa 17...d3, ameaçando o xeque-mate com ...De7xe2, seriam um erro. Depois de 17...d3? 18.e3 d4 19.Cxd4 d2+ 20.Rxd2 Tad8 21.Td1, todas as ameaças das Pretas estariam acabadas; as Brancas consolidariam a posição de seu Rei e embolsariam o ponto.18.Cxd4!

Isto é o que Karpov não viu em sua preparação. Ele achava que as Brancas se-riam forçadas a jogar 18.0-0, o que permi-tiria 18...Bxb3 19.axb3 Dxe2 20.Dxe2 Txe2 21.Cxd4 Txb2 com aproximada igualdade. Mas, se eu puder preservar o peão e2, to-dos os finais serão vitoriosos para mim.18...Bxb3 19.Cxb3 Tac8!

Um lance natural, pois as Pretas se apossam da coluna c aberta. As Pretas não devem ser iludidas por 19...Db4+?, pois 20.Rf1 Tac8 21.Bf3! e Rf1-g2 me ajudaria a fa-zer o roque artificialmente, e só colocaria a dama das Pretas no lugar errado. O peão a7 careceria de proteção.20.Bf3!

O ponto-chave – sem sacrificar o peão e2 com 20.0-0, eu conquisto uma posição tecnicamente vitoriosa. O peão e2 protegido neutraliza a bateria das Pretas na coluna e.

Foi somente neste ponto que Karpov perdeu sua expressão facial impassível. Efim Geller, que estivera imerso em sua própria partida, agora apareceu para examinar a posição de Karpov. Enquanto Geller olhava fixamente para nosso tabuleiro com franco espanto, o rosto de Karpov enrubesceu. Per-turbado pela presença de Geller, ele lançou--lhe um olhar fixo de desprezo. A sugestão

era clara: “Camarada, quando retornarmos a Moscou, vamos ter uma conversa!” Geller afastou-se às pressas. Karpov voltou ao ta-buleiro para pensar e o olhar impassível es-tava de volta.

Senti-me engrandecido, porém, sabia que seria necessário manter minha deter-minação de vencer. Eu já tinha escorregado tantas vezes antes contra Karpov que esta-va determinado a não deixar isso acontecer outra vez.20...Tc2?

Este seria o erro final de Karpov. As Pretas pretendem capturar o peão e2, mas a torre ficará deploravelmente mal coloca-da. As Pretas tinham que tentar 20...Df6! 21.0-0 Dxb2, ponto no qual teriam chan-ce de causar algum dano. Esta linha é um eco interessante de minha partida contra Karpov em Mar del Plata, onde eu também usei uma torre e não a dama para invadir o campo do adversário.21.0-0

Que grande prazer foi rocar e tirar meu rei do perigo.21...Txb2 22.Td1!

Superando minha tentação de con-trolar a coluna c. Agora que meu rei está seguramente escondido, posso concentrar--me em posicionar minhas peças em casas fortes. Além de querer ganhar o peão em d5, preciso reposicionar o cavalo b3 e isso significa controlar a casa d4.22...Td8

As Pretas esperam por 23.Txd5? Txd5 24.Bxd5 Txe2, trocando seu fraco peão em d5 por meu forte peão e2 – troca que eu não estava disposto a fazer. Minha prioridade agora era ativar meu cavalo.23.Cd4! Td7 (Diagrama 80)

As peças das Brancas são o retrato da harmonia. Mas como vencer? Examinando profundamente a posição, vi uma combina-ção baseada na fraca fileira de trás das Pretas além da torre b2 pendurada.

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162 Yasser Seirawan

DIAGRAMA 80. Jogam as Brancas

24.Cc6!A sequência inicial de um sacrifício

para ganhar peças e atacar o rei das Pretas.24...De8

Karpov não tem escolha. Precisa pro-teger sua primeira fileira. Por exemplo, 24...Dc5? 25.Dc8+ ganha a torre d7, ao passo que 24...Qf8? 25.Bxd5 captura o peão em d5 com impunidade, pois o peão e2 agora está devidamente protegido.25.Cxa7!

Tomando um peão e desafiando as Pre-tas a fazerem alguma coisa a esse respeito.25...Tc7

Anatoly viu o que eu havia tramado e evitou minha oferta de peça. Minha linha principal era uma vitória forçada: 25...Da8 26.Tc1 Dxa7 27.Tc8+ Rh7 28.Dd3+ g6 29.Dd4!, com a dupla ameaça de 30.Dh8, xeque-ma-te e 30.Dxb2 capturando a torre em b2. As Pretas teriam que continuar com 29...Tb1+ 30.Rg2 f6 31.Dxf6 Tg7 32.Df8 g5, quando eu previa 33.Df5+, pegando a torre b1. Embora essa variante seja encantadora, posterior-mente eu percebi que 33.Bh5! era ainda mais poderosa. É sempre bom ter opções.26.a4!

Mais uma vez, desafio as Pretas a acei-tarem minha oferta de uma peça. Caso não

aceitem, só será preciso Ca7-b5 e Da6xb6 para completar a colheita na ala da dama.

Eu não queria jogar 26.Txd5 Tb1+ 27.Rg2 Tcc1, com o contra-ataque a meu rei porque eu tinha visto um truque – 28.h4?? Th1!, com a ameaça de xeque-mate ...Tb1-g1 – que me deu um calafrio.26...Da8

Finalmente, o sacrifício de peça torna--se irresistível para as Pretas. Caso ele tivesse escolhido 26...Tb4, então 27.Cb5 Tcc4 28.Cd6 ganharia material.27.Txd5!

A torre agora entra explodindo no jogo. Foi esse lance que eu tinha em mente quando meu cavalo saiu caçando peões.27...Dxa7

O bravo cavalo deu tudo de si e será re-dimido quando o resto das forças das Bran-cas chegarem ao rei.28.Td8+ Rh7 29.Dd3+

O público que se aglomerava no Greater London Council para assistir à partida tinha ficado visivelmente agitado e murmurava. Eles tinham percebido que o rei do Campeão Mundial estava em grave perigo.29...f5 30.Dxf5+ g6 31.De6! 1-0

Evitando o último truque, 31.Df6? quando 31...Tc1+ 32.Rg2 Dg7! daria às Pre-tas uma chance de sobrevivência. Quan-do as Pretas encaravam 31...Tg7 32.De8 g5 33.Be4+ ou 31...Tc1+ 32.Rg2 Dg7 33.Td7, ganhando a dama, Anatoly parou o relógio, apertou minha mão e me parabenizou.

Este foi um momento histórico, pois foi a primeira vez em 27 anos que um Campeão Mundial da FIDE tinha perdido para um americano em uma competição em torneio. Em toda a sua carreira, Bobby Fischer não foi capaz de derrotar um Campeão Mundial da FIDE antes de seu match de 1972 com Boris Spassky.

Nosso próximo encontro foi em Ham-burgo, onde jogamos partidas rápidas para o programa Master Game da BBC. Examinarei

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 163

essas partidas rápidas posteriormente neste capítulo.

Nosso terceiro encontro de xadrez clássico ocorreu na Olimpíada de Lucerna em 1982. Eu ainda não tinha adquirido o di-reito de jogar no primeiro tabuleiro. Dessa vez, joguei no segundo tabuleiro atrás de Walter S. Browne.

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanOlimpíada de Lucerna, 1982

Defesa Caro-Kann

1.e4 c6 2.d4 d5 3.Cd2!A ordem de lances mais precisa para

as Brancas. Caso pretendam jogar as va-riantes de Cb1-c3/d2xe4, as Brancas devem usar esta sequência de lances para evitar a possibilidade de 3...g6, como eu joguei con-tra Smyslov em uma partida em que preci-sava vencer.3...dxe4

O sentido da ordem de lances é que agora 3...g6?! realmente não faz sentido, em virtude de 4.Cgf3 Bg7 5.Bd3! Ch6!? 6.0-0 0-0 7.Te1 f6?! 8.c4! – este ataque no centro é o motivo pelo qual o cavalo b1 está melhor colocado na casa d2. Além disso, caso as Pretas optem por uma linha com ...Bc8-g4, as Brancas terão c2-c3, lance que fortalece o centro e neutraliza a ameaça do bispo em g7. Neste caso, as Pretas não terão compen-sação para o par de bispos perdido.4.Cxe4 Bf5 5.Cg3 Bg6 6.h4!

Diferentemente de Spassky, que relu-tou em avançar seu peão da coluna h, Ana-toly não teve este receio.6...h6 7.Cf3 Cd7 8.h5 Bh7 9.Bd3 Bxd3 10.Dxd3 Dc7

Por muitos anos, 10...Dc7 era meu lan-ce automático, pois eu gostava de prevenir

Bc1-f4 para as Brancas. Agora, com o bene-fício de muitos anos de distância, compre-endi que a casa f4 para o bispo das Brancas não é grande coisa e que, na verdade, a melhor sequência de lances é 10...e6!, pois existem muitas ocasiões em que a dama das Pretas pode ir melhor na casa a5 ou b6, ou as Pretas podem apenas jogar ...c6-c5 o mais cedo possível, sem absolutamente mover sua dama.11.Bd2

Uma coisa sobre Anatoly: podia-se contar que ele jogaria a linha principal. Um lance provocativo mas interessante para as Brancas é 11.Th4!, que é subestimado.11...Cgf6 12.0-0-0 e6 13.Ce4 (Diagrama 81)

DIAGRAMA 81. Jogam as Pretas

13...Td8?Muito esperto para o meu próprio bem.

Eu queria evitar a linha principal 13...0-0-0 14.g3 Cc5 15.Cxc5 Bxc5, pois comprometi meu rei com a ala da dama em um momento em que estaria mais satisfeito parado na casa g8. Embora eu goste de minha torre em d8, estou ignorando os problemas de meu rei, e esse lance deve me trazer problemas.14.Cxf6+! Cxf6 15.De2?

Esse erro retribui o favor. Ainda que um lance de alto padrão nesta variante, o texto simplesmente deixa de estalar o chicote e

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164 Yasser Seirawan

me livra totalmente do perigo. As Brancas deveriam ter jogado 15.Ce5! Bd6 16.Dg3!, lance que eu vi mas subestimei. Meu foco ti-nha sido 16.f4 0-0 17.g4 c5!, variantes que de fato se revelaram boas para mim. Depois de 16.Dg3, o lance 16...Tg8 é uma resposta meio triste e um crítico teria justificativa para per-guntar que diabos eu estava fazendo.15...c5! 16.dxc5?!

Isso é excessivamente complacente. Eu esperava 16.Db5+ ou 16.Be3, com uma pe-quena vantagem para as Brancas em ambas as linhas. Depois do texto, eu achava que es-tava simplesmente melhor.16...Bxc5 17.Ce5?!

Mais escorregões. Era hora de as Bran-cas agarrarem 17.Db5+ Dc6 18.Dxc6+ bxc6 19.Ce5 Bxf2 20.Cxc6 Tc8 23.Ce5 Bg3 com as duas mãos e irem em busca de um final em-patado.17...0-0 (Diagrama 82)

DIAGRAMA 82. Jogam as Brancas

Agora as Pretas realmente estão me-lhores. Pense sobre a posição diagramada de uma maneira diferente: é como uma Sicilia-na onde as Pretas jogaram ...d6-d5, trocando seu peão d6 “retrógrado” pelo e4 de orgulho e alegria das Brancas. Em segundo lugar, as Pretas possuem a coluna c semiaberta, o que permite apontar para o rei das Brancas. Ter-

ceiro, as Pretas têm um peão central a mais (o peão em e6), o qual obstrui colunas e prote-ge casas (f5 e d5) que podem se tornar pos-tos avançados úteis.18.Cd3

Não exatamente uma grande realiza-ção. O que o cavalo em d3 está mesmo fa-zendo? Sem dúvida, Anatoly está pensando em uma tempestade de peões na ala do rei e apenas tira o seu cavalo do caminho, mas ele logo assumirá a defensiva de uma maneira considerável.18...Be7 19.Rb1 Tc8

Uma escolha muito difícil, pois 19...Td5 era muito atraente.20.Tc1

Mais escorregões? Eu não tinha cer-teza. Eu tinha esperado 20.Bc1, mas neste caso eu tinha planejado jogar ...Dc7-b6, do-brar as torres na coluna c, ...Cf6-d5, ...Be7-f6 e dar xeque-mate no Campeão Mundial. O texto elimina o duplo ataque contra o peão em c2 e introduz a ideia de c2-c4, negando a meu cavalo a casa d5.

Motivos excelentes para este lance. Por outro lado, a torre em c1 agora é uma defen-sora em tempo integral, eu estava feliz com isso e confuso em relação ao resto.20...Dc4

Difícil resistir a lances tentadores assim. Mas, em geral, eu tinha a sensação de que o texto estava errado e que meu ataque na ala da dama precisava ser executado com mais urgência. Para esse fim, 20...b5, assegurando a casa d5, parecia melhor. Um exemplo de variante poderia ser 21.g4 Cd5 22.f4 b4!, que é exatamente meu propósito: as Pretas crian-do uma ameaça de sacrfício como ...Cd5-c3+ assim que possível. Para continuar a linha: 23.g5 hxg5 24.fxg5 Cc3+ 25.Bxc3 bxc3, com chances superiores para as Pretas.

Toda esta linha de jogo levanta uma questão interessante: quando um “ataque” se inicia? Garry Kasparov deu uma resposta pon-derada e, creio, correta quando respondeu: “Quando você avança um peão para o ata-que”. Como podemos ver a partir desta varian-

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 165

te, avançar o peão b7 traz para o jogo o sa-crifício de abertura da linha ...Cf6-d5-c3, com ameaças de xeque-mate. Graças à presença do peão da coluna b o ataque se acelera.21.The1 Cd5?!

Puxa vida, o xadrez é um jogo difícil. Agora o texto está no tempo errado. Se eu quisesse jogar com as peças, deveria sem dúvida introduzi-las. Com 21...Tfd8 22.f4 Db5 23.g4 Td4!, a partida será uma viagem tem-pestuosa e acidentada. Eu prefiro a posição das Pretas.22.g4! a5! 23.Ce5 Dxe2 24.Txe2 a4 25.a3?!

Um lance consideravelmente cautelo-so. Minha expectativa era 25.c4, lance que considerei “forçado”. Depois, 25...Cb4 26.Bxb4 Bxb4 27.Cd7! Tfd8 28.Cb6 Tc6 29.Cxa4 Td4 30.f3 Tdxc4 31.Txc4 Txc4, alcançando uma posição mais ou menos equilibrada, era a meu ver o melhor jogo.25...b5! (Diagrama 83)

DIAGRAMA 83. Jogam as Brancas

Mais uma vez, graças à estrutura supe-rior de peões, estou melhor. Pode ser difícil vencer, mas estou disposto a tentar.26.Cd3 Tc4 27.f3 Tfc8?!

Não o tempo mais útil. Eu queria des-cartar b2-b3 de uma vez por todas, mas as Brancas certamente não tinham essas in-tenções. Uma escolha melhor era 27...Bd6!,

visando jogar ...Tf8-e8, ...f7-f6 e ...Rg8-f7, quando, com esses pequenos lances lentos, as Pretas melhoram sua posição. As Bran-cas são aconselhadas a jogar c2-c3, Tc1-d1, Rb1-c2 e só esperar.28.c3 Bd6 29.Tg1!?

Uma escolha muito surpreendente, pois Anatoly decide abrir as linhas. Eu espe-rava 29.Tce1 Rf8 30.Rc2, mantendo a posição tranquila.29...Te8!?

Eu queria incentivar Anatoly a romper com g5, pois achava que isto me benefi-ciaria. O lance 29...Rf8, para desencorajar a ruptura, também era uma escolha justa, mas às vezes você só precisa dar ao adversário a corda de que ele precisa para se enforcar.30.g5?

Este seguimento consequente terá grandes desdobramentos. Com esse lance, as Brancas destroem sua estrutura de peões, deixando-me muito satisfeito.30...hxg5 31.Txg5 Be7

Permitindo a troca de meu peão g7 pelo peão h5. Uma linha melhor era 31...Td8!, permitindo às Brancas “usufruir de sua es-trutura”, cujas sementes foram semeadas no 30o lance. Uma linha de exemplo poderia ser 31.Teg2 Bf8 32. T5g3 Th4! 33.Bh6 Th1+, com uma vantagem saudável para as Pretas.

Não posso me criticar pelo texto, pois eu achava que estava rumando para um fi-nal de quatro torres com maiorias opostas e onde meus peões passados protegidos es-tavam mais adiantados. Em suma, eu acha-va que o texto ia me levar a uma posição vencedora.32.Tg1 Th4 33.Teg2 Bf8 34.Bh6

Sem dúvida, as Brancas não podem desviar e precisam seguir a variante.34...Txh5 35.Bxg7 Bxg7 36.Txg7+ Rf8

Muito bom. Tenho melhor estrutura, melhores peças menores, rei bem posiciona-do e estou prestes a cuidar do peão em f3 – tudo devido a g4-g5 das Brancas, tentando forçar uma posição de empate. Minha con-fiança estava nas alturas.

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166 Yasser Seirawan

37.T7g4!Um lance defensivo muito bom. En-

quanto Anatoly estava pensando, perdi a esperança de que ele jogaria 37.Tg8+? Re7 38.Txe8+ Rxe8, o que apenas troca minha torre e8 passiva pela torre g7 ativa das Bran-cas. A esperada continuação 39.Tg8+ Rd7 40.Tb8? Rc7 41.Tf8 Tf5 seria um sonho trans-formado em realidade.

O texto estabelece duas ideias defen-sivas cruciais: primeiro, Cd3-f4, para se livrar do cavalo d3 passivo; segundo, c3-c4, para poder jogar na ala da dama criando uma de-bilidade no peão a4.37...Tf5 (Diagrama 84)

Indo direto para minha linha princi-pal. As Pretas também ficam melhores após 37...Re7, só melhorando as coisas.

DIAGRAMA 84. Jogam as Brancas

38.Cb4! Cxb4 39.Txb4 Txf3Vejo por minha planilha que ambos os

enxadristas estavam jogando rápido, dan-do seus lances sem hesitação. Eu tinha mais de 40 minutos sobrando para o controle de tempo, enquanto Anatoly tinha 13 minutos. Com minha visão limitada, eu via um final de torres em que eu vencia. 39...Tc8 também merecia consideração.40.Txb5 e5?!

Como sabemos, em finais de torre, todo lance tem implicações importantes. Além disso, cada lance pode ter um “efeito cascata”, quando uma linha forçosa de lan-ces se sucede. Se eu tivesse uma segunda chance, jogaria o superior 40...f5!. Neste caso, as Pretas poderiam levar seu rei à casa f6, depois avançar seu peão em f5 para a casa f4 e só então avançar o peão da co-luna e. Parece um processo lento, mas não é. Na verdade, ele ocorreria com bastante rapidez.

Pense nesta linha de uma outra forma por um instante: as Pretas terão dois peões passados ligados; as Brancas terão três. Contudo, os peões das Pretas estarão mui-to mais avançados e, além disso, terão o rei para lhes dar apoio. Embora seja impossí-vel provar, não posso me livrar da convic-ção de que com 40...f5! eu teria vencido a partida.41.Rc2! (Diagrama 85)

Chegamos à posição que eu pretendia com 31...Be7. Aqui eu parei e “pensei” por 40 minutos para que eu pudesse selar meu lan-ce e confirmar minha vitória com a análise de adiamento. Isso revelou-se uma péssima ideia e, triste dizer, acredito que terminou custando-me uma vitória.

Inicialmente, antes de eu começar a “pensar” sobre o que selar, minha intenção era jogar o óbvio 41...f6!, abrindo o caminho para meu rei “avançar” com ...Rf8-f7-e6, e depois simplesmente avançar os peões. Pe-ões passados devem ser empurrados e tudo o mais. Mas, enquanto eu estava “pensando” – basicamente esperando pelo momento em que pudesse selar meu lance –, come-çou a parecer sensato avançar também o meu peão da coluna e. Comentando sobre a partida na Chess Informant 34, Igor Zaitsev, segundo de Karpov por muito tempo, su-geriu que 41...f6!, com a ideia de 42.Rd2 Rf7 43.Re2 Th3, teria trazido uma grande vanta-gem para as Pretas. Ele tem razão. Um típico caso de “pensar demais” sobre uma posição.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 167

DIAGRAMA 85. Jogam as Pretas

41...e4?Meu lance selado e muito ruim. Duran-

te o adiamento, toda a equipe americana veio me ajudar. Até Victor Korchnoi tentou. Montes de cozinheiros para caldo insuficien-te. A posição é um empate frio. Eu não con-seguia acreditar que tinha feito de novo. Eu tinha deixado o Campeão Mundial escapar de uma posição perdida. Droga!42.Rd2 e3+

Obviamente, o peão da coluna e está excessivamente adiantado. O problema é que 42...f5 43.Tgg5! f4 44.Tgf5+ permite um xeque perpétuo imediato na quinta fileira.43.Re1 Tf2 44.Tf1 Tc2 45.Tb7 Tc1+ 46.Re2 Tc2+ 47.Re1 Tc1+ ½-½

A propósito, esta foi minha segunda Olimpíada. Expliquei que, nestas compe-tições em equipe, normas individuais não devem ser contadas. Em Lucerna, esta foi a segunda partida em uma série em que eu jo-guei de Pretas em sete partidas consecutivas.

Mais uma vez voltamos a Linares, 1983, no pior torneio de minha carreira. Anatoly precisava de uma vitória na rodada final para alcançar e dividir o primeiro lugar com seu compatriota Boris Spassky. O embaixador soviético na Espanha estava na primeira fila

para assistir à alegria. Compreendi perfeita-mente meu papel: estraga-prazer.

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanLinares, 1983

Defesa Caro-Kann

1.e4Esta era a época em que Anatoly joga-

va 1.e4, com a atitude inabalável de “o resto agora é uma mera formalidade para provar uma vitória forçada”. Sua absoluta crença na vantagem das Brancas era impressionante. “Ganhe com as Brancas, empate com as Pre-tas” era sua fórmula para o sucesso. Fórmula compartilhada por muitos de seus predeces-sores, é claro.

De meu lado do tabuleiro, eu achava que as Pretas estavam boas e eram capazes de um empate fácil contra 1.d4; eu gosta-va de jogar contra 1.c4; e só me sentia “sob pressão” contra 1.e4. Existe certa verdade no comentário de Bobby “1.e4! Comprovada-mente melhor”.1...c6 2.d4 d5 3.Cd2 dxe4 4.Cxe4 Bf5 5.Cg3 Bg6 6.h4!

Observo que as bases de dados apresen-tam a ordem errada de lances de 6.Cf3 e pos-terior transposição. Anatoly sempre jogava as linhas principais de forma direta e precisa.6...h6 7.Cf3 Cd7 8.h5 Bh7 9.Bd3 Bxd3 10.Dxd3 Dc7

De acordo com a planilha, Anatoly usou seis minutos inteiros contra um minuto meu. Sem dúvida ele estava preparado para aper-feiçoar nossa partida em Lucerna. Eu também.11.Bd2 Cgf6 12.0-0-0 e6 13.Ce4 Be7!?

Uma escolha incomum. A linha co-mum é 13...0-0-0 14.g3 Cc5 15.Cxc5 Bxc5, como mencionado anteriormente. O texto é um claro aperfeiçoamento em relação à

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168 Yasser Seirawan

13...Td8?, mas dificilmente superior à linha principal. É esta combinação dos lances 10...Dc7 e 13...Be7 que me convenceu de que 10...Dc7 não era o melhor lance e de que 10...e6 era mais flexível. O tempo ...Dd8-c7 pode ser economizado e melhor empregado.14.Cxf6+!?

Procurando confundir as peças das Pretas.14...Bxf6

Recaptura correta, pois 14...Cxf6?! 15.Ce5! dão às Brancas uma posição ideal.15.De4! 0-0-0!

Subitamente, 15...0-0 16.g4! pareceu meio turbulenta, ao passo que a ala da dama parecia positivamente tranquila. Como pes-soa pacífica, optei pela tranquilidade.16.Bf4! (Diagrama 86)

Pare e considere a posição diagrama-da por um instante. A meu ver, as Brancas alcançaram todas as vantagens possíveis nesta linha. Uma vantagem de espaço na ala do rei, um controle quase total sobre a casa e5 e um posicionamento vantajoso dos bispos (o bispo das Pretas poderia es-tar mais confortavelmente posicionado na casa c7). Apesar de todas essas vantagens, estou totalmente satisfeito com a posição das Pretas.

DIAGRAMA 86. Jogam as Pretas

16...Da5 17.Rb1 The8Venha me pegar!

18.Bg3!Este tipo de lance é uma especialidade

de Karpov: bom jogo profilático, deixando que o adversário se encarregue de encontrar um plano, além de melhorar suas próprias opções. O lance até recebe um apelido: “kar-poviano”. Tudo bem, eu sou a presa, vamos continuar.18...Df5!

Primeiro, para deter 19.Df4, quando, nas palavras de Victor Korchnoi, as Pretas ex-perimentariam “...sensações desagradáveis...” Segundo, este convite para um final deve ser recusado, pois as peças pretas ficam bem de-pois da troca, e assim eu ganho um tempo.19.De2 (Diagrama 87)

DIAGRAMA 87. Jogam as Pretas

19...b5!Lance valente e bom. Enquanto em-

purro o escudo de meu rei para frente, tam-bém ganho espaço e dou a meu rei a casa b7 como refúgio. O texto ajuda-me a controlar a casa c4 e, por extensão, a casa d5.20.Td3!?

Não tenho realmente certeza do que aconselhar às Brancas, e o texto parece tão bom quanto qualquer outro. Após 20.Ce5?!

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 169

Cxe5 21.dxe5 Be7, eu ficaria bem satisfeito com minha posição. O texto cogita oscilar a torre na terceira fileira em casos como Cf3-e5 e Td3-f3, ou ocasionalmente jogar visando a a2-a4 e Td3-a3, com um súbito ataque na ala da dama.

Depois de meu último lance, uma linha como 20.Cd2 é atraente, visando a d6, mas meu plano era sacrificar uma qualidade com 20...Bxd4! 21.Ce4 Cf6!? 22.Cd6+ Txd6 23.Bxd6 Dxf2!?, com um cavalo e dois peões pela tor-re. Além disso, 23...e5!? leva a uma posição de meio-jogo interessante onde o bispo em d6 causa uma estranha impressão. O texto introduz uma manobra assim sem sacrificar o peão d4.20...Cb6!

Eu queria impedir a possibilidade de Cf3-d2-e4-d6 e fiquei satisfeito por permitir a variante de jogo onde eu cedo meu bispo.21.Ce5 Bxe5! 22.Bxe5 f6 23.g4! Dh7 24.Bg3 Rb7!

Eu definitivamente me senti bem com esse lance, colocando meu rei em segurança.25.Re1 a5!

Semelhante ao meu 19...b5!, eu também gostei desta expansão. Como antes, estou in-terditando as vias de ataque das Brancas; por exemplo, Td3-a3 e De2-d2-a5 não é mais pos-sível. Ao mesmo tempo, ao avançar meu peão em a7 à casa a4, estou assegurando também a casa c4. O que quero dizer é que as Brancas terão que jogar b2-b3, para adquirir controle sobre a casa c4. Ótimo! Neste caso, eu poderei jogar ...a4xb3 e possivelmente usar a coluna a.26.Dd2 a4! 27.f3

Parece que as Brancas maximizaram sua posição e assim dão este peteleco para o caso de o peão g4 necessitar de um pouco de proteção no futuro. Enquanto as Brancas reforçam as coisas e refinam um pouco sua posição, esta pausa também funciona para mim, pois eu queria melhorar a situação da minha dama.27...Dg8! 28.Te4 Df7 29.De1 Td5! 30.a3

Ah, finalmente, uma pequena conces-são com a qual fico contente. Com esse lan-

ce, eu agora tenho controle sobre o comple-xo de c4 e d5.30...Dd7

Missão cumprida; minha dama está de volta ao jogo. Neste momento, abri as nego-ciações de paz com uma oferta de empate. (Em toda a minha carreira, nunca gostei de oferecer empates. Observe minhas ofertas de empate neste livro comparadas com as de meus adversários. Eu normalmente ofere-ço empates quando estou tentando assegu-rar o êxito em um torneio ou porque estou realmente em má forma física, geralmente por causa das longas viagens de avião.) Ana-toly educadamente recusou minha oferta com a aprovada resposta: “Eu gosto de jo-gar.” Este é o verdadeiro motivo pelo qual eu não gosto de oferecer empates. Ver minhas propostas de paz e irmandade universal re-jeitadas? Insuportável!

Na verdade, não fiquei infeliz com a de-cisão de Anatoly. Nestas posições, eu tenho uma ligeira preferência pelo cavalo ao bispo – pense em um final de Gambito Marshall onde, com um peão inteiro atrás na ala da dama, as Pretas empatam facilmente graças a um poderoso cavalo d5. Minha oferta de em-pate se baseou na estrutura de peões, a qual eu considerava solidamente equilibrada.31.Dd1 Td8 32.Be1

Os dois últimos recuos das Brancas não eram exatamente uma repreensão à minha oferta de empate. As três possibilidades de 32...e5, 32...Cc4 e minha escolha na partida começaram a parecer atraentes.32...f5!?

Uma tentativa interessante de misturar as coisas e pegar Karpov desprevenido. Eu temia que depois de 32...Cc4 33.Bc3! eu não teria outra chance de obter vantagem da po-sição das peças.33.Te2

Um recuo necessário. Uma má alter-nativa era 33.gxf5? exf5, o que me ajuda a livrar-me de minha debilidade em e6 e deixa o peão h5 obviamente deslocado.33...Df7 34.Bb4!?

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170 Yasser Seirawan

Um julgamento interessante. Eu acha-va que Anatoly devia ter jogado 34.Ba5, para trocar peças menores e empatar. Mas tendo recém recusado minha gentil oferta...34...fxg4 35.fxg4 g6 36.De1 gxh5

Decidi jogar por “segurança”, pois 36...Txd4 37.Txe6 Txd3 38.cxd3 Df3!? 39.hxg6 parecia uma linha que, se eu não cuidasse direito, poderia facilmente dar errado.37.Txe6 T8d7 38.gxh5 Tf5?!

Naquele momento, isso me pareceu cor-reto porque dirige a torre d3 de volta à casa d1 para proteger a primeira fileira. Agora per-cebo que a torre d3 está mal posicionada e eu estou ajudando as Brancas a se defenderem. Já chega deste meu esperto Zwischenzug – eu deveria ter jogado 38...Txh5 imediatamente, provavelmente ganhando um tempo durante a partida.39.Td1 Txh5 40.De4 Cd5 41.Bc5

A posição adiada.41...Th2 (Diagrama 88)

Meu lance selado. Voltei para minha sala para analisar a posição e quanto mais eu olhava mais me satisfazia. Eu tinha um empate fácil. Alguém bateu à minha porta e fui atender. Para minha surpresa era Boris Spassky. Ele perguntou sobre a posição. Eu disse que era um empate e ele perguntou se eu precisava de ajuda. Não, obrigado, res-pondi. Não era necessário.

DIAGRAMA 88. Jogam as Pretas

42.Tc1Basicamente, o único jogo potencial

na posição para as Brancas está associado a c2-c4, quando, após a troca do peão c2 pelo peão b5, o peão a4 fica desprotegido. Pen-samento feliz para Anatoly. Por outro lado, abrir a segunda fileira é suicídio.42...h5 43.Th6

Evitando a armadilha 43.c4? bxc4 44.Txc4 Df1+ 45.Tc1 Db5 (45...Df2 46.Tc2 Dxc2+ 47.Dxc2 Txc2 48.Rxc2 Th7 é um pouco melhor para as Pretas) 46.Tc2?? Cc3+!, ven-cendo.43...Tf2 44.De1 Td8

As Brancas tinham uma ameaça con-creta de De1-a5, o que seria desagradável. O texto pretende responder a 45.Da5? com 45...Ta8!, e mandando-a de volta para trás.45.Dd1 Tf3 46.De1 ½-½

Jogo empatado por sugestão de Karpov. Fiquei muito feliz por ver o fim do evento. A posição final é equilibrada, mas em circunstâncias diferentes eu poderia ter jogado 46...Tf6 47.Txf6 Dxf6 e continuado a partida. O rei das Pretas está totalmente se-guro e há um peão a5 passado na posição. Orgulho e alegria do usuário da linha prin-cipal da Caro-Kann! (Vitórias morais que su-peram o sexto lance das Brancas merecem apreciação especial.)

Nosso encontro de xadrez clássico se-guinte foi em Tilburg. É interessante como, nos principais eventos em Linares e Tilburg, lá estava Karpov e, no outro evento impor-tante em Nikšić, lá estava Kasparov. Acredito que esta evitação era deliberada por ambos.

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanTilburg, 1983

Defesa Caro-Kann

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 171

1.e4 c6 2.d4 d5 3.Cd2 dxe4 4.Cxe4 Bf5 5.Cg3 Bg6 6.h4 h6 7.Cf3 Cd7 8.h5 Bh7 9.Bd3 Bxd3 10.Dxd3 Dc7 11.Bd2 Cgf6 12.0-0-0 e6 13.Ce4 Bd6!? (Diagrama 89)

DIAGRAMA 89. Jogam as Brancas

Um linha especial minha pela qual me interesso de vez em quando. Estou muito consciente de que não pode ser uma boa ideia abrir mão do bom bispo por um sim-ples cavalo mas, na linha crucial que testa todo o meu conceito, as Brancas têm que fa-zer um sacrifício de peão e eu quero tomá-lo.14.Cxd6+ Dxd6 15.De2!

As Brancas têm um grande número de escolhas, inclusive 15.Th4, 15.c4 e 15.Rb1, mas eu considero que, tendo estudado esta posição profundamente por mais de uma década, esta é a melhor para as Brancas.15...Dd5 16.Rb1 Cxh5

O sacrifício de peão mencionado an-teriormente. Tomá-lo é muita ousadia ou tolice. Como foi isso que eu joguei, vamos com a primeira hipótese, pois, afinal, esta era a posição que eu objetivava. Uma escolha mais circunspecta (é preciso amar a palavra) era 16...De4, que oferece um jogo ligeira-mente superior.17.Ce5 Chf6 18.f3

Que doce, um peão para ajudar. Infeliz-mente, este é o tipo de doce que pode fazer

você se engasgar e, sem uma manobra de Heimlich oportuna para desbloquear a pas-sagem, pode ocorrer asfixia. Assim compre-endemos o remédio: devolver o peão quan-do necessário. Como continuar?18...b5!?

Ainda parte da minha preparação. Vou devolver o peão, mas sob minhas condições. Eu também poderia tentar uma variante de “extermínio” para eliminar as peças do tabuleiro: 18...Dxd4!? 19.Bc3 Dc5 20.Cxd7 Cxd7 21.Bxg7 Tg8 22.Bxh6!? (22.Bd4 Db5) 22...0-0-0 23.Bf4 (23.Be3 De5) 23...Cb6, com o que, a meu ver, era uma “pequena” van-tagem para as Brancas. Recusei esta linha porque eu queria que Karpov provasse sua compensação após o texto.19.g4! Tg8

Um lance muito provocativo e peri-goso. Compreendo plenamente que estou brincando com fogo, mas eu acreditava na solidez de minha posição e não queria de-volver meu peão a mais. Ainda.

O texto evita a ameaça g4-g5 ao cus-to de perder os privilégios de fazer o roque na ala do rei (não que este fosse um trunfo a ser usado) e, mais importante, posicio-nar mal minha torre. Uma escolha pior era 19...Tf8, que apenas encorajaria um futu-ro Bd2-b4, com tempo. Além disso, a va-riante, 19...Cb6 20.g5 Cfd7 21.gxh6 gxh6!? 22.Bxh6 Cc4 23.f4, não era o que eu espe-rava, pois devolvi meu peão e as Brancas ainda fazem pressão. Eu tinha parado de analisar aqui, mas, surpreendentemente, com 23...Cd6! o jogo das Pretas não é tão ruim, pois o bispo h6 está temporariamen-te cravado à torre h1 e as Pretas têm ideias como ...Cd6-f5 e ...Dd5-e4, oferecendo a troca de damas.

Se o texto era provocativo, eu real-mente não consegui jogar a outra linha que havia preparado, 19...Th7, por medo de que meus colegas rissem de mim e tal-vez nunca mais me convidassem para vol-tar a Tilburg.

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172 Yasser Seirawan

De qualquer forma, agora que es-tas preocupações estão fora do caminho, permitam-me explicar por que eu conside-rei 19...Th7 seriamente. Em primeiro lugar, compreendemos que a ameaça de g4-g5, recuperando um peão, obriga a torre h8 a se mover. Onde quer que ela vá, não esta-rá bem posicionada. Uma casa ruim (h7) é tão deprimente quanto uma segunda casa ruim (g8). Portanto, temos que perguntar: “Quais são as ‘vantagens’ de 19...Th7?” Sur-preendentemente, há muitas. Em primeiro lugar, da casa h7 as Brancas são fortemen-te desencorajadas de jogar g4-g5, o que abre a coluna h e libera a torre. Segundo, com um futuro ...g7-g5 ou ...g7-g6, o peão f7 está protegido, possibilitando o roque na ala da dama. Por fim, e isto era o que eu achava mais atraente, as Pretas podem ar-rastar seu rei para a ala do rei graças à prote-ção da torre h7.

Vamos examinar uma linha de exem-plo: 19...Th7 20.The1 (como na partida) 20...Rf8! 21.Bb4+ Rg8 22.b3 (tentando tirar proveito da dama em d5) 22...Cb6 23.c4 bxc4 24.bxc4 Dd8 25.Cxc6 (recuperando o peão) 25...Dc7 com uma boa posição para as Pretas. As Brancas precisam tomar cuidado, pois 26.Ce5? Tb8 já é uma vantagem para as Pretas. Surpresa!

Dê uma olhada na aparentemente ridí-cula 19...Th7 e, se você encontrar uma refu-tação, me escreva. Olhando em retrospectiva, evidentemente, lamento não ter experimen-tado a variante.

Enquanto estava escrevendo este livro, assisti a uma partida absolutamente fantás-tica entre o russo Morozevich e o francês Lagrave. Os jogadores chegaram à seguinte posição após o lance 27 das Brancas (Dia-grama 90):

Alexander Morozevich-Maxime Vachier Lagrave

Biel, 2009

DIAGRAMA 90. Jogam as Pretas

27...Th7!! 28.Te1 Bxc6 29.Dxc6 Bd4 30.Rd2 Dxb2 31.Dc4+ Rh8 32.Rd3 a5 33.Dc8 Da3+ 34.Re4 b3 35.cxb3 a4 36.Tb1 Db4 37.Dc4 Db7+ 38.Dd5 Db4 39.Dc4 Dd2 40.Bg4 a3 41.Df7 Dc2+ 42.Rd5 Dc5+ 43.Re4 a2 44.Tc1 a1D 45.Txc5 Bxc5 46.Dd5 De1+ 47.Rd3 Dd1+ 48.Rc4 Dxd5+ 49.Rxd5 Ba3 50.Bf5 Rg8 51.Rxe5 Th8 52.Rd5 Ch7 53.gxh7+ Rf7 54.Bg6+ Rf6 55.f4 Bc1 56.f5 Bd2 57.Rd6 Be1 58.Rd7 Bb4 59.Rc7 Re5 60.Rd7 Ba3 61.Rc6 Rd4 62.Rc7 Rc3 63.Rd7 Rb4 64.Rd6 Rxb3+ 65.Rd5 Bb2 66.Rd6 Bf6 67.Rc5 Rc3 68.Rd6 Rd4 69.Rc6 Td8 70.Rb6 Rd5 71.Rc7 Rc5 72.Bf7 g5 73.fxg6 Td6 74.Be8 Be5 75.Rb7 Tb6+ 76.Rc8 Rd6 0-1.

Que lance fantástico a partir da posi-ção diagramada. É claro, as Pretas estão em maus lençóis, e a necessidade é a mãe da invenção. Se Lagrave pôde jogar a absurda ...Th8-h7, eu, muitos anos antes, deveria ter feito o mesmo.20.The1! Cb6 (Diagrama 91) 21.b3!

Antes do texto, ainda estávamos em minha preparação. Confesso que eu simples-mente subestimei a força deste lance calmo.

Eu tinha me concentrado em duas li-nhas de pressão: 21.f4 Cfd7 22.f5?! (um lan-ce útil) 22...Cxe5 23.dxe5 Dc4! 24.fxe6 (24.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 173

Df3 0-0-0) 24...Dxe2! 25.exf7+ Rxf7 26.Txe2 Re6 (26...Tge8), quando eu “devolvi” o peão a mais sob minhas condições. A posição resul-tante pode oferecer uma vantagem às Bran-cas, mas as Pretas têm um bloqueio atraente e, mais importante, era essa posição que eu queria.

DIAGRAMA 91. Jogam as Brancas

Outra linha de pressão esperada era 21.g5?! hxg5 22.Bxg5, que visualmente pa-rece forte para as Brancas. As peças dele es-tão todas muito bem colocadas, e ele está “...abrindo a posição para seu exército melhor desenvolvido...” Este comentário pode ser lido em todo livro didático para iniciantes ou experientes. O problema é que a linha sim-plesmente falha depois de 22...Cfd7 23.f4 f6 24.Dh5+ Rd8 25.Bh4 Rc7, quando as Brancas ficam de mãos vazias.

Como nenhuma destas linhas de pressão me preocupava, eu estava feliz em defender toda a minha concepção de jogo a partir de 13...Bd6, arriscando a captura do peão h5 e desafiando Karpov a provar sua compensação.

Além disso, eu achava que as Brancas não poderiam jogar na posição tranqui-lamente porque as Pretas têm muitas for-mas de melhorar sua posição. Por exemplo,

21.Bc1 pode parecer razoável, embora eu não saiba o que ela faz: 21...Cfd7 22.Td3 (o mesmo comentário de antes) 22...Tf8 e, se puderem continuar sem serem perturbadas, as Pretas farão o roque na ala da dama com o rei seguro. Foi, na verdade, esta linha tran-quila, onde o lance defensivo ...Tg8-f8 pode-ria ser jogado, que me atraiu para 19...Tg8 e não 19...Th7.

Por outro lado, o texto causa muito desconforto e a consideração de minha res-posta forçou-me a mudar minha avaliação drasticamente. Além de retirar a casa c4 na linha examinada no primeiro parágrafo, o texto prepara Bd2-b4 e c2-c4, quando as Pretas são derrotadas rápida e furiosamente. O peão em f3 não é o único aríete na posi-ção. Subitamente, não me senti tão bem em relação à minha posição.21...Dd6

Não é a casa dos meus sonhos, mas algo tinha que ser feito. Bd2-b4 e c2-c4 das Brancas não demoram e eu preciso sair do caminho.22.f4!

Agora, o momento para este lance é realmente forte.22...Cfd7?

Tudo bem, meu amor pela posição perdeu sua beleza, mas isto me leva do ca-lor para o fogo. Não estou satisfeito, mas 22...Dc7 era necessário, defendendo meu peão em f7 e preparando a fuga pela ala da dama. As Brancas têm três linhas de jogo atraentes:

a) 23.f5?! 0-0-0 24.fxe6 fxe6 25.Ba5 Td5! revela um motivo tático comum na Caro-Kann. A torre d5 das Pretas sai da cravada e impede c2-c4, graças ao ataque lateral sobre o bispo a5. As Brancas têm ex-celente compensação mas nenhuma vitó-ria forçada.

b) 23.Df3 0-0-0 24.Cxc6 Td6 e as Bran-cas recuperaram seu peão, mas a posição não é muito problemática para as Pretas, pois o peão d4 está pendurado.

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c) 23.g5! era o que me afugentou: 23...hxg5 24.fxg5 Cfd5 25.g6 (25.c4 bxc4 26.bxc4 Ca4 poderia ser boa para as Bran-cas, mas ao menos eu teria algum prazer) 25...f6 26.Cf7 (prevenindo fugas pela ala da dama) 26...De7 27.Dg4 Rd7 (Diagrama 92).

DIAGRAMA DE ANÁLISE 92. Jogam as Brancas

Cometi um grave erro de avaliação ao analisar a posição neste diagrama. Pensei que estava terrível quando, na realidade, as Pretas têm boas chances de defesa. De qual-quer forma, 22...Dc7 era obrigatória.23.f5 Cxe5 24.dxe5 Dc5?

Outro erro. Uma desgraça nunca vem só. Eu já não via uma defesa satisfatória. A “óbvia” 24...De7 25.De4 (ameaçando Bd2-b4) 25...Cd5 26.c4 bxc4 27.bxc4 Tb8+ 28.Ra1 Da3 29.Tb1 parecia inútil, enquanto que, depois do lance forçado 24...Dc7! 25.Ba5 Td8 26.De4, parei de procurar e não vi 26...Td8-d5, um tema tático comum na Caro-Kann. Não me entendam mal, não recomendo a posição após 24...Dc7!, mas era a maneira correta de oferecer resistência. Depois do texto, aterris-so em um final perdido de torres.25.fxe6! fxe6 26.Be3! (Diagrama 93)

DIAGRAMA 93. Jogam as Pretas

Simples e muito poderoso.26...Dxe5?

Meu colapso é completo e acelero as Brancas em sua tarefa de vencer. A posição está perdida, mas 26...De7 era necessária.27.Bxb6

No tabuleiro, esse era o lance que eu mais temia, pois ele força um final técnico vencedor que Karpov maneja impecavel-mente. Depois da partida, foi assinalado que 27.Dd3! teria vencido o jogo com mais rapidez. Ambos os jogadores viram a vitória que foi jogada na partida e Karpov a agar-rou sem hesitação. Não o culpo. Uma vitória por partida é tudo de que se precisa.27...Dxe2 28.Txe2 axb6 29.Txe6+ Rf7 30.Txc6 Tgd8 31.Tf1+! Rg8 32.Tf5!

Bem jogado. Sem dúvida 32.Txb6 Td4 33.Txb5 Txg4 34.a4 também é boa para as Brancas, mas, neste caso, eu também ficaria satisfeito, pois também teria alguns peões passados. O texto prepara para responder a ...Td8-d4 com g4-g5, não me permitindo passadores ligados.32...Td1+

Ajudando as Brancas a ganhar um tem-po ou dois em um final de torres. Mas 32...

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 175

Td4 33.g5 h5 34.g6! julguei como desespe-rançoso.33.Rb2 Tg1 34.Txb5! Txg4 35.Tcxb6!

Tudo está fluindo tranquilamente para Karpov e ele está mesmo em uma boa fase. O peão de vantagem é muito significativo, pois o rei das Brancas está maravilhosamen-te protegido e não existem xeques irritantes.35...g6

Um avanço bastante patético em uma corrida que deveria ser de fundo.36.Tb8+ Txb8 37.Txb8+ Rg7 38.a4 Te4 39.a5 Te7 40.a6 Rf6 41.b4 g5 42.b5 Ta7 43.Tb6+ 1-0

Eu não queria perder um peão depois de 43...Rf5 44.Txh6, por isso decidi dar um descanso para a luta.

É verdade que esta partida pode não estar incluída em uma coleção das absolu-tas melhores partidas de Karpov, mas pense sobre isso: com 21.b3! ele essencialmente refutou minha preparação de abertura so-bre o tabuleiro para garantir uma vanta-gem, jogou impecavelmente no meio-jogo e depois mostrou perfeita técnica de fim de jogo. A meu ver, este era o típico Karpov em sua melhor forma. Gostaria de lisonjear--me e pensar que ele precisou disso para me derrotar. Com exceção do lance 27, quando ele ainda tinha opção de vitórias, dê mais uma olhada nos lances dele e me diga se al-gum deles merece ser repensado. Eu acho que não. Seu desempenho nesta partida impressionou-me profundamente.

A última partida que jogamos en-quanto Anatoly era o 12o Campeão Mun-dial de Xadrez foi no torneio de Phillips & Drew em Londres, em 1984. Eu tinha ven-cido nossa partida no mesmo torneio dois anos antes, quando joguei com as Brancas. Foi bom jogar com as Brancas novamente depois da série de partidas Caro-Kann com as Pretas.

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovLondres, 1984

Abertura Catalã

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.g3!?Não minha escolha costumeira nes-

ta posição. Sinceramente, eu estava sem ideias quanto a como responder ao Gam-bito da Dama Recusado costumeiro de Kar-pov e também à Defesa Índia da Dama. Na época, eu tinha uma ideia na variante da Abertura Catalã, que é a que Karpov prefe-riu jogar.3...d5 4.Cf3 Be7 5.Bg2 0-0 6.0-0 dxc4 7.Da4 a6 8.Dxc4 b5 9.Dc2 Bb7 10.Bf4

E essa era a grande coisa. Na época, as Brancas estavam tendo a tarefa muito difícil, se não impossível, de provar uma vantagem. Muitas ideias, incluindo 10.Bg5, 10.Bd2, 10.Cc3 e 10.Cbd2, tinham sido experimenta-das sem êxito. O texto tinha uma ênfase di-ferente; eu permitiria, ou melhor, encorajaria uma troca na casa f4, de modo que, após a recaptura g3xf4, eu assumiria firme controle sobre a casa e5. O melhor de tudo, eu tinha sido bem-sucedido com essa ideia em algu-mas de minhas partidas.10...Bd6!?

Ninguém tinha feito esse lance contra mim antes. Todos tinham jogado 10...Cd5 11.Cbd2!? Cxf4 12.gxf4 Cc6 13.Cb3 Cb4 14.Dd2, quando meus peões dobrados não estão tão mal e, mais importante, eu impe-di a liberadora ...c7-c5, que é tão vital nessa variante.

Uma linha de “extermínio” que eu ti-nha preparado era 10...Cc6 11.Cbd2 Cxd4 12.Cxd4 Bxg2 13.Cxe6 fxe6 14.Rxg2 Cd5 15.Be5 Cb4 16.Dxc7 Dxd2 17.Dxe7 Dd5+

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176 Yasser Seirawan

18.Rg1 Dxe5 19.Dxb4 Dxe2 20.Tae1, com melhor desfecho para as Brancas.11.Cbd2

Essencialmente continuando com mi-nhas noções de antes do jogo, mas existe mesmo a dúvida sobre o bispo estar bem posicionado em d6, e tanto 11.Bg5 quanto 11.Bd2 precisam ser consideradas.11...Bxf4 12.gxf4 Cbd7 13.e3 Tc8 14.b4! (Diagrama 94)

DIAGRAMA 94. Jogam as Pretas

Neste momento, eu estava muito fe-liz com o desfecho da abertura. Chegar em b2-b4 significava que eu tinha decisivamente posto um fim a ...c7-c5 para sempre e poderia esperar atormentar o peão c das Pretas por muito tempo no futuro. É interessante que, embora eu considerasse a posição muito van-tajosa para mim, Anatoly discordava, assina-lando que ele também controlava casas.14...Cb6 15.a3 g6 16.Tfc1 Bd5

Com esses últimos lances, Anatoly basicamente ergue um muro e diz: “Muito bem. O que você vai fazer?”17.Ce5?!

Um lance difícil de criticar. Ele parece bom, mas é provável que o momento esteja errado. Em retrospectiva, gostaria de desfa-zer esse lance. Hoje, eu jogaria 17.Dd3!, com várias implicações para o aperfeiçoamento.

Primeiramente, preciso estar ciente de que meus peões dobrados na coluna f têm, sim, uma desvantagem: o palácio do meu rei tem buracos. Assim, lances que não fortificam a ala do rei devem ser encarados com des-confiança. Em segundo lugar, minha dama, embora bem, precisa de um papel melhor. Preciso dobrar minhas torres na coluna c o mais rápido possível para comprometer as Pretas com a defesa do peão c7. Por fim, o lance preciso Cf3-e5 precisa ser feito, mas devo preparar aquele salto jogando primei-ro Dd3-f1, e somente então, Cf3-e5. Após uma troca do bispo g2, posso recapturar com a dama e dominar a longa diagonal.

Outra forma de pensar sobre a posição é como segue: o que as Pretas podem fazer para melhorar sua posição? Sim, elas podem achar que ...Dd8-e7 e ...Tf8-d8 oferecem mo-destas melhorias, mas elas têm um proble-ma para encontrar um plano a longo prazo. Por outro lado, eu tinha um plano muito claro e direto: dobrar as torres na coluna c, reposicionar minha dama na longa diagonal (h1-a8), jogar Cf3-e5, depois tiranizar e mas-sacrar as Pretas. É verdade que esta última etapa é menos concreta do que as etapas preliminares, mas você capta a ideia.17...Bxg2 18.Rxg2 Cfd5 19.De4 Ta8!?

É estranho; eu não sabia o que é que Anatoly iria jogar. Eu já estava viajando com o máximo de otimismo. Eu tinha fantástico controle sobre as casas na ala da dama e não via uma forma de ele sair do aperto. De algu-ma forma, com o texto, Anatoly conseguiu me hipnotizar e me convencer de que ...a6-a5 um dia poderia se tornar uma ameaça. Em outra vida, talvez ele pudesse encantar serpentes.20.Cc6 Dd7 21.Ca5?

Minha nossa! Que besteira. Eu pego o meu cavalo muito bem centralizado em e5 e o redireciono à estúpida casa a5? O que eu estava pensando? Não faço ideia. De-pois da normal 21.Rh1 Cc8!? 22.Dg2 Cce7 23.Cxe7+ Dxe7 24.Cb3, eu prefiro a posição das Brancas.21...Cc8! 22.Rh1 Cd6 23.Dg2 Rh8!

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 177

Embora possa parecer que nenhum dos jogadores encontrou um plano efetivo, Anatoly não está fazendo nada melhor do que eu. O texto faz parte de um plano bem escondido de abrir linhas na ala do rei. É cla-ro que eu consegui encorajar isso colocando meu cavalo a5 bem fora do jogo.24.Tc5 Tg8! 25.Cf1

Um reconhecimento de que coisas ruins vão acontecer se a ala do rei for aberta. O tex-to procura reforçar as defesas do meu rei. Es-tou sendo derrotado, e a vantagem virou.25...De7 26.Cg3 f5 27.Cc6 Df6 28.Tac1 g5 29.fxg5 Dxg5 (Diagrama 95)

DIAGRAMA 95. Jogam as Brancas

30.Txd5!?Uma combinação defensiva baseada

em um descuido. Eu estava ficando preo-cupado com as florescentes ameaças das Pretas e achei que um sacrifício de torre re-solveria meus problemas. Enquanto 30.Ce5 f4 31.exf4 Dxf4 seria um pouco melhor para as Pretas, não havia muito com o que se pre-ocupar. Na verdade, 30.Df3! Taf8 31.Dh5 é aproximadamente equilibrado.30...exd5 31.Dxd5

Esta não era a continuação pretendida. Eu achava que tinha tempo de jogar 31.f4 primeiro e depois capturar o peão d5. Neste caso, o peão f5 está fixo e eu tenho uma po-

derosa casa e5 para meu cavalo em c6 e, em minha opinião, excelente compensação. Daí acordei para o meu problema. Se 31.f4 Dh4! 32.Dxd5? Txg3! ganha uma peça e a partida. Que constrangedor. Eu não teria feito o sa-crifício de torre se eu achasse que 31.f4 não podia ser jogado. De repente, minha con-fiança sofreu um golpe.31...f4!

Este lance simples faz toda a diferença. As Pretas imediatamente forçam uma troca de damas para descartar xeques perigosos.32.Dxg5 Txg5 33.exf4 Tg4 34.Ce5?

Este erro realmente me traz problemas sérios. Era forçado jogar 34.Ce2!, quando as Pretas poderiam obter um empate imedia-to com 34...Ce4 35.Tf1 Cd2 36.Td1 Ce4 caso quisessem. Mas as Pretas não devem ficar muito alegres. Por exemplo, 34.Ce2 Tag8 35.Ce5 Tg2 36.Tf1 Ce4?? 37.Cf7+! seria cons-trangedor.34...Txf4 35.Txc7 Taf8! 36.Td7 Cc4!

Bem jogado. Graças a meu passo em falso, Anatoly aproveitou a chance de vanta-gem. Para piorar as coisas, eu só tinha um mi-nuto para o controle de tempo de 40 lances.37.f3 Cxe5 38.dxe5 Txf3 39.e6 Txa3 (Dia-grama 96)

DIAGRAMA 96. Jogam as Brancas

40.Cf5! Tg8?

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178 Yasser Seirawan

O dramático último lance do controle de tempo. Eu não tinha certeza se o final de torre depois de 40...Txf5! 41.Td8+ Rg7 42.e7 Te5 43.e8=D Txe8 44.Txe8 Tb3 45.Ta8 Txb4 46.Txa6 estava perdido ou não, pois, depois de 46...Tb2, meu rei fica confinado à primeira fileira enquanto o rei das Pretas pode andar livremente. Depois do texto, não dou a Anatoly uma segunda chance para aquele final.41.Td1! Tf3 42.Ch6

A posição adiada.42...Te8 43.Tg1 Tef8 44.Tg4!

Este é um final de torres muito diferen-te. Agora o rei das Pretas está isolado e o rei das Brancas ativo. A análise no adiamento confirmou um empate fácil.44...T3f6 45.Cf7+ T8xf7 46.exf7 Txf7 47.Rg2!

Com certeza não há motivo para temer um final com torres e peões.47...Tf6 48.Rg3 h6 49.Tf4 Tg6+ 50.Rh4 Td6 51.Tf7 Td4+ 52.Rh5 Txb4 53.Ta7 ½-½

Depois de 53...Ta4 54.Rg6!, ameaçando mate, as Pretas são obrigadas a repetir com 54...Tg4+ 55.Rh5 Ta4 56.Rg6 ou abrir mão de seu peão em a6.

Outra partida irritante em que minha preparação de abertura não deu em nada. Ainda pior, obtive o que considerei uma po-sição favorável só para depois ser compre-ensivelmente derrotado. No fim, consegui escapar por pouco.

Assim, nosso placar em torneios de xa-drez clássico termina com uma vitória, uma derrota e quatro empates enquanto Anatoly foi Campeão Mundial no período de 1975 a 1985 de sua carreira. Levando em conta seu lugar no topo da hierarquia do xadrez, este é um placar muito bom; mas, considerando as posições que eu tinha, considerei este um péssimo resultado.

Partidas de Xadrez RápidoEm 1982, houve um evento de produção para televisão chamado TV World Cup Chess. Foi um trabalho cooperativo entre um canal de televisão de Hamburgo, na Alemanha, e a BBC. As partidas foram disputadas em Ham-burgo, enquanto os enxadristas fizeram o trabalho de “pós-produção” ou “dublagem” nos estúdios da BBC no Reino Unido. Eu acho que esse trabalho de pós-produção foi feito em Bristol, mas não tenho certeza. As parti-das não receberam classificação ELO, pois foram disputadas com controle de tempo de 60 minutos por enxadrista para toda a parti-da (com no máximo duas horas por partida).

Anatoly Karpov foi o vencedor do tor-neio, derrotando Boris Spassky na Final por 1½-½, tendo me eliminado nas preliminares por 2-0. De uma coisa deste evento nunca vou me esquecer: o voo de Hamburgo para o Reino Unido. Quis o destino que Anatoly e eu acabássemos sentando juntos. Depois da decolagem e atingida a altitude de cruzeiro, fomos informados de que lanches/almoços seriam servidos em breve. De repente, aquela parecia ser uma ótima oportunidade para fa-zer uma confissão.

Comecei a conversa com bastante apreensão. “Anatoly, lamento dizer que te-nho uma confissão a fazer”. Anatoly opôs-se imediatamente: “Confissão? Certamente não. Você não tem nada do que se desculpar”.

Neste ponto compreendi que Anatoly podia estar pensando sobre eu ter sido as-sistente de Victor Korchnoi durante o match de 1981. “Bem, você provavelmente já deve ter se esquecido totalmente do incidente... Mas uma vez nós jogamos bridge e, bom, eu e Larry mexemos nas cartas...”

Anatoly imediatamente entendeu e lembrou-se do assunto. Sua reação foi completamente inesperada. “Nossa! Muito obrigado por me contar. Sabe, eu passei me-ses tendo pesadelos com aquela mão...”

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 179

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovPrimeira Partida do Match, TV de

Hamburgo (rápido), 1982Gambito da Dama Recusado

1.Cf3 Cf6 2.c4 e6 3.Cc3 d5 4.d4 Be7 5.Bg5 h6 6.Bh4 0-0 7.Tc1 b6 8.cxd5 Cxd5 9.Cxd5 exd5 10.Bxe7 Dxe7 11.g3 Te8 12.Tc3 Ca6 13.Da4

Repetindo a variante da partida que eu tinha vencido. Anatoly veio preparado com uma novidade muito poderosa.13...b5!

Na época, eu não estava convencido de que esse lance fosse muito bom, mas de-pois de muita análise estou impressionado. Todos os meus esforços para refutá-lo não levaram à parte alguma e ele parece bom. Portanto, 13.Da4 não é tão forte quanto eu pensava e, provavelmente, deveria ser subs-tituído por 13.e3, com uma posição aproxi-madamente equilibrada.

Eu não queria publicar minha análise e ser acusado de “armar para um adversá-rio”, o que seria uma acusação justa se eu tivesse comentado a partida. Em vez disso, suprimi minha análise e a compartilho aqui pela primeira vez.14.Da5?

A primeira coisa a dizer é que 14.Dxb5? Tb8 é inequivocamente ruim para as Brancas. Depois da partida, minha atenção foi atraída para 14.Dc2!, que eu erroneamente pensava que favorecia as Brancas. A ideia é prevenir ...c7-c5, comple-tar rapidamente o meu desenvolvimento e depois tirar vantagem das debilidades crônicas das Pretas na ala da dama, assim

como do cavalo a6 impedido. Parece bom, mas uma análise concreta não mostra uma vantagem. As Pretas jogam 14...c5! de qualquer forma, exatamente o lance que eu esperava impedir. A linha parece bas-tante direta: 15.dxc5 Cb4 16.Dd2 (16.Dd1 e 16.Db1 são possíveis, mas parecem menos confiáveis) 16...De4! 17.a3!? Db1+ 18.Dd1 (18.Tc1? Cd3+! é um truque das Pretas) 18...Dxb2 19.Db3 Dxb3 20.Txb3 Cc6, com um jogo equilibrado.

O problema com o texto é que as Pre-tas agora possuem um empate forçado, no mínimo, e caio diretamente na preparação de abertura de Anatoly.14...De4! (Diagrama 97)

Um lance medonho difícil de enfrentar. Observe que, pela inclusão do lance ...b6-b5, esta arrancada da dama é possível. Se as Pre-tas jogarem imediatamente 13...De4?, então 14.Cd2! Dxh1 15.Dxe8+ é vantajosa para as Brancas.

DIAGRAMA 97. Jogam as Brancas

15.Rd2As Brancas não têm escolha, pois exis-

te a ameaça de ...De4-b1+. Com o texto, as Brancas planejam Tc3-e3, uma ameaça mi-

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180 Yasser Seirawan

nha. De qualquer modo, 15.Rd2 parecia o único lance.15...Te6!

Jogado quase instantaneamente. Agora compreendi que eu realmente esta-va em apuros.16.b3

Não parecia haver muita escolha. Eu queria capturar em b5 e voltar correndo com minha dama. Depois da partida, Anatoly ofe-receu 16.b4 como uma alternativa.16...b4 17.Te3 Db1 18.Txe6 Db2+ 19.Rd1 Bxe6!

As Pretas dispõem de xeque perpé-tuo quando quiserem. A recaptura alter-nativa 19...fxe6?! 20.e3! forçaria as Pretas a aceitarem o xeque perpétuo, pois 20...Dxf2 21.Cd2! pode começar a favorecer as Brancas.20.Dxa6 Da1+ 21.Rd2 Dc3+ 22.Rd1 Bf5!

Ainda testando. O xeque perpétuo continua.23.Ce1! Tb8

Mais testes.24.Dxa7! Tb6

Último teste. Resposta correta e é um xeque perpétuo.25.e3?

Resposta errada! Fui forçado a con-tinuar com 25.Da8+ Rh7 26.Dxd5 Da1+ 27.Rd2 Dc3+, quando Anatoly me disse que pretendia aceitar o perpétuo.25...Tc6!

Vencendo imediatamente. Ter deixado de capturar o peão d5 mostra-se fatal, como veremos num instante.26.Bc4 Da1+! 27.Re2 Db2+! 28.Rd1

Não tem escapatória. 28.Rf1 Bh3+ 29.Rg1 Dd2 e 28.Rf3 Be4+ vencem ambas.28...dxc4 29.Da8+ Rh7 30.Dxc6 c3! 0-1 (Diagrama 98)

DIAGRAMA 98. Jogam as Brancas

Realmente, muito bom. Excelente pre-paração de Anatoly, que prova quão formi-dável foi seu dever de casa.

Esta partida, assim como a seguinte, fi-caram atravessadas em minha garganta por um motivo completamente diferente: Ana-toly comentou ambas para a Chess Informant. Considero isso uma espécie de sacrilégio. Naquela época, a publicação era quase uma bíblia para os enxadristas, e as partidas incluí-das na Chess Informant eram todas “partidas clássicas” dos melhores enxadristas e dos me-lhores torneios do mundo. As partidas dispu-tadas em Hamburgo eram “partidas rápidas” e deram aos leitores da Chess Informant uma falsa impressão. Em outras palavras, eu consi-derava estas partidas como “partidas para se-rem exibidas em um programa de televisão” que não receberam classificação. Se eu tives-se vencido, não as teria comentado.

A propósito, em seus comentários na Informant, Anatoly mostrou que, se eu tives-se jogado a superior 25.Da8+ Rh7 26.Dxd5, ele poderia fazer mais do que aceitar o xe-que perpétuo com 26...Da1+ 27.Rd2 Dxa2+! 28.Re3 Te6+ 29.Rf3 Be4+, com posição supe-rior para as Pretas. A conclusão é que depois de 14.Da5? eu estava praticamente perdido.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 181

Depois desta derrota, para me qualifi-car eu tinha que vencer com as Pretas. Uma exigência difícil.

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanSegunda Partida do Match, TV de

Hamburgo (rápido), 1982Defesa Índia da Dama

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cf3 b6 4.g3 Ba6 5.Cbd2 Bb4 6.Dc2

Na época em que foi jogado, o texto era a última moda para as Brancas.6...c5

O mais combativo. Depois de 6...Bb7 7.Bg2 Be4 8.Db3 Bxd2+ 9.Bxd2, as Brancas teriam o par de bispos para exibir como van-tagem de abertura. Mais importante, a posi-ção resultante mal dá às Pretas uma chance de confundir as coisas.7.e4!

Do contrário, a linha não teria sentido. Por exemplo, depois de 7.Bg2 Cc6, as Pretas têm um desenvolvimento tranquilo e um jogo excelente.7...cxd4 8.e5 Cg8

O lance circunspecto. A linha principal era 8...Bb7 9.Bg2 (9.exf6? Dxf6) 9...Cg4 10.0-0 Dc7 (10...Cc6? 11.h3!) 11.Te1 Cc6 12.h3 Ch6, com uma partida aguda. Desconfiado que Anatoly estaria melhor preparado do que eu nesta linha principal, escolhi o texto.9.Bg2 Cc6 10.0-0 Cge7 11.a3

Ganhando o par de bispos. Eu esperava confundir as coisas e criar uma bagunça de-pois de 11.Ce4 Cg6 12.Bg5 Dc7 13.a3 Bf8!?, a qual, quando examino agora, parece ser realmente provocativa. De qualquer forma, considerando minha situação no torneio, esta linha tinha que ser experimentada.11...Bxd2 12.Bxd2 b5! 13.cxb5!?

Inesperado. Eu achava que Anatoly bus-caria um domínio posicional com 13.c5 b4!? 14.Tfe1 bxa3 15.Txa3 Bb5 16.De4 d3, com uma pequena vantagem para as Brancas.13...Bxb5 14.Tfe1 d3 (Diagrama 99)

DIAGRAMA 99. Jogam as Brancas

Eu estava satisfeito com o resultado da abertura. Por enquanto, tenho um peão à frente, coisa realmente muito boa, com boas casas para minhas peças. Em princípio, eu teria preferido não avançar meu peão d4, mas havia um problema com meu bispo b5. O 14...0-0 15.a4! Ba6 16.b4! dá às Brancas a iniciativa, mas, se eu detiver este plano com 14...a5, então 15.Dc5! é um duplo golpe con-tra meu bispo b5 e peão d4.15.Db3 Tb8 16.Te4?!

Sinceramente, não entendi o propósi-to desse lance. Eu estava mergulhado na li-nha 16.a4! Ba6 17.Da3 Cd5 18.Cg5, tentando compreender qual ameaça das Brancas pre-ocupava-me mais: Bg2xd5 e b2-b4, ou Cg5--e4, dirigindo-se à casa d6. O texto parecia atrapalhar a compensação das Brancas, por isso, aproveitei a oportunidade para escon-der o meu rei.16...0-0?

Momento muito ruim para isso e quase merecedor de um segundo ponto de inter-rogação. Eu deveria ter garantido a ala da

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dama primeiro com 16...a5!, quando as Pre-tas têm uma posição excelente. Agora, Ana-toly tem sua chance de arremeter.17.a4! Ba6 18.Da3 Cf5 19.b4!

Essa sequência de lances faz toda a di-ferença e a iniciativa agora está firmemente nas mãos das Brancas.19...d5

Claramente, não posso permitir b4-b5, bloqueando a proteção do peão em d3.20.Tf4! Bc4! 21.b5 Cce7 (Diagrama 100)

DIAGRAMA 100. Jogam as Brancas

Uma daquelas posições em que o julga-mento de Anatoly foi muito superior ao meu. Como usuário da Defesa Francesa, eu achava que estava fazendo “tudo certo”. Ainda es-tou com um peão à frente e, com ...Ce7-g6 e ...f7-f6, as coisas podem ir facilmente em minha direção. Mas o lance é das Brancas e Anatoly encontra uma sequência impressio-nante.22.g4! Ch6 23.Td4!

É irônico, joguei 8...Cg8 só para evitar a linha em que meu cavalo ficaria ilhado na

casa h6. A torre d4 no meio do tabuleiro cau-sa estranhamento mas é inatacável.23...Cg6?

Novamente, no momento errado. Este lance não faz nada para melhorar o meu jogo. A melhor linha era 23...a6, rompendo a equipe na ala da dama e tentando usar mi-nha torre b8. Se as Brancas vão pela ala do rei com 24.Dc1 Rh8 25.Bxh6 gxh6 26.Dxh6, eu tenho muitos recursos defensivos após 26...Tg8!, e a ideia de ...Tg8-g7 e ...Ce7-g8 re-mendaria minha ala do rei.24.Dc1 a6?

Parece que eu tive um problema de hora oportuna para cada lance em toda esta partida. 24...Rh8 foi forçado.25.h4!

De repente, o ataque das Brancas acerta o alvo em cheio. Meus cavalos estão mal posi-cionados e são bombardeados com tempos.25...f6

Eu estava tentando encontrar alguma variante de sacríficio que me salvasse, como 25...axb5 26.h5 Ce7 27.Bxh6 Cc6 28.Be3 Cxd4 29.Cxd4, mas temia que o ataque das Bran-cas pela ala do rei ocorreria tranquilamente. Até um sacrifício de dama 25...Cxh4 26.Cxh4 Dxh4 26.Bg5 Cf5 interessou-me brevemente até eu ver 27.Txc4!, vencendo.26.exf6 Txf6 27.Bg5

Certamente não 27.g5?? Txf3! 28.Txf3 Cf5, quando a mesa vira totalmente.27...Cf7 28.Bxf6 Dxf6?!

Melhores chances eram dadas por 28...gxf6!, que, por incrível que pareça, eu quase nem considerei.29.g5 Df5?!

Piorando ainda mais a posição de mi-nha dama. Tanto 29...De7 quanto 29...Dd8 eram melhores.30.h5 (Diagrama 101)

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DIAGRAMA 101. Jogam as Pretas

Apesar do grande número de lances de segunda categoria e em momentos inopor-tunos, além de simples erros, ainda não estou perdido e tenho uma real chance de lutar.30...Cge5?

Agora não mais. Isto pode ser des-crito como o “erro grave final”. Após a cor-reta 30...Cfe5! 31.De3! Cxf3+ 32.Bxf3 Ce5 33.Bg2, as Brancas têm clara vantagem, mas eu ainda podia perseverar.31.Ch4!

Agora, podemos ver claramente que foi o cavalo preto errado que ocupou a casa e5. Minha dama está encurralada ou eu perco uma peça. Os lances finais não eram realmente necessários e sugerem aperto de tempo.31...Dxg5 32.Dxg5 Cxg5 33.f4 Cd7 34.fxg5 Kf7 35.g6+ hxg6 36.Cxg6 axb5 37.axb5 e5 38.Bxd5+ 1-0

Como podemos ver de minhas notas, esta não é uma partida bem jogada e conti-nha muitos erros, o que é bastante comum em partidas rápidas. Ter minha dama en-curralada no trigésimo lance em um lance certamente não é um momento de orgulho para mim. É por isso que você pode enten-der que eu não gostei que as partidas foram incluídas na Chess Informant. Hoje em dia, é claro, partidas rápidas bem como partidas de Blitz decidiam o próprio título do Cam-peonato Mundial (suspiro!) e até essas par-tidas agora aparecem na Informant e nas bases de dados.

Nosso placar em torneios de xadrez rápido termina com duas vitórias para Ana-toly enquanto ele foi Campeão Mundial no período de 1975 a 1985 de sua carreira.

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Garry Kasparov, 1985-2000

Garry Kimovich Kasparov foi e é o maior en-xadrista que já existiu. Ele foi um meteoro, cometa e corpo celestial que riscou o cosmo do xadrez. Todos assistimos boquiabertos de arrebatamento à sua incrível lista de realiza-ções. Por quase duas décadas, de 1986 até sua aposentadoria, em 10 de março de 2005, Garry ocupou o degrau máximo na lista de ratings, detendo a primeira posição. Uma vez ele teve que dividir o posto mais alto, mas amiúde foi o número um com grande diferença. Foi uma realização extraordinária no xadrez moderno e nos esportes moder-nos de qualquer tipo.

Sua carreira também foi encantada noutro aspecto. Garry não foi apenas o en-xadrista que alcançou o rating mais alto do mundo; ele também tinha um extraordiná-rio talento para ser o centro das atenções. Se houvesse alguma controvérsia ou se alguma coisa de excepcional interesse de qualquer tipo acontecesse no mundo do xadrez, você podia ter absoluta certeza de que Garry es-taria na frente e no centro do acontecimen-to. Quando essas duas habilidades são rela-cionadas, começamos a ver a carreira rara e espetacular que Garry teve. A atenção públi-ca sobre ele foi tão constante que se tornou difícil não mencionar “Kasparov e xadrez”

ao mesmo tempo ou no mesmo artigo. Por 20 anos ele foi o “Sr. Xadrez”, e nos círculos de xadrez ele era simplesmente conhecido como “O Chefe”.

Garry Kimovich Weinstein, seu nome de nascimento, nasceu em 13 de abril de 1963 em Baku, Azerbaijão, de mãe armênia e pai judeu. Aos 7 anos, seu pai morreu de leucemia, dei-xando-o para ser criado pela mãe, Klara, como filho único. Garry aprendeu xadrez em idade bastante precoce e começou a frequentar os conhecidos programas de xadrez do Young Pioneer Palace aos sete anos. Seu prodigioso talento para o xadrez foi notado e, aos 10 anos, ele começou seu treinamento formal com Mi-khail Botvinnik na escola de xadrez deste em Moscou. Aos 12 anos, adotou o sobrenome de sua mãe armênia, Kasparyan, modificando--o para seu equivalente russo, Kasparov. Sua mudança de nome não foi sem controvérsia. David Bronstein, por exemplo, nunca mudou seu nome, e sua identidade judia ficou aberta para todos verem. Garry explicou os motivos para sua mudança de nome, e longe de mim julgá-lo a esse respeito.

Hoje, chama-se Garry Kimovich Kasparov, com uma carreira que simples-mente decolou como um foguete. Em 1976, ele obteve um resultado fantástico: venceu o

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Campeonato Soviético Juvenil (com menos de 21 anos de idade), marcando 7 pontos em suas nove partidas, quando tinha apenas 13 anos de idade. Entre jogadores jovens, este tipo de resultado era surpreendente; ocorren-do como ocorreu dentro da União Soviética, o país do mais forte xadrez do planeta, era ainda mais impressionante. Ele repetiu este sucesso no ano seguinte, de modo ainda mais dramático, fazendo 8½ pontos em nove parti-das. As palavras começaram a ser poucas para descrever satisfatoriamente estes resultados.

Dali em diante, o foguete continuou tornando-se um cometa rumo às estrelas. Recordes eram rotineiramente quebrados em quase todas as excursões. Em 1978, com apenas 15 anos de idade, ele se qualificou para o Campeonato Soviético de Xadrez, o participante mais jovem de todos os tem-pos. Em 1980, em Dortmund, Alemanha Oci-dental, venceu o Campeonato Mundial Juve-nil (abaixo de 21 anos de idade). Ouvem-se histórias de que, durante o evento, ele tam-bém jogava Blitz, dando a seus adversários vantagens de cinco minutos para três ou mesmo um minuto, e vencia. Em 1980, ele representou a seleção olímpica da URSS em Malta, o representante mais jovem que já houve na equipe soviética. Recebeu seu título de Grande Mestre pela FIDE naquele evento.

Em 1980-1981 e em 1981-1982, Kas-parov empatou duas vezes pelo primeiro lugar no Campeonato de Xadrez da URSS, tornando-se um dos campeões soviéticos mais jovens que já existiu. Fora da União Soviética, ele teve resultados de sucesso em Banja Luka, Iugoslávia, em 1979, vencendo o torneio como jogador sem rating (!) com 11½ pontos em 15 partidas. A norma de Grande Mestre era 10½ pontos, um ponto a menos que seu escore final. De forma ainda mais sensacional, no torneio de Categoria 114 em 1982, em Bugonjo, Iugoslávia, ele venceu com 9½ pontos em 13 partidas, des-ta vez dois pontos e meio acima da norma de Grande Mestre. Este não era apenas um

enxadrista se classificando – ele estava cons-truindo um título completamente diferente para si mesmo. Uma criação sua que jamais será igualada.

Devido a seu sucesso nos campeona-tos da URSS, um evento zonal, Garry qualifi-cou-se para o ciclo do Campeonato Mundial e para jogos no torneio interzonal de Mos-cou em 1982. Venceu o evento e qualificou--se para os Matches de Candidatos em sua primeira tentativa, aos 19 anos. Somente Bobby Fischer foi um enxadrista Candidato mais jovem, qualificando-se aos 15 anos em 1958. Inevitavelmente, foram feitas compa-rações. Quando os Matches de Candidatos se iniciaram, Garry era o favorito para se tor-nar o Desafiante, pois seu rating havia subi-do para o segundo lugar na lista da FIDE de janeiro de 1983, ficando abaixo apenas do Campeão Mundial, Anatoly Karpov.

Kasparov teve azar no sorteio. Em seu match nas quartas de final dos Candidatos, foi emparceirado contra Alexander Beliavsky que, em minha avaliação, era um dos adver-sários mais perigosos para Garry. Contudo, Kasparov venceu de maneira convincente por 6 a 3. Mas a política ameaçava acabar com a participação de Kasparov no ciclo de Candidatos. Após a invasão soviética do Afeganistão em 1979, os Estados Unidos boicotaram os Jogos Olímpicos de 1980 em Moscou, um favor que os soviéticos retribui-riam boicotando os Jogos Olímpicos em Los Angeles em 1984. Em 1983, a FIDE tinha con-cedido o match da Semifinal de Candidatos entre Kasparov e Korchnoi para Pasadena, Califórnia, perto de Los Angeles e do local onde seriam realizados os Jogos Olímpicos.

Seria difícil permitir que um soviético competisse em Pasadena e explicar por que outros atletas não podiam competir em Los Angeles. O resultado foi que Kasparov foi proibido pelo governo soviético de compe-tir nos Estados Unidos e perdeu por forfeit. Combinado com o incidente com Karpov nas Olimpíadas de Malta, muito se opinou sobre essa desistência e se a Federação de

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Xadrez da URSS estava protegendo o atual Campeão ou se foi um caso de má sorte.

Kasparov diria celebremente que havia falado com uma autoridade da Federação de Xadrez da URSS: “Já temos um Campeão Mundial soviético”. A tradução de Garry foi “Não precisamos de um segundo”, além de, “Você não é ele”. Esses comentários sem ro-deios certamente gerariam reprimendas na URSS e nós todos no Ocidente pensamos no que iria acontecer com Kasparov depois dis-so. Kasparov agora estava fora do ciclo.

Em sua rivalidade muito amarga, às vezes, parecia que tanto Karpov quanto Kasparov tinham coisas desagradáveis para dizer um sobre o outro e, ao que parece, “gostavam de demolir um ao outro”. De ma-neira engraçada, eles muitas vezes usaram a mesma acusação mútua um contra o outro. Por exemplo, enquanto visitava o Ocidente, Kasparov constantemente informava suas plateias que Karpov era o porta-bandeiras escolhido pelo Estado e como Karpov ti-nha total apoio do Estado. Ele se descre-via como um “forasteiro” lutando contra as forças do Estado, reivindicando apenas condições iguais e justas. Essas acusações eram interessantes e certamente incomuns para serem consideradas por uma plateia ocidental. A maioria das pessoas no Oci-dente pensava que a URSS era controlada pelo Partido: uma entidade monolítica que dava ordens ao nível do Politburo que sim-plesmente fluíam pela cadeia de comando. Os que se opunham eram mandados para o Gulag. Como Kasparov podia “combater” dentro deste sistema do Estado?

Karpov, por sua vez, dizia que não era ele o messias – e sim Kasparov, que tinha o apoio direto de Heydar Aliyev, um dos mem-bros mais altos do Politburo do Azerbaijão, que era amigo de Garry e, de fato, seu de-fensor. Uma amizade que Garry confirmava. Karpov dizia que Garry tinha se filiado ao Partido Comunista e era um de seus mem-bros mais jovens; que o “Estado”, desde os escalões mais elevados do Politburo, apoia-

va Garry e que era ele, Karpov, quem estava sob pressão.

Era uma acusação mútua engraçada. Ambos lutando contra burocratas sem ros-to que podiam fazer ou desfazer suas car-reiras? Como nós no Ocidente poderíamos adivinhar quem estava dizendo a verdade e quem estava exagerando? Com certeza, ambos tinham muito mais privilégios do que muitos outros e ambos tinham seus defensores.

Mas, voltemos ao xadrez por um ins-tante. Em 1983, Garry estava fora do ciclo por desistência. Então, o que realmente aconteceu? Foi o forasteiro sincero, o rebel-de sem causa, levado pela pilha de aciden-tes do Estado? Dano colateral para preservar o quadro geral coletivo? Ou Garry não era bem o outsider que dizia ser?

Em uma reviravolta meio estonte-ante, a Federação de Xadrez da URSS fez algo que a URSS raramente ou nunca tinha feito ao nível internacional: voltou atrás e desculpou-se por seu comportamento. A Federação de Xadrez da URSS reembolsou os organizadores de Pasadena pelos custos organizacionais do match cancelado – em moeda ocidental. Pagaram uma multa à FIDE e emitiram um pedido de desculpas. Foi simplesmente extraordinário. Sem pre-cedentes. Quem na URSS poderia ter solici-tado tamanha reversão?

Os enxadristas soviéticos Kasparov e Smyslov poderiam voltar ao ciclo? Isso de-penderia de Zoltán Ribli, da Hungria, e de Victor Korchnoi, da Suíça, que tinham ven-cido seus matches de Candidatos por forfeit. No caso de Ribli, da Hungria socialista, esta decisão provavelmente seria tomada em seu lugar. O caso complicado era o de Victor Korchnoi – um desertor, não vamos esque-cer –, que teria que concordar com uma re-petição. Eu não sei se esses enxadristas re-ceberam algum bônus para redisputar seus matches na Semifinal de Candidatos, mas ambos Korchnoi e Ribli concordaram em jogar novamente. Ambos perderam. Kaspa-

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rov começou perdendo a primeira partida contra Korchnoi, mas venceu o match da Semifinal de Candidatos por 7 a 4.

Em 1984, em Vilnius, Lituânia, Kasparov venceu a Final de Candidatos por 8½-4½, derrotando Vassily Smyslov para se qualifi-car como Desafiante do Campeão Mundial, Anatoly Karpov.

No capítulo anterior, lemos sobre o confronto de 1984-85, que foi abortado “sem resultado”. O confronto Karpov-Kasparov, em 1985, foi organizado em Moscou como uma competição com 24 partidas; o primeiro en-xadrista que fizesse 12½ pontos levaria o títu-lo. Se o placar empatasse em 12 a 12, Karpov manteria o título como Campeão defensor. Kasparov venceu a dramática 24a partida com as Pretas e, em 9 de novembro de 1985, assegurou o título de Campeão Mundial de Xadrez aos 22 anos de idade. Ele venceu por um placar de 13 a 11. Se Kasparov tivesse perdido a partida final, Karpov teria mantido o título. Com sua vitória, Kasparov quebrou o recorde existente de mais jovem Campeão Mundial, que era de Mikhail Tal, que tinha 23 anos quando derrotou Mikhail Botvinnik em 1960. A lenda de Garry Kasparov nasceu e continuou cada vez mais intensa.

Anatoly Karpov tinha direito a uma re-vanche e assim os enxadristas disputaram um terceiro match em Londres e Leningra-do, cada cidade sediando 12 partidas. Inicial-mente o match foi unilateral, pois Kasparov abriu uma vantagem de três pontos, mas, no final do match, Karpov venceu três partidas consecutivas e nivelou o placar. Como já dis-se, Kasparov tinha o dom de estar no meio de praticamente todas as controvérsias do xadrez: após sua sucessão de derrotas, sur-giram acusações quando Kasparov demitiu um de seus assistentes, Evgeny Vladimirov, acusando-o de vender sua preparação de abertura para o grupo de Karpov. Kasparov conseguiu obter mais uma vitória e manteve seu título com um placar final de 12½ a 11½.

Finalmente, Kasparov tinha se livra-do de seu eterno rival. Não tão rápido. Por

causa dos extraordinários acontecimentos que cercaram o match cancelado, um novo primeiro match e depois uma revanche para definir o ciclo, os cronogramas para o ciclo de 1985-1988 foram seriamente mutilados. Recorde-se do torneio de Candidatos de 1985 com minhas partidas contra Smyslov, Tal e Spassky. Pelo regulamento da FIDE, o “perdedor do match pelo Campeonato Mun-dial de 1984” deveria competir no torneio de Candidatos de Montpellier de 1985. Como não houve resultado, a FIDE decidiu que o eventual perdedor se qualificaria para os matches de Candidatos.

Graças à vitória de Kasparov e à neces-sidade de um novo confronto, os matches de Candidatos continuaram sendo disputados sem a participação de Kasparov ou Karpov, pois não havia um “perdedor”. No fim, Andrei Sokolov “venceu o ciclo”, mas não foi declara-do Desafiante. Após sua derrota no terceiro Campeonato Mundial, Anatoly Karpov caiu apenas um degrau: ele foi escalado na Final dos Candidatos e só precisava vencer um match para se tornar Desafiante novamente. Karpov efetivamente derrotou Andrei Soko-lov e nunca antes um enxadrista tinha feito tão pouco para tornar-se Desafiante. Foi um enorme benefício da FIDE para Anatoly Kar-pov, e não seria o último.

Assim, um quarto match para o Cam-peonato Mundial ocorreu em Sevilha, Es-panha. Naquela época, eu tinha trabalhado de perto com Bob Walsh, o presidente dos Goodwill Games de 1989 em Seattle, na dis-puta pelos direitos de sediar o confronto. A oferta de Seattle estava dentro do mínimo regulamentar da FIDE, com o acréscimo de um milhão de dólares em “prêmios às me-lhores partidas” a serem concedidos aos en-xadristas em quantidades iguais e sem su-jeição ao imposto de 20% da FIDE. O leilão nem foi decidido por pouca diferença, pois Sevilha fez uma oferta colossal e venceu.

O que foi particularmente interessante em relação ao leilão da FIDE de 1987 foi que os enxadristas podiam decidir o local. Se am-

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bos os enxadristas escolhessem o mesmo lo-cal, a FIDE teria que aceitar sua decisão. Caso houvesse desacordo, as quantias financeiras em oferta eram o primeiro critério de desem-pate e a FIDE tomava a decisão final. Como não havia chance de que os enxadristas con-cordassem em relação ao local, Sevilha ven-ceu no desempate. Eu consegui garantir o apoio de Kasparov para a oferta de Seattle, mas não consegui o de Karpov.

O match de Sevilha foi melancólico – uma guerra de trincheiras sem que nenhum enxadrista abrisse mais do que um ponto de vantagem. Ecoando seu confronto em Mal-ta, durante o match surgiu uma polêmica: Karpov fez um lance que perdia uma quali-dade. Pelas câmeras pôde-se ver Kasparov se empertigar na cadeira, virar para a plateia e abertamente rir/dar risinhos de seu adver-sário: algo que simplesmente não se vê no clima de respeito de uma partida em um match pelo Campeonato Mundial. Karpov queixou-se de que sua concentração tinha sido interrompida pela conduta de Garry, mas foi inútil. Nenhuma sanção ou outra ação foi tomada.

Depois de 22 partidas, o match estava empatado em 11 a 11. Fãs entediados foram sacudidos por uma dramática explosão de jogo: Anatoly venceu a Partida 23 em um clima de tensão, abrindo uma vantagem de um ponto. Agora, para manter seu título, os papéis estavam invertidos, Garry teria que vencer a Partida 24 de Brancas, façanha que Anatoly não tinha conseguido realizar em seu match de 1985. Pouco antes do controle de tempo ser atingido, Garry aplicou cons-tante pressão, conseguiu ganhar um peão, e a partida foi adiada. Em um final com um peão a mais, o método de vitória não era muito claro. Ao redor do planeta, os fãs do xadrez faziam frenéticos esforços para deter-minar o resultado da partida e, consequen-temente, de todo o match.

Eu tinha algumas dúvidas de que Garry podia vencer a partida. Contudo, graças ao jogo surpreendentemente fraco de Anatoly

no final da partida, Garry venceu e conser-vou seu título em virtude do placar de 12 a 12. Foi o desempenho de um virtuose que fez o público espanhol gritar “Toro! Toro!”, como fazem para o toureiro, após o abando-no de Anatoly.

Vamos saltar alguns anos à frente por um instante, para 1992, quando Bobby Fischer saiu da aposentadoria para jogar novamente contra Boris Spassky na ilha de Sveti Stefan do Mar Adriático em Montene-gro. Passei um dia com Bobby, narrado em meu livro No Regrets. Bobby insistia em sua opinião: todos os lances em todas as par-tidas disputadas entre Karpov e Kasparov tinham sido “encenadas”. Bobby estava con-vencido de que os dois enxadristas tinham perpetrado uma fraude no mundo inteiro e que as partidas na verdade foram “todas previamente planejadas”. O extraordinário é que Bobby, tendo refletido muito sobre o as-sunto, tinha reunido algumas incríveis pro-vas circunstanciais, as quais me mostrou. Ele prometeu escrever tudo em um livro para denunciar os criminosos.

Bobby tinha um pequeno problema: a teoria em uma torre de marfim é legal. Mas como ela seria aplicada na prática real? Es-pecificamente, desafiei Bobby da seguinte maneira:

“Tudo bem, Bobby, vamos dizer que você esteja 100% certo. Sem problemas. Como a coisa funciona especificamente? Preciso de detalhes. Os enxadristas são ato-res, certo? Eles precisam de um roteiro. Eles precisam de uma planilha da partida a ser jogada. Eles teriam que memorizar e reca-pitular a planilha na noite anterior para po-derem ‘batalhar’ e desempenhar seus papéis no dia seguinte na partida. Sem problemas, existem muitos roteiristas bons em Moscou capazes de criar uma partida bem jogada. O que me interessa é a Partida 23 em Sevilha. O match tem sido tedioso. Na hora adequada à noitinha, alguém bate à porta de Karpov. Ele abre e ali está um burocrata dando-lhe o ro-teiro para a Partida 23. Karpov olha e dá um

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grito de satisfação. Ele precisa vencer. Nou-tra porta, Garry recebe seu roteiro. Droga! O que é isso? Por que ele deve perder? Ele não é o mais jovem membro do Partido Comu-nista que já houve? Um valor para o Partido?

Bobby achava graça de minhas carac-terizações enquanto eu as representava exa-geradamente.

“Sendo ambos bons comunas, a par-tida transcorre como planejado e a proeza está feita. No dia seguinte, a mesma situa-ção. Batida na porta, eis o roteiro para a Par-tida 24. Agora os papéis estão invertidos. Kasparov está radiante, dando saltos acrobá-ticos em seu quarto. Karpov está amargura-do. Por que ele deve perder para esse idiota? Os dois enxadristas estudam seus roteiros e memorizam seus lances. Enquanto memo-riza seus lances, Karpov se dá conta: ‘Hum, isso é estranho. Pouco tempo antes do limi-te de tempo eu poderia me defender assim, não perder um peão e obter uma posição de empate inevitável.’ Então, Bobby, o que você está me dizendo é que esses dois homens, que se odeiam mutuamente com o fervor de Aquiles e Heitor, seguiriam o roteiro para a Partida 24? Karpov não desviaria?”

Bobby teve que rir. Assim como a pla-teia na sala formada pela minha esposa Yvette, Eugene Torre e Svetozar Gligorić. Bobby não voltou atrás em sua ideia, mas isso o fez hesitar e refletir. Agora vamos vol-tar à rivalidade entre os dois “Ks”.

Depois de sua derrota em Sevilha, Anatoly teve que passar pelos matches dos Candidatos para se tornar Desafiante, o que fez com êxito para determinar um quinto confronto entre os dois pelo título do Cam-peonato Mundial. Um número inédito de matches entre dois enxadristas pelo título. O match de 1990 foi realizado em Nova Ior-que e Lyons, 12 partidas em cada cidade. Mais uma vez, o resultado foi apertado, com Kasparov vencendo por 12½ a 11½. (Meu primeiro livro sobre xadrez, Cinco Coroas [Five Crowns], foi sobre este quinto match.) Em seus cinco matches pelo Campeonato

Mundial, Kasparov venceu 21, perdeu 19 e empatou 104 das 144 partidas disputadas. A margem que separava estes dois grandes enxadristas foi estatisticamente tão peque-na que beirou ao insignificante.

Apesar da pequena diferença nos re-sultados, o estilo de jogo dos dois homens não poderia ser mais notável. Durante seu reinado como Campeão Mundial, Anatoly le-vara o “xadrez técnico” a novos picos de per-feição. Os melhores enxadristas do mundo temiam que qualquer debilidade de peões poderia ser a causa básica de sua derrota. Sacrifícios que não recuperassem imediata-mente a peça eram mantidos em suspen-so. O xadrez técnico, firme e preciso tinha a supremacia. A chegada de Kasparov foi, portanto, uma lufada de ar fresco; seu estilo de jogo era um regresso a Mikhail Tal. Garry prosperava com o jogo dinâmico onde as tá-ticas dominavam. Uma debilidade de peão não importa, o jogo de Garry era sacrificar, sacrificar, atacar! Qualquer coisa para criar um desequilíbrio onde dominasse o jogo di-nâmico. Esse era o jogo de Garry. O público de xadrez com razão adorou o estilo de jogo de Garry e apoiou sua ascensão.

Tal brincava que, quando se tornou Campeão Mundial, todos os filhos da Escola Soviética ficaram descontentes. Agora eles tinham que sacrificar peões e abrir mão de suas peças. Quando Tal perdeu seu título para Botvinnik, os filhos puderam regozijar--se porque agora podiam voltar a proteger seus peões e peças.

Os sucessos de Kasparov significavam que o xadrez não era apenas um jogo de téc-nica, e seu estilo ousado foi universalmente aclamado. Seu jogo era emocionante. O xa-drez não precisava mais ser um exercício téc-nico seco; podia voltar a ser imbuído de jogo dramático e de sacrifícios ousados. Garry cobiçava o jogo complicado e pulava na fri-gideira sem hesitar. Pois ele tinha um dom que ninguém chegou perto de igualar: seus poderes de cálculo eram sublimes.

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Assim como poucos podiam imitar Anatoly, ninguém podia se igualar a Garry e seu tipo de xadrez. Ele era um atacante devastador. Quando tomava a iniciativa, poucos eram capazes de resistir por mui-to tempo. As aberturas e defesas de Garry também combinavam bem com ele. De Brancas, ele era capaz de jogar qualquer coisa, 1.e4 ou 1.d4, e seu alcance de pre-paração para a abertura era tão profundo quanto o de Karpov antes dele. Na verdade, Garry se tornou o mestre das novidades de-vastadoras e, repetidas vezes, venceu parti-das extraordinárias graças à sua preparação intensa e profunda.

Quando não estava disputando os cinco matches pelo Campeonato Mundial, Garry também estava no circuito jogando nos torneios mais fortes do mundo. Nos torneios, ele era uma fera. Não apenas ven-cendo-os, mas tentando fazê-lo com máxi-ma pontuação, ao estilo de Bobby Fischer. Ele elevou seu rating a um patamar nunca visto antes ou desde então – 2851 continua sendo o recorde. Isso é ainda mais impres-sionante quando entendemos que, desde a aposentadoria dele, houve inflação no siste-ma de classificação ELO da FIDE.

Garry era guiado por paixões podero-sas. Ele estava profundamente insatisfeito com a situação do xadrez moderno e, em 1986, lançou uma campanha para mudar a liderança da FIDE. Ele apoiou vigorosamente uma chapa de oposição de Lincoln Lucena para presidente e Raymond Keene para Se-cretário Geral em um esforço de tirar a pre-sidência de Florencio Campomanes. Na As-sembleia Geral da FIDE em Dubai, em 1986, Garry falhou em sua tentativa de mudar a di-retoria e Campomanes continuou no cargo.

Mais uma vez, Garry estaria no cen-tro de uma controvérsia no xadrez. Um dos fortes defensores da chapa de oposição de Lincoln Lucena era o Dr. Ricardo Calvo, da Espanha, um escritor e Mestre Internacional. O Dr. Calvo fez intensa campanha entre os delegados da América Latina, divulgando

que, caso eles apoiassem a chapa de Lucena e Keene, como retribuição Garry Kasparov estava pronto para visitar seus países para realizar uma simultânea gratuita para “au-mentar a consciência do xadrez”. Embora essas trocas de favores, subornos e desones-tidade – como você quiser chamá-los – pos-sivelmente fossem comuns nas eleições da FIDE, essas ofertas deveriam ser, no mínimo, mantidas como um segredo mal guardado ou, no máximo, um juramento de sangue sa-grado que jamais deveria ser revelado. O Dr. Calvo cometeu o erro de redigir um artigo honesto sobre o lado sórdido da política da FIDE para a revista New In Chess.

Os delegados da FIDE ficaram horrori-zados, indignados, surpresos. Inacreditável! Era verdade? O Campeão Mundial da FIDE Garry Kasparov estava oferecendo exibi-ções simultâneas? O Campeão Mundial es-tava tentando (suspiro) subornar nossos próprios estimados delegados? As virgens vestais da FIDE? Chocante! Em um acesso de raiva hipócrita, os delegados da FIDE deci-diram apoiar uma moção para tornar o Dr. Ricardo Calvo uma “persona non grata.” Um modo pomposo de dizer uma “pessoa não convidada”, ou mais simplesmente uma “pessoa indesejada”. Garry não sofreu san-ções e o mensageiro foi devidamente pena-lizado em seu lugar.

Era uma grande comédia. Ninguém sequer sabia o que uma persona non grata significava realmente. Tais pessoas tinham permissão para participar dos eventos? Ser espectadoras? E, de qualquer forma, como a FIDE poderia penalizar um indivíduo? Afinal, nada havia nos estatutos. Seus integrantes eram compostos por federações nacionais. Eram as federações nacionais que deveriam disciplinar seus membros. O Dr. Calvo ficou furioso com seu novo título na FIDE e levou a questão para uma corte judicial, cujo desfe-cho eu desconheço. Que eu saiba, somente o Dr. Calvo conseguiu esta distinção espe-cial, seu título exclusivo na FIDE.

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Um aspecto realmente engraçado so-bre essa história foi a própria Olimpíada de Dubai. Sediar um evento assim era com-plicado, para dizer o mínimo. Em primeiro lugar, o grande obstáculo a encarar era: e a seleção de Israel? Campomanes apresentou suas soluções, às quais no fim foram rejei-tadas, e Israel não participou da Olimpíada de Dubai, mas mandou uma mensagem de que não deveria ser boicotado. Os organi-zadores de Dubai gastaram prodigamente na Olimpíada. Foi sem dúvida a melhor das quais participei. Na verdade, nossos anfitri-ões foram tão generosos que os países que votaram em Campomanes conseguiram que a viagem de suas equipes fossem pagas pelo comitê organizador. A oferta de Lincoln Lucena para a presidência da FIDE foi es-tranhamente comedida e ineficaz. Pior, seu “companheiro de chapa”, Raymond Keene, parecia estar em quase toda parte na mídia com declarações que, vamos dizer simples-mente, muitas vezes não resistiam a um exa-me detalhado. A reeleição de Campomanes estava garantida e Lucena retirou sua can-didatura antes que a votação acontecesse. Kasparov ficou furioso.

Com seu desejo de reformar e mu-dar a liderança da FIDE rejeitada em Dubai, Kasparov decidiu criar uma nova organiza-ção e lançou a Associação de Grandes Mes-tres (GMA), como contrapeso à FIDE. Essa iniciativa foi muito bem acolhida por seus colegas ocidentais. Como os enxadristas soviéticos em particular e os enxadristas do Leste Europeu em geral dominavam o xa-drez, ter uma organização de Grandes Mes-tres de estilo sindical só faria sentido com sua participação. Sob a liderança de Garry, um sindicato de Grandes Mestres era um modo perfeito de desenvolver o xadrez.

Nos círculos místicos, diz-se: “Quando o discípulo está pronto, o mestre vai apare-cer”. Os discípulos inteligentes prefeririam dizer: “Quando o mestre está pronto, o discí-pulo vai aparecer”. Descobertas ao acaso são lindas. Em Dubai, Garry Kasparov conheceu

e se uniu ao diretor executivo da SWIFT, Bes-sel Kok. Juntos, eles criaram a GMA e inaugu-raram uma era de ouro no xadrez.

Por ora, vamos jogar algumas partidas e acomodar-nos com nosso 13o Campeão Mundial.

Como eu já disse, vi e encontrei Garry pela primeira vez na Olimpíada de Malta em 1980. Um evento, diga-se de passagem, em que ambos recebemos o título de Grande Mestre. Fiquei surpreso com sua aparência física. Embora fosse cerca de três anos mais jovem do que eu, Garry tinha alguns fios de cabelo grisalhos. Foi realmente desconcer-tante, pois ele parecia muito mais velho que sua idade. Tenho certeza de que isso tam-bém é algo do qual ele ri muito. Atualmente, seu cabelo grisalho corresponde à sua idade.

Em seguida, nos encontramos em Bugojno em 1982, o local de uma de suas vitórias mais célebres. Eu tinha aceito o convite para jogar. Quando cheguei em Bu-gojno, descobri que tinha sido “desconvi-dado” e que Miguel Najdorf tomaria o meu lugar. Ninguém se preocupou em me avisar. É, o organizador do torneio de Bugojno, Di-mitrije Bjelica, absolutamente colocou o or-ganizador de Linares, Luis Rentero, em um pedestal de verdade, virtude e honestidade. É uma paródia que o Sr. Bjelica seja aceito no mundo do xadrez. Para mim, simplesmente não se pode confiar nele. Vou dizer que fiz o melhor que pude para recuperar algum dinheiro das despesas de viagem e nunca mais voltei àquele evento.

Antes de partir de Bugojno, eu tinha uma noite livre. Eu e Garry decidimos ca-minhar na cidade e ir ao cinema juntos. O cinema ficava a uns bons cinco quilômetros de distância do hotel e, assim, tivemos mui-to tempo para conversar e nos tornarmos amigos. Primeiro, o filme. Era ótimo. Era um kung fu de segunda categoria com todas as pancadarias que pudessem ser exibidas. Contudo, o que foi muito legal era que o herói mantinha-se enfrentando adversários que pareciam cada vez mais ferozes e ma-

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jestosos à medida que ficavam para trás. Eu e Garry começamos a descrever os primei-ros adversários como “2400,” os adversários do meio do filme como “2600” e, no final do filme, chegamos a “3000”. As sequências fi-nais foram maravilhosas! Adoramos. Pena que eu não consigo me recordar do nome do filme. Vamos dizer que seja fortemente recomendado pela equipe de análise cine-matográfica de Kasparov e Seirawan!

Durante nossas caminhadas de ida e volta do cinema, Garry e eu conversamos so-bre o governo e sua evolução. Garry explicou como a humanidade evoluíra de sociedades de caçadores/coletores com líderes tribais para reinos e sociedades sacerdotais, como reinos e teocracias deram lugar a repúblicas e democracias, e como estas, por sua vez, de-ram lugar aos estados socialistas e comunis-tas. Eu caí na gargalhada e expliquei que, em nossas idades, se não fôssemos Socialistas, não teríamos ideais ou coração, mas que, se não fôssemos Democratas, aos 30 não tería-mos cérebros. Ficamos argumentando e con-tra-argumentando. Convencido de que suas crenças estavam corretas, Garry não pôde ser demovido. Eu o parabenizei pelas notas altas que ele sem dúvida recebera na escola e de seus professores, e que conversaríamos no-vamente dali a dez anos quando ele tivesse mais experiência. Foi muito divertido discu-tir com um Comunista. Eu nunca tinha tido a oportunidade antes.

Devo dizer que me vi grandemente apegado a Garry. Tínhamos idades seme-lhantes, e ele era como um irmão mais novo. Senti uma afinidade com ele embora mal o conhecesse. Eu o admirava e apreciava imensamente sua companhia.

Em Bugojno também falamos sobre um match: o nosso match. Em 1981-1982, havia muita fofoca sobre um match de desafio en-tre mim e Garry. A USCF tinha encontrado um patrocinador e Garry estava disposto. No fim, a Federação de Xadrez da URSS havia lhe dado uma escolha: um match contra mim ou ele poderia jogar no torneio de Bugojno ou

outro evento de sua escolha. Ele escolheu Bu-gojno. Ótima escolha, pois ele venceu o even-to com brilho e despertou os fãs do xadrez no mundo inteiro de seu sono técnico. Quem era mesmo este jovem atacante petulante?

Disputamos nossa primeira partida no grande evento que ocorreu em Nikšić, Iugos-lávia. Por favor, perdoem-me, eu não sou de dar desculpas e não pretendo dar uma aqui, mas preciso incluir este comentário uma vez (ao menos) para constar. Quem faz viagens internacionais sabe que o jet lag causa uma dor “naquele lugar”. Praticamente todos os eventos em que joguei foram na Europa. Via-jar da Costa Oeste dos Estados Unidos mui-tas vezes significava primeiro pegar um voo de translado de seis horas até a Costa Leste, para depois fazer a conexão com a Europa, e depois outro translado. Isso significava que para chegar a meu destino eu precisava de 24 horas consecutivas de viagem e às vezes mais. Muitas vezes eu chegava aos torneios em má condição, e somente muitos dias de-pois, com frequência até uma semana, é que eu começava a me sentir adaptado. As mu-danças de fuso horário eram sempre de, no mínimo, nove horas.

Eu experimentei todo tipo de remé-dio para o desconforto de viagem, inclusive simular o fuso horário de meu destino dias antes de viajar; dormir nos voos; não dormir nos voos; comer em excesso; jejuar; tomar montes de água ou não. Nada funcionou comigo. Eu sempre chegava exausto e sim-plesmente tinha que “aguentar firme”. Nem preciso dizer que meus colegas europeus estavam em melhores condições, às vezes não por muito, mas melhores. Assim, natu-ralmente, eu fiz essa longa viagem com três voos que me levou a Nikšić (Montenegro), a qual exigiu um translado de Belgrado, e fi-nalmente cheguei ao gigantesco hotel. Pri-meira rodada: Garry Kasparov.

A propósito, sem querer bater na ques-tão do jet lag acima mencionada com muita severidade mas, em certa época, o “único” torneio que atraía convidados europeus era

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o de Lone Pine. Dê uma olhada nas partidas de Primeira e Segunda Rodada de algum dos torneios de Lone Pine e veja quantos convidados estrangeiros perderam ou tro-peçaram feio naquelas primeiras rodadas, muitas vezes para adversários mais fracos. Mas não se aprofunde muito na interpreta-ção das estatísticas, pois alguns deles eram inteligentes o bastante para chegar cedo e talvez jogar em algum evento prévio. Tenho certeza de que você vai se surpreender.

Yasser Seirawan-Garry KasparovNikšić, 1983

Defesa Tarrasch

1.d4 d5 2.c4 e6 3.Cc3 c5Garry jogou a Tarrasch em seus primei-

ros anos com considerável êxito, usando-a, por exemplo, para se qualificar como Desa-fiante durante seus matches de Candidatos. Antes do endosso de Garry, essa defesa tinha desaparecido do xadrez de nível superior. A perícia técnica de Karpov era tamanha que aceitar a debilidade de um Peão da Dama Isolado era considerado como receita para uma tortura prolongada e basicamente um desastre. Ao longo do tempo, Kasparov fluiu através de um rosário de defesas, Gambito da Dama Recusado, Grünfeld, Defesa Índia do Rei, Benoni Moderna, a Eslava e Semies-lava... Você entende. Ao longo do tempo, eu acho que Garry jogou praticamente tudo. Risque isso; eu acho que ele nunca ensaiou a Defesa Holandesa.

De qualquer forma, sua escolha nesta partida não foi inesperada. Realmente não. É que eu simplesmente não sabia o que jo-gar. Em primeiro lugar, porque a linha era muito rara em minha prática; em segundo, porque eu não tinha feito um estudo minu-

cioso das principais linhas; e, finalmente, porque eu tive uma ideia que pensei que era boa mas não era...4.cxd5 exd5 5.Cf3 Cc6 6.g3 Cf6 7.Bg2 Be7 8.0-0 0-0 9.Bg5 cxd4 10.Cxd4 h6 11.Bxf6

A linha principal é 11.Be3, com a teo-ria se estendendo por pelo menos mais uma dúzia de lances. A ideia que tenho na cabeça é pressionar a ala da dama das Pretas.11...Bxf6 12.Cb3 d4 13.Ce4?!

Executando meu plano e uma má es-colha. A resposta usual para esta variante é 13.Cd5, com um jogo equilibrado.13...Be7 14.Tc1 Db6 15.Cec5 (Diagrama 102)

DIAGRAMA 102. Jogam as Pretas

A “grande ideia” é revelada. Evidente-mente, o plano é impedir o desenvolvimen-to do bispo c8 graças à pressão na longa dia-gonal. Além disso, simplesmente arrancar o peão d4, às vezes às custas do bispo g2.15...Td8 16.Tc4?!

Insensato. Indesculpável. A longa via-gem de avião? O que dizer? Mais natural e, ouso dizer, realmente “preparado”, era 16.Dd3, simplesmente colocando as peças em jogo. Cobrindo as casas b5 e a6, as Bran-cas às vezes podem ameaçar Cc5-a4, com vantagem. Por exemplo, 16...a5?! 17.Ca4 Db4? 18.Tc4 se alinharia bem com meus pla-

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nos. Suspeito que mudei de plano no último instante por causa de preocupações prove-nientes de táticas após 16...Cb4 17.De4 Bxc5 18.Cxc5 Cxa2 19.Tc4 Dxb2 20.Tb1, que é boa para as Brancas, como eu sabia. Já na época, Kasparov tinha fama de agressivo e eu “re-cuei” de minha preparação.

O texto facilita o jogo para as Pretas.16...Bxc5! 17.Cxc5

Eu já tenho que lutar por igualdade. Embora seja típico nesta linha jogar 17.Txc5 Be6 18.Bxc6, deixando de lado meu orgulho e alegria, as Pretas não são obrigadas a re-capturar meu bispo. Em vez disso, as Pretas têm 18...Bxb3! 19.Dc1 Bxa2!, quando ficam com um peão para ajudar. O texto dá às Pre-tas uma pequena vantagem.17...Dxb2 18.Dc2 Dxc2 19Txc2 Tb8 20.Tb2 Td6 21.Td1 b6 22.Cb3 Bb7 23.Tbd2 Tbd8 24.Rf1 (Diagrama 103)

Embora eu vá recuperar meu peão capturando o cavalo c6 e depois o peão d4, a posição resultante de torre e bispo contra torre e cavalo favorecerá as Pretas e serei obrigado a lutar pelo empate. As Pretas te-rão o lugar ensolarado da tortura.

DIAGRAMA 103. Jogam as Pretas

24...Ba6 25.Bxc6 Txc6 26.Cxd4 Tc5 27.Cb3 Txd2 28.Txd2 Tc7 29.Td8+ Rh7 30.Re1 Bc4

31.Rd2 g6 32.Cc1 Rg7 33.a3 Rf6 34.e3 Re7 35.Td4 Td7

Garry não achou nada que fosse me-lhor do que trocar todas as peças para um fi-nal de peões e reis, mas então o empate está quase garantido.36.Rc3 Txd4 37.Rxd4 b5 38.Cd3 Bxd3 39.Rxd3 Rd6 (Diagrama 104)

DIAGRAMA 104. Jogam as Brancas

40.e4??Ai meu Deus, o último lance de erro do

controle de tempo, um erro colossal.Com o simples e óbvio 40.Rd4, a par-

tida está empatada. Kasparov comentou a partida para a Informant 36 e faz as seguin-tes observações: 40.Rd4! g5 (40...f5 41.f4 a5 42.e4! fxe4 43.Rxe4 Rc5 44.g4 é igual) 41.f4 f6 42.e4 a5 43.h4! com igualdade.

Dada a oportunidade de ouro, Garry aproveita sua chance e não há como fugir.40...g5! 41.f4

Não posso permitir que as Pretas jo-guem ...g5-g4, que imobilizaria minha maio-ria na ala do rei.41...gxf4 42.gxf4 Rc5!

Bem jogado. As Pretas usam a oportu-nidade para colocar meu rei em uma espécie de área de pênalti onde sou empurrado para o lado e obrigado a dar caminho.

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43.Rc3 a5 44.Rd3 h5!Mais uma vez, bem jogado, e continua-

mos com as notas de Kasparov. Não posso continuar com 45.Rc3 por causa de 45...b4+ 46.axb4 axb4+ 47.Rd3 h4 48.h3 b3 49.Rc3 b2 50.Rxb2 Rd4 51.e5 Re4 52.Rc3 Rxf4 53.Rd4 Rg3 e as Pretas vencem.45.h4

Como vimos, meu único lance.45...b4 46.a4

Senão a partida é transposta para a nota acima, onde eu perco.46...f6!

O tempo vitorioso. Se o rei das Pretas se move, então, depois de 47.Rd4, a partida fica empate enquanto eu fico indo e vindo com meu rei entre as casas d4 e c4.

Observe que 46...b3?? 47.Rc3 b2 48.Rxb2 Rd4 49.Rb3! Rxe4 50.Rc4 Rxf4 51.Rb5 permitiria que eu promovesse meu peão na coluna a e provavelmente empatas-se a partida. Foi por causa deste truque que mantive meu peão da coluna a.

Agora, contudo, sou obrigado a avan-çar meu peão da coluna f e abrir mão do controle sobre a casa e5.47.f5 (Diagrama 105)

DIAGRAMA 105. Jogam as Pretas

47...Rc6!Garry dá uma maravilhosa lição de

triangulação do rei para perder tempos e vencer a partida. Mais uma vez, 47...b3?? transporia para a nota acima e permitiria que eu empatasse a partida.48.Rc4 Rc7! 49.Rd3

Um recuo necessário. Se 49.Rd4 Rd6, o rei marcha triunfalmente para a casa e5 e para uma refeição completa.49...Rd7!

Colocando-me em Zugzwang. Estou em apuros com meu rei tendo menos casas do que o rei preto. Se 50.Rc4 Rc6 51.Rd4 Rd6, as Pretas têm a oposição e vencem.50.Re3 Rc6 51.Rd3 Rc5

Atingindo sua meta. Mais uma vez sou forçado a dar caminho.52.Re3 b3!

Evitando meu último truque. O avanço 52...Rc4?? 53.e5! permitiria que eu salvasse a partida.53.Rd3 Rb4 54.e5 Ra3! 0-1

O último lance das Pretas era o único que vence. Também um lance muitíssimo bom.

Abandonei a partida. Parabéns a Garry, técnica impressionante. Um mau escorregão no fim do controle de tempo e foi o meu fim. É isso que acontece quando se joga contra gigantes. Eles têm uma chance, agarram-na e te estrangulam. Retribuir o favor, quem sabe? Esqueça!

Antes de deixar Nikšić, gostaria de compartilhar uma história do evento. Ela ocorreu na oitava rodada do torneio. Kasparov sofreu sua única derrota em seu caminho rumo ao primeiro lugar, nas mãos de Boris Spassky. Jan Timman, Ljubomir Ljubojević e eu assistimos a seu post mor-tem. Existem momentos na vida, nos es-portes, que são simplesmente sublimes. Momentos inesquecíveis. Você assiste ao

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grande jogador de basquete Michael Jor-dan fingir que vai para a direita, ir mesmo para direita, fazendo o defensor dar um passo para trás, compensando demais por causa do impulso. Com o defensor confuso, Michael faz um repentino drible de costas deslizando para sua esquerda e mudando a bola para sua mão esquerda; sem aviso, sua cabeça, a parte superior do corpo mergu-lha baixo e ele salta em direção ao aro. Seu corpo se alça no ar e sua cabeça parece se nivelar com a cesta, sua mão agarra a bola como um melão e com um movimento de helicóptero enterra a bola, a mão esquerda indo parar embaixo do aro como um gato. Com a língua de fora, ele se vira e volta pela quadra. Seu ato manda um recado para o outro time: bola sua. A gente fica de queixo caído. Leva três segundos e você entende que acaba de ver grandeza atlética e arte fundirem-se.

Eu tenho um arquivo de vídeo digital do artista marcial Bruce Lee. Ele está no set de filmagem e está fazendo um intervalo. Está jogando pingue-pongue. Sua raque-te é um conjunto de bastões de nunchaku. São dois bastões de madeira tratada unidos por uma corrente ou corda. Qualquer um que tenha praticado com o nunchaku sabe que é preciso anos de treinamento para não se ferir com eles. Bruce rebate a bola de pingue-pongue facilmente. Enquanto espera que a bola venha de volta, ele ro-dopia os bastões furiosamente. Rebate a bola de múltiplas formas, golpeando-a de muitos ângulos. Os bastões nunca param de girar e ele rebate a bola violentamente para o adversário. Uma recuperação extra-ordinária permite que Bruce salte, eleve-se, mantenha-se no ar e golpeie violentamente a bola novamente. O filme dura cerca de 90 segundos e é sublime. O queixo da gente cai de novo. Não dá para acreditar no que a gente está vendo. Esta é uma habilidade

em um nível sobre-humano. Foram neces-sários anos de treinamento para atingir essa perfeição.

Observar Garry naquele post mortem em Nikšić causou-me os mesmos senti-mentos que tive ao assistir Michael Jor-dan e Bruce Lee no auge de suas carreiras. Garry demonstrou dez ou doze variantes de lances sem esforço e com facilidade. Boris limitou-se a comentários como: “Sim, claro”, “Sim, muito interessante”, “Sim, cla-ro”. E Boris venceu a partida! Eu sempre digo que, se eu tivesse um videoteipe da-quela análise de 20 minutos, ele venderia horrores. Foi simplesmente incrível ver Garry expondo sua análise. Não se tratava de um estudante bem treinado. Tratava-se de uma máquina de cálculo sem igual. Lju-bo, Jan e eu fizemos uma caminhada de 15 minutos retornando ao hotel. Ficamos tão embasbacados pelo que havíamos teste-munhado que mal trocamos uma palavra. Para quem conhece Ljubo, isso é muito surpreendente. Mal podíamos acreditar no que vimos. Foi sublime. De cair o queixo.

É exatamente este tipo de momento sublime que faz do xadrez um empreendi-mento fantástico. Qualquer pessoa pode admirar o que Michael Jordan é capaz de fazer com uma bola de basquete, o que Bruce Lee era capaz de fazer com um nun-chaku ou outras armas. Essas são habilida-des físicas que imediatamente arrebatam nossa imaginação e nos fazem exclamar “Uau”, com a respiração leve. Com o xadrez podemos presunçosamente dizer “Uau” so-mente depois de termos aprimorado nos-sas habilidades o suficiente para poder-mos apreciar combinações espetaculares. Admirar a criatividade necessária até para conceber um plano, sua precisa execução, a ginástica mental necessária, a profundi-dade de conhecimento necessária, tudo isso se funde e dizemos: “Uau. Isso é o xa-

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drez. É por isso que jogamos. É por isso que o xadrez é o melhor jogo do mundo. Por que os outros não veem a beleza? Bom, azar o deles, ele é todo nosso...”

Nosso encontro seguinte ocorreu na Olimpíada de Dubai. Esse evento foi um es-petáculo como nunca vi igual antes ou de-pois. Nossos anfitriões foram extraordina-riamente generosos. A equipe dos Estados Unidos ficou hospedada no andar executi-vo e recebeu dormitórios luxuosos no Ho-tel Hilton a apenas 300 metros do local dos jogos. No “nosso andar” havia um saguão executivo onde dispúnhamos de bebidas, lanches, jornais gratuitos e atendimento 24 horas. Anatoly e Garry, da equipe sovié-tica, eram os únicos outros enxadristas em nosso andar.

O salão de jogos era um centro de convenções enorme. Não estou brincan-do quando sugiro que uma meia dúzia de aviões Boeing 747 poderiam ser facilmente estacionados nele. “Bolsões de jogos” eram cercados por grades de metal móveis para manter as multidões à distância. Os tabulei-ros superiores dispunham de uma grande área confortável onde podíamos circular e ver as partidas em andamento. Espectado-res podiam ver as partidas de uma grande distância pois os tabuleiros de demonstra-ção eram simplesmente imensos. Eu diria que cada um deles media cinco por cin-co metros, e eles estavam montados por todo o salão. Os tabuleiros de demonstra-ção eram operados da seguinte forma: um mensageiro anotava os lances das partidas e depois subia as escadas até os operado-res, que usavam longas varas de madeira com ganchos para enganchar uma alça de metal presa a uma peça ou peão e levá-la até a casa. O processo físico de mover as peças levava considerável tempo e esforço.

Também devo mencionar que, em todo o salão de jogos, havia uma grande

quantidade de espectadores árabes trajan-do roupas árabes formais. Como enxadris-ta nascido na Síria, recebi muita atenção, dando muitos autógrafos e posando para fotos ao longo do dia.

Finalmente, o grande match acon-teceu. A equipe dos Estados Unidos tinha começado extraordinariamente bem e eu estava obtendo um resultado formidável. Iríamos enfrentar a equipe soviética, que era a favorita antes do torneio. Se pudés-semos deixá-los para trás, coisas boas po-deriam acontecer e poderíamos ganhar medalhas. Essa era a esperança que aca-lentávamos.

Cheguei ao tabuleiro cedo, preenchi minha planilha e esperei Garry aparecer. Para minha irritação, vi que Dimitrije Bjeli-ca, o organizador do torneio de Bugojno, estava se aglomerando em torno de meu tabuleiro com uma equipe de filmagem iugoslava. Eu adoraria vê-lo ser expulso da área de jogos, mas as regras permitiam fo-tografias e filmagens durante os cinco pri-meiros minutos, e ele tinha credenciais de fotógrafo. Droga!

Os relógios foram acionados, dei meu primeiro lance e esperei por Garry. Ele estava alguns minutos atrasado, che-gou zangado e apertou a minha mão. Ele estava prestes a se sentar quando Bjelica o atacou. Com as câmeras filmando, Bjelica falou apressadamente em servo-croata e tentou presentear Garry com uma caixa de moedas comemorativas. Garry olhou para Bjelica, depois para as moedas, e deu um safanão na caixa. Dureza! As moedas voa-ram pelo ar, e Bjelica teve que se agachar no chão para recolhê-las. Eu fiquei absolu-tamente eufórico! Às vezes eu realmente admirava Garry Kasparov. Olhei para ele e disse: “Bravo!” Ele sorriu alegremente tam-bém. Ao que parece Bjelica o tinha irritado também.

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Yasser Seirawan-Garry KasparovOlimpíada de Dubai, 1986

Defesa Grünfeld

1.d4 Cf6 2.c4 g6 3.Cc3 d5Como muitos antes de mim, sempre

tive um problema para lidar com a Defe-sa Grünfeld. Algumas das aguçadas linhas principais prolongam-se por dezenas e dezenas de lances. Em uma disputa sobre quem está melhor preparado, eu jamais poderia superar Garry e sua equipe. Assim, neste caso era necessário que eu recorres-se a algo calmo e estéril. Eu estivera expe-rimentando uma continuação que conduz a uma estrutura de peões do Gambito da Dama Recusado com razoável sucesso e as-sim joguei o seguinte. Garry previra minha escolha e estava bem preparado.4.Cf3 Bg7 5.Bg5 Ce4 6.cxd5!?

Era isso. O lance usual para manter o sa-bor da Grünfeld é 6.Bh4 Cxc3 7.bxc3 dxc4 8.e3 Be6 9.Db1, com um jogo agudo pela frente.6...Cxg5 7.Cxg5 e6

Necessário para recuperar o peão, pois as Pretas têm um ataque duplo contra o ca-valo g5 e o peão d5.8.Cf3

Um recuo modesto. Uma abordagem diferente é 8.Dd2 exd5 9.De3+ Rf8 10.Df4 Bf6 11.h4, quando as Pretas perdem seus privilégios de roque. Essa não é uma gran-de preocupação para as Pretas, pois 11...Rg7 oferece-lhes um jogo confortável. Embora esta linha tenha sido jogada com frequên-cia, não tenho certeza de que a dama esteja bem posicionada em f4.

Devo assinalar que 8.Da4+ é um lance fraco. Depois de 8...c6! 9.dxc6 Cxc6 10.Cf3 Bd7, as Pretas obterão rapidamente uma po-sição superior.

8...exd5 9.b4 Dd6!Para mim, este lance foi uma novida-

de muito forte e, embora tenha passado um bom tempo pensando em uma respos-ta, não encontrei uma maneira positiva de continuar. Adversários anteriores jogaram 9...0-0 10.e3, e iriam tramar formas de dar um impulso e uma vantagem a meu ata-que da minoria: por exemplo, com 10...Dd6 11.Tb1 Bf5?! 12.Bd3 Bxd3 13.Dxd3, ajudan-do-me imensamente.10.a3?!

Não é o tipo de lance que as Brancas desejam jogar quando seu peão já chegou na casa b4. Em princípio, as Brancas deve-riam estar jogando b4-b5 e a2-a4, tentando justificar o ataque da minioria.

Em partidas posteriores, joguei 10.b5 e 10.Db3, sendo este último lance meu pri-meiro instinto. Sem dúvida, 10.Db3 prote-ge o peão b4 e retribui o favor atacando o peão d5. A resposta que me deixou perple-xo foi 10...Cc6! com um duplo ataque contra meus peões b4 e d4. Eu não permitiria de modo algum que o bispo g7 despertasse, assim 11.e3 parece melhor e agora a con-tinuação 11...Dxb4 12.Dxb4 Cxb4 13.Tb1 c5! estava ficando desconcertante. Em vá-rios momentos eu posso incluir Bf1-b5+, mas a linha principal continuava com 14.a3 Bf5!? 15.axb4 Bxb1 16.Bb5+ Rf8 (16...Re7!?) 17.Cxb1 cxb4, com um desequilíbrio mate-rial bastante complicado. Eu não tinha cer-teza de qual dos lados estava melhor e temi que eu pudesse estar pior. Além disso, com a rapidez com que Garry estava jogando, eu tinha certeza de que ele tinha se preparado especificamente com esta linha afiada. Ble-fando ou não, eu pisco primeiro com meu décimo lance.10...0-0 11.e3 c6 12.Be2 Bf5 13.0-0 Cd7 14.Ca4?! (Diagrama 106)

As Brancas ficariam melhor jogando 14.b5 c5! 15.dxc5 Cxc5 16.Cd4, com uma posição aproximadamente igual. O texto desencadeia uma reação clássica bem-con-siderada.

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DIAGRAMA 106. Jogam as Pretas

14...a5! 15.Db3 b5! 16.Cc5 a4! 17.Dc3 Cb6!Uma série de movimentos muito re-

finados das Pretas neutralizou a vantagem de abertura das Brancas e, além disso, já lhes deu uma vantagem. Embora o cavalo em c5 “pareça ótimo”, ele, na verdade, não faz nada. Inversamente, as Pretas têm um sério domínio sobre a casa c4. Quando o cavalo em b6 dá seu salto ele terá que ser capturado, e a recompensa das Pretas será ter um peão c4 passado forte e protegido em seu lugar.

Triste dizer, as Brancas não têm gran-des planos nesta posição, e só posso decla-rar que no futuro talvez eu jogue e3-e4, com esperanças de igualdade.18.Cd2 Tae8 19.Tfe1 Te7 20.Bf3 Tfe8 21.g3 Bh3 22.Bg2 Bxg2 23.Rxg2 f5!

O jogo metódico do Campeão Mun-dial permitiu-lhe construir uma posição su-perior. As Brancas estão condenadas à pas-sividade e precisam tentar reagir da melhor forma possível.24.h4!

Tudo bem, dificilmente um lance do qual se orgulhar, mas eu admiro a ideia que o embasa. É evidente que as Pretas estão planejando ...g6-g5 e ...f5-f4, com uma tem-pestade de peões rumo ao rei das Brancas em um ataque em bando. Com o texto, eu

pelo menos asseguro que as Pretas tam-bém terão que se preparar com ...h7-h6, quando uma troca na casa g5 abrirá a co-luna h. Eu sei que estou prestes a enfren-tar um ataque feroz, mas ao menos neste caso eu posso jogar uma torre na coluna h e lembrar às Pretas que elas também pos-suem um rei.24...Cc4 25.Cf3!? (Diagrama 107)

Uma decisão importante a longo pra-zo, pois opto por aceitar o monstruoso ca-valo c4 que me ancora a meu peão a3. Em-bora eu não gostasse de 25.Cxc4 dxc4 26.f3, talvez essa tivesse sido uma escolha melhor. Com o texto, eu espero poder retardar a iniciativa das Pretas na ala do rei e, caso eu tenha oportunidade de lembrar às Pretas so-bre seu próprio rei, vou precisar de algumas peças por perto.

DIAGRAMA 107. Jogam as Brancas

25...Bf6 26.Te2!Semelhante ao meu 24o lance, é difícil

fazer elogios a esse lance manco, mas na-quela posição este foi meu melhor lance. Es-tou tornando possível passar uma torre para a coluna h.26...Tg7 27.Th1 De7 28.Tee1 h6

As Pretas não estão minimamente dis-farçando suas intenções. Uma tempestade está se formando na ala do rei e as Pretas

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têm todo o tempo do mundo para levarem suas peças a suas melhores casas.29.Dd3 Tf8 30.Cd2!

Aceitar a fera c4 não é brincadeira. Con-cluo que sua eliminação é afinal necessária.30...De8 31.Cxc4 dxc4 32.Dd1! Te7 33.Tef1 Df7 34.Df3! Dd5 35.Dxd5+ cxd5

Livrar-me das damas foi um grande alí-vio. É verdade que eu caí em um final passivo, mas isso sem dúvida é melhor do que enfren-tar um ataque de mate no meio-jogo. Muitas vezes os finais guardam diversas surpresas.

No final a seguir, todas as alavancas estão com as Pretas. Elas podem tranquila-mente preparar ...g6-g5 e ...f5-f4 para abrir linhas a fim de vencer. Seria altamente desa-conselhável que as Brancas jogassem visan-do a g3-g4 ou e3-e4, pois ambas realmente enfraqueceriam sua posição. Então, por en-quanto, vemos muita movimentação acon-tecendo enquanto as Pretas se preparam para suas grandes arrancadas.36.Rf3! Bg7 37.Td1 Tff7 38.Td2

A única questão que eu realmente enfrentava era: “O que fazer com meu rei?” Por um lado, saltitar até a casa c3 parece lógico para bloquear o peão passado com firmeza. Por outro lado, não resta dúvida de que a ação subsequente virá pela ala do rei. Portanto, existem razões convincentes para aguardar ali e ver o que Garry pode inventar.38...Te8 39.Tdd1 Bf8 40.Tdg1 Bg7

Chegando ao primeiro controle de tempo de 40 lances em duas horas. A segun-da sessão de 20 lances em uma hora conti-nuaria sem adiamento, então jogaríamos uma sessão contínua de seis horas.41.Td1 Rf8 42.Td2 Re7 43.Tdd1 Rd6 44.Th2 Rc6

A mesma questão para Garry. Ele de-cide que seu rei poderia ser útil na ala da dama. Existem diversos motivos para sua de-terminação. O primeiro é que, obviamente, se a coluna h se abrir, o rei das Pretas poderia estar ao alcance de algo ruim que aconteces-se. Segundo, as Pretas têm a possibilidade

de capturar o cavalo c5. Neste caso, depen-dendo de como faço a recaptura, as Pretas sacrificam um peão para um grande avanço com ...b5-b4 ou com ...d5-d4, quando o rei das Pretas se torna ativo e pode escoltar seu peão em c4 até o fim.45.Thh1 Bf8 46.Td2 Bd6 47.Tdd1 (Diagra-ma 108)

DIAGRAMA 108. Jogam as Pretas

Todas essas idas e vindas estavam cus-tando caro demais no meu relógio. Garry agora toma uma decisão de longo alcance para tentar tirar vantagem de minha escas-sez de tempo.47...Bxc5!?

De forma alguma uma má decisão e talvez até o melhor lance. Por outro lado, eu estava aliviado. As Pretas podiam continuar “não fazendo nada” até que o tempo se es-gotasse e então adiar. Deste modo elas po-deriam calcular precisamente como melhor continuar o jogo para fazerem sua saída. O Grande Mestre Eduard Gufeld, por exemplo, ficou irritado porque Garry não fez exata-mente isso.48.dxc5 Te4!

A grande ideia. As Pretas planejam ...d5-d4, seguido da entrada de seu rei. Eu não deveria jogar 49.Td4? Txd4 50.exd4 Te7, quando, após um subsequente ...Te7-e4, virá

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um Zugzwang e a torre das Pretas invadirá meu campo.49.The1! Td7

Lance dado rapidamente. Com este lance, Garry entrou no “modo Blitz” numa tentativa de me pressionar no relógio. Logo ambos estávamos jogando rápido feito doi-dos, eu em um esforço para não perder por tempo, Garry em um esforço para me pres-sionar.

Os espectadores estavam em polvoro-sa e enfileiravam-se às dúzias junto à grade para ver a batalha. Os pobres meninos dos painéis de demonstração estavam paralisa-dos pois os emissários não conseguiam pas-sar os lances a tempo.50.Td4 g5!

A grande arrancada. Era isso que Garry vinha construindo há 20 lances e o faz quan-do meu tempo está quase esgotado.51.hxg5!

Sem pânico. Abrir a coluna h parece bom para as Pretas, mas eu também terei truques. Era muito pior jogar 51.h5?, pois eu teria que me preocupar constantemente com linhas como ...f5-f4 ou mesmo ...g5-g4, indo atrás do peão h5.51...hxg5 52.Ted1! Txd4 53.Txd4 Th7! 54.Re2! Th3!? (Diagrama 109)

DIAGRAMA 109. Jogam as Brancas

Brincando com fogo ou uma astucio-sa tentativa de vitória? Eu esperara 54...Th1 55.Td1 Th3 56.Td4, com um tipo de repeti-ção. Usando o pouco tempo que me restava, decidi aceitar o desafio que Garry tinha pro-posto e também tentar a minha sorte.55.g4! f4

Avante! Garry continuou dando seus lances rapidamente como se não houvesse volta. Sem dúvida 55...fxg4? 56.Txg4 Th5 não é o que Garry estava pensando. Isso não é jeito de tratar a própria torre.56.exf4 Txa3!?

Humma, humma, humma! (Famosa fala do comediante Jackie Gleason e uma de minhas prediletas. Esta era do famoso programa The Honeymooners. Sempre que o personagem de Jackie, Ralph Kramden, estava em apuros, especialmente junto com a esposa, ele dizia: “Humma, humma, humma”, e começava a balbuciar, mexendo a boca e fazendo barulhos, tentando se ex-plicar e sair da enrascada em que estava. Ele era mesmo hilário e um dos comediantes mais queridos dos Estados Unidos.)

As coisas estão realmente esquentan-do agora. Eu achava incrivelmente perigo-so tomar o peão a3 imediatamente e fiquei atordoado com a mudança de posição. Eu esperei 56...gxf4 57.Txf4 Txa3 58.g5 Ta1 59.Tf6+ e estava contente de pensar que eu provavelmente tinha um xeque perpétuo. Permitir-me um peão g5 passado parecia imprudente. Como ele deteria o pequenino?57.fxg5 Ta2+ 58.Rf3! c3??

Oh, Deus! Depois deste lance não há como deter meu peão na coluna g. Garry tinha que controlar suas ambições e jogar 58...Ta3+ 59.Rg2 Ta1 60.g6 Te1 para tentar um empate. Garry continuou jogando rapidamente como um touro furioso. Não havia como detê-lo.59.Td1! d4 60.g6 d3

Minha cabeça estava andando a mil. Eu não percebi que tínhamos atingido o controle de tempo e quis reagir com pressa. Eu vi um truque em 61.Txd3 c2 62.Tc3 Ta3!

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e quase paralisei. Rapidamente, agarrei meu rei e dei meu lance. Tomar o peão teria sido bom também, pois 62.g7! também teria ven-cido nesta variante.61.Re3 Txf2

Garry jogou esta captura instantanea-mente e minha seta caiu. Gemi por dentro. Eu estava tão “quente” com a partida que não fazia ideia se tinha perdido no tempo ou não. O árbitro aliviou minha ansiedade ime-diatamente ao pedir-me educadamente que preenchesse minha planilha apresentando--me a sua. Quando eu vi que ele tinha escrito para o lance 61, pude suspirar aliviado. De-pois de inteirar-se de minha planilha e estu-dar o tabuleiro por algum tempo, o árbitro apareceu novamente e pediu-me para selar meu lance. É claro que eu não tinha escolha e selei conforme o cântico “Peões passados devem ser avançados”.62.g7 1-0

Depois que selei meu lance e parei os relógios, a calma começou a ser restabele-cida. Pouco a pouco os meninos dos painéis haviam atualizado a posição no tabuleiro, e a multidão de espectadores a 100 metros de distância podia olhar para cima e ver meu peão na coluna g chegando à última fileira. Quando o público se deu conta de que um ra-paz nascido na Síria estava prestes a derrotar o Campeão Mundial, um coro espontâneo de “lá-lá-lá-lá” começou a ecoar no salão caverno-so. (Pense na cena de Lawrence da Arábia em que os exércitos árabes atacaram os turcos cantando “lá-lá-lá-lá”. Um brado de vitória.)

Os gritos de vitória e as palmas pare-ciam vir de toda parte a meu redor. Depois que cruzei a grade de metal, um novo pro-blema se materializou: retornar ao hotel. Eu fui cercado por uma turba de fãs de xadrez excitadíssimos que se amontoaram à minha volta e me empurraram para todos os lados, fazendo-me girar. Mãos, braços e rostos em toda parte. Fui apanhado na contracorrente de um mar de pessoas. De alguma forma, o capitão de minha equipe, John Donald-son, também foi engolfado pela multidão

e ficamos enganchados um ao outro. Agar-ramo-nos um no outro enquanto éramos puxados e empurrados em duas direções ao mesmo tempo. Localizamos uma via de fuga, corremos até ela e chegamos às portas. Em breve nos vimos perseguidos por uma turba, mas aceleramos a marcha e a multidão diminuiu. Por fim atingimos alta velocidade e conseguimos chegar ao hotel e ao elevador. Interessante é que um entusiasta conseguiu nos acompanhar e também chegou ao elevador conosco. Na euforia do momento, ele havia sido toma-do por algum instinto ancestral que havia se ativado: deve-se perseguir uma presa em fuga. Ele ficou bem atrás de nós em nossa disparada. Agradecemos a ele pelos cum-primentos e dirigimo-nos ao nosso andar.

Que fuga! John e eu fomos até o sa-guão executivo, onde pude deleitar-me com a equipe e mostrar-lhes a posição de adia-mento. O match revelou-se um fantástico sucesso, pois as outras três partidas deram empate. Fui o único vencedor e os Estados Unidos venceram o match por 2½-1½ sobre a poderosa equipe soviética. Permanecemos em primeiro lugar até a rodada final...

Durante nossa análise em grupo, Garry veio ao saguão executivo, sendo ele e Kar-pov os únicos enxadristas soviéticos hos-pedados em “nosso” andar, e acompanhou nossa análise. Depois de 62.g7, mostrei mi-nha expectativa de 62...c2 63.Th1! (63.Tg1 Tg2!) 63...d2 (63...Th2 64.g8=D Txh1 65.Da8+ é ponto meu; a torre h1 é espetada e os pe-ões das Pretas são mortos) 64.g8=D, quando as Pretas não podem fazer dama. Por exem-plo, 64...d1=D 65.Da8+! Rc7 66.Th7+! e logo as Pretas sofrerão xeque-mate. A propósito, este xeque decisivo de torre deve ser obser-vado. Ele vem da coluna h. Você se lembra de como 24.h4 antevia este xeque? Por favor, não se deixe enganar! Eu confesso aberta-mente que não vi 42 lances adiante...

Como as Pretas não são capazes de promover um de seus peões à dama, elas são obrigadas a uma subpromoção, mas,

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 203

após 62.g7 c2 63.Th1 d2 64.g8=D d1=C+ 65.Re4 Te2+ 66.Rf5 Ce3+ 67.Rg5, esgotam--se os xeques das Pretas.

Por fim, Garry interrompeu a análise e disse: “Yasser, esta não é uma posição para análise.” Não sabíamos se ele tinha abando-nado a partida, mas mais tarde naquela noi-te o capitão da equipe soviética, Efim Geller, confirmou que Garry iria desistir. Como a partida foi adiada, as planilhas foram seladas e seriam abertas pela manhã, quando os ca-pitães as assinariam. Esta é minha única pla-nilha com Garry que não contêm sua assina-tura. A única partida que eu venci em nossa série. Irritante como essas coisas acontecem.

Depois de jantar naquela noite, encon-trei um amigo antigo. De alguma forma fui apresentado a um senhor chinês com olhos cintilantes e um sorriso caloroso. Ele esten-deu a mão e disse: “Tan Chin Nam.” Trocamos um aperto de mãos e ele disse: “Sabe. Você me custou muito dinheiro”.

“É mesmo? E como eu fiz isso?”, per-guntei.

“Bom, você conhece Don Schultz? Eu e ele gostamos de apostar. Venho perdendo todas as minhas apostas com Don. Para fi-carmos quites, fizemos uma aposta de o do-bro ou nada em sua partida com Kasparov. Eu fiz uma aposta em dinheiro de dois para um e peguei Kasparov. Em troca, eu ficava com o empate. Como saber que o Campeão iria perder? Eu achei que com o empate me beneficiando, Don estava me dando uma chance de ficarmos quites. Agora eu devo vinte pratas e perdi minha confiança.”

“Bem feito”, eu respondi. “ Você não de-veria apostar contra mim”.

Tan Chin largou uma risada e disse: “Nossa! Eu já gosto de você. Vamos ser bons amigos”. E somos.

Há um aspecto irônico da Olimpíada de Dubai. Neste livro, você vai ler sobre minhas dúvidas em relação ao uso de resultados de equipe em jogos olímpicos para normas ti-tulares individuais. Antes da Olimpíada de Dubai, os enxadristas foram perguntados

se queriam que seus resultados individuais contassem para a lista ELO da FIDE. Eu optei por “Não”. Consequentemente, um dos meus melhores resultados ficou sem classificação.

Antes de sairmos de Dubai, ainda há muito a ser dito. O que estou escrevendo agora nunca foi dito antes. Como já disse-mos, Garry estava definitivamente “distraído” durante a Olimpíada de Dubai pelas eleições da FIDE. Ele estivera recebendo numerosos delegados em sua suíte, que ficava a poucos passos de meu quarto. A equipe dos Estados Unidos acostumou-se com os delegados que visitavam os aposentos de Garry para serem pressionados a votar nos candidatos que ele apoiava. Garry era um militante incansável, como posso confirmar pessoalmente. Se você precisasse de um apoio político neste tipo de campanha, Garry seria implacável.

Em certo momento, no auge da eleição, recebi um telefonema de Garry por volta da meia-noite implorando que eu fosse até seu quarto. Naquele exato momento, eu estava com minha namorada e não tinha intenção de sair. Garry insistiu, explicando que Cam-pomanes estava mandando um emissário de paz que estava para chegar a qualquer mo-mento. Garry queria uma testemunha. “Você é o único em quem confio. Yasser, eu preciso de sua ajuda”. O que dizer? Meu irmão menor precisava de ajuda, e eu fui até sua suíte sob os protestos de minha namorada.

Quando cheguei, Garry estava agita-do. Ele estava dando voltas no quarto com considerável rapidez, falando rápido e as-sinalando algumas coisas quanto às quais não faria concessões. Levei um tempo para inteirar-me sobre o iminente encontro, mas Garry teve paciência comigo. Realmente, era para ser um encontro muito importante.

As maiores prioridades de Garry eram que os Grandes Mestres tivessem mais con-trole sobre seus próprios negócios. No topo de sua lista estavam o match do Campeo-nato Mundial, o ciclo do Campeonato Mun-dial, o “controle” deste ciclo pelos enxadris-tas, a necessidade da profissionalização dos

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títulos e ratings e a criação de uma empresa comercial para garantir que estes direitos atraíssem os melhores patrocinadores. Por último, a “Comissão Regulamentar” também deveria ser controlada pelos enxadristas e deveria ser assegurado que as regras fossem universais e que experiências tolas, tais como relaxar a regra dos 50 lances para finais com dois cavalos, tinham que acabar. Garry batia o punho contra a mão, fixando esses pontos um por um. Ele faria todas essas exigências antes de falar em “paz”. A paz teria que incluir condições de cargos para seus candidatos, assim como representantes dos enxadristas no Comitê Central da FIDE.

Por fim ouviu-se uma batida na porta. Ali estava um cavalheiro de idade de cabelos gri-salhos e bem-vestido. Um espécime perfeito de riqueza e poder. Só posso salientar como fi-quei impressionado com sua aparência. Estava claro que, fosse ele quem fosse, estava acostu-mado a fazer as coisas a seu modo. Mais uma vez, fiquei impressionado que Campomanes pudesse convocar um representante tão for-midável. Garry iniciou a reunião. Falando sério, nos 20 minutos seguintes Garry falou sem pa-rar. O emissário não interrompeu em nenhum momento. Garry desabafou seus sentimentos desde o Dia da Vergonha até o presente. So-mente quando Garry tinha terminado tudo o que queria dizer é que o emissário “falou”. Du-rante todo este tempo eu fiquei sentado em um sofá de frente para o emissário, que esta-va sentado em uma cadeira virada para mim. Garry ficou andando mais a meu redor, mas também circulando pelo quarto. Ficamos os dois observando ele se movimentar e o acom-panhávamos enquanto ele andava e falava.

Agora era a vez dele. O emissário falou e moveu os lábios. Sua voz era quase um sussurro. Eu e Garry olhamos um para o ou-tro perplexos. Não entendemos nada do que ele tinha dito. Garry pediu-lhe para repetir. Ele falou novamente, claramente mexendo os lábios, mas outra vez o sussurro era tão baixo que não entendemos. Garry se aproxi-mou e sentou-se no sofá a meu lado e outra

vez pediu-lhe para repetir. Será que o emis-sário era mudo? Depois que Garry se sentou, ouvimos as palavras claramente pela primei-ra vez: “Sim, compreendo perfeitamente. Eu também já tive muitos problemas em mi-nhas interações com a FIDE. Contudo, é hora de fazer concessões mútuas para que possa-mos nos beneficiar e promover o xadrez”. Ele tinha toda a nossa atenção. Nos 20 minutos seguintes, Garry e o emissário falaram jun-tos, serenamente, com confiança e respeito mútuo. Era evidente que eles chegariam a um entendimento. A reunião estava con-cluída, o emissário foi embora e Garry estava radiante. A porta se fechou.

Garry virou-se para mim e disse: “ Não é maravilhoso?” Virei-me para Garry e disse--lhe que ele era um idiota. Garry ficou sur-preso. “Por quê?”, ele queria saber. Eu então pus-me a explicar que eu era apenas uma testemunha; que, antes do encontro, Garry tinha estabelecido uma série de princípios que precisavam ser obedecidos; que em to-das as suas “questões não negociáveis” ele havia feito concessões. O emissário o tinha enrolado e enrolado, e ele tinha negociado cada uma de suas condições centrais. “O que você quer dizer?”, perguntou Garry.

Esforcei-me ao máximo para explicar tudo. Sobre a questão de criar uma empre-sa comercial que teria direitos sobre o ciclo do Campeonato Mundial bem como dos matches do Campeonato Mundial, o emis-sário tinha explicado que a aprovação para esse acordo tinha que vir da Assembleia Ge-ral da FIDE pois era um estatuto. Consequen-temente, em última análise a Assembleia Geral da FIDE poderia tanto aprovar quanto posteriormente anular o contrato. O poder de decisão continuaria sendo da FIDE.

Em relação aos direitos dos enxadristas de determinar o local do match, isso já esta-va nas regras. Se ambos os enxadristas con-cordassem, havia um oferta vitoriosa, fim da história. Como ambos sabíamos, Karpov se-ria seu mais provável rival e, se os enxadris-

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tas não concordassem, a FIDE determinava a oferta vitoriosa.

No caso da representação dos enxa-dristas no Comitê Central da FIDE, Garry “ga-nhou” o direito de participar, seja pessoal-mente ou por um representante. Ótimo para ele! O que significava? Um voto. Um voto de 12 ou 14? E Garry queria participar das reu-niões anuais, semestrais ou trimestrais com as autoridades da FIDE?

No caso dos candidatos terem postos na FIDE, sem problemas. Em que comitês eles gostariam de atuar? Ele garantiria pes-soalmente que eles fossem eleitos e aprova-dos através de uma eleição na Assembleia Geral da FIDE. Os cargos de real influência, de presidente da FIDE, presidente assisten-te da FIDE e secretário geral da FIDE (diretor executivo), estavam preenchidos.

E assim foi com a lista inteira: Garry tinha feito concessões em cada um de seus principais pontos e a negociação não lhe trouxe absolutamente nada. Garry ficou pensativo e eu fui embora.

Ao retornar para o meu quarto, des-cobri que passaria a noite sozinho. Com a cabeça a mil, recapitulei minuciosamente a reunião e as discussões, analisando o que havia sido dito, o que havia sido acordado e assegurando que, como testemunha, minha interpretação estava correta. Redigi algumas notas, prática que tenho adotado em todas as principais reuniões das quais participo.

Depois de concluir minhas notas, des-cobri que não iria pegar no sono e então peguei um livro que estava na cabeceira. Era de Mark McCormack, o fundador do Interna-tional Marketing Group (IMG), a maior agên-cia de esportes do mundo. Sua empresa fez dele um milionário. Era o primeiro livro de sua série e intitulava-se O que não se ensina na Harvard Business School (What They don't teach you at Harvard Business School).

Através de exemplos, McCormack ex-plicou como fazer negócios no sentido teó-rico da academia colide com a realidade do mundo dos negócios. Os contrastes foram

escolhidos com brilhantismo e são muito divertidos. McCormack dedicou um capítu-lo inteiro a um venezuelano, Rafael Tudela. Neste capítulo, o empresário de sucesso ad-ministrou um comércio tríplice onde a carne argentina, a soja brasileira e o petróleo vene-zuelano eram comercializados sem envolvi-mento de dinheiro vivo. Foi um negócio ma-ravilhoso, e o bilionário McCormack elogia a capacidade de Tudela. Citando: “Alguns anos atrás conheci um empresário venezuelano do ramo de transportes e petróleo chamado Rafael Tudela. À medida que o fui conhe-cendo, respeitando e admirando, ele me marcou como a quintessência do executivo conhecedor da vida urbana.”

A palavra “quintessência” mexeu co-migo e, subitamente, me dei conta de uma coisa. Saí da cama para verificar os bolsos de minhas calças e encontrei guardado o cartão de visita do emissário. Sem dúvida, era o pró-prio Rafael Tudela. Serendipidade em ação. Garry havia confrontado um dos verdadeiros mestres de negócios e finanças, e descobriu que não estava em sua liga. Nem sequer perto.

Um mistério para mim é o que aconte-ceu com Rafael Tudela, o modelo perfeito do capitalista que enrolou Garry. Permitindo--me conjeturar, eu diria que parece que em algum ponto Tudela e Campomanes rompe-ram e Tudela se retirou da FIDE. Para onde ele foi? Ainda tinha interesse em xadrez? Eu nunca mais o vi. Perguntei a Don Schultz so-bre ele e ele me disse que Tudela teve pro-blemas de saúde e começou a perder a visão. Ele era um homem extraordinário e quem sabe o que ele teria realizado pelo xadrez se tivesse uma oportunidade adequada?

Um última história sobre Dubai antes de partirmos. Amiúde se discute nos círcu-los de xadrez se é uma boa ideia levar seu cônjuge ou amante a um torneio. Muitos têm opiniões radicais. Eu só posso ecoar as palavras de um atleta americano quando in-dagado sobre sexo antes de uma prova de atletismo. Ele respondeu: “Pegar não é o pro-blema. O problema é a perseguição”. Minha

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opinião é clara: esposa ou marido em um evento, sim. O relacionamento está sobre uma base sólida estável. Estes parceiros são um alicerce e podem ajudar. Um amante, por outro lado, tanto pode ajudar quanto preju-dicar. Quando o relacionamento está indo bem, emoções positivas e confiança podem ser significativamente impulsionadas. Quan-do o relacionamento crepita e fracassa, ele pode ser uma distração. Isso aconteceu co-migo em Dubai.

Eu tinha uma namorada de vários anos e ela queria um comprometimento mais profundo em nosso relacionamento. Um comprometimento que eu não podia ter naquele momento. Na véspera da últi-ma rodada, ela rompeu comigo. Emocio-nalmente eu desabei. A última rodada era um confronto decisivo, pois enfrentaríamos uma equipe búlgara forte e tínhamos uma vantagem apertada. Até aquele momento, o evento tinha sido maravilhoso para mim: com 11 partidas disputadas, eu tinha per-manecido invicto e até derrotado o melhor do mundo no primeiro tabuleiro, com uma performance de mais cinco. O capitão de minha equipe, sem dúvida, queria que eu estivesse na equipe, e eu também. Agora eu estava emocionalmente arrasado; raios e trovões vindos de um céu azul. O que fa-zer? Pedir ao capitão da equipe que tirasse meu nome da equipe no último momento e reorganizasse a formação? Ou absorver aquilo e me concentrar? Escolhi a segunda.

Sem desmerecer o desempenho do Grande Mestre Kiril Georgiev – ele sem dú-vida venceu uma boa partida –, mas eu não estava lá. Eu estava vazio por dentro e jo-guei como se estivesse em um transe. Meu resultado prejudicou as chances de nossa equipe. Como acabou acontecendo, os so-viéticos venceram seu match sobre a Polô-nia por 4 a 0, e não tínhamos chance de um resultado desses contra a Bulgária, assim as medalhas de ouro escaparam. Para piorar as coisas, as medalhas de prata também, pois a Inglaterra venceu seu match por 4 a

0 contra uma boa equipe brasileira. Os Es-tados Unidos ficaram com o bronze.

Quando você levar um parceiro com-prometido junto com você a um torneio, sem problemas. Quando sua relação for nova ou instável, os resultados podem ser perigosos. Você brinca com fogo. Brinque com cuidado.

A Associação de Grandes Mestres (GMA)Embora a equipe soviética de Kasparov te-nha ganhado as medalhas de ouro em Du-bai, foi um evento que ele provavelmente preferiria esquecer. A derrota para mim foi dolorosa e ainda mais doloroso foi que os grandes esforços que ele fez para mudar a liderança da FIDE não deram em nada. Pro-fundamente desencorajado, ele sentiu que estava farto da FIDE e de suas autoridades e tomaria um rumo totalmente novo. Exa-tamente no momento certo, um novo ho-mem entrou em cena: Bessel Kok. Bessel era presidente da SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Transactions), uma em-presa de transferências bancárias eletrônicas mantida por seus sócios, e estava profunda-mente interessado em xadrez. Garry queria fundar uma nova organização, um sindicato de profissionais de xadrez e precisava de ajuda. Será que Bessel poderia patrocinar os custos iniciais de formar esta instituição e ajudá-lo a registrá-la legalmente? Bessel não apenas concordou em financiar o projeto como também contribuiu consideravelmen-te em termos de seu registro e status legal. A primeira coisa que Garry teria que fazer seria formar um conselho diretor para que os es-tatutos pudessem ser discutidos e o proces-so iniciado.

Da noite para o dia, Garry passou de militante da FIDE para militante do conse-lho diretor de enxadristas. Convidou Anatoly Karpov (!), Ljubomir Ljubojević, Lajos Portis-ch, John Nunn, Jan Timman e eu para nos tornarmos diretores em seu novo projeto, e

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todos nós o apoiamos. Todos concordaram em trabalhar juntos e ajudar a nova orga-nização. Uma façanha e tanto quando você pensa sobre isso. Naqueles tempos, Garry tinha o respeito e admiração de seus cole-gas não apenas porque ele era o Campeão Mundial. Aqui estava alguém que estava trabalhando com muito empenho para pro-mover o xadrez e elevá-lo a um nível muito mais alto. Garry é sem dúvida um homem de “grandes ideias”.

Conheci Bessel em Bruxelas em março de 1986, quando disputei o torneio SWIFT com Karpov. A gente se deu bem imedia-tamente e fiquei imensamente feliz por ter um patrocinador tão maravilhoso. Também foi uma grande surpresa vê-lo em Dubai. Para mim, Garry foi uma espécie de mãe da GMA, gerando-a, enquanto Bessel seria o pai, provendo segurança e apoio. Juntos, os dois criariam uma idade de ouro do xadrez – mesmo que por um período curto demais.

Em Dubai, decidiu-se que a primeira reunião do conselho diretor da recém-criada organização, a Associação de Grandes Mes-tres, seria realizada em fevereiro de 1987 em Bruxelas, onde Bessel estava radicado na época. Todas as providências e custos fica-riam por conta de Bessel e seus funcionários.

O nascimento da GMA não foi igno-rado pelas autoridades da FIDE. Decidiu-se que a GMA e a FIDE realizariam sua primeira reunião em Bruxelas depois que a GMA es-tivesse legalmente incorporada. As coisas estavam realmente andando muito rápido.

Em Dubai, Garry havia minuciosamen-te delineado ideias para o que chamou de “Copa do Mundo”. Uma série de seis eventos de classe mundial com as maiores estrelas do xadrez durante um período de dois anos. Isso teria um custo de muitos milhões de dólares e Garry estava convencido de que, com os patrocinadores comerciais certos, os eventos seriam um imenso sucesso, atraindo a imprensa, elevando o xadrez e trazendo grandes prêmios e recompensas

em dinheiro para os enxadristas. Ele estava absolutamente certo.

Fevereiro chegou rápido. Nós todos viemos para agitar, pechinchar e definir uma série de estatutos para nossa nova organiza-ção. Bessel foi um anfitrião maravilhoso e co-locou sua esposa Pierrette na briga também. Pierrette era advogada formada e muito boa na profissão. Ela era sábia, tolerante, paciente e também sabia presidir uma reunião. Tenho certeza de que, sem ela, as reuniões pode-riam ter terminado em caos e nada teria sido realizado. Além disso, Bessel incluiu outra pessoa maravilhosa, Angela Day, de Toron-to. A organização precisaria de um diretor executivo e Angela era uma vela de ignição de energia. Ela também desempenhou um papel importante em nossos encontros e garantiu que permanecêssemos na pauta e executássemos nosso negócio.

Como você pode imaginar, reunir os melhores enxadristas do mundo para dis-cutir seus próprios interesses pode levar a discussões tumultuosas. Ficamos empaca-dos em numerosas questões. Por exemplo, éramos a Associação de Grandes Mestres, um sindicato dedicado aos profissionais de xadrez. Claro. Mas tomemos a palavra “pro-fissional” por um instante e pensemos sobre seu significado. Havia alguns escritores e jornalistas que eram sem dúvida profissio-nais, ganhando a vida com seus escritos so-bre xadrez. Eles poderiam se associar? E os comerciantes que vendiam exclusivamente produtos de xadrez? Além disso, havia téc-nicos e treinadores, não necessariamente Grandes Mestres, que ganhavam seu susten-to com suas aulas de xadrez. Eles também poderiam, como profissionais, unir-se à nos-sa banda da alegria? Talvez o nome “Associa-ção de Grandes Mestres” causasse confusão? Não seria melhor chamá-la de “Associação de Profissionais de Xadrez”?

Outra questão abrangente relaciona-da aos próprios “Grandes Mestres”. Quem eram eles e onde viviam? Considerando-se primeiramente apenas aqueles que tinham

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recebido o título da FIDE, uma pequena pesquisa revelaria instantaneamente que a grande maioria dos Grandes Mestres do mundo vivia atrás da Cortina de Ferro. Na verdade, dois países, a União Soviética e a Iugoslávia, tinham a maioria dos Grandes Mestres do mundo. No momento em que a GMA realizasse sua primeira reunião de as-sociados, os enxadristas desses dois países poderiam combinar seus votos e propor ou revogar qualquer regulamentação por conta própria. Os Grandes Mestres “ocidentais” se-riam derrotados por no mínimo dois a um. Por isso tínhamos que escolher um modo de “limitar” os votos de cada país sem tirar a representação que vinha com cada membro votante. Decidimos que a votação máxima dos associados de qualquer país em uma as-sembleia geral seria de 25% do total. As dis-cussões continuaram intensas e difíceis por três longos dias consecutivos.

Eu estava muito orgulhoso de meus colegas. Todos tinham permissão para falar e fizeram comentários duradouros e positivos. Fiquei impressionado porque, apesar da falta de treinamento jurídico, todos conseguimos acompanhar as restrições legais apresenta-das por Pierrette. Das vozes, duas falavam mais alto, Garry e Ljubo (Ljubomir Ljubojević, da Iugoslávia). Às vezes, eles eram muito combativos e agressivos. Em outros mo-mentos, davam-se extremamente bem. Esta combatividade na diretoria às vezes era meio excessiva para John Nunn e ele foi o primeiro a renunciar à sua cadeira no conselho.

Depois de três árduos dias de discus-são, nossos estatutos estavam concluídos. Após muitas hesitações e mastigações, che-gamos a uma visão cristalizada de como a organização poderia operar, acompanhada de uma declaração de missão. Estávamos exaustos. Bessel cumprimentou cada um de nós e disse: “Agora temos que assinar”.

“Assinar?”, disse Kasparov. “Não tenho certeza se posso. Como a GMA será um contrapeso à FIDE, vou precisar obter uma licença especial de minha Federação”. Co-

mentário que foi imediatamente ecoado por Anatoly Karpov.

Lajos Portisch também começou a se sentir desconfortável. “Sim. Garry está certo. Seria melhor que eu pedisse à minha Fede-ração Húngara de Xadrez.

Até Ljubo da Iugoslávia, um país muito mais livre, expressou dúvidas. “Eu acho que a Federação iugoslava não vai se opor, mas devo consultá-los. Sim. Definitivamente!”

Enquanto a conversa circulava pela mesa, algo começou a agitar-se em meu ínti-mo. Talvez fosse o cansaço pelos três longos dias de debate e discussão e a viagem. Seja o que for, eu simplesmente falei e cometi a pior gafe de minha vida. Sem pensar, eu es-tourei dizendo: “Cavalheiros! Por favor! Isso é ridículo!”, gritei. E, ao continuar, minha voz ficou mais alta: “Estivemos discutindo por três dias. Finalmente, temos um documento sobre o qual estamos de acordo. É por isso que nos reunimos aqui. Se não assinarmos, a organização não existe. Do que precisamos, da permissão de nossas mães?” No momen-to em que esta última palavra saiu de meus lábios, arrependi-me de meu estouro. Qua-se que imediatamente a sala inteira caiu na risada. A princípio eu fiquei confuso. O que eu tinha dito? Depois dei-me conta de que durante muitas das reuniões, Kasparov tinha que sair da sala para telefonar e falar com sua mãe. Boquiaberto de espanto, virei--me para Garry para murmurar um pedido de desculpas, mas ele tinha enrubescido e desviou o olhar de mim. As risadas continua-ram por muito tempo até que Ljubo disses-se: “Tudo bem, tudo bem. Eu assino”. Todos então assinaram. Eu os tinha envergonhado para obrigá-los a defenderem seus próprios interesses.

Naquela noite, fui ao quarto de Garry e bati suavemente na porta para oferecer minhas mais sinceras desculpas. “Garry, des-culpe. Eu estava com raiva e as palavras sim-plesmente saíram de minha boca. Eu nem estava pensando! Por favor, me perdoe”, eu comecei dizendo.

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Garry estava tendo dificuldade para olhar-me diretamente. Sem dúvida, ele ain-da estava magoado com minhas palavras cortantes. “Está tudo bem. Eu sei que você não estava falando contra mim. Você falou com emoção. Não se preocupe. Sabe, talvez esta tenha sido a melhor coisa que você fez o dia todo! Sem seu comentário, talvez não assinássemos e em Moscou eles ficariam meses debatendo!” Garry começou a rir, e eu sabia que tinha sido perdoado. Senti um grande alívio. Eu estava tremendamente or-gulhoso pelo que ele estava tentando rea-lizar. Um jovem da União Soviética, criando uma organização internacional com base em Bruxelas? Nomeando a si mesmo e re-cebendo o apoio unânime de seu conselho diretor para torná-lo presidente? Criar uma organização que buscaria capital? Este era um comportamento comunista adequado? Ele sem dúvida estava demonstrando muita ousadia. Minha ofensa involuntária deixou--me abatido por um bom tempo. Ensinou--me a morder a língua em momentos de frustração e especialmente de raiva. O único consolo de Garry era que, se os burocratas de Moscou ficassem mesmo chateados com ele, também teriam que ficar chateados com Karpov. Eles estariam ambos na mesma si-tuação desconfortável.

Depois que a GMA estava legalmente registrada, as autoridades da FIDE chegaram. Dormindo profundamente em meu dormi-tório no Sheraton Hotel em Bruxelas, recebi com surpresa um telefonema. “Sr. Seirawan? É da recepção. Desculpe, mas o Sr. Schultz está chegando à cidade e precisamos de seu dor-mitório. Será que o Sr. poderia nos ajudar?”

É claro que eu sabia que Don Schultz do Comitê Central da FIDE estava chegando à cidade e eu certamente não iria ceder o meu quarto. Ele que encontrasse outro. Eu estava pronto para exprimir minha objeção quando a recepcionista continuou: “Por favor, o senhor não teria que fazer nada. Faríamos todas as malas e a mudança. Providenciamos uma su-íte para o senhor no último piso. Haverá uma

champanhe no gelo esperando pelo senhor e lhe ofereceremos um cupom para um jantar de 100 dólares em nosso restaurante...” Hmm. Bem, se o hotel estava colocando as coisas desta forma, decidi que meu quarto atual não era afinal tão especial e Don podia desfrutar dele para seu contentamento. Aceitei.

É claro que eu compartilhei minha boa sorte com meus colegas da diretoria, e Jan Timman veio direto para o champanhe, que considerou muito bom. Fizemos um brinde. A suíte era magnífica, e Garry expressou sua admiração, mencionando que agora meu dormitório era duas vezes maior do que o do presidente da GMA. Estávamos todos num astral muito bom. A FIDE agora estava à nos-sa porta e vindo até nós. As coisas estavam ficando muito interessantes, e estávamos preparados. Melhor ainda, Bessel e Pierrette haviam inculcado em nós um sentimento de confiança e uma direção clara. Estávamos prontos para o desafio.

A reunião entre as autoridades da FIDE e da GMA ocorreu no Hotel Sheraton, em uma de suas várias salas de reunião. Sentamo-nos todos em nossas respectivas mesas compri-das e cobertas por toalhas brancas e conver-samos por dois dias. Na verdade, eu mal me recordo do que foi dito. Parece-me que não concordamos com nada realmente concreto, mas somente que procuraríamos cooperar e fazer o melhor possível. Bastante justo.

Em certo momento, falei a sós com Don Schultz, o representante da USCF da Flóri-da e amigo íntimo. Perguntei-lhe sobre seu quarto. Don disse que era bom e pareceu um pouco intrigado com minha pergunta. Sua expressão interrogativa fez-me perguntar sobre o número do seu quarto. Nada pessoal, estritamente profissional, assegurei-lhe. Ele me disse e entendi que não era o número de meu quarto anterior. Fui até a recepção perguntar, e me disseram que o Secretário de Estado dos Estados Unidos, George Shultz, estava na cidade para uma reunião da OTAN e que, por motivos de segurança, sua equipe queria o andar inteiro para si. Eu era o único

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hóspede naquele andar, portanto decidiram retirar-me de lá. Eu jamais encontrei George Shultz, mas agradeço duplamente a ele e à sua retaguarda tatuada.

Depois das reuniões com a FIDE, Bessel levou o conselho diretor a um restaurante para refletir sobre a semana, o que havia sido realizado e suas opiniões sobre a FIDE. Como um recém-chegado ao mundo do xadrez, suas ideias foram uma verdadeira martelada na diretoria da GMA e em nossas percepções de nosso mundinho. A visão de Bessel com-partilhada conosco naquela noite também seria citada diante de uma plateia popular: “Nunca estive em uma sala onde houvesse tantas pessoas que pareciam detestar o xa-drez.” Palavras ásperas, realmente.

Uma outra recordação da reunião con-junta da FIDE/GMA foi comer waffles belgas com Robert Hamilton, membro da delega-ção canadense. St. John, New Brunswick, ti-nha feito uma oferta vitoriosa para sediar os Matches de Candidatos e um grande festival estava sendo planejado. O evento foi uma bagunça, pois as regras do ciclo ainda não ti-nham sido estabelecidas. O Canadá também estava aspirando colocar um representante canadense no evento. Robert e eu conversa-mos sobre um grande número de formatos e decidimo-nos por um de que gostávamos mais por atender aos interesses de todas as partes. Redigimos a proposta no verso de um guardanapo. Eu ficaria a cargo de levar a proposta e “vendê-la” às autoridades da FIDE. Foi o que fiz. Eles gostaram do formato, e o festival de xadrez de St. John acabou se revelando um dos melhores no mundo.

Meu próximo duelo com Garry foi na Olimpíada seguinte, em Salônica, Grécia, no-vamente no match entre EUA e URSS. Dessa vez, Garry teria sua vingança por Dubai, mar-cando a vitória decisiva para sua equipe com a margem de 2½-1½.

Antes de analisarmos a partida, algu-mas palavras sobre a Olimpíada de Salônica em 1988. Leitores astutos terão se dado con-ta de minha partida contra Mikhail Tal em

Malta em 1980, minha partida contra Ana-toly Karpov em Lucerna em 1982 e minha partida contra Garry Kasparov em Dubai em 1986 – mas nenhuma partida contra o es-quadrão soviético na Olimpíada de 1984. O que aconteceu? É uma longa história e vou resumi-la. Naquela época, uma boa porção das verbas para as despesas da seleção olím-pica dos Estados Unidos era fornecida pela American Chess Foundation (ACF). A ACF era então chefiada por James Sherwin, que resolveu que seria melhor que os integran-tes das equipes fossem decididos por uma comissão de seleção e não com base nos ratings. Eu sei que alguns países usam uma comissão de seleção para decidir a formação de suas equipes, ao passo que noutros um capitão escolhe os jogadores.

Nos Estados Unidos, onde a política parece ser um fator em muitas decisões do xadrez, eu era fortemente contrário à sele-ção por uma comissão. O critério objetivo – apenas os ratings – tinha funcionado su-ficientemente bem e, na maioria das vezes, as equipes americanas tinham superado o desempenho esperado por seu rating.

Para impor uma comissão de seleção, a USCF teria que concordar com as exigên-cias da ACF. Mais uma vez, como a USCF dependia da ACF para o financiamento de nossas duas equipes, masculina e feminina, a Regra do Ouro prevalecia – quem tem o ouro faz as regras. Com a USCF a bordo, o problema seguinte era: quem iria integrar a comissão de seleção? Meu amigo ou o seu? Como era previsível, o presidente da ACF, James Sherwin, e o presidente da USCF, Steven Doyle, incluíram-se na comissão de seleção. A ideia de que esses dois poderiam julgar as virtudes e fraquezas dos Gran-des Mestres é absurda. Eu acho que Doyle era um enxadrista de força “B”, enquanto Sherwin era um Mestre Internacional apo-sentado. Sherwin terminou em terceiro lu-gar no Campeonato dos Estados Unidos de 1957-58 (atrás de Bobby Fischer e Sammy Reshevsky). Ele disputou, ainda que sem

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muito sucesso, o Interzonal de 1958, obten-do uma pontuação de 7½/20.

Quem é mais forte: Lubomir Kavalek ou John Fedorowicz? O que você faria para responder a essa pergunta? Pessoalmente, eu examinaria seus resultados individuais e seus ratings...

Opus-me vigorosamente desde o iní-cio de todo o processo. A ideia de que o pa-trocinador (a ACF) poderia escolher os enxa-dristas pareceu-me totalmente ruim. Minhas objeções não foram ouvidas. Disseram-me para aceitar o programa ou não atrapalhar. Foi uma decisão pessoal muito difícil de to-mar, pois eu apreciava muito a forte camara-dagem da equipe. Por fim, decidi me retirar como enxadrista e me ofereci para qualquer outra função como analista, técnico ou ca-pitão. Todas as minhas ofertas para ajudar a equipe da melhor forma possível foram re-jeitadas.

No redemoinho, recebi uma carta caus-ticante do então diretor executivo da USCF, Gerard Dullea. Ele caracterizava minhas ações como “insanas”. Uma palavra emotiva no mundo do xadrez. Fui caluniado na revis-ta Chess Life como uma pessoa temperamen-tal que queria jogar no primeiro tabuleiro ou nada feito. Era uma acusação notável, pois eu fui contra a comissão de seleção desde o iní-cio, sem saber quem seria escolhido, a ordem dos tabuleiros ou por quê.

Naqueles tempos eu estava muito preo-cupado com dois enxadristas com quem eu ti-nha íntima amizade, Roman Dzindzichashvili e “Lubosh” Kavalek. Eu estava convicto de que ambos mereciam estar na equipe e ambos tiveram desavenças com as autoridades da USCF. Na formação original, fiquei contente de ver que Roman tinha sido incluído. Até no primeiro tabuleiro. Melhor ainda. Fui convi-dado a jogar no segundo tabuleiro e Lubosh nem estava na equipe. Era um favoritismo cruel de uma forma muito feia.

Depois que recusei meu convite, ofe-receram a Lubosh o terceiro tabuleiro, o que achei engraçado: como é possível que,

quando estou em uma equipe de seis joga-dores, Lubosh não está, mas, quando estou fora da equipe, Lubosh faz parte da equipe mas salta sobre vários outros jogadores para merecer jogar no terceiro tabuleiro? Bem-vindo ao processo de comissão de se-leção, onde os motivos não são informados. Nem precisam ser.

Para minha alegria, a equipe jogou muito bem; Roman também teve um resul-tado fantástico! Eu estava muito feliz pela equipe. Infelizmente, minha retirada teve profundas repercussões. De uma forma di-fícil de explicar, eu fui excluído ou colocado na lista negra das autoridades da USCF por muitos anos.

Felizmente, a comissão de seleção foi uma experiência isolada, e o critério de ratings foi restituído em 1986. Eu joguei pela seleção desde então. Esta é a versão resumi-da de como eu não integrava a equipe de 1984. Uma versão mais longa inclui a histó-ria de meu encontros com o diretor executi-vo da ACF, Allen Kaufman, em Nova Iorque, onde discutimos sobre a comissão de sele-ção e concessões. Foi a única vez em que chorei diante de outro homem além de meu pai. Fiz Allen prometer que não revelaria mi-nha aflição emocional, e ele, que eu saiba, manteve sua promessa e nunca a revelou.

A experiência toda foi absolutamente apavorante e emocionalmente danosa. Eu acho que parei de participar em torneios por seis meses e pensei seriamente em abando-nar o xadrez. Falei sobre essa decisão com minha mãe e ela me disse: “Mentes pequenas sempre tentam deter os outros. Você precisa decidir se elas serão bem-sucedidas ou não”. Eu muitas vezes me pergunto o que eu teria escolhido se tivesse parado de jogar profissio-nalmente. Naquela época eu era proprietário de duas casas alugadas. Suspeito que o ramo de imóveis teria se tornado minha profissão, e nas décadas seguintes os imóveis em Seattle tiveram tremenda valorização. Os rumos do destino são estranhos e desconhecidos.

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Garry Kasparov-Yasser SeirawanOlimpíada de Salônica, 1988

Gambito da Dama Aceito

1.d4 d5 2.Cf3 c5 3.c4 dxc4 4.Cc3Na época eu estava me especiali-

zando no Gambito da Dama Aceito, o que explica a ordem incomum dos lances de abertura de Garry. Eu agora sentia que eu havia sido um pouco apanhado em erro na abertura. Se eu jogar 4...Cf6, as Brancas não precisam cooperar com o manco 5.e3, transpondo-se para a linha que eu queria, mas podem tentar uma maior vantagem com 5.d5!, com e2-e4 a seguir. Se eu jogar 4...e6, então 5.e4! é de novo uma versão su-perior do GDA. Em futuros jogos, eu joguei o experimentado e verdadeiro 2...Cf6, que é o mais circunspecto.4...cxd4 5.Dxd4 Dxd4 6.Cxd4 Bd7?!

Quando ensaiei o texto, pareceu-me um lance inteligente que neutralizaria a posição no momento em que um oportu-no ...Cb8-c6 pudesse ser jogado. Não faço ideia quanto ao que me atraiu para isso, pois em breve ficará óbvio que o lance é ruim e que as Pretas vão se encontrar em dificuldades.

Notavelmente, as Pretas podem man-ter uma posição viável com a surpreendente 6...e5! 7.Cdb5 Rd8!, que em um primeiro momento parece ser esmagadora para as Brancas. Mas, em uma partida que disputei com Lev Alburt, consegui virar a mesa rapi-damente após alguns lances bastante natu-rais de meu adversário: 8.Be3 Be6! 9.0-0-0+ Cd7 10.Bxa7 Cgf6 11.e4 Txa7! 12.Cxa7 Cg4! e num instante as Brancas estavam em sé-ria encrenca. Outra linha natural de jogo é 8.Bg5+ Cf6 9.0-0-0+ Cd7 10.Cd5 a6!? 11.Cxf6 Be7!, com uma bagunça vivaz. Minha prin-cipal linha de preparação era um campo

minado tático que continuava com 12.Cc7 Rb8 13.Ccd5 gxf6 14.Cxf6 Te8! 15.e4 b5, com chances equilibradas.7.Cdb5!

Sem dúvida, o lance mais forte. As Brancas podem, obter uma vantagem sim-bólica após 7.e4 Cc6 8.Cxc6 Bxc6 9.Bxc4 e6, mas eu não achei que fosse séria. Mais im-portante, Garry também não.7...Ca6 8.e4 Cf6 (Diagrama 110)

DIAGRAMA 110. Jogam as Brancas

9.f3!!Asneira! Ou algo assim. Lá se vai mi-

nha preparação pela janela. De forma muito semelhante à de minha partida de Gambito do Rei com Boris Spassky, eu miopemente concentrei-me no natural 9.Bxc4, consideran-do-o obrigatório para reaver o peão, prote-ger o cavalo b5 e deter minha ameaça com ...Cf6xe4. Eu achava que, neste caso, eu po-deria desenredar meu cavalo a6 com 9...Tc8! 10.b3 Cb4! 11.Cxa7 Txc4!, com chances apro-ximadamente iguais.

Agora eu tinha que reavaliar a situa-ção. A boa notícia é que minha posição não foi refutada, como aconteceu com Boris. A má notícia foi que percebi que estaria sob forte pressão por muitos lances e que teria que me defender com muita precisão. A po-sição que eu queria evitar era 9...e5 10.Bg5

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(10.Be3 Be6! não causa problemas para as Pretas) 10...Be6 11.0-0-0 Be7 12.Bxf6 gxf6 13.Rb1, quando eu temia que as Brancas po-deriam conseguir dominar a casa d5 central. Daí minha decisão na partida.9...Bxb5!

Não foi uma escolha feliz perder o par de bispos, especialmente porque em mui-tas variantes é bom poder jogar ...Bd7-e6 e conservar o peão c4. Por outro lado, eu tinha uma ideia clara de como continuar a partida.10.Cxb5 e5 11.Be3 Bb4+ 12.Rf2 Re7! 13.Bxc4 Thc8! 14.Tac1 Bc5!

O ponto-chave. Trocando os dois bis-pos, neutralizo a pressão das Brancas.15.Thd1 Bxe3+ 16.Rxe3 (Diagrama 111)

Um bom jogo defensivo levou-nos à posição diagramada, onde agora sinto falta de um recurso fundamental. Se eu tivesse jo-gado o correto 16...Cc7!, acho que a partida teria sido facilmente empatada. Aquele lan-ce não tinha me ocorrido porque a ameaça de Cb5-d6 pareceu tão importante em mi-nha imaginação que tinha que ser impedida.

DIAGRAMA 111. Jogam as Pretas

16...Ce8!?Assim, eu detive a ameaça das Brancas.Embora o texto não seja ruim, eu po-

deria ter me poupado de um bocado de pro-

blemas com ...Cc7! 17.Cd6 Ccd5+! (o recurso que eu não vi) 18.Bxd5 Cxd5+! 19.Rf2 Rxd6 20.Txd5+ Re6 21.Tcd1 Tc6!, com um final empatado. É claro que, depois de 16...Cc7, as Brancas podem recuar com 17.Cc3, para conservar algumas peças, mas neste caso eu resolvi o problema de meu cavalo a5 errante e posso começar a pensar sobre 17...Ce6 ou 17...Cce8, com um jogo relativamente equi-librado.

A outra forma de “deter” Cb5-d6 era 16...Tc6!?, quando eu temia que algo poderia dar errado depois de 17.Bd5 Cxd5+ 18.exd5 Txc1 19.Txc1, com vantagem para as Brancas, gra-ças às minhas peças mal posicionadas.

O texto pode parecer demasiadamen-te defensivo, mas, depois que as Pretas pu-derem jogar ...Ca6-c7, a maioria dos seus problemas terão terminado.17.Bb3!?

Não é mesmo uma tarefa fácil para as Brancas manterem a pressão. Na verdade, Garry despendeu 50 minutos agonizan-do sobre o texto, que previne o desejado 17...Cac7 com 18.Cxc7 Cxc7 19.Bxf7!, ga-nhando um peão.

Observe que a atraente 17.Bd5?! Txc1 18.Txc1 Cb4! é muito útil às Pretas quando, mais uma vez, o problema a6 foi resolvido, pois o peão b7 está envenenado.

O texto, por outro lado, é um lance sutil cujo objetivo é obter controle sobre a coluna c por ameaçar a troca de torres em c8 e cap-turar o peão a7.17...Txc1

Estas não foram decisões fáceis. Abrir mão da coluna c significava boa pressão para as Brancas. Quando joguei 16...Ce8, minha esperança era responder a 17.Bb3 com 17...Cc5!, quando as Brancas têm duas opções. A primeira encruzilhada, 18.Td5 Cxb3! 19.Txe5+ Rf8! 20.Txc8 Txc8 21.axb3 Tc2! 22.Cxa7 Txg2 23.Tb5 Txh2 24.Txb7 Txb2, é uma variante simplificadora e as Brancas saem de mãos vazias. Meu proble-ma era a linha 18.Bd5! a6 19.Cc3 Tab8 20.b4 Ce6 21.Bxe6 Rxe6 22.Ca4! Cd6 23.Cc5+ Re7

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214 Yasser Seirawan

24.Td5 f6 25.Tcd1 Tc6 (Diagrama 112), uma variante que tinha um certo “fluxo” nos lan-ces. Eles todos pareciam naturais e melhores, levando-nos a nosso diagrama de análise.

DIAGRAMA DE ANÁLISE 112. Jogam as Brancas

Eu agora penso que cometi um erro de avaliação e que, na verdade, minha po-sição é bastante defensável. No tabuleiro e em minha imaginação, eu não gostava nem um pouquinho das torres dobradas e do forte cavalo c5, por isso evitei esta variante. Na verdade, é difícil para as Brancas progre-direm de qualquer forma. As Pretas simples-mente jogam ...Tb8-d8 e ...Tc6-c7, eu não vejo qualquer problema.18.Txc1 f6

Finalmente, agora estou pronto para jogar ...Ca6-b4! e tentar obter minha liber-dade.19.a3

Saco!19...Cd6 (Diagrama 113)

Percebi que Garry não deixaria meu cavalo a6 fugir para b4, e assim planejei um modo secundário de fuga muito antes com o texto. Se as Brancas quisessem seguir jo-gando, teriam que sacrificar.

De passagem, por favor, observe que 19...Rd8?? 20.Be6! Cac7 não resolve os meus

problemas, mas realmente termina com eles depois de 21.Td1+! Re7 22.Cxc7 Cxc7 23.Td7+ Rxe6 24.Txc7, quando as Brancas vencem.

DIAGRAMA 113. Jogam as Brancas

Agora chegamos a um momento fun-damental. Garry suspeitou muito da minha abertura (eu também) e, durante toda a par-tida, meu cavalo a6 dominou os processos de pensamento de ambos. Garry precisa me punir por meu jogo errante. Para fazer isso, ele terá que sacrificar duas peças menores por torre e peão. Eu julguei erroneamente que a troca me favoreceria. Garry acertada-mente julgou-a equilibrada, em cujo caso ele deveria prosseguir jogando.20.Bd5!

Eu agora acho engraçado ter ficado contente ao ver este excelente lance. Naque-le momento, achei que Garry estava passan-do dos limites em busca da vitória, como fez em Dubai.20...Cxb5

Pegando o produto da pilhagem e agarrando com as duas mãos o que eu achava que eram minhas chances de vitória. Era mais seguro jogar 20...Tb8 21.Cxa7 Rd7! (21...Ta8?? 22.Cc8+! vence para as Bran-cas) 22.a4 Cc7 23.Bc4!? Ta8 24.Cb5 Cxc4+ 25.Txc4 Cxb5 26.axb5 Rd6 27.b6 Ta6 28.Tc7

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 215

Txb6 29.Txg7 Txb2!, com um empate con-fortável.21.Bxb7 Cbc7!

De novo, as decisões são difíceis. Há horas em que eu queria colocar o cavalo a6 em jogo. Era agora o momento certo para 21...Cac7 22.Bxa8 Cxa8, resolvendo meu enig-ma? Eu temia que, após 23.Tc8 Cb6 24.Tc5 Cd4 25.Tc7+ Rf8, minhas chances de vitória eram nulas, ao passo que minhas chances de derrota era muito maiores. Fiz a escolha certa.22.Bxa8 Cxa8 23.Tc8

No início da partida, Garry havia jo-gado “suavemente” com suas peças, mas, durante os últimos lances, à medida que a tensão aumentou, ele começou a jogar “com força”. Ele “socava” suas peças nas casas e até “esmagava” ou “vibrava” as peças sobre elas antes de soltá-las e apertar o relógio. Estava ficando irritante e eu senti a emoção come-çando a se acumular dentro de mim. Se ele mantivesse esse comportamento, poderia haver uma violenta explosão de raiva.23...Cb6

Não foi meu primeiro instinto, mas ou-tra vez a escolha certa. Inicialmente, pensei em tentar “encurralar” a torre das Brancas. A ideia que eu tinha em mente era 23...C8c7 24.b4 Rd7 25.Tg8 Ce8, planejando manter a torre das Brancas encurralada no canto. Recusei essa linha porque 25.Tf8 Re7 26.Tc8 força uma repetição imediata.24.Tg8!

Está claro que as Brancas devem man-ter uma torre ativa. Se elas recuarem com 24.Rc1? Kd8!, minhas esperanças de colocar meus cavalos em posições ativas não serão apenas um sonho, serão rapidamente con-cretizadas. Sem dúvida, um recuo da torre perderia dois tempos e me ajudaria a repo-sicionar meus cavalos.24...Rf7 25.Th8 Cc5?

Uma admirável, porém equivocada tentativa de vencer a partida. Após a direta ...Cc4+ 26.Re2 Cxb2 27.Ta8! Cc5 28.Txa7+ Rf8!? 28.h4 Cba4, as Pretas têm um forte

inexpugnável na ala da dama. Eu achava que a posição me oferecia mais e, portanto, não havia motivo para forçar um empate prema-turo.

Observe que as Brancas não devem julgar incorretamente suas chances com 25...Cc4+ 26.Rd3?! Cxb2+ 27.Rc3 Ca4+ 28.Rc4 Cb6+ 29.Rb5 Cc7+ 30.Rc6 Ce6, quando, em-bora o rei ativo das Brancas impressione, a posição favorece as Pretas. Se as Brancas con-tinuam erroneamente com 31.Txh7?? Rg8! 32.Th3 Cf4! 33.Tg3 Cc4 34.a4 Ce2, as Pretas estão no comando graças à torre incrivelmen-te mal posicionada. Contudo, mesmo que as Brancas evitem capturar o peão h7 envene-nado e continuem com 31.Tb8 Cd4+ 32.Rd6 (32.Rc5?? Cd7+ ganha a torre), 32...Cc4+ ganha o peão a3 e as Pretas têm todas as chances.26.Tb8!

Ao fazer este lance, Garry desferiu um golpe e esmurrou o relógio com o punho fechado. Infelizmente, a mesa estava um pouco em falso, e o resultado foi que todas as peças saíram de suas casas. Fiquei furioso. De fato, Garry tinha sido tão violento que, no tabuleiro adjacente, a partida entre Karpov e Gulko também foi perturbada pela explosão de Garry, pois suas peças também saíram do lugar. Então ali estava eu, peças espalhadas, meu relógio correndo e agora isso. Nos úl-timos lances, Garry estivera praticando seu negócio de “socar as peças” e eu estava farto disso.

Decidi que naquele exato momento e lugar um soco direto sólido no queixo era a resposta necessária, e cerrei o punho. O senso de autopreservação de Garry entrou em ação mais rápido do que eu “pudesse fazer meu movimento”. Garry levantou os braços no ar dizendo: “Desculpe. Desculpe. Desculpe!” Repetidamente. Enquanto isso, começou a reorganizar as peças e colocá--las em suas devidas casas. A repentina mu-dança de atitude de Garry para um pedido bajulador de desculpas me desarmou. O surto de adrenalina que me fez querer jogar

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216 Yasser Seirawan

Kasparov para um outro fuso horário não teve para onde ir e levei vários minutos para recobrar minha concentração.

Embora sem problemas de tempo, eu estava começando a ser levado nesta dire-ção e o incidente todo teve um efeito com-pletamente desanimador sobre mim. Du-rante toda a minha carreira, nunca estivera em uma situação assim, ainda que alguns adversários já tivessem sido bastante gros-seiros. Mas isso? Falo de um comportamen-to de enfant terrible. O que havia feito Garry comportar-se tão mal? Não faço ideia das pressões que ele estava sofrendo (ou das expectativas que ele impunha a si mesmo), mas simplesmente não havia desculpa. Foi realmente um negócio muito desagradável que me dissuadiu do tremendo respeito que eu tinha, e tenho, por ele como enxadrista. Um grande enxadrista, mas neste caso um terrível esportista.26...Re7 27.b4 (Diagrama 114)

DIAGRAMA 114. Jogam as Pretas

27...Cc4+??Gemido. Ordem errada de lances. Após

a correta 27...Ccd7 28.Tb7 e agora 28...Cc4+, a partida estaria empatada: 29.Rd3 Cxa3 30.Txa7 Cb5 31.Ta5 Cd6 32.Rc3 g6 33.b5 f5, com um jogo equilibrado.

O texto, por outro lado, acaba com a partida imediatamente. Por sinal, este final tem semelhanças com minha partida contra Spassky em Linares. Nela também meus dois cavalos foram derrotados por uma única torre.28.Re2 Cd7 29.Tg8!

A diferença. Agora as Brancas não são forçadas a jogar 29.Tb7 e transpor para a li-nha de empate indicada acima.29...g5

Essa era a melhor chance de recuperar a partida. Eu não podia jogar 29...Rf7 30.Ta8 Cxa3? 31.Txa7, quando as Brancas ganham um cavalo.30.a4! a5 31.bxa5!

Jogando pelo calcanhar de Aquiles do cavalo, o distante peão passado. A partida se foi.31...Cxa5 32.Ta8! Cc6 33.a5 Rd6 34.g3 h5 35.h4 gxh4 36.gxh4 Cc5 37.a6 Rc7

Jogada com minha seta pendurada.38.a7?

Um erro. Com 38.Re3, a posição das Brancas está quase vencendo.38...Cb7?? 1-0

Um erro por curto-circuito induzido por pressão de tempo. Meu cérebro quei-mava com a tensão. Quando percebi que 39.Tc8+ seguido por promoção à dama era possível, desisti. Em vez disso, após 38...Rb6! 39.Re3! Cxa7 40.Th8 Cc6 41.Txh5 Rc7, as chances de vitória das Brancas são excelen-tes. Duvido que eu pudesse ter salvo a parti-da, mas eu podia ter brigado.

Não vou contar a vocês quais foram meus reais sentimentos e como me senti depois desta partida. Digamos que, em um livro a ser compartilhado entre familiares, jatos de infâmia devem ser evitados. Lem-bro-me de alguns murmurados por Anatoly durante nossa partida de bridge que pode-riam servir bem. Tampouco vou repeti-los. Esta partida me deixou fervendo de raiva por muito, muito tempo e tem sido também um longo e lento período de resfriamento.

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Como John Nunn poderia dizer, “estamos fa-lando de meias-vidas.”

Meu encontro seguinte com Garry Kasparov ocorreu em Barcelona. Os even-tos da Copa do Mundo tinham se tornado uma realidade e a GMA estava se tornando uma voz estabelecida para os profissionais de xadrez. Como seria de se esperar, houve alguns pequenos reveses ao longo do ca-minho. Como mencionado anteriormente, John Nunn saiu do conselho e foi substi-tuído por Bent Larsen. Em meu caso pessoal, como membro do conselho diretor da GMA, participei das reuniões trimestrais, as quais eram sempre realizadas na Europa. Isso era bastante desgastante para mim, pois eu via-java de Seattle para a Europa, quase um dia inteiro de vôo, chegava para ficar uns dias, enfrentando os efeitos do jet lag e, quando por fim estava adaptado à diferença de 9 ho-ras entre os fusos horários, eu voava de volta para Seattle e repetia o processo de adapta-ção todo de novo. A questão não era apenas perder uma semana com essas viagens, pois às vezes os efeitos do jet lag persistiam e me afetavam por muito mais tempo. Se eu per-desse duas semanas fazendo essas viagens, isso significava oito semanas por ano, o que era uma quantidade considerável de tempo tomado de uma agenda movimentada.

Minhas responsabilidades como editor da Inside Chess eram constantes. (Quem já trabalhou em revistas sabe que as deman-das da publicação são intermináveis e estão sempre aliadas a um prazo imediato.) Além disso, eu não deveria estar jogando xadrez? Você sabe, contra os melhores enxadristas do mundo. Os mesmos caras que estavam se preparando para mim. Parecia que eu nunca tinha um tempo para dedicar-me exclusiva-mente a meu próprio jogo e, sempre que eu conseguia cavar uma brecha para uma noite tranquila na companhia de Nikolay Minev ou John Donaldson, parecia um momento de glória em um santuário. Também gostaria de acrescentar minhas melhores palavras de agradecimento a Elena, esposa de Nikolay,

que sempre preparava alguma coisa mara-vilhosa para acompanhar o café. Ela sempre fazia eu me sentir muito bem-vindo e à von-tade. Obrigado, Elena!

Após a primeira assembleia dos asso-ciados da GMA, escrevi uma matéria para a Inside Chess sobre o que aconteceu em nossa Assembleia Geral aberta. Garry não gostou, para dizer o mínimo. Ele achou que eu havia violado o sigilo da GMA como membro da diretoria, ainda que eu razoa-velmente tenha assinalado que dezenas e dezenas de associados tivessem compa-recido, muitos dos quais jornalistas que ti-nham redigido suas próprias reportagens. Além disso, jamais escrevi sobre as reuniões do conselho diretor, pois elas eram confi-denciais. Garry não estava preparado para ver a distinção entre uma reunião fechada do conselho diretor e uma Assembleia Ge-ral da GMA. Ele queria que eu me demitisse do conselho diretor da GMA.

Foi o presidente da GMA, Bessel Kok, que me deu a má notícia. “Garry quer que você renuncie como diretor da GMA”, ele entoou.

“É mesmo?”, respondi. “Eu aceito!”, acrescentei com um largo sorriso.

Minha reação realmente surpreendeu Bessel, que havia se preparado para um tipo de reação completamente diferente. “Você não se importa?”

“Nem um pouco”, respondi. “Quem sabe assim eu recupero a minha vida”.

Fiquei satisfeito em ceder meu cargo para Jonathan Speelman, indicado pelos diretores. Com o tempo, Maxim Dlugy foi eleito diretor para me substituir. Mas isso é outra história.

Em retrospecto, a ironia é que a Inside Chess procurava publicar apenas as notícias divulgadas pela GMA. Eu tinha muito cui-dado para não publicar qualquer informa-ção sigilosa de qualquer tipo. Meu relato da reunião dos associados foi uma descrição factual que foi testemunhada por todos que compareceram e, ainda que reservada aos

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218 Yasser Seirawan

associados, foi uma discussão pública e foi a única assembleia da GMA sobre a qual eu escrevi enquanto diretor.

Em Barcelona, o sucesso da GMA era muito visível. Os enxadristas ficaram no es-plêndido Hotel Ritz e o torneio foi disputado em uma catedral maravilhosa. As condições eram simplesmente excelentes e nossos an-fitriões espanhóis esmeraram-se para fazer todos sentirem-se bem-vindos e especiais. O evento atraiu imensa publicidade, com ex-celente cobertura e presença da comunida-de local. Contudo, o extraordinário sucesso da GMA e dos eventos da Copa do Mundo encobriam um problema muito arraigado: o conflito entre a GMA e a FIDE havia aumen-tado. A animosidade de Garry em relação a Campomanes continuou intensa. As tenta-tivas de cooperação e os melhores esforços não estavam funcionando e os eventos ti-nham atingido o ponto de ebulição.

Um artigo que escrevi, “Luta Fraterna – será que a FIDE e a GMA podem evitar uma guerra?”, publicado na Inside Chess (Volume 2, número 10, páginas 26-27), relatou que a GMA e a FIDE estavam querendo criar um contrato declarando claramente os direitos e poderes de cada organização. Em 1o de março de 1989, a GMA divulgou na imprensa que, em um encontro entre a GMA e a FIDE em Bruxelas em 13-14 de fevereiro de 1989, um contrato experimental havia sido elabo-rado, o qual, segundo todas as avaliações, era imensamente favorável à GMA.

Em 15-16 de fevereiro, Bessel Kok e Jan Timman viajaram para Cannes, França, para explicar o contrato proposto a Garry, que o rejeitou sumariamente. Garry estava com disposição belicosa. Ele não queria nada com a FIDE – de fato, como ele mesmo disse, ele queria extinguir a organização. Em 17 de fevereiro de 1989, Jan Timman apresentou formalmente sua renúncia como diretor da GMA. Bessel Kok fez o mesmo com seu car-go de presidente da GMA, mas cumpriu suas obrigações até 1o de julho do mesmo ano

antes de formalmente deixar o posto. A GMA estava se desgastando, os humores estavam exaltados e as pessoas estavam marcando suas posições.

O presidente da FIDE, Florencio Cam-pomanes, certamente também não estava melhor. Para começar, os linhas-duras den-tro da FIDE ficaram horrorizados por ele ter aceitado um acordo tão unilateral. O contrato transferiria a administração do ciclo do Cam-peonato Mundial para uma “Comissão de Es-pecialistas” composta por quatro integrantes da GMA e apenas um representante da FIDE. A GMA tinha ganhado o direito de dar as or-dens tanto para o ciclo do Campeonato Mun-dial de Xadrez quanto para o ciclo da Copa do Mundo. A FIDE receberia uma porcentagem dos fundos de premiação para seu orçamen-to geral e desempenharia um papel muito menor ou superficial.

Em 9 de abril de 1989, Jan Timman e Bessel Kok viajaram para Barcelona para implorar a Garry mais uma vez que ele fos-se razoável e encontrasse um meio-termo. Durante o evento em Barcelona, Garry e eu falamos com frequência e realmente nos demos bem. Sempre que Yvette e eu estáva-mos em um restaurante, ele vinha sentar-se à nossa mesa, muitas vezes surpreendendo seus próprios compatriotas, que também es-tavam jantando perto, por não se unir a eles. Minha saída do conselho diretor foi ignorada durante nossas discussões. (Mais uma vez, eu senti que Garry fez-me um grande favor liberando-me de minhas responsabilidades.) Conversamos com calma sobre a situação da FIDE/GMA, e eu insisti que Garry aceitasse o contrato. Expliquei que praticamente todos os meus colegas ocidentais estavam muito empolgados com os termos altamente favo-ráveis. Eles queriam paz, não guerra.

Garry entrou em acordo com Bessel e aceitou o contrato com a importante altera-ção de que outro membro da GMA, Lothar Schmid, fosse adicionado à comissão. Garry estava ajeitando as coisas esmagadoramen-

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te em favor da GMA. Bessel estava radiante e ansioso para retomar o caminho.

Em Barcelona, Bessel fez-me um gran-de elogio: “Nossas reuniões não são tão di-vertidas sem você. Você tinha uma influência boa e positiva sobre Garry e ele o respeita. Por que você não volta para o conselho?”, perguntou. Agradeci afavelmente pelo elo-gio, mas expliquei que minha vida era muito mais fácil não fazendo parte do conselho. Eu não queria voltar.

Os seguintes comentários sobre minha partida com Garry foram publicados na Insi-de Chess (Volume 2, número 10, páginas 12-14). Comentários atualizados são marcados com “YS, 2010” ao fim do parágrafo.

Garry Kasparov-Yasser SeirawanBarcelona, 1989

Defesa Índia do Rei

1.d4 d6 2.e4Surpresa. Kasparov teve uma parti-

da recente com Speelman que continuou com 2.c4 e5 3.Cf3 e4 4.Cg5 Cf6 5.Cc3 Bf5 6.g4. Apesar de a partida ter terminado em empate, as chances de Speelman eram me-lhores. Eu queria ver o aperfeiçoamento de Garry. Não tive essa sorte. Bom, a Pirc me cai bem.2...Cf6 3.f3!?

Droga! Fui superado e a partida só tem três lances! Se eu queria evitar a Índia do Rei Sämisch (defesa que nunca usei), minhas opções são 3...e5, como jogado por Nikolić contra Korchnoi na primeira rodada, ou 3...c5. Nenhuma dessas variantes me servia.3...g6

Garry começou a ficar atiçado. Eu esta-va realmente permitindo uma Índia do Rei?

Nunca devemos esquecer que o xa-drez é uma luta entre dois seres humanos. Somos animais, com instintos animais, inclusive aqueles para sobrevivência. No tabuleiro, captamos estes traços há muito perdidos, sentindo os desconfortos, preo-cupações e medos de nosso adversário. Fazemos esforços para encobrir, mas reve-lamos nossos medos. Suamos, tendemos a reagir a ruídos à nossa volta, e nosso modo de reagir, seja a um riso ou a uma careta, re-vela nosso humor. Não somos tão evoluídos quanto gostaríamos de pensar. (YS, 2010)4.Be3! Bg7 5.Dd2!? 0-0 6.c4

Sim, é uma Índia do Rei – mas quem está encurralando quem? Recentemente, deparei-me com um artigo excelente do Mestre Internacional Andrew Martin sobre a Variante Bronstein da Índia do Rei Sämisch, sugerindo algumas novas ideias para as Pre-tas. Isso fez-me examinar a variante e desco-bri uma nova ideia.6...e5 7.d5 Ch5 8.Cc3 Dh4+! 9.Bf2 Df4 10.Be3 Dh4+ 11.g3

Garry não estava completamente sa-tisfeito em jogar esta variante. Sua ambiva-lência em relação a continuar a partida era evidente.11...Cxg3 12.Df2 Cxf1 13.Dxh4 Cxe3 (Dia-grama 115)

DIAGRAMA 115. Jogam as Brancas

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220 Yasser Seirawan

Uma posição bem conhecida. As Pretas sacrificaram sua dama por dois bis-pos e logo mais dois peões. A ameaça das Pretas é ...Ce3-g2+, ameaçando simulta-neamente rei e dama. Os jogadores con-tinuam seguindo os ditames da teoria das aberturas.14.Re2 Cxc4 15.Tc1! Ca6 16.Cd1 Cb6 17.Ce3 Bd7 18.Ch3 f6 19.Cf2! (Diagrama 116)

Na famosa par t ida K arpov-Velimirović, em Skopje, 1976, Informant 21/556, Karpov jogou 19.Thg1 Tad8? 20.Cf5 e venceu de maneira linda. O Mestre Inter-nacional Martin sugere 19...Tae8, visando a ...Te7, como aperfeiçoamento, e somen-te então lascar o centro das Brancas com ...c7-c6. Eu tinha outra ideia em mente, mais poderosa.

O texto era uma novidade e um aper-feiçoamento sobre o jogo de Karpov. Eu ti-nha previsto seu lance.

DIAGRAMA 116. Jogam as Pretas

19...Cc8!!Excelente. Esse lance detém o jogo

frio das Brancas na ala do rei. Esta ideia tira todo o impacto do sacrifício Ce3-f5. Além disso, se as Brancas teimarem em jogar

20.Cfg4?! Ce7 (20...h5!?) 21.Ch6+ Rh8 (21...Bxh6!?) 22.Thg1, elas devem estar prepara-das para enfrentar 22...g5 23.Dh5 Cg6! (um tema fundamental) 24.Cg2 f5!? 23.Dxg5 (23.exf5!?) 23...fxe4 24.fxe4 Cc5, com loucas complicações.

Garry não achava que seu cavalo per-tencia a h6. Ele então entrou em profunda reflexão. Onde as Brancas irão atacar se não na ala do rei?20.Tc3! Ce7? (Diagrama 117)

A ideia por trás de 19...Cc8 não é unidi-mensional (defender o rei). O real intuito por trás dela é jogar ...c7-c5 a fim de levar o cava-lo em a6 ao jogo com ...Ca6-c7-b5-d4!

Depois de 20...c5! 21.dxc6, as Brancas quase não têm escolha. Caso permitam que a posição permaneça fechada, as Pretas vi-rão a expandir-se em ambos os flancos com ...Ca6-c7, ...b7-b5, ...a7-a5, e ...b5-b4, ou pre-paração para ...f7-f5. Em qualquer caso, as Brancas têm graves problemas. Agora que as Brancas foram forçadas a trocar seu peão d5, o cavalo em a6 tem uma via aberta para os postos avançados f4 ou d4.

Agora, se 21...bxc6 (21...Bxc6!?) 22.Td1 Cc7 23.Tcd3 Cb5 24.a4 Cd4+ 25.Txd4 exd4 26.Txd4 c5 é melhor para as Pretas. O rei das Brancas está no centro e as peças das Pretas merecem um chamado para des-pertar.

Então, por que não joguei 20...c5? Bem, eu estava certo de que o “ataque” das Brancas na ala da dama não era nada, e queria que Garry investisse mais tempo indo por um beco sem saída. Preparar a saída ...f6-f5, com ...Tf8-f7, em conjunto com ...Ta8-f8, estava começando a parecer cada vez mais atraente.

Eu acho que critiquei excessivamente o texto. O lance não seria tão ruim se eu o tivesse seguido corretamente com ...c7-c5, preparando a recaptura em c6 com meu cavalo. Se o cavalo conseguir chegar à casa d4, eu estarei me saindo bem. (YS, 2010)

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DIAGRAMA 117. Jogam as Brancas

21.Thc1!Garry compreende que ele não pode

simplesmente esperar. O texto prepara um sacrifício de torre.21...Tac8?!

Ainda estou encantado com minha ruptura na ala do rei. Infelizmente, o ataque das Brancas na ala da dama se revela real. Não posso tratá-lo de maneira tão despreo-cupada. Melhor era 21...c5! 22.dxc6 (22.Cc4? Cc8! transpõe para as posições explicadas anteriormente) 22...Cxc6! 23.Rf1 Cd4 24.Rg2 Cc5, com uma posição que é difícil de ava-liar. De forma reveladora, Garry não gostou da posição resultante para as Brancas.22.Tb3 Tb8 23.Cd3

Eu vi que as Brancas estavam preparan-do a tacada de bilhar de “dama para a almo-fada de baixo”. Ou seja, Dh4-e1-a5 aparecen-do no outro lado do tabuleiro. Mas eu estava convencido de que a dama das Brancas tinha que prevenir ...Bg7-h6, que seria uma linda diagonal da qual operar. Além disso, eu vi que, levando meu cavalo de volta a b6, o ata-que na ala da dama seria detido. Assim, eu presunçosamente dei o seguinte lance.23...Tf7??

Perdendo a partida de vez. Apesar de todos os tempos desperdiçados, a situação ainda não é clara após 23...c5!.

Embora eu tivesse razão ao criticar esse lance, porque 23...c5! é muito mais for-te, o segundo ponto de interrogação é certa-mente excessivo. (YS, 2010)24.De1! Cc8

Este é o lance que realmente me colo-ca em maus lençóis. A transferência do cava-lo para b6 permite uma combinação vitorio-sa, embora também desperdice tempos. De novo e pela última vez, 24...c5! 25.Da5 (25.dxc6 Cxc6) 25...f5 (25...Bh6!?), executando meu há muito planejado ataque na ala do rei, era o rumo certo. (YS, 2010)25.Da5 Cb6 26.Txc7!

Penetrando na posição. Agora o real horror de 23...Tf7 se revela. Depois de 26...Cxc7 27.Dxa7, minha torre em b8 carece de proteção. Bem, como eu paguei caro por uma oportunidade de ataque, eu também posso continuar com ele.26...f5 27.Tc2?

A determinação de Garry lhe falha. A vitória mais simples era 27.Txb7 Txb7 28.Dxa6 Tc7 29.Txb6! axb6 30.Dxb6 e os dois peões passados das Brancas não podem ser detidos. Quando mostrei isso a Garry no post mortem, ele apenas lamentou sacudindo a cabeça tristemente. O segundo melhor lan-ce na posição era 27.Tc1, igualmente ven-cendo. A questão é desafiar-me na coluna f.27...fxe4 28.fxe4 Tbf8

Em minhas notas, eu deveria ter men-cionado que recusei 28...Ba4, ganhando uma qualidade, por causa de 29.Txb6 Bxc2 30.Txd6!, com uma grande vantagem para as Brancas. (YS, 2010)29.Txb6! (Diagrama 118)

Garry fez este lance triturador acompa-nhado de uma oferta de empate. Só posso dizer que ambos os enxadristas estavam sentindo a tensão e que nenhum de nós sa-bia o que estava acontecendo.

Entretanto, após 27.Tc2, eu estava co-meçando a me sentir indevidamente otimis-ta em relação a meu ataque e Garry sentiu o aumento de minha confiança. A crescente pressão de tempo das Brancas também con-

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222 Yasser Seirawan

tribuiu para minha nascente euforia. Eu só tinha certeza de uma coisa: eu queria con-tinuar a partida. Com certeza, as Brancas es-tão em apuros. Por que outro motivo Garry ofereceria um empate? Pare um instante. O que você acha da posição (no diagrama)?

Quebrando a cabeça, cheguei à con-clusão de que as Pretas estão perdidas. E eu estava certo. Depois de 29...axb6 30.Dxb6, as duas opções que cogitei foram 30...Bh6 e 30...Cc5. Na análise após a partida, Garry re-futou 30...Bh6 com 31.Dxd6 Tf3? 32.Cf5! gxf5 33.Dxh6 fxe4 34.Ce1, vencendo. Tentei aper-feiçoar esta variante com 31...Bh3, novamen-te desarmada com 32.Cf5!.

DIAGRAMA 118. Jogam as Pretas

Portanto, o único lance é 30...Cc5 (obri-gatório segundo Kasparov) 31.Cxc5 dxc5. Inicialmente, continuamos nos convencen-do de que a posição não era clara. (Eu nunca gostei da posição. Garry é que estava ten-tando convencer.)

Daí Garry descobriu 32.Rd1!!, que pare-cia terminar a partida e o post mortem... As Brancas consolidam-se com 33.Te2 e depois afirmam sua vantagem material. Depois des-se lance, o principal tópico de discussão foi 32...Bh6!, visando a ...Tf7-f3-h3, com contra--ataque. No fim da análise, estávamos con-

vencidos de que as Pretas estavam perdidas. Estavam? Seja como for, de volta para a par-tida. Depois de pensar por 23 minutos…

½-½Acordo de empate!!Algumas bases de dados incluem os

seguintes lances: 29...axb6 30.Dxb6 Bh6 31.Dxd6 Tf3 32.Cf5 gxf5 33.Dxh6 fxe4 34.Ce1 ½-½. Mas trata-se apenas de análise, pois os lances não foram jogados. (YS, 2010)

A PartidaA partida a seguir foi disputada no sexto e último torneio da Copa do Mundo da GMA, em Skellefteå, Suécia. Os eventos da Copa do Mundo tinham sido um sucesso fora de série, e a GMA parecia ter se firmado como uma organização de xadrez fundamental. Um futuro brilhante parecia garantido, mas, em apenas dois anos, a GMA ruiu, depois que Garry retirou-se de sua presidência.

Meus comentários foram publicados na revista Inside Chess, e comentários atua-lizados são novamente indicados com “YS, 2010”. De todas as partidas neste livro, esta que segue tem a classificação mais alta em termos de ideias, tensão e dramaticidade.

De tempos em tempos, a gente dis-puta uma partida que é tão complicada e tão repleta de reviravoltas que você não sabe realmente o que está acontecendo. Você é obrigado a confiar na intuição, a jogar instintivamente. Somente meses de-pois é que você descobre ainda mais ideias de ataque e defesa. Como foi maravilhoso ter o Campeão Mundial participando da análise após a partida. Meus sinceros agra-decimentos a Garry Kasparov por amavel-mente analisar a partida a seguir comigo. Para cada hora que passamos disputando a partida, passamos três horas analisando--a depois. Duas longas sessões de análise, várias refeições e uma viagem de avião de quatro horas não esgotaram a riqueza das ideias descobertas.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 223

Yasser Seirawan-Garry KasparovSkellefteå, 1989

Defesa Índia do Rei

1.d4 Cf6 2.c4 g6 3.Cc3 Bg7 4.e4 d6Na última vez em que jogamos esta

posição, Garry estava com as Brancas e eu estava com as Pretas.5.Be2 0-0 6.Bg5 c5 7.d5 h6 8.Be3

A alternativa é 8.Bf4 e6! 9.dxe6 Bxe6 10.Bxd6 Te8, com complicações pesadas pelo peão sacrificado.

A continuação teórica dessa linha de gambito pelas Pretas continua, ao menos, por mais uma dúzia de lances e até mais. Como Garry tinha muita experiência naque-la linha, evitei-a. (YS, 2010)8...e6 9.Dd2 exd5 10.cxd5 Te8! 11.f3 h5!

Um lance importante. As Pretas usam seu peão na coluna h para ganhar espaço na ala do rei. As Brancas venceram boas parti-das jogando g2-g4 e h2-h4. No Interzonal de Toluca em 1982, o Grande Mestre Amador Rodríguez jogou 11...a6? contra mim. Minha reação instintiva foi 12.a4?, uma troca de er-ros graves. Depois de 11...a6? 12.Bxh6! Cxe4 13.Cxe4 Dh4+ 14.g3 Dxh6 15.Cf6+! ganha uma qualidade.

Um comentário adicional à nota aci-ma. Seria normal que as Pretas jogassem 11...Rh7, protegendo o peão h6, em cujo caso uma tempestade de peões com g2-g4 e h2-h4 ganha impulso. A nova abordagem de Garry pôs fim a esta variante. (YS, 2010)12.a4 a6 13.a5? (Diagrama 119)

Os dois jogadores estão esperando. As Brancas querem jogar Cg1-h3-f2. Já as Pretas estão esperando pela oportunidade de jogar ...Bc8xh3. A questão é: quem vai se beneficiar mais com esse jogo de espera? O lance seguinte de Kasparov responde essa pergunta: as Pretas. As Brancas deveriam ter

jogado 13.h4 (a fim de capturar em h3 com sua torre) 13...Ch7! 14.g3 b6! 15.Ch3 Bxh3!? 16.Txh3 Ta7, com melhor jogo para as Pretas. Isso tudo significa que os enxadristas que usam o sistema Averbakh vão ter que procu-rar outro emprego.

DIAGRAMA 119. Jogam as Pretas

13...Ch7!Uma nova ideia importante na posi-

ção. As Pretas pretendem ...f7-f5, atacando o trunfo das Brancas, seu centro poderoso. Caso consigam destruir o centro, as Pretas ganham. A posição das Brancas estará ar-ruinada. Neste momento, eu precisava fazer uma reavaliação importante da posição.14.Bd1

Feio, mas necessário. Se 14.Bd3 Cd7 15.b3 Ce5 16.Bc2 b5 17.axb6 Dxb6 com bom jogo para as Pretas. Ou 14.Ca4? f5! 15.Cb6 Ta7 e, apesar de seu desconforto temporá-rio, as Pretas estão no ataque.14...Cbd7

A espera terminou. As Pretas venceram a primeira batalha. As Brancas foram obrigadas a fazer um esquema de desenvolvimento feio.15.Cge2 Ce5 16.b3 Dh4+?!

Mais natural é 16...f5! 17.Bc2 fxe4 18.Bxe4. Agora as Pretas têm uma escolha entre 18...Cf6 e 18...c4. Em qualquer um dos casos, eu prefiro as Pretas.

Page 222: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

224 Yasser Seirawan

17.Bf2 Df6 18.De3?Continuando a usar mal todas as minhas

peças, enquanto apenas duas peças pretas es-tão mal colocadas (Df6, Ch7). Recusei 18.0-0 Cg5! (18...Dxf3 19.Bxc5 [19.Cf4 Cc4! vence para as Pretas] 19...Dd3 20.Dxd3 Cxd3 21.Bxd6 é um sacrifício especulativo) 19.Rh1 Cexf3!, e as Brancas são derrubadas. Com o texto, refor-ço f3 a fim de impedir a ameaça de 18...Dxf3 19.gxf3 Cxf3+ 20.Rf1 Bh3, xeque-mate. A me-lhor forma de responder à ameaça era 18.Be3!, convidando uma repetição. Se as Pretas se recusarem a repetir, então elas posicionaram mal sua dama. O único modo de levar vanta-gem do tempo livre – 18...Cxf3+?! 19.gxf3 Dxf3 20.Tf1 – favorece as Brancas. Com 18.De3?, eu justifico a investida da dama das Pretas e ajudo-as a aumentar sua vantagem.

Na verdade, o melhor lance das Bran-cas era 18.0-0! Cg5 19.Be3! Cgxf3+ 20.gxf3 Cxf3+ 21.Txf3 Dxf3 22.Cf4 Dxe3 23.Dxe3 Bd4 24.Rf2, com um jogo aproximadamente equilibrado. (YS, 2010)18...h4!

Outro benefício de 11...h5 é que as Brancas não podem permitir ...h4-h3 mas, se eu mesmo jogar h2-h3, minha ala do rei tor-na-se um alvo rígido. As Pretas também vão manter o poderoso posto avançado em e5.19.h3 g5! 20.0-0 Bd7 (Diagrama 120)

DIAGRAMA 120. Jogam as Brancas

Não estou contente. Com que fre-quência você vê um bispo voluntariamente “desenvolvido” em d1? Meus cavalos estão particularmente tristes. O cavalo em e2 é um objeto de zombaria. Olhe aqueles peões pretos! Meu rei é o objeto das atenções das Pretas. Meus bispos estão pensando no que fazer, ao passo que minhas torres não fazem ideia! Em suma, se eu fosse o Campeão Mun-dial, com a posição das Brancas, eu proporia um empate e pediria desculpas. Mas, como esta tática não funcionaria aqui, alguns re-paros são apropriados. Antes de mais nada, meu rei precisa de proteção!21.Rh1! Cf8!

Negando a oportunidade de ataque direto. Eu esperara 21...Bh6 22.Bg1 g4? 23.f4 gxh3 24.gxh3 Cg5 25.fxg5 Dxf1 26.gxh6 Bxh3 27.Cf4, favorecendo as Brancas.22.Bg1! Cfg6 23.Bh2

Um bom jogo defensivo levou-me de volta à partida. Embora ainda desprovido de um contra-ataque, eu deveria ser capaz de evitar uma derrota imediata. As Pretas agora deveriam jogar 23...Bh6, visando a ...Cg6-f4 e a uma duplicação na coluna g no caso de uma troca em f4. Outro plano seria chegar ao “ponto Zuk” jogando 23...Bb5,...Te8-e7, e ...Ta8-e8, preparando para punir as Brancas por qualquer lance ativo. O conceito de “pon-to Zuk” precisa de esclarecimento. Robert Zuk foi um forte Mestre Sênior canadense, hoje basicamente aposentado do xadrez. O “inver-no de Zuk” (1970-71) ainda evoca lembranças reverentes. Bob veio da columbia Britânica e enfrentou os melhores enxadristas do Noro-este Pacífico durante 120 partidas consecu-tivas sem uma derrota. Isso incluiu uma se-quência de mais de 40 vitórias consecutivas (sem empates) para Bob. Zuk era famoso por construir sua posição até um máximo abso-luto antes de tentar encontrar um plano de vitória. Garry deveria ter usado esse método aqui. Em vez disso, ele desarrolhou um erro estratégico de grandes proporções.23...c4??

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 225

Ao fazer esse lance, Garry apertou o peão sobre a casa c4, depois esfregou-o so-bre a casa o suficiente para balançar a mesa. Fiquei tão satisfeito com esse lance e com os movimentos que a acompanharam que não consegui reprimir um sorriso. Eu queria dar a volta no tabuleiro na ponta dos pés, dar um beliscão na bochecha de Garry, emitir um pequeno “obrigado” e então voltar para meu lugar na ponta dos pés. As câmeras de tele-visão eram muito intimidantes. (O evento foi televisionado para 15 países.) Quando mais tarde contei isso a Garry, ele caiu na garga-lhada e exclamou: “Eu merecia!”

Recapitule meu resumo após o último diagrama. Em um instante, minhas torres sabem onde jogar. Ao cavalo e2 é oferecida d4, ao passo que minha dama está solta na diagonal g1-a7. Estupefato com a recém--descoberta promessa que minha posição oferecia, passei vários minutos reajustando minhas ideias. Eu ia vencer esta partida!24.Tb1

A repentina vantagem das Brancas pode ser explicada como segue. Pense a posição como uma Índia do Rei. As Brancas também estão prestes a invadir pela ala da dama com efeito mortal. O ataque das Pre-tas sobre o rei das Brancas tem um caminho muito longo a percorrer. O bispo em h2 ofe-rece segurança fantástica.

Tudo isso é verdade, mas as Pretas têm um imenso trunfo que não é comum em uma Índia do Rei, um poderoso cavalo em e5 que lhes dá oportunidades táticas com ...g5-g4, além de sacrifícios contra os peões h3 e f3. Em suma, o ataque da Índia do Rei das Pretas não se baseia somente em uma tempestade de peões, mas inclui um jogo dinâmico para o qual suas peças estão es-plendidamente colocadas. (YS, 2010)24...Tac8 25.Da7!

O mesmo lance mais rápido era me-lhor. Fiquei atormentado com a lembrança de uma derrota recente para Karpov em Ro-terdam. Nela eu tinha afastado minha dama

da proteção de meu rei. Passei 11 minutos cruciais analisando possíveis sacrifícios de-sesperados com 25...Bxh3, além da mais temível 25...g4?! 26.hxg4 Bxg4 (26...Cxg4 27.Bg1 h3 28.g3 C4e5 [28...h2? 29.Bd4 ven-ce] 29.Cd4 [29.Dxb7!?; 29.De3!?], quando as Pretas estão prestes a serem derrotadas) 27.Cg1!! (se 27.Cd4 Cd3 28.Cce2 h3! 29.g3 Txe4! permite às Pretas um ataque podero-so. O cavalo das Brancas em d4 é um alvo apetitoso, o que torna o peão f3 vulnerável.) 27...Cd3 28.C3e2 (28.e5!?) 28...Txe4 (28...c3? 29.Bc2 protege a torre em f1) 29.bxc4 (Dia-grama 121).

Este é o quadro que vi quando final-mente me decidi por 25.Da7. Não se engane, as Pretas estão na lista crítica. Muitas de suas unidades estão en prise.

Kasparov foi ficando cada vez mais agitado. A partida estava escapulindo. Lançando-se à posição com maior determi-nação, ele começou a buscar maneiras de salvar a partida.

Meu juízo final sobre a posição no diagrama de análise após 29.bxc4 foi inci-sivo demais. Depois de 29...Te7, as Pretas têm uma posição perfeitamente viável. (YS, 2010)

DIAGRAMA DE ANÁLISE 121. Jogam as Pretas

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226 Yasser Seirawan

25...Cf4Tão bom quanto qualquer outro. As

Pretas estão se empalando nas defesas das Brancas.26.bxc4?

Como Kasparov indicou posteriormen-te, depois da simples 26.Bxf4! gxf4 27.Dxb7, as Pretas estão em uma verdadeira encren-ca. Inicialmente, não conseguimos desco-brir como as Pretas poderiam continuar, por exemplo, 27...Ta8 28.bxc4 com dois peões e um ataque para as Brancas. O Grande Mestre Roman Dzindzichashvili poderia ter dito: “As Brancas têm compensação pelos dois peões das Pretas.” Após considerável consternação, encontramos 27...Dd8!. Dificilmente uma realização para coroar o ataque das Pretas. Embora melhor, duvido que isso pudesse salvar as Pretas. Depois de 28.Dxa6 (26.b4!?) 28...Ta8 29.Dxd6 Dxa5 30.bxc4, as Pretas es-tão sendo liquidadas.

Eu não fiz a captura em f4 porque achei desnecessário. Parecia bom manter o bispo em h2! Minha captura com a torre em b7 obrigaria as Pretas a mover seu bispo encur-ralado em d7 para b5. Isso me permitiria tro-car o amaldiçoado cavalo em c3.

Capturar com 26.Bxf4 certamente era melhor: 26...gxf4 27.Dxb7, quando as Pretas deveriam continuar com 27...Tb8! 28.Dxa6 Ta8 29.Db6 Teb8 30.Dd4 Txa5, com compensação suficiente para seu peão. (YS, 2010)

Critiquei excessivamente o texto. Não é um lance tão ruim quanto primeiramente eu achei que fosse. Observe que, depois de 26.Dxb7 Cxe2 27.Cxe2 Bb5, há boa compen-sação às Pretas. A variante de “trunfos mútu-os” 26.Dxb7 Cxe2 27.Bxe2 Tb8 28.Dxa6 cxb3 29.Da7 De7 30.a6 b2 também não estava de modo algum clara. (YS, 2010)26...Cxc4!

Jogado rapidamente! Isso deveria ter funcionado como aviso. Eu esperara 26...Txc4 27.Txb7 Bc8 (salvando o bispo!) 28.Tc7, quando as Pretas estão simplesmen-te perdidas.

Parece que as hipérboles estavam me dominando pois a partida estava muito emocionante. Com 28...Dd8!, as Pretas estão plenamente na partida. (YS, 2010)27.Txb7?

Uma captura feita com grandes ex-pectativas. Fico impressionado por ter sido capaz de fazer um lance tão ruim. Mais uma vez, eu estava demasiadamente certo das defesas de meu rei. Agora era a última oportunidade de tomar em f4. Obrigató-ria era 27.Bxf4 gxf4 28.Txb7 Ta8 (28...Ce3 29.Tg1 Bb5 30.Cxb5 axb5 31.Txb5 Da1, como indicado por Kasparov, também é possível) 29.Df2 Bb5 30.Cxb5 axb5 31.Txb5 Txa5 32.Txa5 Cxa5 com boa compensação – Kasparov.

Depois que deixei de capturar em f4, as Pretas têm um ataque feroz contra meu rei.

Outra vez, critiquei demais o texto bem razoável. Passei minha carreira intei-ra tomando peões – e agora eu começo a me criticar por fazer o que acontece natu-ralmente. Após 27.Bxf4 gxf4 28.Txb7 Ta8 29.Df2 Bb5? é cooperativa demais. Com 29...Te7!, as Pretas têm um bom jogo nas casas pretas. Por exemplo, 30.Ba4 Bxa4 31.Txe7 Dxe7 32.Cxa4 Ce3 33.Tc1 Be5! 34.Cb6 Tb8 parece bom para as Brancas, mas o jogo das Pretas nas casas pretas tem que ser levado a sério. Seu plano de ...Rg8-h7 e ...Tb8-g8 não pode ser tratado levianamente. Meu cavalo em e2 permanece deploravelmente deso-cupado. (YS, 2010)27...Cd2 28.Tg1 (Diagrama 122)

Para constar, eu deveria ter observa-do que me separar de meu bispo h2 com 28.Bxf4 Cxf1 29.e5 Txe5 30.Bxe5 Dxe5 é bom para as Pretas pois elas ameaçam ...De5-h2, xeque e xeque-mate. Consequentemente, eu não tenho tempo para capturar o bispo d7 e, depois de 31.Rg1 Cg3!, as Pretas têm um ataque vitorioso. Este é o mesmo pa-drão de xeque-mate que Vladimir Kramnik não viu em seu match com Deep Fritz em 2006. (YS, 2010)

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 227

DIAGRAMA 122. Jogam as Pretas

Aqui, minha confiança na vitória era absoluta! Afinal, o bispo das Pretas não está encurralado? Na verdade, a posição é angus-tiantemente complicada.28...Cxh3!!

Esperado! Eu há muito tinha desconsi-derado a pequena esperança de 28...Bb5?? 29.Cxb5 axb5 30.Cxf4, vencendo. O problema é que eu achava que tinha a resposta! Depois de várias horas de análise, chegamos à con-clusão de que 28...Cxh3 é o melhor lance. O tema central é o xeque-mate afogado em f2. Por estranho que pareça, a desvantagem do lance é que ele põe o cavalo en prise! Ou seja, as Brancas sempre podem lidar com o pro-blema do xeque-mate capturando o cavalo. O que eu temia realmente era 28...Cd3!? Eu tenho duas defesas: 29.Txd7 e 29.Bc2.

Quando você está se defendendo, você toma o maior número de peças do adversário o mais rápido possível! Minha primeira reação foi 29.Txd7 Txc3 30.Cxc3 (30.Txd6? Cxe4!! – um pesadelo recorren-te!) 30...Qxc3 31.Bxd6 Bd4 (a coluna d é a predileta de todo mundo) 32.Dc7 (32.Dxa6? Bxg1 33.Rxg1 Dd4+ vence) 32...Cf2+ 33.Rh2 De3 34.Td8! (34.Txf7? Cg4+ 35.hxg4 Dxg1+ 36.Rh3 Dh1+ 37.Bh2 Be5 vence) 34...Txd8 35.Dxd8+ Rh7 36.Df8 Cg4+ 37.fxg4 Dxg1+ 38.Rh3 Dh1+ 39.Bh2 Cf1 (39...Rg6? 40.Dg8+

Bg7 41.Bc2 é bom para as Brancas) 40.Dxf7+ (Diagrama 123)

DIAGRAMA DE ANÁLISE 123. Jogam as Pretas

– e, depois de se esquivar de todas as balas, a partida termina com um xeque perpétuo.

Uma boa análise para uma variante tão prolongada. Eu deveria ter menciona-do o aperfeiçoamento 31.De3!, lance que me escapou que mira o peão g5 e impede o ataque imediato ...Bg7-d4. A partida con-tinuaria com 31...Cc4 32.De2 Bd4 33.Tf1 Ce3 34.Bxd6 Tc8, com mais uma posição comple-tamente bagunçada. O ataque das Pretas é feroz, e elas deveriam ter compensação sufi-ciente para empatar. (YS, 2010)

Minha pretendida defesa era a mata-dora silenciosa 29.Bc2!! Txc3 30.Cxc3 Dxc3 31.Bxd3 e, por engraçado que pareça, as Pretas estão mortas: 31...Bd4 32.Dxa6 Bc8 33.Dc6! é uma viagem rápida ao abrigo. En-quanto isso, o bispo facínora 31...Bxh3? reba-te com consequências fatais: 32.gxh3 Dxd3 33.Txf7, com um ataque decisivo.

As Pretas estão mortas somente após 31...Bd4?, que perde. Com 31...Dxd3! 32.Txd7 Bd4 (somente agora este lance) 33.Dc7 Bxg1 34.Bxg1 Cf1!, as Pretas lutam por um xeque perpétuo. (YS, 2010)

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228 Yasser Seirawan

Garry calculou muitas dessas variantes, mas, sem tempo suficiente para formar juí-zos, ele confiou na intuição para orientá-lo a 28...Cxh3, e não 28...Cd3.

E que intuição incrível como guia. To-dos deveríamos ter esse talento. (YS, 2010)29.e5?

Meu recurso pretendido. A estrutura g2-f3-e4-d5 deveria cercar os cavalos das Pretas. Eles pularam a cerca!

Eu, assim, não relutei em abrir a portei-ra. Interferindo no ataque das Pretas em c3, eu imaginava tomar uma ou duas peças.

Minha melhor chance de salvar a parti-da agora é 29.Txd7 Ta8 30.Db6 Cc4!. O ponto. Minha dama não pode proteger f2. Agora o melhor lance é 31.Tf1!, quando chegamos a algumas posições de meio-jogo pouco co-muns: 31...Cxb6 32.Txd6!? (32.axb6!?) De7 33.Txb6 Cf4 34.Cxf4 gxf4 35.d6 (Diagrama 124) visando a Cc3-d5.

DIAGRAMA DE ANÁLISE 124. Jogam as Pretas

Embora as Pretas tenham ganhado uma dama por duas peças menores, a situa-ção é totalmente incerta. A falta de tempo proíbe uma análise exaustiva.

A avaliação é sem dúvida incerta. A li-nha inteira apresenta uma mistura incrível

de desequilíbrios materiais. Só por diverti-mento, decidi açoitar o programa de com-putador para que produzisse a seguinte linha interessante a partir do diagrama de análise: 35...Df8 36.Cd5 Bd4 37.Bxf4 Bxb6 38.axb6 Ted8 39.e5 Dg7 40.Bc2 Rh8 41.Bf5! Tab8 42.g4!, quando as três peças menores e peões das Brancas dominam completa-mente a dama e a torre das Pretas. O último lance das Brancas introduz a ideia de Rh1-g2 e Tf1-h1, vencendo. (YS, 2010)

Mas nós passamos a maior parte de nos-so tempo de análise em (29.Txd7 Ta8 30.Db6 Cc4!) 31.gxh3 Cxb6 32.axb6 Dxf3+ 33.Tg2 Bxc3 34.b7!? (posteriormente sugeriu-se que era melhor deixar o peão em b6) 34...Tab8 35.Cxc3 Dxc3 36.Txg5+ Rh8 (Diagrama 125).

DIAGRAMA DE ANÁLISE 125. Jogam as Brancas

Uma posição incrível. Pela dama, as Brancas têm dois bispos e um poderoso peão passado na sétima. Se meu rei estives-se mais seguro (com o peão h3, digamos, em g2), a posição seria sem dúvida de vitória. Mas este é o problema. Meu rei está tão ex-posto quanto o das Pretas. Victor Korchnoi, Garry Kasparov, Alexander Nikitin e eu pas-samos toda a viagem de avião de Skellefteå à Antuérpia analisando estas posições. A

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 229

conclusão inescapável foi que, com um jogo preciso, as Pretas têm boas chances de ven-cer. Jogar com precisão nesta posição não é tarefa fácil.

A partir do último diagrama, as Brancas têm três lances: A) 37.Txf7, B) 37.Txd6, e C) 37.Th5+.

A) 37.Txf7 parece bom, mas as Pretas são mais rápidas no golpe: 37...Txe4! 38.Bf3 (38.Tf3 Te1+ 39.Bg1 Dc1) 38...Dc1+ 39.Tg1 Te1 40.Bg4 Txg1+ 41.Bxg1 a5 e as Pretas ven-cem em ambos os casos.

A análise está correta. As Pretas ven-cem após 37.Txf7, pois seu ataque é muito rápido. (YS, 2010)

B) 37.Txd6 ameaça um xeque-mate em um lance! Mas depois de 37...f6 38.Tg1 Txb7 39.e5 fxe5 40.Th6+ Th7 41.Thg6 Dxh3 42.Bg4 Dd3 43.Be6 Th5 vence novamente.

Essas duas variantes rapidamente me ensinaram que, no momento em que as Pre-tas ativam suas torres, a morte é instantânea. Preciso guardar as colunas por um momento para ativar meus bispos.

C) 37.Th5+ Rg7 38.Tg5+ Rh6 39.Tg1 (Diagrama 126).

DIAGRAMA DE ANÁLISE 126. Jogam as Pretas

As Brancas estão prestes a obter uma vitória instantânea com Bh2-f4+, ...Rh6-

-h7 e Bd1-g4-f5. Por exemplo: 39...Dxh3? 40.Txd6+ Rh7 41.Bg4 visando a Bf5+ e ven-cendo.

A vitória é mais complicada do que eu inicialmente pensei: 39...Dxh3?? 40.Txd6+ Rh7 41.Bg4 De3 42.Bf5+ Rh8 43.Tc6! é o lan-ce vitorioso, pois 43...Txb7? 44.Be5+ leva ao xeque-mate e 43...h3 44.Bxb8 Df3+ 45.Rh2 Df2+ 46.Rxh3 Dxg1 47.Be5+ Rg8 48.Tc8! ven-ce para as Brancas. (YS, 2010)

Ou 39...Txe4 40.Txd6+ Rh7 41.Td7 Te1 42.Txf7+ Rh8 43.Bxb8 vence novamente. Infelizmente, é a vez das Pretas. Capturar o peão d6, ainda que bom, não é estritamente necessário. O imediato 40.Txf7 é bom para as Brancas. Consequentemente, 39...Txe4? tam-bém é um erro. (YS, 2010)

Com 39...Tg8!, elas se esquivam de al-gumas balas. Agora é a vez de as Brancas entrarem em pânico: 40.Tf1 (40.Bg4 Txg4! 41.Txg4 Dxh3 42.Txd6+ Rh7 ou 40.Bf4+ Rh7 41.Txf7+ Rh8 42.Bg4 Txg4! 43.hxg4 Rg8! e as Pretas vencem de qualquer for-ma) 40...Dxh3! (Não é um lance ruim. As Pretas atacam ambas as torres das Bran-cas e ameaçam xeque-mate em um lance!) 41.Txd6+ Rh7! (41...Tg6? 42.Txg6+ fxg6 43.Tf3 vence) 42.Txf7+ Tg7 e as Pretas es-tão prestes a vencer.

Boa análise. (YS, 2010)Existe muito espaço para ambos os

enxadristas incidirem em erro nesta varian-te. Igualmente claro é que, se ambos os la-dos evitarem todas as diversas armadilhas, as Pretas têm chances melhores. Portanto, as Brancas não deveriam jogar 31.gxh3 e sim 31.Tf1!, após a qual a partida fica sim-plesmente incerta.

Sem dúvida, toda esta sequência de variantes iniciando com 29.Txd7 Ta8 30.Db6 Cc4 é fascinante e, sem dúvida, 31.Tf1! seria a continuação correta, mas é extremamente difícil abrir mão de sua dama em uma par-tida real quando você não tem certeza da posição resultante. Mais uma vez, estou cri-ticando duramente meus lances e o texto é

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230 Yasser Seirawan

uma escolha bem razoável. Na verdade, um lance muito bom. (YS, 2010)

Com risco de perder você, caro leitor, com um emaranhado de análises, a ques-tão do que está acontecendo nesta linha me atormentou por muitos anos e gosta-ria de examinar a posição a seguir com um novo olhar: 29.Txd7 Ta8 30.Db6 Cc4 31.Tf1 Cxb6 32.Txd6 De7 33.Txb6 Cf4 34.Cxf4 Bxc3! 35.d6 De5 36.Cd5 Dd4 37.Bb3 Bxa5 38.Tb7 (Diagrama 127), levando à seguin-te posição no diagrama de análise: (YS, 2010)

DIAGRAMA DE ANÁLISE 127. Jogam as Pretas

Mais uma posição insana e desequi-librada. Bispo e cavalo pela dama, mas as peças das Brancas têm maravilhosa coorde-nação. Minhas ameaças incluem 39.Ce7+, seguida de 40.Cc6 ou 40.Bxf7, tomando um peão importante. Meu sentimento é de que um oportuno ...h4-h3! salve as Pretas, mas não há certeza sobre isso. Meu programa de computador reconhece que 38...Db2 é a melhor opção das Pretas, um lance qua-se impossível para humanos fazerem, pois vai em direção a um ataque descoberto da torre b7. Eu também gosto deste lan-

ce para as Pretas, pois considero o contra--ataque com ...h4-h3 vital. A linha continua com 39.Ce7+ Rh7 (uma escolha muito difícil para as Pretas fazerem) 40.Cc6 h3! 41.gxh3 De2 42.Txf7+ Rg6 43.Tg1 Bb6 44.Ce5+ Txe5 45.Bxe5 Bxg1 46.Tf6+, com um xeque per-pétuo. (YS, 2010)

Uma análise prolongada, completa-mente exagerada, onde depois de tudo ambos os jogadores saem de mãos vazias. (YS, 2010)29...Txe5?

Lance feito com uma breve pausa para reflexão. Foi aqui que tanto eu quanto Garry não vimos o ponto decisivo. O lance de Nikitin 29...Df5! causa problemas reais para as Brancas. As Pretas simplesmente defendem seu bispo – 30.Txd7? Dxd7 vence. As Pretas agora ameaçam 30...Ta8, quando a dama das Brancas fica com poucas casas que protejam f2. Ambos os jogadores “percebe-ram” esse lance, mas o recusaram por reflexo por causa de 30.e6!. As Pretas não podem jo-gar 30...fxe6?, pois 31.Txd7 ganha um tempo contra o bispo em g7, vencendo. Tampouco 30...Bxe6? 31.dxe6 é benéfico para as Pretas. Assim, 29...Txe5 é natural. E também um erro. As Pretas têm uma possibilidade oculta, isto é: 29...Df5! 30.e6 Ta8! 31.exd7 Ted8! (Seria in-teressante testar um computador para ver se ele iria “pensar e escolher” esta variante. Que nível de “profundidade de pensamento” seria necessário?)

Vinte anos depois é exatamente isso que estou fazendo, verificando minha análi-se com um computador. (YS, 2010)

32.Db6 Cc4 33.gxh3 (33.Tf1!? Cxb6 34.axb6 Cf4 35.Bxf4 gxf4 36.Ba4, com uma posição interessante que favoreceria as Pretas).

[Realmente, a posição após 36.Ba4 mais do que favorece as Pretas após 36...Bxc3! 37.Cxc3 Dd3 38.Tc1 h3! e as Pretas estão vencendo. (YS, 2010)]

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 231

33...Cxb6 34.axb6 Dxf3+ 35.Tg2 Bxc3 36.Cxc3 Dxc3 (Diagrama 128), com posi-ções semelhantes à variante anterior.

DIAGRAMA DE ANÁLISE 128. Jogam as Brancas

O problema das Brancas aqui é que a torre em b7 está extremamente mal posicio-nada. Como na variante anterior, estou con-vencido de que as Brancas deveriam evitar a captura em h3 e, em vez disso, tentar as po-sições após Tg1-f1. Leitores, socorro!

Caro Yasser, permita-me ir em seu so-corro. Você foi indevidamente influencia-do pela sugestão de Nikitin. Após 29...Df5, 30.Te1 evita a ameaça de xeque-mate afo-gado. Depois de 30.Te1 Bxe5 31.Bxe5 Dxe5 32.Ce4 Cxe4 33.fxe4 Bg4 34.Tf1 Bh5 35.Cd4 Bxd1 36.Tfxf7, a partida continua equilibra-da. Sinceramente, o Programa de Xadrez. (YS, 2010)

Caro Programa de Xadrez, obrigado por sua ajuda. Estou aliviado por saber que meu lance não era tão ruim afinal. Yasser. (YS, 2010)

Caro Yasser, foi um grande prazer. Isso é o que eu faço de melhor. Sinceramente, o Programa de Xadrez. (YS, 2010)30.Txd7 Cxg1 (Diagrama 129)

DIAGRAMA 129. Jogam as Brancas

31.Dxg1!Ao fazer este lance, eu estava de novo

plenamente confiante na vitória. A maioria dos pequenos horrores que pairavam em torno do meu rei desapareceram. Tenho vantagem de peças. As coisas nunca parece-ram tão promissoras; a única desvantagem era o controle de tempo. Pelo menos isto era mútuo.

Infelizmente, minha confiança não era plenamente justificada. Os cavalos em c3 e e2 pisam nos cascos um do outro. Minha dama está passiva. E o peão f3 pode facil-mente ser solapado por ...h4-h3. Os dois en-xadristas estavam começando a ficar mais tensos. Senti que minha cabeça tinha enga-tado em marcha rápida e estava andando a 100 Km por hora!

O lance que eu escolhi foi tão huma-no. O desejo de voltar correndo e proteger meu rei é um instinto que levarei para meu túmulo. A máquina inumana não tem es-sas preocupações. Ela prefere 31.Bxe5 Dxe5 32.Rxg1, mantendo as peças das Brancas firmes no ataque. Após 32...Txc3 33.Td8+ Bf8 (33...Rh7?? 34.Dxf7 vence de imediato) 34.Db8 Rg7 35.Txf8 Tc1 36.Tg8+ Rh7 37.Th8+

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232 Yasser Seirawan

Rg6 38.Dg8+ Rf6 39.Dd8+, o resultado é um xeque perpétuo. (YS, 2010)31...Tee8?

Inesperado. Eu tinha imaginado que Garry descartaria seu peão d6. Meus cálculos tinham recusado 31...Tee7 32.Txd6 Df5 33.Tc6! Tce8 34.d6 Te3 35.Tc7!, pretendendo d6-d7. Se não há um bom sacrifício em f3, toda a varian-te se torna uma fragorosa derrota.

Uma linha boa. Minha intuição es-tava certa e as Pretas deveriam jogar 31...Cxf3! 32.gxf3 Dxf3+ 33.Dg2 (a razão pela qual eu recapturei em g1 com minha dama) 33...Df5! 34.Bxe5 Bxe5 35.Ce4 Dxd7 36.Dxg5+ Rf8 37.Cf4, com mais uma po-sição de quebrar a cabeça que é avaliada como equilibrada. Parece que tanto eu quanto Garry não vimos 33...Df5!, pela se-gunda vez. Ao ameaçar a torre d7, as Pre-tas estão bem. Sem dúvida, meu lance de 31.Dxg1 foi feito exatamente para impedir sacrifícios como ...Cd2xf3. (YS, 2010)

Portanto, naquele momento, parecia que as Pretas só tinham uma chance – sacri-ficar a torre em e5 tentando 31...h3! 32.Bxe5 Dxe5, quando as Pretas têm boa compensa-ção por sua peça. Eu não duvidava de que as Brancas tivessem a vantagem, mas eu real-mente temia que a pressão de tempo deci-diria a partida.32.Txd6 Df5 33.Ba4!

Garry ignorou esta captura da cripta quando jogou 31...Tee8. Eu vinha sonhando com esse momento desde 14.Bd1. As Pre-tas são obrigadas a se livrarem de sua torre por um clérigo séptico em d1. Como Garry explicou posteriormente, “Não posso acre-ditar nisso. Este bispo”, disse ele, segurando e sacudindo-o para mim, “ele levou-me uma TORRE INTEIRA!” As Pretas não têm escolha. Se 33...Ted8?, então 34.Txd8 Txd8 35.De3 Cc4 36.De4 é um absoluto massacre.33...Dd3!

Uma tremenda reação ao choque de 33.Ba4. A dama preta fica onipotente em d3. Meus cavalos estão em sapatos de concreto.

O avanço d5-d6-d7 é quase impossível, pois a dama está atrás do peão da coluna d.34.Bxe8 Txe8 35.Tc6 h3 (Diagrama 130)

DIAGRAMA 130. Jogam as Brancas

Usando sua única chance. Não tenho dúvida de que a posição está ganha para as Brancas. Não estou com uma peça inteira de vantagem? Provar a questão, entretanto, não é fácil.36.Bg3?

Um lance estranho. Eu tinha calculado algumas variantes em que as Pretas vencem com ...Te8-e1+, e ansiosamente cobri a casa e1. Em vez disso, 36.Df2 implora para ser jo-gado. As Brancas reforçam f3 enquanto pla-nejam recapturar em g2 com o rei. A linha que finalmente motivou 36.Bg3, foi 36.gxh3? Bxc3 37.Cxc3 Cxf3 38.Df2 Te1+ 39.Rg2 Ch4+, e as Pretas vencem.

Aqui, uma correção é definitivamente apropriada. O lance 36.gxh3 é, de fato, uma escolha razoável. Pois, depois da ignorada 36...Bxc3 37.Txc3! Dxe2 38.Dxg5+, as Bran-cas estão ganhando. Por exemplo, 38...Rh7 39.Dh4+ Rg8 40.Bg1!, quando as Brancas protegem seu rei e deixam que as Pretas en-contrem uma continuação. Os dois peões a mais ajudam, é claro. (YS, 2010)

A questão é: depois de 36.Df2 Te3!, as Brancas vencem?

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 233

As Brancas, apesar de sua peça a mais, estão sendo sufocadas. Realmente um acon-tecimento incrível. Eu passei uma noite de mau humor na Etage Disco acreditando que 37.Dg3 era um matador imediato. Não é ver-dade. A partida continua complicada. Por exemplo, 37...hxg2+ 38.Rxg2 Cxf3 39.Tc8+ Rh7 40.Dh3+ Ch4+!. Opa.

Após 36...Te3, vamos listar primeiro as opções das Brancas: 37.Cc1; 37.Tc8+, preten-dendo Ce2-g1; 37.Bg1; ou 37.Tc8+, preten-dendo Df2-g3.

À primeira vista, 37.Cc1 parece refutar a posição das Pretas. Entretanto, elas têm um recurso tático: 37...Te1+! 38.Dxe1 hxg2+ 39.Rxg2 Dxf3+ 40.Rg1 Bd4+, seguida de xeque-mate. Essas variantes levaram-me a 36.Bg3.

A última variante traz à tona 37.Tc8+. Se as Pretas interpuserem seu bispo, Ce2-c1 ou Bh2-d6 funciona. Assim, 37...Rh7 38.Cg1 foi minha primeira ideia. As Brancas devolvem sua peça extra a fim de ganhar um peão e firmar seu rei. Mas as Pretas mantêm sua iniciativa: 38...Bxc3 39.Cxh3 Bf6 (Diagrama 131).

DIAGRAMA DE ANÁLISE 131. Jogam as Brancas

Durante a análise, fomos acompanha-dos por muitos Grandes Mestres, incluindo

Nigel Short. Nigel e eu pegamos as Brancas. Entre nós, perdemos 20 coroas suecas para Garry. As Pretas realmente dispõem de mui-tos contra-ataques.

De fato, pareceria que, após 40.d6 Te2 41.Dg3 Df5, as Pretas teriam jogo para o peão, mas tenho dúvidas de que isto seja suficiente para manter a posição. (YS, 2010)

Outra variante sedutora é 37.Bg1!?, tentando fazer as Pretas recuarem. Elas são obrigadas a esclarecer as coisas: 37...hxg2+ 38.Dxg2. As Pretas agora podem capturar em f3 de duas maneiras: 38...Cxf3 e 38...Txf3!. Se 38...Cxf3 39.Tc8+ Bf8 (39...Rh7? 40.Dh3+ e Bg1xe3) 40.Dg3 (para desocupar g2 para o rei e lidar com a pseudoameaça de ...Dd3-h7+).

[Nesta variante, o lance 40.Dg4 é mais forte e está vencendo para as Brancas. (YS, 2010)]

40...Dh7+ (40...Txe2? 41.Cxe2 Dxe2 42.Dd6 vence, assim como 40...Cxg1? 41.Dxg5+, ganhando) 41.Bh2 (Diagrama 132).

DIAGRAMA DE ANÁLISE 132. Jogam as Pretas

As Pretas estão em uma grande en-crenca por causa das ameaças de Ce2-g1, Dg3-d6 e Dg3-b8. Uma característica im-portante da posição é que as Pretas foram

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234 Yasser Seirawan

obrigadas a interpor seu bispo em f8 para bloquear o xeque. Quando as Pretas são obrigadas a essa passividade, isso geralmen-te significa o fim.

Esta análise está correta. O lance 38...Cxf3 é um erro e levaria a uma posição perdida para as Pretas. (YS, 2010)

38...Txf3! é melhor. Agora vem 39.Dg4, ameaçando Tc6-c8+; e depois ...Rg8-h7 e en-tão Dg4-h5+, vencendo. (As Brancas podem ser ardilosas e tentar 39.Cc1? Df5 40.Dxd2 Th3+ 41.Bh2 Df1 xeque-mate.) Nestas posi-ções, o cavalo das Pretas em d2 está um pou-co distante demais da batalha. Mas, como de costume, Kasparov têm seus recursos! O me-lhor é 39...Th3+ 40.Rg2 (40.Bh2 Cf1 41.Rg2 Ce3+, “garfando” meu rei e dama) 40...Th4! 41.Dc8+ (A dama das Brancas é forçada a desaparecer: 41.Dg3 Df5 com as ameaças de vitória ...Df5-f1 xeque-mate e ...Th4-g4 ganhando minha dama) 41...Rh7 (Mais uma vez, 41...Bf8? 42.Tf6 é ruim, e as Brancas de repente estão vencendo.) 42.Rf2 (O rei das Brancas é obrigado a sair chispando). Se 42.Be3 (Diagrama 133)

DIAGRAMA DE ANÁLISE 133. Jogam as Pretas

42...Bxc3!! (Este lance é tão raro que, depois de um tempo, eu nem me dei con-

ta de que ele era possível! É ruim capturar a peça com gula: 42...Dxe3? 43.Df5+ Rg8 44.Tc7 termina a partida.)

[Não exatamente. As Pretas ainda dis-põem de 44...Th2+ 45.Rxh2 De5+ 46.Cg3 Dxc7, recuperando a torre. Após 47.Cce2 uma igualdade aproximada está à mão. (YS, 2010)]

42...Bxc3!! 43.Cxc3 Df1+ 44.Rg3 Df3 xeque-mate! 42...Tf4+!! (Diagrama 134).

DIAGRAMA DE ANÁLISE 134. Jogam as Brancas

Um divertido xeque-mate duplo apa-rece após 43.Cxf4 Bd4+ 44.Rg2 (44.Re1 Cf3 xeque-mate) 43...Df3+ 45.Rh2 Cf1 xeque--mate! Já chega do cavalo em d2 ficar longe da batalha!

Tudo isso mostrou-se muito irritante. Entretanto, meu senso de indignação não me traiu. As Pretas estão perdidas! Como? Depois de muitas horas de análise após as cerimônias de encerramento da Copa do Mundo em Bruxelas, encontrei a vitória fu-gidia. Esta última variante ensinou-me que o bispo das Brancas deve permanecer em h2. Com frequência, as Pretas têm o recurso de salvação ...Te3-h3+. Depois de uma breve caminhada ao redor do quarteirão, as peças começaram a falar comigo!

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 235

O melhor é 36.Df2! Te3 37.Tc8+ Rh7 (37...Bf8? 38.Cc1 vence) 38.Dg3! hxg2+ 39.Dxg2!. Mais uma vez, as Pretas têm du-plas capturas em f3: 39...Txf3 e 39...Cxf3. Analisemos uma de cada vez.

39...Txf3 40.Cg1! Tf1 (a torre não fica tão perigosa em f1 como em h3!) 41.Ce2! (Diagrama 135) e as Brancas finalmente conseguiram levar seus cavalos à batalha.

DIAGRAMA DE ANÁLISE 135. Jogam as Pretas

O cavalo d2 está ligado à proteção da torre f1. As Brancas ameaçam a simples Ce2-g3 seguida de Dg2-h3+ ou Dg2xg5. As Pretas estão perdidas.

Esta análise está correta. (YS, 2010)As Brancas têm uma importante op-

ção com 41.Dxg5 (em vez de 41.Ce2). Os dois reis estão sendo martelados, mas, apesar da vantagem de peça das Brancas, as Pretas têm recursos táticos: 41...Dh3! (não 41...Bxc3? 42.Dh5+ Rg7 43.Dh8+ Rg6 44.Tg8+ Rf5 45.Dh7+ que espeta a dama das Pretas) 42.Dxd2 Dxc8 43.Dd3+ Df5, quando as Pretas ainda estão ativas. A aná-lise poderia continuar: 44.Ce4 Te1! 45.Cg5+ (45.Cf6+ Rg6 46.Dg3+ Rxf6 47.Dxe1 Dxd5+) 45...Rg6 46.Dg3 Txg1+ 47.Bxg1 Dxg5 48.Dxg5+ Rxg5 49.d6 e, embora as

Brancas ganhem uma peça, elas não ga-nham a partida!

Esta última parte da análise esta-va errada. Depois de 46.Dg3? Dxg5! (não 46...Txg1+) 47.Dxe1 Dxd5!, as Pretas estão vencendo. O lance 41.Dxg5 é um erro, e 41.Ce2 é correto e bom para as Brancas. (YS, 2010)

39...Cxf3 40.Dg4! (tentando Dg4--h5+, que leva ao mate) 40...Dg6 (40...Rg6? 41.Cf4+ ou 40...Txe2? 41.Dh5 e as Bran-cas vencem em ambas as vezes) 41.Dh3+! (Apenas assim. Com a torre das Pretas des-protegida, elas são obrigadas a interpor seu bispo.) 41...Bh6 42.Tc6! f6 (Mais uma vez obrigatória. Se 42...g4 43.Dxh6+! vence.) 43.Tc7+ Rg8 44.Dd7. De repente, as peças das Brancas criam muitas ameaças. E elas têm uma peça a mais.

[Embora esta variante sem dúvida seja vencedora para as Brancas, o lance final 44.Dd7 não é o mais forte. A melhor linha é 44.d6 g4 45.Dg3 Cxh2 46.d7!, com uma vitó-ria tática bacana. (YS, 2010)]

Eu espero que a sua paciência não te-nha se esgotado com essa longa análise. É evidente que eu poderia simplesmente ter mostrado a variante vencedora e parado. Mas assim eu não teria podido dividir minha angústia. Geralmente eu me contento em explicar os temas estratégicos e táticos im-portantes de uma partida. Desta vez eu senti a obrigação de provar que Garry estava der-rotado e que outra vitória tinha me escorre-gado pelos dedos.

De volta à partida! Eu ainda estava ale-gremente me convencendo de que as Pretas estavam mais perdidas do que nunca. O ob-jetivo era simplesmente alcançar o controle de tempo e ensacar a partida.

É notável como esta análise se aproxi-ma da verdade. De fato, 36.Df2 Te3 37.Dg3 me levaria a uma vitória. (YS, 2010)

A melhor de todas, contudo, teria sido 36.Df2 Te3 37.Tc8+ Rh7 38.Bf4!, lance que eu

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236 Yasser Seirawan

não considerei. Sacrificando o bispo, ganho o controle sobre a casa h4. Por exemplo, 38...gxf4 39.Dh4+ Bh6 40.Dxh3 – que alívio cap-turar este peão agravante e manter meu es-cudo na ala do rei. Agora, devido à ameaça de Tc8-c6, as Pretas estão perdidas. (YS, 2010)

Então, isso realmente significa que meu lance, 36.Bg3, jogou fora uma vitória e que com 36.Df2! eu poderia ter derrota-do o Campeão Mundial pela segunda vez? Infelizmente, não tão rápido. Revela-se que o sedutor 36...Te3 – o lance que eu temi e o lance que Garry pretendia – é um erro que teria levado a uma partida perdida, como acabamos de ver. Após a contida 36...hxg2+! 37.Dxg2 Cxf3, meu programa reconhece que as Pretas têm justa compensação para sua peça ausente e considera a posição equili-brada. Além disso, depois de 37.Rxg2 Cc4!, meu programa reconhece que as Brancas estão um pouco melhores. No calor da ba-talha, sem dúvida, Garry teria jogado 36...Te3?, mas aquele momento está agora em um tempo e um lugar a mundos de distân-cia. (YS, 2010)

Uma coisa é certa, meu lance 36.Bg3 pareceu errado no momento em que eu o fiz e, ainda que ele não desperdice a fugi-dia vitória, 36.Df2 era certamente o lance mais natural e provavelmente teria induzido 36...Te3, o lance que eu e Garry considera-mos como o melhor. Mais uma vez, conside-rando nossa pressão de tempo, o jogo hu-mano natural que me parece o melhor era 36.Df2 Te3 37.Tc8+ Rh7 38.Cg1 Bxc3 39.Cxh3 Bf6 40.d6, como a continuação mais “razoá-vel”. (YS, 2010)36...hxg2+!

Uma decisão difícil de se tomar quan-do seu adversário está com problema de tempo. Eu tinha esperado (até previsto) 36...Txe2 (ainda que recupere material, ele ajuda a resolver meus problemas defensi-vos e cura a dor de cabeça de ativar o cavalo em c3!) 37.Cxe2 Dxe2 38.Tc8+! Rh7 39.Tc1!. As Brancas planejam Dg1-h2, com uma pro-vável vitória. Mantendo a posição o mais

complicada possível, Kasparov espera por um erro que o mantenha à tona. No post mortem, Garry indicou uma possibilidade in-teressante: 36...Bxc3? 37.Cxc3 Cf1 38.Bf2? h2! (Diagrama 136), vencendo.

DIAGRAMA DE ANÁLISE 136. Jogam as Brancas

Engraçada, com certeza. Quando Garry assinalou essa possibilidade, 38.Bf2 parecia um lance tão sensato!37.Dxg2 Cxf3 38.d6

Jogado para prevenir variantes como 38...Dh7+ 39.Bh2 Be5? 40.d7 Td8 41.Tc8, vencendo. Contudo, o lance tem uma des-vantagem que Garry explora rapidamente. A tentativa de vitória com 38.Df2!? g4 39.Cf4 Dh7+ 40.Rg2 Ce1+ 41.Dxe1 Txe1 42.Bxe1 Be5 parecia muito perigosa.

De fato, esta linha é perigosa para mim pois as Pretas deveriam jogar 40...Bd4!, com um forte ataque. (YS, 2010)38...Te6!

Uma surpresa desagradável. Eu não ti-nha reconhecido o xeque-mate na coluna h.

É incrível que, apesar de estarmos ca-rentes de tempo, com nossas cabeças cor-rendo e a tensão no nível máximo de nossas batalhas, ambos encontramos excelentes lances. (YS, 2010)39.Df2 g4 40.Tc8+?

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 237

O erro normal do último lance do con-trole de tempo. Se as Brancas têm uma vitó-ria, este lance torna-a mais difícil. A caracte-rística básica é a súbita ameaça de promover o peão da coluna d para dama. Para esta ameaça manter os ares de um golpe decisi-vo, a promoção tem que vir com um xeque. Enquanto cumpria o controle de tempo com satisfação, eu estava alegremente incons-ciente de que estava ajudando as Pretas a salvar a partida. Se outra vitória existe, ela deve ser 40.Rg2!. As muitas respostas possí-veis das Pretas incluem 40...Ce1+ e 40...Bxc3. Vamos examiná-las uma de cada vez.

Um lance que não é tão bom quanto parece é 40...Ce1+ 41.Rf1! (Se 41.Dxe1 Df3+ e 42...Dxc6. Embora as Brancas estejam me-lhores, eu não vejo motivo para entregar a qualidade.) Th6!? 42.Tc8+ Rh7 43.Dxf7 Tf6+ 44.Dxf6 Bxf6 45.Rxe1, vencendo.

Realmente, embora esta linha vença para mim, o lance 41...Th6 é um erro. As Pre-tas devem devolver com 41...Cf3, que meu programa avalia como levando a uma posi-ção equilibrada. (YS, 2010)

A tentativa seguinte é 40...Bxc3 41.Txc3! (Não 41.Cxc3 Ce1+ 42.Dxe1 Txe1 43.Tc8+ [escapando do duplo ataque de f3] 43...Rg7 44.Bxe1 Dh3+! 45.Rg1 g3 e as Pretas vencem devido à dupla ameaça de ...Dh2+ e ...Dxc8) 41...Dxe2 (41...Dd5 42.Cf4! Ch4+ 43.Rh2 Cf3+ 44.Txf3 Th6+ 45.Rg1 Dxf3 46.Dxf3 gxf3 47.Ce6! vencendo) 42.d7, ven-cendo para as Brancas.

Esta análise está correta. (YS, 2010)Embora estas duas defesas possam não

ser as melhores para as Pretas, o ponto é que 40.Rg2! faz as Pretas lutarem pelo empate.

De fato, é verdade que Garry teria que lutar para manter o equilíbrio. Entretanto, a igualdade realmente existe e de novo meu último lance não foi um erro “ruim” no senti-do de que não desperdiça uma vitória. (YS, 2010)40...Rh7

Agora que o controle de tempo tinha sido atingido, mergulhei em profunda re-

flexão e não podia acreditar no que estava vendo. Minha mente tinha parado de fun-cionar. Não consegui encontrar uma vitória. Depois de pensar por 37 minutos, decidi forçar uma repetição.41.Cf4?

Passei a maior parte do tempo con-siderando 41.Bf4!? Be5. As Pretas agora ameaçam 42...Bxf4 43.Cxf4 Th6+ 44.Rg2 Ce1+ com ao menos um xeque perpétuo. Além disso, o peão d6 agora está en prise. Incapaz de encontrar uma linha promissora, voltei para 41.Rg2 e comecei a apreciar por que eu deveria ter deixado o rei das Pretas em g8. Kasparov achava que a posição de-pois de 41.Rg2 agora era igual após 41...Bh6 ou 41...Th6. Eu discordo.

Garry tinha razão. (YS, 2010)41...Th6+ 1:58 42.Rg2 Ce1+ 43.Rg1 Cf3+ ½-½

Uma partida de imensa complexidade. Mais uma vez, obrigado ao Garry pela genti-leza de compartilhar tanto tempo para ana-lisar a partida juntos.

Como uma nota de acréscimo a esta partida, eu sugeriria duas coisas, caro leitor. Primeiro, examine novamente os lances da partida apenas com sua pontuação. Sem dúvida foi uma partida com alta dramati-cidade, escorregões, quase quedas, golpes estrondosos e excelentes recuperações. Depois eu sugeriria examinar a partida com um programa de computador. Achei im-pressionante que as avaliações quase nun-ca mudam. É como se a partida se manti-vesse na zona de empate desde o primeiro lance. Realmente notável.

Antes de nos despedirmos de Skellefteå, algumas palavras de reflexão. Como em Barce-lona, o evento teve uma organização magní-fica. Os organizadores cumpriram seus papéis de uma forma maravilhosa e o evento foi um dos melhores de que participei. A imprensa e a televisão fizeram uma cobertura de desta-que durante todo o evento.

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Ainda que geralmente entediantes, cerimônias de abertura são eventos baca-nas. Há palavras genuínas de boas-vindas, e a parte séria dos sorteios acontece. Este é o momento em que os enxadristas descobrem a boa nova de ter uma partida de Brancas a mais ou o desafio adicional de ter uma parti-da a mais de Pretas. Os organizadores já usa-ram todos os tipos de dispositivos e sistemas para ajudar os enxadristas a tirarem seus nú-meros. Estes já foram colocados em um cha-péu, os jogadores são convidados a puxar caixas, ou pegar uma estátua ou um cache-col. Certa vez, em Mar del Plata, balões foram colocados em uma piscina e mergulhadores atraentes pegavam o balão escolhido. Lajos Portisch vestiu um traje de banho e insistiu em pular na piscina e pegar ele mesmo seu balão. Em Skellefteå, uma província de mine-ração de ouro, os organizadores colocaram barras de ouro sobre uma mesa. Como as barras tinham números gravados, os jogado-res se aproximavam para tentar levantar uma delas e mostrar o número em seu verso. Lajos foi o único capaz de usar apenas um braço. O pobre Mischa, por outro lado, estava tão magro e fraco que mal conseguiu e precisou de ajuda.

Durante o evento, em um dos dias livres, os organizadores prepararam excur-sões de rafting em corredeiras. Foi certa-mente um dos dias livres mais prazerosos de que já desfrutei em um evento de xadrez, e acho que muitos de meus colegas que par-ticiparam da excursão sentiram da mesma forma. Terminamos com uma sauna e um assado de peixe excelente.

Para cerimônia de encerramento, o elenco do musical Chess fez uma apresen-tação, que foi um tremendo destaque. Todo mundo estava muito empolgado. Kasparov nem tanto, pois Karpov também teve um desempenho excelente, empatando em pri-meiro lugar com Garry. Ele precisava descar-regar um pouco sua irritação e então, à noi-te, desafiou-me para uma sessão de Blitz por algumas coroas suecas por partida. Em suas

palavras: “Preciso de dinheiro para jantar! Va-mos jogar.”

Eu ri e disse: “Garry, você pode ven-cer mas não irá comer bem.” Jogamos noite adentro e provavelmente era madrugada quando, por fim, nos separamos. Paguei a Garry suas vitórias, o suficiente para fazer um Lanche Feliz no McDonald´s, mas todos os restaurantes estavam fechados. Foi uma sessão de Blitz maravilhosa.

Com a série da Copa do Mundo con-cluída, os vencedores foram... Garry Kasparov em primeiro e Anatoly Karpov em segundo. Os acontecimentos foram tão extraordiná-rios que parecia que algo estava faltando, e estava. Um match entre os dois deveria acon-tecer, e aconteceu: o Campeonato Mundial de 1990 realizado na cidade de Nova Iorque e Lyons, um evento da FIDE.

Depois do match, todas as atenções voltaram-se para o “e agora?” Havia o ci-clo de três anos da FIDE, é claro, com um match do Campeonato Mundial a ser mar-cado em 1993 e também a Copa do Mundo da GMA.

A morte da GMAApesar de sua reconciliação em Barcelona, Garry tinha suas dúvidas. Ele posteriormente determinou que os afiliados da GMA deveriam decidir entre guerra e paz com a FIDE. Uma as-sembleia geral da GMA foi realizada em Mur-cia, Espanha, em 1990 que prometia ser uma batalha até a morte. Garry estava fazendo for-te campanha pela guerra, ao passo que Bessel e a maioria do conselho diretor da GMA queria que o contrato fosse ratificado. Lembro-me de que Carol Jarecki e Viswanathan Anand (!) de-veriam tabular os votos.

Antes da votação, eu tinha apresen-tado uma moção para que a questão fosse levada a uma comissão. Minha moção foi recusada. Em meu íntimo, sabia que Garry iria perder no referendo e que, se isso acon-tecesse, ele interpretaria como uma rejeição à sua liderança e se sentiria forçado a deixar seu posto como presidente da GMA. Esta

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forte sucessão de acontecimentos significa-ria, a meu ver, o fim da GMA. Os interesses eram altos e expressei minhas mais profun-das apreensões a Bessel Kok. Bessel garan-tiu-me que tanto ele quanto Garry tinham feito um forte pacto e que, independente-mente do resultado, eles continuariam tra-balhando juntos para a GMA e acatariam a decisão dos afilados. Ele estava confiante de que a GMA iria sobreviver. Eu expressei explicitamente minha preocupação de que não iria.

Garry perdeu a votação por 65½-60½ com uma observação imensamente impor-tante: os Grandes Mestres soviéticos apoia-ram vigorosamente a posição dele, mas, como os estatutos da GMA limitavam os vo-tos de qualquer país em até 25% do total, os votos soviéticos foram reduzidos. (Em meus boletins da GMA, o real número de votos re-duzidos não é mencionado.) Os afiliados en-dossaram o contrato de paz com a FIDE. De-pois que o resultado foi anunciado, Garry fez um discurso divagante e sentou-se. Eu estava sentado na plateia olhando para o pódio e Nigel Short, também na plateia, levantou--se e fez uma pergunta simples: “Garry, isso significa que você se demite do conselho da GMA?”

Garry pensou por um instante, pegou o microfone e disse: “Sim, eu me demito!” Ele então saiu do palco, caminhou até a pla-teia, sentou-se a meu lado e disse: “Yasser. É tudo culpa sua”!

Ai, meu Deus. Uma acusação e tanto e talvez tola, pois havia muitas dinâmicas em jogo. Na verdade, contudo, a acusação de Garry foi certeira. Eu queria paz e votei a favor de ratificar o acordo. Meus colegas pe-diram minha opinião e eu também influen-ciei seu voto em prol da paz. Se eu tivesse apoiado Garry com meu voto, com alguns mandatários e, mais importante, com apoio público à posição de Garry, ele teria vencido o referendo com facilidade e teria sua guerra com a FIDE. Tudo isso assumindo que outras dinâmicas permanecessem constantes, é

claro. Quem sabe o que poderia ter aconte-cido naquele caso?

Para esclarecer minha própria opinião, eu não consegui sondar por que Garry que-ria destruir a FIDE. Na verdade, como você vai ler no Capítulo 11, a FIDE realiza alguns trabalhos muito importantes. A queixa de Garry era com as personalidades da lide-rança da FIDE; especificamente, sua raiva do presidente da FIDE Florencio Campomanes. Garry estava levando uma vingança pessoal longe demais.

Este episódio é, em muitos aspectos, um exemplo perfeito da personalidade de Garry. Ele é um tipo binário no estilo do ex--presidente dos Estados Unidos George W. Bush, filho: ou você está comigo ou contra mim. Vitória ou derrota. Preto ou branco. Para Garry, não havia meio-termo e tons de cinza não existiam. Ele exigia total apoio daqueles que estavam a seu lado. Sendo filho único, ele estava acostumado a fazer do seu jeito e muitas vezes conseguia. No mundo de Garry, havia partidários e mem-bros da oposição. Ele era um rebelde protes-tando contra o sistema; parecia lógico que a oposição estivesse na maioria e que, para atingir seus objetivos, ele teria que trabalhar diligentemente para superar a oposição. Como eu tinha votado contra Garry em Mur-cia, agora eu estava em seu canil, dedicado àqueles que se opunham a ele.

A renúncia de Garry do conselho da GMA e de sua função presidencial não sig-nificava necessariamente o fim da Copa do Mundo da GMA. Garry continuaria jogan-do? Em um famoso encontro em um restau-rante chinês, ele concordou em jogar por um belo estipêndio de cem mil dólares. Ne-nhum enxadrista recebia qualquer honorá-rio, pois os prêmios de recompensa eram muito generosos. Esta exigência alterava a dinâmica dos prêmios da Copa do Mundo. Mesmo assim, Bessel concordou, e um gar-çom chinês testemunhou um contrato assi-nado pelos três sobre um guardanapo. De-pois disso, Garry reconsiderou sua posição

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e se retirou da disputa no segundo evento da Copa do Mundo. O primeiro ocorreu em Reykjavik, Islândia, e, com a retirada de Gar-ry como jogador, os eventos da Copa do Mundo foram cancelados. Pouco depois a GMA ruiu. Garry diria de sua criação: “A GMA era pior do que a FIDE”.

Com o colapso da GMA em 1991-92, o único jogo que sobrou era o ciclo do Cam-peonato Mundial da FIDE, além dos muitos torneios particulares. O título do Campeo-nato Mundial continuou sendo o grande prêmio e, com a queda da GMA, ele, por en-quanto, ainda estava firme com a FIDE.

O nascimento da PCAEm 1993, o período de “Kasparov primeiro e Karpov segundo” se rompeu. Um novo De-safiante surgiu, Nigel Short do Reino Unido. Ele derrotou Anatoly na Final de Candida-tos para se tornar o primeiro Desafiante oci-dental desde Bobby Fischer. Uma realização fantástica. Eles jogariam juntos... onde? En-quanto boatos de diversas ofertas começa-vam a circular, ambos os jogadores tinham altas esperanças de um prêmio recorde. Ha-via fortes motivos para explicar o otimismo dos enxadristas...

Surpreendendo a todos, Bobby Fischer saiu de sua aposentadoria em 1992 para jo-gar contra seu rival Boris Spassky em Sveti Stefan e Belgrado, Iugoslávia. O match se-guiu as regras de Steinitz do primeiro a ven-cer dez partidas. Os enxadristas lutaram pelo incrível prêmio de cinco milhões de dólares, sem os impostos da FIDE. Um novo recorde para a premiação do Campeonato Mundial foi estabelecido. Pela primeira vez em mui-to tempo, Garry não era o principal foco de atenção do xadrez.

Quando indagado sobre sua opinião a respeito do match na Iugoslávia numa cole-tiva à imprensa em Linares, Espanha, Garry, não pela primeira nem pela última vez, falou o que não devia. Ele depreciou os jogadores, explicando que o jogo de Fischer era “fraco” e que o 11o Campeão Mundial era uma len-

da que era do “passado” e que Bobby corria o risco de prejudicar seu legado. “Sim”, conti-nuou o jornalista, “mas Bobby não estava dis-putando o match do Campeonato Mundial?” “De forma alguma”, retrucou Kasparov. “O match na Iugoslávia era apenas um ‘match de exibição’”. “Muito bem”, respondeu o jornalis-ta. Mas como eles, simples jornalistas, pode-riam mostrar para seu público a diferença entre um “match pelo Campeonato Mundial” e um “match de exibição”? Garry informou-o exatamente como: “Por causa do dinheiro!” Ah, sim. O dinheiro. Isso faz a diferença.

O match de exibição de cinco milhões de dólares de Bobby elevou imensamente as expectativas. Em 1990, Kasparov tinha jogado por um prêmio de três milhões de dólares. Será que seu match de 1993 contra Nigel poderia superar este número? Em caso negativo, seria Garry quem estaria jogando um “match de exibição”?

De onde viria uma soma nababesca dessas? Será que Ted Fields, o patrocina-dor da metade de Nova Iorque no match de 1990, faria uma oferta de Hollywood? Um xeique do Oriente Médio se apresen-taria? Talvez um dos oligarcas emergentes da Rússia? Ou será que uma cidade encon-traria verbas dentro de seu orçamento de marketing e apresentaria suas credenciais em um palco mundial, como aconteceu com Sevilha? Os boatos corriam e estáva-mos todos na beira de nossas cadeiras. Não mais do que os jogadores.

Enquanto estava jogando em Môna-co em um dos primeiros torneios Melody Amber, coloquei a questão diretamente ao próprio Nigel. Embora não tivesse uma ideia clara, ele estava muito animado sobre uma oferta de Manchester. Ele havia se en-contrado com representantes da cidade, e uma conversa imponente de dois milhões de libras tinha definitivamente chamado sua atenção.

Então chegou o dia em que as ofertas nos escritórios da FIDE foram anunciadas. Manchester tinha ganhado com uma oferta

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de um milhão e duzentas mil libras. Os enxa-dristas ficaram desapontados, principalmen-te o próprio Nigel. Ele estava convencido de que Campomanes tinha deliberadamente sabotado a oferta alocando o dinheiro a ser gasto para outras partes do orçamento de organização e não para verba do prêmio propriamente dito. Zangado e decepciona-do, Nigel chamou Garry: “Você gostaria de disputar nosso match fora dos auspícios da FIDE?”, perguntou. Meu Deus, com certeza! Garry aceitou na hora. “Ótimo! Vamos criar nossa própria organização!”

Como o próprio Garry explicou, em Nigel ele viu o sócio perfeito. O “melhor re-presentante do Ocidente” associando-se a ele, o melhor representante do Oriente. O que poderia dar errado? Garry trabalhou com um advogado radicado na cidade de Nova Iorque, Robert Rice, para fundar a Pro-fessional Chess Association (PCA), ou Asso-ciação Profissional de Xadrez. A PCA seria o contrapeso para a FIDE que Garry sempre quis. Finalmente ele iria poder realizar seu sonho de uma organização “profissional co-mercialmente bem-sucedida”. A FIDE seria varrida do mapa. Este era o plano.

O presidente da FIDE Florencio Campo-manes ficou transtornado de tristeza, raiva, surpresa e repulsa. Afinal, foi o ciclo da FIDE que tinha “criado estas estrelas” e agora os ingratos tinham fugido juntos, deixando a FIDE na mão. A FIDE dependia do imposto de 20% da verba de premiação do Campeonato Mundial para suas despesas administrativas gerais. A FIDE enviou a ambos os enxadristas um acordo a ser assinado até certa data, se-não Garry Kasparov perderia sua condição de “Campeão” e Nigel Short perderia sua condi-ção de “Desafiante”. Ambos deixaram o prazo passar, e a FIDE desclassificou os dois. Como Karpov era o jogador que perdeu para Nigel na Final de Candidatos, ele foi convidado para competir em um novo match do Cam-peonato Mundial da FIDE em 1993. Como Jan Timman foi derrotado por Nigel Short nas Semifinais de Candidatos, ele foi convidado

a competir contra Anatoly Karpov pelo título da FIDE. Haveria dois matches pelo Campeo-nato Mundial realizados em 1993. A “guerra de Garry” estava iniciada.

O match do Campeonato Mundial da PCA entre Kasparov e Short foi realizado em Londres por um prêmio de um milhão de li-bras. O Campeonato Mundial da FIDE foi di-vidido entre Holanda e Indonésia com uma verba para o prêmio de um milhão de dóla-res (800 mil dólares foram para os enxadris-tas). Ambas as organizações tiveram grandes dificuldades na realização de seus eventos, principalmente a FIDE. Em certo momento, Campomanes anunciou que Omã sediaria a metade do match Karpov-Timman e pro-meteu um prêmio muito maior do que o de Londres. Ele queria mostrar aos dois rapazes arráticos quem era o chefe. Mas ele exagerou no que disse, pois a oferta de Omã fracassou.

Kasparov venceu seu match contra Short, enquanto Karpov tornou-se nova-mente o Campeão Mundial pela FIDE. O mundo do xadrez estava dividido e perma-neceria assim por mais de uma década.

O Grande CismaComo qualquer enxadrista profissional pode confirmar, o mundo do xadrez é, por um lado, consideravelmente pequeno – quase uma fraternidade –, mas, por outro, o xadrez têm milhões de pessoas ao redor do mundo que praticam o esporte e acompa-nham os eventos importantes. Fragmenta-do é uma palavra que me ocorre. Caótico é outra. Haver uma única organização, a FIDE, é um modo de ajudar a controlar o caos, mas somente até certo ponto, pois ela não é um grupo dos mais profissionais... Haver duas organizações reivindicando a posse do título do Campeonato Mundial levou o público a um estado de absoluta confusão. Foram feitas comparações com as federa-ções do “mundo” do boxe e da luta livre. Os patrocinadores ameaçaram sair a menos que o mundo do xadrez pusesse sua casa em ordem.

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Em 1994, a FIDE estava tendo proble-mas com a execução de sua Olimpíada bie-nal. Na verdade, a oferta original ruiu. Após as dificuldades que teve em organizar seu match do Campeonato Mundial de 1993, uma Olimpíada fracassada em 1994 pode-ria ter sido o dobre de finados para a FIDE. Neste momento negro de crise, seria neces-sário um salvador. Ela encontrou um: Garry Kasparov. Surpresa!

Os Jogos Olímpicos são negócios imensos e caros. Como existem mais de cem equipes masculinas e femininas, é preciso um exército de organizadores, diretores e árbitros para organizar o evento de três se-manas. Acrescente a reunião em Assembleia Geral da FIDE e também a necessidade de intérpretes, e torna-se evidente que são ne-cessários anos de cuidadoso planejamento. Garry tinha encontrado patrocinadores em Moscou e, como a cidade tinha semelhante exército de organizadores, diretores e árbi-tros a postos, foi possível levar a cabo um imenso esforço de último minuto. Garry es-tava em busca de uma reconciliação e a FIDE ficou agradecida.

Garry aprendeu as lições de sua guerra rapidamente, chegando a uma compreen-são cristalina: uma guerra no xadrez era ruim para os patrocinadores, ruim para os enxadristas, ruim para os jornalistas e ruim também para o público. O status dele como “Campeão” estava sendo questionado mes-mo enquanto ele mantinha-se no topo na lista de ratings. Para tornar a situação ainda mais nebulosa, Anatoly Karpov teve um dos torneios mais extraordinários de sua ilustre carreira, vencendo o evento de Linares em 1994 com um maciço rating de desempe-nho em torneio (TPR) que excedia o rating real de Garry. Garry era o segundo na área. Em certa ocasião, Garry teria dito: “Linares separa os homens dos meninos”. Agora seu rival tinha vencido inquestionavelmente. Quando indagado se a vitória em Linares significava que ele era o “verdadeiro” Cam-peão Mundial, Anatoly disse apenas: “Va-

mos dizer que eu sou o melhor enxadrista do momento.”

A Olimpíada de Moscou casualmente também foi um ano de eleição para a presi-dência da FIDE. Garry deu seu apoio a Cam-pomanes! Ele o convenceu a concorrer pelo quarto mandato consecutivo. Campomanes já tinha avisado que não iria se candidatar. Agora, com o estimulo de Garry, ele, no úl-timo momento, decidiu concorrer. Aquela revelou-se a mais tumultuosa eleição na his-tória da FIDE, e as trapaças foram desenfrea-das. Minha própria federação, a USCF, acei-tou um suborno, uma exibição simultânea gratuita de Kasparov, para mudar seu voto. O delegado da USCF, Faneuil Adams, renun-ciou a seu cargo por desgosto. Campomanes ganhou.

A piada da época era que a FIDE tinha mudado seu lema de “Somos uma família” (Gens Una Sumus) para “Somos um homem”. Quando eu relatei a eleição de 1994 nas páginas da Inside Chess, um leitor acusou--me de relatar uma mentira escandalosa. Os apoiadores de Kasparov estavam incrédulos.

Evidentemente, por todos os seus esforços para sediar a Olimpíada da FIDE de 1994, Garry tinha seu preço. Ele queria o título de volta. Como a FIDE não podia simplesmente tirar Anatoly e proclamar Garry Campeão, um novo match teria que ser organizado. Bastante justo. Mas aí havia um preço que não podia ser pago, pois em um match entre dois enxadristas, Anatoly, como Campeão Mundial da FIDE, estaria defendendo a coroa do título e, como Cam-peão defensor, ele receberia a vantagem do empate. A posição de Garry era de que não daria a vantagem do empate a seu adversá-rio e queria um match entre “iguais”. Ele não queria pagar qualquer preço por ter deixado de disputar seu match contra Nigel Short. Os estatutos da FIDE eram muito claros e ne-nhuma concessão era possível.

Mais uma vez, podemos abertamente nos perguntar “E se?” E se Garry tivesse con-cordado em jogar um novo match contra

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Anatoly como Desafiante? Não tenho dúvi-das de que ele teria vencido, mesmo con-cedendo a vantagem do empate. A cisão teria sido superada e o mundo do xadrez poderia ter voltado a suas rixas fratricidas mais comedidas. Os patrocinadores teriam voltado, lições teriam sido aprendidas e um futuro luminoso poderia ter sido possível. O que aconteceu foi que a PCA e a FIDE bata-lharam entre si por um número minguante de patrocinadores.

Antes de nos despedirmos da Olimpíada de Moscou de 1994, é preciso assinalar que algumas coisas muito estranhas estavam ru-morejando. Como anfitriã, a Rússia tinha a chance de escalar não apenas uma mas duas equipes. Como Campeão Mundial da FIDE, Anatoly Karpov certamente deveria jogar. Talvez ele até liderasse sua “própria” equipe, “Russia B”, enquanto Garry Kasparov lideraria a “Russia A”? Garry não aceitava nada disso, e a Anatoly foi dada a escolha de jogar pela equipe russa A ou absolutamente não jogar. Anatoly recusou-se a jogar atrás de Garry na escalação. (Como mencionado anteriormen-te, somente um Estado totalitário poderia co-locar estes homens na mesma equipe.)

Assim, Anatoly não jogou em Moscou, mas é aí que as coisas ficaram realmente ri-dículas: ele foi impedido de entrar no hotel como visitante. Por que isso foi bizarro? A Olimpíada de xadrez da FIDE estava sendo disputada na terra natal do Campeão Mun-dial da FIDE e ele não tinha permissão para visitar o evento oficial da FIDE? Quando Anatoly tornou-se uma persona non grata?

A eleição de Campomanes para a FIDE em 1994 não tinha transcorrido nada bem entre os delegados. Muitas más ações tinham sido praticadas. A este respeito, lembro-me do sarcasmo do comediante Lily Tomlin: “Eu acho que fraldas e políticos devem ser trocados com frequência e pelos mesmos motivos.”

Depois das Olimpíadas, muitos dos delegados ocidentais da FIDE estavam em franca revolta. Na Assembleia Geral da FIDE

seguinte, marcada para Paris em 1995, um dos itens da pauta convocaria a renúncia do presidente Campomanes. Outro problema tinha que ser enfrentado: a verba para a pre-miação do match do Campeonato Mundial da FIDE de 1993 tinha sido levantada com muita dificuldade; de onde viria o próximo patrocinador? Serendipidade para o resgate mais uma vez.

O presidente da República autônoma da Calmúquia, Kirsan Ilyumzhinov, tinha sido convidado a participar da Assembleia Geral da FIDE de 1995 como convidado. Como grande apreciador e mestre de xa-drez, ele aceitou o convite com satisfação. Ele também era amigo de Kasparov. Em 1990, um troféu “Korloff” crivado de diaman-tes tinha sido presenteado a Kasparov como vencedor do match do Campeonato Mun-dial. Antes do match, ambos os enxadristas concordaram que o vencedor permitiria que o lindo troféu fosse a leilão e o dinheiro fos-se para um fundo para as vítimas de um ter-remoto devastador na Armênia. O licitante vencedor foi ninguém menos do que Kirsan.

Na Assembleia Geral de 1995 em Paris, Campomanes concordou em renunciar à presidência, sendo-lhe oferecido o cargo de diretor, função que não estava descrita nos estatutos da FIDE. Ele aceitou. Perguntou-se a Kirsan se ele gostaria de concorrer para o cargo agora vago de presidente da FIDE. Ele concorreu e obteve uma vitória esma-gadora. Será que ele poderia apaziguar o mundo do xadrez e sanar a cisão? Ele tinha boas qualidades para realizar esta proeza – era rico e mantinha relações amigáveis com Kasparov e Karpov.

Antes de sanar a cisão, a FIDE tinha pri-meiro que completar o ciclo em andamen-to. Em 1996, Kirsan foi o anfitrião do match pelo Campeonato Mundial da FIDE em Elis-tia, a capital da Calmúquia. O Desafiante de Karpov foi Gata Kamsky dos Estados Unidos. Karpov manteve seu título com um match bem disputado.

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No outro lado da cisão, o match do Campeonato Mundial da PCA foi realizado na cidade de Nova Iorque. O Desafiante de Kasparov foi o Grande Mestre indiano Viswanathan Anand. Mais uma vez, em um match bem disputado, Kasparov conservou seu título, depois de inicialmente ficar para trás. O palco estava mais uma vez pronto para a grande reconciliação. O mundo do xadrez agora queria saber quando os dois campeões, Kasparov e Karpov, se enfren-tariam disputando um sexto match, resol-vendo a divisão.

Kirsan tinha suas próprias ideias sobre como fazer isso. Seu infortúnio foi que ele tinha os meios para por suas políticas em ação. Tirando o exemplo do mundo do tê-nis, Kirsan imaginou um torneio mundial de nocaute com 128 enxadristas para decidir o título do Campeonato Mundial. A ideia era realizar dois minimatches de xadrez “clássi-co” até chegar aos matches semifinais, que teriam quatro partidas de duração, segui-das por um match do Campeonato de seis partidas. Tanto Kasparov quanto Karpov es-tariam pré-selecionados para as semifinais, de modo que os 128 enxadristas teriam que disputar um match a mais para vencer o tor-neio. Kirsan ofereceu um prêmio de cinco milhões de dólares e esta soma assombrosa fez o mundo do xadrez vibrar.

Sugerir que um torneio de decisão com 128 participantes virava a ideia dos prestigiados “matches do título” de cabeça para baixo não faz jus à expressão. O evento é completamente inadequado para deter-minar o título máximo. Em matches de duas partidas, qualquer Grande Mestre tem uma chance de vencer qualquer outro – é preci-samente graças aos matches prolongados de 24 partidas que o melhor enxadrista pode ser claramente determinado. Além disso, em caso de um empate em um a um, ou de um empate em qualquer match, os jogadores disputariam duas partidas de 15 minutos cada com segundos de bônus para cada lance feito; e, no caso de mais um em-

pate em um a um, duas partidas de Blitz de cinco minutos: depois, se o desempate ain-da não tiver ocorrido, uma partida de Arma-gedom de morte súbita, onde as Brancas têm seis minutos e as Pretas cinco minutos e a vantagem do empate. O sistema dava a qualquer enxadrista entre os cem melhores uma razoável chance de tornar-se o Cam-peão Mundial.

Permitam-me explicar o absurdo das novas regras. Vamos supor que eu devesse disputar um match de duas partidas com Kasparov. Oficialmente ou pelos ratings, ele seria claramente o favorito. Eu poderia começar com as Brancas e um empate po-deria servir a Kasparov. Na segunda partida ele estaria com as Brancas e iria querer ven-cer a fim de evitar partidas rápidas e Blitz de desempate. Se ele escorregasse e forçasse demais, ele poderia perder e estar fora da competição em um instante. Para fazer uma analogia grosseira, seria como dois joga-dores de sinuca jogando duas partidas um contra o outro. No caso de empate, os dois jogariam uma “bola preta” para ver quem avança para a próxima rodada. Seria um tes-te insuficiente da habilidade. A maioria dos melhores jogadores de sinuca conseguem facilmente fazer cem pontos de uma só vez. Vou explicar de uma maneira ainda mais simples: vamos supor que eu e Kasparov dis-putássemos um match de duas partidas; ele poderia ser um favorito de 2:1. Se disputás-semos três matches, de acordo com as chan-ces, eu deveria vencer um deles.

Como Garry Kasparov reagiu ao novo plano de Kirsan? Opôs-se veementemente! Ele colocou a questão de maneira sucinta: o Campeonato Mundial da FIDE estava sen-do reduzido a uma “loteria”, declarou ele. O que era exatamente a intenção de Kirsan. Qualquer enxadrista qualificado tinha uma chance de ganhar. Kasparov não quis saber do evento, que serviu perfeitamente bem a Anatoly. Kirsan tinha oferecido pré-selecio-nar os dois enxadristas nas semifinais milio-nárias. Caso um deles se recusasse a jogar,

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o outro estaria diretamente classificado para o match final. Assim, Anatoly recebe-ria mais uma apetitosa vantagem da FIDE, um camarote para o confronto final de um torneio de decisão com 128 enxadristas. Mais uma vez, com o eufemismo britânico, “isso ajuda”. Ainda melhor, seu adversário, tendo vencido sete exasperantes minima-tches brutais, teria que viajar de Groningen, Holanda, local do torneio, para Lausanne, Suíça, para disputar o match final contra o Campeão, bem descansado e bem prepa-rado. As regras eram muito injustas com o Desafiante.

Com a extraordinária riqueza de seu novo presidente, os destinos da FIDE deram uma guinada extraordinária para melhor. Não mais uma organização lutando por todo

Pfennig no orçamento, ela agora estava com uma vida confortável. Tinha encontrado um patrocinador e presidente no mesmo paco-te. Por outro lado, os destinos da PCA logo se deterioraram. Eu não sei ao certo quando ela silenciosamente se acabou. Suas diretorias, de Kasparov e Short, relaxaram com a saída de Nigel, e ela pareceu ser arrastada para o cemitério do xadrez – o qual está repleto de lápides como esta. O resultado foi que, de-pois de 1995, Garry Kasparov, o campeão do povo, não defendeu seu título por longos cinco anos. Contudo, diferente de Fischer, que parou de jogar em 1972 e parou uma segunda vez em 1992, Kasparov manteve--se ativo como sempre. Ele reinou no topo da lista de ratings e continuou sendo o enxa-drista dominante de seu tempo.

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Anatoly Karpov, Após 1985

Talvez eu esteja sendo indelicado com Anatoly mas, em nosso encontro no torneio SWIFT em Bruxelas, em 1986, quando ele não era mais Campeão Mundial, ele tinha se tornado menos majestoso. Era um camarada muito mais acessível e falante. Não carrega-va mais os fardos que vêm junto com o pre-cioso título e os sintomas de campeonite ti-nham diminuído. Anatoly podia relaxar mais.

Em meados de 1980, um novo patroci-nador surgiu em cena, Bessel Kok. Ele veio a ter um papel ilustre na elevação do xadrez. O torneio SWIFT adquiriu merecidamente a fama de um dos melhores eventos no mun-do. Anfitrião maravilhoso, Bessel sempre fez o melhor possível para fazer os enxadristas se sentirem queridos e acolhidos. Como um pequeno exemplo, após o torneio SWIFT de 1988, Bessel convidou Mikhail Tal para ficar mais tempo e o mandou para o hospi-tal para um exame completo e tratamento adequado. Mischa ficou muito agradecido e isso provavelmente prolongou sua vida em muitos anos.

Na época do próximo duelo, eu tinha expandido meu repertório de defesas para incluir a Defesa Petrov de Pretas. Esta partida desferiu um golpe forte direto no meu ma-

xilar e a Defesa Petrov perdeu muito de sua atratividade para mim depois disso. Como lamento não ter ensaiado a Defesa Francesa desde nosso primeiro encontro.

Nos comentários desta partida, citarei livremente Jan Timman em seu excelente livro Power Chess with Pieces. O subtítulo é “The Ultimate Guide to the Bishop Pair & Strong Knights.”

O torneio SWIFT foi um dos primeiros eventos do circuito de elite a utilizar uma sessão de seis horas com 40 lances em duas horas e 20 lances em uma hora, seguidos de um adiamento. O controle de tempo mais antigo era de 40 lances em duas horas e meia, seguidos de um adiamento, uma ses-são de cinco horas. Ao recomeçar, os con-troles de tempo eram de 16 lances por hora por jogador. Portanto, um ritmo mais rápi-do e uma sessão mais longa. Houve alguns resmungos entre os enxadristas, inclusive Anatoly, sobre o ritmo mais rápido. Com o avanço dos programas de xadrez, os adia-mentos logo seriam totalmente extintos. Um “avanço” pelo qual lamento profundamente, considerando o quanto aprendi sobre xadrez e particularmente sobre finais justo por cau-sa dos adiamentos.

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Todo enxadrista sofre derrotas dramá-ticas e dolorosas. Este livro certamente con-tém muitas das minhas e a partida a seguir repercute profundamente. Ela leva toda a enchilada, o taco e também a piñata. Para entender por quê, pense no seguinte: era uma partida importante e eu tinha me for-talecido para ela, preparando-me com certa minúcia; Anatoly caiu direto no meu plano. Depois eu fui totalmente superado e perdi. Anatoly escorregou duas vezes, permitindo--me retomar a partida. Lutei feito doido e, quando estava muito perto de um empate, cometi um erro grave decisivo pouco an-tes do segundo controle de tempo. Então, após um adiamento de dois dias, estudei a posição o mais profundamente que pude, só para descobrir que minha análise era toda uma enorme pilha de estrume. Foi um esforço exaustivo para o qual um zero bem redondo apareceu na tabela sem nenhum reconhecimento por todo o meu sofrimento. Nas palavras poéticas de um califa patroci-nador de Al-Suli que eu adapto para a situa-ção: “Minha água de rosas virou urina.”

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanBruxelas, 1986Defesa Petrov

1.e4 e5 2.Cf3 Cf6 3.Cxe5Na outra linha principal da Petrov, 3.d4

Cxe4 4.Bd3 d5 5.Cxe5 Cd7 6.Cxd7!?, sempre gostei da citação de Bent Larsen para des-crever o sexto lance das Brancas: “Eu não faço esses lances”. Realmente, parece muito estranho saltar três vezes com o cavalo na abertura, a fim de trocá-lo por uma peça que recém se desenvolveu. Estas são as excentri-cidades da teoria de aberturas.3...d6 4.Cf3 Cxe4 5.d4 d5

Timman faz uma observação de virar a cabeça neste momento: “Por incrível que pareça, esta posição também poderia ter surgido com cores invertidas da Variante das Trocas da Francesa, ou seja, 1.e4 e6 2.d4 d5 3.exd5 exd5 4.Cf3 Cf6, e agora 5.Ce5 e, ainda que este salto do cavalo não pareça tão ruim, as Brancas teriam uma verdadeira batalha em suas mãos apenas para se igualarem.”6.Bd3 Be7 7.0-0 Cc6 8.c4 Cb4 9.Be2 Be6 10.Cc3 0-0 11.Be3

Na época, todos estes lances poderiam ser melhores descritos como teoria da linha principal. As Pretas têm continuações razoá-veis como 11...Bf5 e 11...Bf6, mas senti-me atraído por uma abordagem muito diferente.11...f5!? (Diagrama 137)

Esta era minha novidade. Este não é o tipo de lance debilitante que deva ser feito levianamente. A casa e5 agora é um bura-co permanente, mas eu estava atraído pela ideia de criar uma iniciativa na ala do rei a longo prazo.

DIAGRAMA 137. Jogam as Brancas

12.a3!Um pequeno lance importante para

esclarecer a situação no centro. Agora que o cavalo e4 está bem protegido, o peão c4 foi ameaçado de captura. A troca 12.cxd5?! Cxd5 13.Cxe4 fxe4 14.Ce5 Cxe3 15.fxe3 Txf1+

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248 Yasser Seirawan

16.Dxf1 Bg5 é útil às Pretas pois pode resolver a questão de o que o cavalo b4 está fazendo.

Uma posição altamente intrigante ocorre após 12.c5!? f4 13.Bc1 Cc6 14.Db3 Cg5 15.Td1 Dd7 16.Dxb7!? Cxf3+ 17.Bxf3 Tab8 18.Da6 Bf6 19.Ce2 g5 20.h3 Tb4! 21.a3 Txd4!. Eu queria jogar esta linha de sacrifício maluca contra alguém, mas nunca encon-trei uma vítima. Mais uma vez, foram esses tipos de iniciativas na ala do rei que torna-ram 11...f5 uma opção atraente. Posicional-mente, a linha é um pouco duvidosa para as Pretas, mas eu estava intrigado por seu potencial – como mostra esta nota, é muito fácil para as Brancas fazerem lances naturais e caírem em uma posição incômoda.12...Cxc3

Preciso evitar 12...Cc6? 13.Cxd5 Bxd5 14.cxd5 Dxd5 15.Tc1, quando não gosto nem um pouco da posição das Pretas.13.bxc3 Cc6 14.Da4!?

Uma justificativa tática importan-te para o jogo das Pretas ocorre depois da direta14.cxd5 Bxd5 15.c4 Bxf3 16.Bxf3 f4! 17.Bd5+ Rh8 18.Bc1 Cxd4 19.Tb1 Bc5! 20.Bb2?! Df6, linha que conferi três vezes em meus preparativos para me assegurar de que eu não tinha deixado de ver algo terrível.

O texto, por outro lado, mantém a ten-são central viva e força as Pretas a resolver a situação. Eu ainda estava confortável em mi-nha preparação e achava que tinha encon-trado uma solução equalizadora.14...f4 15.Bd2

O lance que eu esperava. Posterior-mente, um bom argumento foi feito para 15.Bc1, a ideia era manter livre a casa d2 para Cf3-d2-e4 e tornar o alinhamento Bc1-b2 e c3-c4 possível, quando o bispo de casas pre-tas está bem colocado na longa diagonal. Pessoalmente, sempre gostei de empur-rar as peças de meu adversário para trás. O quanto elas recuam é escolha dele.15...Rh8 16.Tab1 Tb8 17.Tfe1 dxc4

Talvez seja prematuro resolver a ten-são, já que 17...a6!? é uma opção interessan-te. Se as Brancas continuarem com 18.Bd3!?

dxc4 19.Bxc4 Bg4, teremos transposto para a partida em que o lance ...a7-a6 teria sido muito útil. Eu estava preocupado com 17...a6 18.c5!?, quando a meu bispo foi negado o uso da casa d6.18.Bxc4 Bg4 19.Be2 Bd6

Um lance natural que me trará mo-tivos para lamentação. Em uma partida posterior, M. Rohde-Y. Seirawan, disputada no Campeonato dos Estados Unidos em Estes Park em 1986, eu primeiro inseri 19...a6!?, como tentativa de aperfeiçoamento. Aquela partida continuou com 19...a6 20.h3 Bh5 21.Cg5 (para tirar vantagem de minha omissão de ...Be7-d6) 21...Bxe2! (não 21...Bxg5? 22.Bxh5 f3 23.Bxg5 Dxg5 24.Bxf3! Txf3 25.Dxc6!, um truque astuto que tira vanta-gem de minha primeira fileira) 22.Ce6 Dd5 23.Txe2 f3! 24.Tee1? (24.Tee3 é forçado) 24...fxg2 25.Cxf8 Txf8 26.Dd1 Df5 27.Rxg2 Dxf2+ 28.Rh1 Tf3, e prossegui para vencer.20.h3 Bh5 (Diagrama 138)

DIAGRAMA 138. Jogam as Brancas

Não é possível se preparar tanto nem por tanto tempo. Este é o ponto onde mi-nha preparação terminou, pois eu estava sa-tisfeito com a posição. Como resumir a luta da abertura? As Brancas têm bons peões centrais, bom desenvolvimento de peças e um rei seguro. Esta é a boa notícia. A má

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é que o bispo d2 não está muito satisfeito. Em minha imaginação, eu achava meu de-senvolvimento razoável e meu rei estava até um pouquinho mais seguro. Eu antevi ser capaz de completar meu desenvolvimento com ...Dd8-f6, podendo enfrentar o futuro com confiança. Tenho o potencial para uma tempestade de peões na ala do rei, e quem sabe que perigos podem me espreitar ali? Farei mais um comentário: ao enfrentar um “gigante”, é imprescindível que você vá pre-parado com uma ideia para a partida, pois se você tiver a sorte de pegá-lo em sua pre-paração, isso realmente dá uma sensação muito prazerosa.21.Tb5!

Este lance não me ocorreu antes da par-tida e tampouco no tabuleiro. Uma espécie de ponto cego, por assim dizer. Embora essa manobra seja comum em muitas linhas da Petrov, ela simplesmente não foi registrada como uma possibilidade. É realmente um lan-ce muito bom, pois ele coíbe minha deseja-da iniciativa na ala do rei e simultaneamente possibilita o salto Cf3-g5. É o que poderia ser descrito como um lance irritante que frustra minhas esperanças de criar uma iniciativa.21....Be8?

Uma reação exagerada à ameaça da captura do bispo h5. Eu vi fantasmas depois de 21...Bg6 22.Cg5!? Te8 23.Dc4 Df6 24.Bd3, quando temi que as Brancas teriam tempo de reposicionar bem seu cavalo f3 na casa e6 ou e4. Este simplesmente não é o caso, pois após 24...Txe1+ 25.Bxe1 a6! 26.Bxg6 axb5 27.Cf7+ Rg8, as Brancas deveriam dar xeque perpétuo com 28.Ch6+, pois sua dama está en prise. Fato que eu simplesmente não vi. Eu vi 28.Cxd6+?? capturando um bispo com xeque e pensei que eu estaria perdido. Sem dúvida, com 28...bxc4, capturando a dama das Brancas, a mesa vira.

Só para completar a linha acima, após 28.Ch6+ Rf8!? 29.Dg8+ Re7 30.Dxh7, as Bran-cas têm peão e bispo pela torre, com meu rei se arrastando em volta. Eu julgaria a posição como “equilibrada” mas, em um jogo prático,

é mais fácil jogar com as Brancas. Por exem-plo, 30...Tf8 (a fim de levar meu rei para a ala da dama) 31.f3 Rd7 32.Cg4 De6 33.Bf2 me deixa com um peão g7 para me preocupar. Por isso eu teria permitido um xeque perpé-tuo se eu tivesse percebido que a dama das Brancas foi atacada.

Em suas anotações na Informant 41, Anatoly disse que, após 21...Bg6 22.c4, as Brancas têm uma grande vantagem, e en-cerrou sua análise. Eu discordo. Parece-me que 21...Bg6 era meu melhor lance e que as Pretas têm um jogo fácil depois de 22.c4 a6! 23.Tb2 (a única casa, pois 23.Tb1 ou 23.Tb3 Bc2 perde uma qualidade e 23.Td5 Be4 ajuda as Pretas; com a torre em b2, o peão d4 fica cravado) 23...Df6 24.Bc3 (24.c5? Bxc5) 24...Be4 (24...Bh5!?) 25.Dd1 Tbe8! 26.Txb7 Bxf3 27.Bxf3 Txe1+ 28.Dxe1 Cxd4, quando a par-tida fica equilibrada pois as Brancas não po-dem preservar o par de bispos: 29.Rh1? Cxf3 ou 29.Dd1 Ce2+ e ...Df6xc3 e, finalmente, 29.Bd1 f3 30.g3?? Bxg3 é bom para as Pretas. Nesta nota também existe uma tentação de tomar o peão a3 pendurado, o que me res-tringi de fazer.22.Dc2! a6 23.Tf5!

Mais irritação. Anatoly está forçando uma sequência de trocas antes de eu sequer começar uma iniciativa. Ele intuiu correta-mente que a “atraente” torre b1 não era tão útil na posição quanto minha torre f8. Tro-cando-as, as Brancas reduzem os eventuais perigos em sua ala do rei.23...Txf5 24.Dxf5 Bg6 25.Dg4!

Isso está realmente ficando irritante. As Brancas mantêm sua dama zunindo na ala do rei, refreando minha iniciativa e também mantendo vivas as opções de um salto do cavalo à casa g5.

Anatoly rejeitou a atraente centrali-zação 25.Dd5 Bxa3! 26.Dxd8+ Txd8 27.Bxf4 Bb2!, com um final em que ambos os lados têm trunfos. Além disso, 25.De6 Df8, preten-dendo ganhar um tempo com ...Tb8-e8, co-locaria a dama branca em má posição.25...Df6 26.Bc4 Tf8

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250 Yasser Seirawan

Eu tinha minhas dúvidas sobre este lance aparentemente muito normal, o qual põe minha torre no jogo. Agora que as Bran-cas têm a coluna e – elas sempre terão um bom jogo baseado em uma invasão da tor-re – existe a possibilidade de Cf3-g5-e6, e o peão f4 avançado pode facilmente tornar-se uma desvantagem. Minha principal alterna-tiva era 26...Bf5, para cobrir a casa e6: 27.Dg5 b5!? 28.Bd5!? Ce7 29.Bb3 Cg6, convidando as Brancas a jogarem Dg5xf6, duplicando meus peões caso elas assim desejem. Nes-te caso, deixar minha torre na casa b8 pode no fim ser benéfico, pois o peão a3 poderia avançar e eu tenho a oportunidade de domi-nar a coluna b aberta.27.a4!

Um pequeno lance que simplesmente tira o peão de uma casa onde ele pode ser capturado. De uma maneira estranha, mi-nha posição ficou delicada e eu não tenho um plano definido para fortalecê-la. Caso eu tente reposicionar meu cavalo com 27...Ce7, enfraqueço o controle sobre a casa e5 e sim-plesmente convido 28.Ce5, com vantagem para as Brancas.27...Bc2

Embora pareça estranho ir à caça de peões, este é o meu estilo. Meu problema era que, se agora eu tentasse trocar as da-mas com 27...Bf5 28.Dg5 h6 29.Dxf6 Txf6 30.Te8+ Rh7 31.Ce5!, as Brancas teriam a ini-ciativa. A ideia do texto não é apenas tomar o peão a4 (ah, é sim!) mas também poder jogar ...h7-h6 e ...Bc2-f5, expulsando a dama g4 de seu poleiro.

Neste ponto, Timman faz o constran-gedor comentário de que o texto foi uma “excursão inútil” e que “uma defesa mais tei-mosa teria sido 27...h6 a qual, mais cedo ou mais tarde, teria sido inevitável...” Jan é, sem dúvida, um comentarista talentoso, mas neste caso teve um raríssimo ponto-cego momentâneo, pois 28.Te6! ganha uma peça imediatamente.

O texto era necessário para abrir cami-nho para a “inevitável” ...h7-h6 e espaço para o rei (Luft).28.Dh5

Embora não seja um lance ruim, eu estava mais preocupado com 28.Cg5! Bf5 29.Ce4! Bxg4 30.Cxf6 Bxh3 31.Cxh7 Rxh7 32.gxh3, quando as Brancas têm o par de bispos às custas de peões separados na ala do rei. Talvez o desfecho não seja tão ruim para as Pretas, mas eu não gostei.28...h6?!

Eu fiquei feliz ao fazer este lance para inibir Cf3-g5 e, embora não acreditasse em 28...g6 29.Dd5 Bxa4 30.Ce5 Cd8!?, tomando o peão, esta não era uma opção de todo ruim, pois muitas casas-chave ficam cobertas. As Pretas podem recolocar suas peças com ...Ba4--e8 ou ...Ba4-c6, e responder às ameaças das Brancas à medida que surgirem. A “excursão inútil” trouxe uma recompensa. Se você vai rastejar, pode fazê-lo com um peão a mais.

Em suas notas na Informant, Anatoly assinala a atraente conclusão 28...Bxa4 29.Cg5 h6 30.Cf7+ Rh7 31.Te6 como vitorio-sa para as Brancas.29.Te8!

Impressionante, ouso dizer sublime, compreensão. Mais uma vez, a torre e1 pare-ce melhor do que sua contrapartida f8, mas minha torre está defendendo algumas casas importantes, inclusive a casa g8. Trocando as torres, as Brancas eliminam um defensor--chave, e as casas ao redor de meu rei tor-nam-se mais vulneráveis.

Mais ou menos neste ponto comecei a entender que meu cavalo c6 não está real-mente fazendo nada e, na verdade, está en-curralado pelos peões centrais das Brancas. Comecei a procurar uma oportunidade de levá-lo ao jogo.29...Bf5

Um recuo meio acanhado. Desta vez 29...Bxa4? 30.Te6 Df5 31.Dxf5 Txf5 32.Ch4! afunda meu navio por causa de minha casa g6 fraca.

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Uma linha demonstra, de modo atraente, como a segunda troca de torre aju-da as Brancas: 29...Bg6 30.Txf8+ Bxf8 31.Dd5!, ameaçando xeque-mate com 32.Dg830.Bd5! Bd7 31.Txf8+ Dxf8 32.Ch4 Be8 33.De2! (Diagrama 139)

Corretamente evitando 33.Cg6+? Bxg6 34.Dxg6 Ce7 35.De4 Cxd5 36.Dxd5, que me daria a oportunidade de trocar dois pares de peças menores e conseguir a igualdade.

DIAGRAMA 139. Jogam as Pretas

Neste momento, a pressão do tempo começa a apertar e entreguei o bispo errado.33...Cd8?

Erro muito sério, induzido pela pressão de tempo, o qual permite que as Brancas au-mentem sua vantagem significativamente. O melhor lance era 33...g5! (lembra daquela tempestade de peões na ala do rei?) 34.Cf5 Bg6 35.Cxd6 Dxd6 36.Bf3 Rg7, embora as Brancas definitivamente ocupem o lado en-solarado da tortura. A ideia de o bispo das casas pretas ser transferido para a longa dia-gonal me fez estremecer. Mesmo assim, era aí que estavam minhas melhores esperanças de salvação.34.De4!

Este poderoso lance centralizador dá às Brancas o domínio sobre as casas brancas e uma posição estrategicamente vitoriosa.34...De7 35.Cg6+ Bxg6 36.Dxg6 c6 37.Bb3 b5 38.Rf1 Df8 39.Bc2 Rg8 40.Bb3+ Rh8

Tendo cumprido com êxito o controle de tempo, eu agora podia reavaliar o dano. Não foi bonito. A dama g6 das Brancas é oni-potente. Na verdade, eu não via nenhuma chance de jogo.41.h4?!

Embora seja desejável ter um peão em h5, garantindo que quaisquer trocas de dama na casa g6 sejam terríveis para as Pretas, era muito mais forte estalar o chicote jogando 41.c4! imediatamente. As Brancas ameaçariam c4-c5, com um garrote estra-tégico. Se 41...bxc4 42.Bxc4 e o peão a6 está perdido. Então 42...bxa4 43.Bxa4 c5 44.Bc2 Rg8 45.Dh7+ Rf7 46.dxc5 Bxc5 47.Bxf4 ga-nha um peão e também mantém a iniciativa. Como estão permitindo que eu siga lutando, a partida continua.41...Cb7 42.c4 Dg8

Os lances das Pretas estão se esgotan-do.43.Dd3?

Perdendo seu domínio sobre a posi-ção. Com o natural e consequente 43.d5!, as Brancas realizariam seu sonho de pôr seu bispo das casas pretas na diagonal lon-ga e em breve a partida teria se acabado. Por exemplo, 43...cxd5 44.cxb5 axb5 45.Bc3 Dh7 46.De8+ Dg8 47.Dxg8+ Rxg8 48.Bxd5+, quando eu posso parar de amolar. Agora a luta ganha um novo ímpeto.

O comentário de Timman sobre o tex-to é elucidativo: “As Brancas permitem ser intimidadas. Imediatamente após o adia-mento, Karpov indicou que não tinha per-cebido uma vitória magnífica aqui. 43.Bc2!! teria sido o fim, a despeito do fato de que as Pretas podem capturar em c4 com xeque. A questão é que, após 43...Dxc4+ 44.Bd3 Dg8 45.Bc3, as Pretas não têm defesa contra a ameaça de 46.d5, seguida de 47.Dxh6+ e

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xeque-mate. 45...b4 46.Bb2 não seria mais do que uma protelação da execução.

“Esta é uma boa ilustração da força dos chamados bispos Horwitz. Se Karpov não tivesse descoberto isso um pouco tarde de-mais, esta partida teria sido uma verdadei-ra obra-prima de precisão e sutil manobra. A vantagem da hesitação de Karpov é que a partida agora é prolongada para um final instrutivo.”

Concordo inteiramente com o parágra-fo final. Antes do texto, Anatoly tinha jogado maravilhosamente a partir de uma posição que eu tinha preparado. Exatamente como em nossa partida em Tilburg que ele tinha vencido. Meu único consolo, então, foi que eu fui capaz de resistir e obriguei Anatoly a fazer um grande esforço para vencer...43...Dh7 44.Re2 g5 45.c5 Bc7 46.axb5

Em seus comentários na Informant, Anatoly chamou este lance de duvidoso. Embora seja verdade que manter um par de peões a mais no tabuleiro geralmente favo-rece o enxadrista com a iniciativa/vantagem, no sentido de que ele tem mais opções, isto me parece um caso de detalhismo pedante. O texto é perfeitamente satisfatório e leva a uma posição vitoriosa.46...axb5 47.h5 Ba5 (Diagrama 140)

DIAGRAMA 140. Jogam as Brancas

Ainda estou lutando em uma situação quase desesperadora. Mais uma vez, Ana-toly tem a oportunidade de levar a vitória para casa jogando 48.Dxh7+ Rxh7 49.d5!, com um avanço decisivo. Eu tinha em men-te algo que pensava ser uma armadilha ar-dilosa – 49...Bc7, esperando induzir 50.d6 Ba5!, quando as Pretas, de modo chocante e totalmente imerecido, têm reais chances de sobreviver. O problema é que, com 50.dxc6! Cxc5 51.Bd5, as Pretas serão incapazes de criar uma fortaleza, e, com o tempo, o rei das Brancas vai estraçalhar.48.Bc1?

Um erro que me permite continuar re-sistindo.48...De7+ 49.Rd1

Um recuo constrangedor de sua auto-ria. Anatoly tinha pretendido jogar 49.Rf3, considerando seu rei “intocável”. Ele agora viu que 49...g4+ 50.Rxg4 Dg5+ 51.Rf3 Dxh5+ era uma variante muito “sentimental” que ele certamente preferiria evitar.49...De1+ 50.Rc2 Dxf2+ 51.Rb1

Bem, tomar um peão com xeque foi uma surpresa agradável, mas agora estou diante de um sério problema. Com Qd3-g6 ou d4-d5 e Bc1-b2+, as Brancas têm um ataque de xeque-mate pronto. Com profundo pesar, sou obrigado a trocar as damas e a dobrar meus peões na ala do rei. Temi que o final resultante levaria a uma derrota por Zugzwang, mas era a única forma de continuar a luta.51...Dg3 52.Dxg3

Jogando para o final que eu mais te-mia, e uma decisão muito humana. Meu programa prefere 52.Dd1!, informando que as Brancas têm um ataque de mate após 52...Dxg2 53.d5! De4+ 54.Bc2, quando o rei das Pretas fica indefeso contra os ferozes bispos e peões passados.

Outro final atraente teria sido 52.Dd1 Bd8 53.Bb2 Bf6 54.d5! Bxb2 55.dxc6, vencendo.52...fxg3 53.Rc2?

Anatoly continua dificultando sua tare-fa, permitindo-me a continuar a luta. O me-

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lhor lance era 53.Bb2!, colocando-me em um dilema. Se eu jogar 53...Rh7, meu rei ficará isolado do jogo na ala do rei, e o rei das Bran-cas irá correr para o centro e a partida está acabada. Portanto, 53...Rg7 seria mais ou menos obrigatório, e agora a diferença com-parada com a partida está clara: 54.d5+ Rf8 55.dxc6 Cd8 (diferentemente da partida, não posso capturar o peão c5: 55...Cxc5 56.Ba3! b4 57.Bxb4 Bxb4 58.c7, e o peão da coluna c é promovido) 56.Bd5, com um peão a mais e domínio do tabuleiro.

Em suas notas para a Informant, Anatoly deixa este lance passar sem comentar e limita--se a assinalar que, depois do texto, as Brancas estão um pouco melhores. É verdade mas, de-pois de 53.Bb2!, eu avaliaria a posição como vitoriosa.53...Rg7 54.d5 Cxc5 55.Bb2+ Rf8

A sensação era a de estar atravessando um campo minado neste final complicado, evitando totalmente alguns dos explosivos, enquanto aqueles nos quais eu pisava não explodiam, dando-me um alívio temporário. Mais uma vez meu tempo estava quase esgo-tado. (Um lembrete: o controle de tempo era de 40 lances em duas horas, seguido por 20 lances em uma hora, sendo portanto o lance 60 e não o 56 que é o controle de tempo.)56.dxc6 Ca6! (Diagrama 141)

DIAGRAMA 141. Jogam as Brancas

Graças a seus escorregões, Anatoly deu-me uma chance real de salvar a par-tida. O final é bem interessante graças à possibilidade de uma fortaleza com um bispo d6, um cavalo c7 e um peão b5 para manter o rei das Brancas sob controle. O problema é que o peão h6 precisa de cons-tante atenção, e o meu rei ou bispo ficará ancorado a ele.57.Ba3+! Re8!

É imprescindível que o peão b5 perma-neça onde está, pois ele ajuda a controlar as aproximações do rei das Brancas. 57...Bb4?? seria um erro terrível, o qual, após 58.c7!, faria-me perder a partida imediatamente.58.Be6! Bb4!

Agora este lance é viável pois 59.c7? Cxc7 ataca o bispo e6.59.Bb2 Bf8?

Não é o frequente erro grave do último lance antes do controle de tempo, e sim o erro grave do penúltimo lance antes do con-trole de tempo. Embora o desejo de prote-ger o peão h6 seja claro, este não é o meu maior problema. O peão c6 é a pedra no meu sapato. Posteriormente, eu tive certeza de que 59...Be7 empataria a partida graças a 60.Bd7+ Rd8 61.Bg7 Cb8! 62.Bxh6(?) Cxd7 63.cxd7 Rxd7 64.Bg7 Re6 65.h6 Rf7, quando o rei das Pretas chega a tempo de deter o peão da coluna h.

Entretanto, como demonstra Timman, 62.c7+! Rxc7 63.Bxb5 levaria à captura do peão h6, quando as Brancas teriam excelen-tes chances práticas. Ele assim corretamen-te refuta minha afirmativa de que 59...Be7 teria empatado.

Entretanto, iniciarei uma nova argu-mentação de que era possível salvar a po-sição. Minha oportunidade ignorada ficou escondida em um recurso muito bacana: o encurralamento do bispo das Brancas de-pois que ele captura o peão h6. Esta ideia é melhor ilustrada com 59...Bd6! 60.Bg7 Cb4+ 61.Rd1 Re7!! 62.Bd7 Cd5 63.Bxh6 Rf6! (Dia-grama 142), levando-nos a nosso diagrama de análise.

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DIAGRAMA DE ANÁLISE 142. Jogam as Brancas

Este é o recurso de salvamento que eu não vi. Com o bispo h6 fora de jogo, as Brancas têm que lidar com dois problemas: o peão b5 e a vulnerabilidade do peão g2. A posição é extremamente complexa, com armadilhas desafiadoras espreitando todos os lances. Por exemplo, a partir do diagrama de análise, as Brancas podem ser seduzidas a reposicionar seu bispo d7 na casa g6 com 64.Be8?, mas esta é uma má ideia pois 64...Ce3+ 65.Rd2 Cf5! 66.Bf8 Bxf8 67.c7 Cd6 é sem dúvida um ótimo jogo com o cavalo.

Parece-me que a posição no diagra-ma de análise está empatada. Se o rei das Brancas for lidar com o peão b5 com 64.Rc1, então, após 64...Ce3 65.Bh3 (65.Bf8 Bf4 e o peão-g2 cai com xeque) 65...g4 66.Bxe3 gxh3 67.gxh3 g2 (Diagrama 143), chega-mos a um final muito incomum digno de outro diagrama.

Em virtude da ameaça das Pretas de ...Bd6-f4, as Brancas não terão tempo de avançar seus peões 68.Rd1 Bf4! 69.Bg1?! (69.Bd4+ Be5 70.Be3 Bf4 é uma repetição) 69...Re6 70.Re2 b4!, e as Pretas têm a van-tagem.

DIAGRAMA DE ANÁLISE 143. Jogam as Brancas

Um novo universo de possibilidades ocorre após 64.Rd2 b4 65.Rc2 Ce3+ 66.Rb3 Cxg2 67.Bf8! (uma fuga temática do bispo h6) 67...Bc7 68.h6 Cf4. As Brancas podem concordar com um empate com 69.h7 Cg6 70.Bh3 Rf7 71.Bh6 Ch8 72.Bxg5 Rg6 ou per-mitir que ambos os lados promovam para damas com 69.Be8 g2! 70.h7 g1=D 71.h8=D+ (Diagrama 144), levando-nos à posição em nosso último diagrama de análise.

As Brancas não podem vencer nesta posição, pois após 71...Rf5 72.Dh7+ Rg4, o bispo está envenenado (73.Dxc7? Dd1+ e as Brancas verão seu rei e dama garfados.)

Retrocedendo por um instante, de-vemos observar que a variante iniciada com 59...Bd6! levanta várias questões. Por que as Brancas não jogaram 60.Bd7+, pro-tegendo o peão c6? Neste caso, 60...Rf7! protege a casa g7 e prepara a jornada do cavalo ...Ca6-b4(c7)-d5-f4, indo atrás do peão g2 com contra-ataque. Então, depois de 60.Bg7 Cb4+ 61.Rd1, por que não tomar o peão c6 imediatamente? Mas 61...Cxc6? 62.Bxh6 Be7 63.Bg7 Bf8 64.Bf6 Be7 65.Bb2 Bf8 66.Rg2 dá às Brancas uma vantagem que é melhor evitar.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 255

DIAGRAMA DE ANÁLISE 144. Jogam as Pretas

O texto é meu último erro, não porque agora eu jogo perfeitamente, mas porque não recebo outra chance de salvar a partida.60.Bd7+ Rd8

Embora tenhamos cumprido o controle de tempo com êxito, os dois próximos lances também foram feitos com certa rapidez.61.Be5 Cb4+ 62.Rd2 (Diagrama 145)

DIAGRAMA 145. Jogam as Pretas

Aqui a partida foi adiada, e selei meu lance. Seriam dois dias até a retomada da

partida, e perdi algumas noites de sono ten-tando salvar a posição. O adiamento tam-bém atraiu muita atenção de outros compe-tidores e houve muitas opiniões vigorosas.62...Cd5

Meu lance selado foi o melhor, mas não era suficientemente bom para salvar a partida.63.Be6 Cc7

O prelúdio para uma linha que leva a uma capitulação imediata, a qual foi mui-to irritante, considerando-se o tempo que eu tinha para analisar a posição. Eu abso-lutamente não vi o 66o lance das Brancas e minha análise de adiamento tornou-se um lixo completo em um instante. Possivel-mente, a pior análise de adiamento que já fiz foi para esta partida. (Ao menos espero que este seja o caso!)

Tendo perdido o fio da posição, pas-sarei as rédeas para as notas de Timman ao citar Karpov: “Karpov recusou este lance du-rante o post mortem. Pouco antes da retoma-da da partida, ele tinha encontrado um pla-no defensivo que se iniciava com 63...Bb4+, para o qual ele não tinha conseguido encon-trar uma refutação imediata.

“Agora o rei das Brancas têm que ser cuidadoso em sua escolha de casas, pois tan-to 64.Rd3 quanto 64.Re2 são respondidos com 64...Cf4+, ao passo que 64.Rd1 é efetiva-mente refutado por 64...Bc3!. A única respos-ta correta é 64.Rc2, após a qual Karpov tinha considerado 64...Cc7 65.Bf7 Ca6 66.Bg7 Re7 67.Bg6 Ba5. Parece estranho colocar as pe-ças menores de volta nas mesmas posições de oito lances atrás, mas ele garantiu a todos que esta era a única chance das Pretas e que ele planejara continuar com 68.Rd1.”

De fato, eu também não compreendo 67...Ba5?. Com certeza, as Pretas deveriam tentar 67...Bd6!, como uma chance melhor de salvar a partida. Timman continua:

“Ele não tinha aprofundado mais a análise, pois presumiu que era improvável

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256 Yasser Seirawan

que Seirawan considerasse dois lances tão paradoxais e descentralizadores consecuti-vamente.

“Posteriormente, revelou-se que o americano também não tinha ficado muito impressionado com a posição, consideran-do-a como perdida em todas as variantes. Sua prolongada busca por opções de sal-vamento tinha sido em vão. Pessoalmente, eu também não vejo como as Pretas podem se salvar, por exemplo, 68...Cb4 69.Be4 Ca2 70.Bf5 Cb4 71.Bd7, seguida de 72.Bxh6, e as Pretas estão condenadas”.

Só posso acrescentar que de forma alguma em minha análise eu estava tentan-do defender a posição retornando minhas peças para a coluna a. Essas ideias simples-mente não me ocorreram.64.Bf7 Ce8?

Isso é realmente ruim. Como já men-cionei, eu simplesmente não vi o 66o lan-ce das Brancas. Minha melhor chance era 64...b4! (por alguma razão, eu achava que o peão b5 deveria permanecer imóvel para bloquear a aproximação do rei das Brancas) 65.Rd3 Cb5 66.Bd5 Bd6, esperando obter uma linha como 67.Bg7 Re7 68.Bxh6? Rf6, encurralando o bispo das Brancas. Embora eu ache que as Brancas devam vencer este final, as Pretas estão lutando. O texto deveria levar ao abandono imediato da partida.65.Bxe8!

Trocar peças para alcançar um final com bispos da mesma cor vence instantaneamen-te porque eu não tinha visto uma coisa...65...Rxe8 66.Bf6!

Ei-la. Nas palavras de Victor Korchnoi, “tão simples”. Realmente. As Pretas não têm chances de jogar ...Re8-e7-e6 para manter o rei das Brancas contido. O resto da partida é inútil, e eu continuei jogando por inércia. Como eu temia no início deste final, eu seria obrigado a cair em Zugzwang.66...g4 67.Rc3 Bd6 68.Bg7 Bf4 69.Rb4 Rd8 70.Rxb5 Rc7 71.Rc5 Be3+ 72.Rd5 Bf4 73.Bf8!

Este é o Zugzwang. As Pretas devem desistir.73...Rb6 74.Bd6 Bg5 75.Bxg3 1-0

Perder é sempre duro, mas a sensação foi de ter perdido quatro vezes em uma par-tida. Primeiro, porque eu tinha a posição que tinha preparado no tabuleiro e perdi em mi-nha variante preparada. Nada bom! Segundo, porque depois de 40 lances, fui superado com maestria e deveria ter perdido logo depois, mas tive permissão para continuar lutando. Terceiro, porque eu tinha um empate que ignorei por problema de tempo. Finalmente, apesar de quase dois dias inteiros de análise no adiamento, malbaratei meus esforços. São muitas derrotas em uma única partida. Para Anatoly, foi uma vitória na qual venceu duas vezes, e ele provavelmente não ficou muito satisfeito com seus diversos escorregões. Mas conseguiu a vitória e o ponto inteiro.

Embora eu não estivesse orgulhoso de minha análise de adiamento, uma palavra como “enojado” seria apropriada. Em mo-mentos assim, sempre me recordo de um comentário feito a mim por James Tarjan na época em que treinávamos juntos em 1979. Eu espero que você, leitor, leve o comentário dele em seu coração.

O incidente no qual estou pensando foi o seguinte: em algum ponto de nossa preparação para o Interzonal de Riga de 1979, Jim teve a ideia de preparar-se para Lev Polugaevsky e queria explorar o labi-rinto da Variante Polugaevsky da Siciliana Najdorf. A esperança era encontrar uma nova ideia, pegá-lo aí e levar um ponto in-teiro. Grande ideia. Um dia de análise eston-teante seguido de outro e mais outro. Os dias viraram uma semana e uma segunda semana. E, finalmente, tínhamos encontra-do algo e estávamos felicíssimos.

“Certo, vamos conferir como chegamos aqui!” Ao reconstruirmos toda a variante, des-cobrimos, para nossa tristeza, que simples-mente tínhamos roubado um tempo no meio

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 257

do caminho. Em algum ponto no meio da semana, tínhamos montado nossa tabiya* de análise de maneira errada. Meu Deus. Fiquei particularmente desapontado e Jim tentou me animar dizendo: “Yasser, não se preocupe. Todo trabalho é bom trabalho. Mesmo que esteja errado, ele vai nos ajudar a aprender o certo. Todo trabalho é bom”. Durante o curso de minha carreira, constatei que este notável insight é profundamente verdadeiro. Todo tra-balho é bom trabalho. É claro que precisamos aprender com nossos erros. É a única forma, tentativa e erro. Podemos apressar o proces-so de aprendizado aprendendo com os erros dos outros, mas no fim temos que estar prepa-rados para trabalhar a nós mesmos e admitir que erros são inevitáveis. Trabalhando com afinco encontramos nosso caminho.

Minha próxima partida clássica em torneios com Karpov foi na Copa do Mun-do da GMA organizada pela mesma equipe da SWIFT dois anos depois. Embora muitas vezes tenhamos nos visto nos encontros da diretoria da GMA e assemelhados, sentíamos saudades um do outro no tabuleiro. No final da década de 1980, gostei muito de jogar em um evento aberto em Lugano, Suíça, e tentei torná-lo uma data fixa em meu calendário de competições. Em um destes Abertos de Lugano, houve um torneio de Blitz, e Anatoly veio jogar (somente no torneio de Blitz). Nos encontramos na última rodada; ele estava de Brancas e liderava por um ponto. Com uma vitória eu poderia alcançá-lo. Anatoly jogou 1.e4, eu escolhi uma Francesa, 1...e6 2.d4 d5, Anatoly fez uma pausa de alguns segundos e jogou 3.exd5, a Francesa das Trocas. Eu co-mentei com ele em voz alta: “Cachorro!” e am-bos demos uma boa risada. (No meu tempo!)

De um modo que não posso explicar plenamente, a Francesa das Trocas é uma abertura estranha de jogar quando as Bran-cas querem forçar um empate. A partida entre

Mikhail Gurevich e Nigel Short no Interzonal de Manila viu as Pretas vencerem e deixou um legado abrasador sobre esses dois bons joga-dores. No caso de Nigel, ele continuou para tornar-se o Desafiante. Além disso, o match Capablanca-Alekhine viu as Pretas vencerem em um match pelo Campeonato Mundial (com 1.e4 e6 2.d4 d5 3.Nc3 Bb4 4.exd5 exd5). Não tenho nem certeza se as Brancas têm um placar de 50% na Francesa das Trocas. (Prova-velmente sim.) Recordo-me apenas de algu-mas vitórias-chave das Pretas que deixaram uma impressão duradoura. Bem, com certeza Anatoly também pegou o pior das coisas e, apesar de eu pressionar, não consegui vencer, e Anatoly foi o vitorioso no evento de Blitz.

Eu estava com as Brancas em nosso segundo encontro em Bruxelas e, após algu-mas derrotas muito duras com as Pretas, por Deus, eu estava contente de estar jogando com as Brancas. O melhor de tudo: eu tinha uma ideia contra uma das armadilhas de es-timação de Anatoly. Vamos vê-lo se defen-der dessa. Os comentários para esta partida também incluem minhas próprias anota-ções para a Informant 45.

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovBruxelas, 1988

Gambito da Dama Recusado

1.Cf3 Cf6 2.c4 e6 3.Cc3 d5 4.d4 Be7 5.Bg5 h6 6.Bh4 0-0 7.e3 b6 8.Be2 Bb7 9.Bxf6 Bxf6 10.cxd5 exd5 11.b4 c5 12.bxc5 bxc5 13.Tb1 Da5 (Diagrama 146)

Esta linha de defesa era uma espécie de tabiya para Anatoly naquela época. Ele era in-crivelmente teimoso em relação a certas opi-niões. Uma era a de que as Brancas são me-lhores e que as Pretas devem tentar se igualar e empatar. Isso significava que as Pretas deve-

* N. do R.T.: Tabiya é uma posição na abertura que ocorre depois de uma sequência de lances, bastante conhecida, a partir da qual os jogadores têm novamente muitas possibilidades.

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258 Yasser Seirawan

riam jogar defesas (clássicas) que só propor-cionassem uma posição ligeiramente melhor para as Brancas. Por sua vez, isso significava que, com uma defesa correta, um empate era o resultado provável. Consequentemente, a partir da posição no diagrama, a visão de Anatoly era de que as Brancas têm apenas uma pequena vantagem e as Pretas têm um empate com um jogo correto. Eu discordo.

DIAGRAMA 146. Jogam as Brancas

14.0-0!Uma novidade forte que eu tinha pre-

parado especialmente para este encontro. Anteriormente, 14.Dd2 tinha sido jogado e as Pretas se saíam bem.14...cxd4 15.Cxd4 Cc6! 16.Cdb5!

Este é o ponto real por trás de minha novidade. As Brancas terão boa pressão con-tra o peão da dama isolado.16...Ce7

Evitando o final com peças maiores: 16...Bxc3 17.Cxc3 Dxc3 18.Txb7 d4 19.Tb3 Da5 20.Bf3 Tac8 21.Bxc6 Txc6 22.Dxd4, quan-do as Brancas têm uma vantagem.17.Da4! Dxa4 18.Cxa4

O fim de minha preparação e um meio--jogo tardio/final precoce apareceu. Con-siderei a posição como muito boa para as Brancas, pois o bispo b7 e o cavalo e7 das

Pretas são passivos e o peão d5 poderia ser atacado. Não vi nenhuma rota fácil para a igualdade para as Pretas.18...Bc6 19.Cc5 Tfc8 20.Tfc1 Bxb5!

Trocando o bispo certo no momento certo.21.Bxb5 Tc7

Ao comentar esta partida para a In-formant 45, dei ao lance do texto um ponto de exclamação. Contudo, posteriormente, Anatoly aperfeiçoou seu jogo com 21...d4! 22.Cd7 dxe3 23.Cxf6+ gxf6 24.fxe3 Tab8 25.Ba4 Rg7 26.Txb8 Txc1+ 27.Rf2 Tc7, quan-do um empate foi acordado (J.Timman-A.Karpov, Amsterdã, 1988.)

Como se vê, nosso encontro absoluta-mente não dissuadiu Anatoly de sua tabiya. Por outro lado, essa teimosia é um traço ca-racterístico de todos os grandes enxadristas. Eles simplesmente acreditam em si mesmos e em suas ideias. Eles têm que acreditar. Por outro lado, uma certa inflexibilidade come-ça a se insinuar em seu jogo e, por não se adaptarem às mudanças de ritmo, sua força começa a se perder. O xadrez está em cons-tante evolução, e acompanhá-lo exige uma constante reavaliação, trabalho árduo e de-dicação. Às vezes a abertura e as linhas de defesa amistosas que serviam tão bem pre-cisam de poda.22.Cd7 Bc3 23.Tb3 Ba5 24.Txc7 Bxc7 25.g3?!

Critiquei corretamente este lance em meus comentários para a Informant, suge-rindo 25.Rf1 em seu lugar, para aproximar meu rei do centro.25...Tc8?

Um lapso que trará profundos proble-mas para as Pretas. Como mencionado em minhas notas na Informant, 25...Bd6! era o lance correto, visando a ...f7-f6 e ...Rg8-f7-e6, levando o rei ao centro, quando as Pretas de-vem aguentar.26.Ba6! Ta8

Anatoly precisa fazer o caminho de volta. Depois de 26...Td8? 27.Tb7! Txd7

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28.Bb5, as Brancas recuperam sua peça com um final vitorioso. Por exemplo, 28...Td6 29.Txc7 a6 30.Bd3 Rf8 31.Ta7, e o peão da coluna a está perdido.27.Tb7 Bd6 28.Bb5

Uma escolha muito difícil. Detestei dar às Pretas uma oportunidade de mover seu peão em a, pois é bom manter a torre comprometida com a defesa. Por outro lado, o bispo não é o bloqueador correto. Preciso exercer pressão no peão d5 e assim repo-sicionar meu bispo. Na verdade, o mesmo também pode ser dito sobre meu cavalo d7. No momento, ele era necessário para cobrir a casa b8, mas ele também precisa de um lu-gar melhor. Uma alternativa forte era 28.Ce5, quando a posição das Pretas é difícil.28...a5! 29.Ba4! g6? (Diagrama 147)

DIAGRAMA 147. Jogam as Brancas

Um erro grave que deixou de ser apon-tado. Eu estivera analisando o recuo Cd7-e5 por muito tempo e tinha esperado ...f7-f6 mais cedo. O texto nunca me passou pela cabeça e eu compartilhei o mesmo ponto--cego com Anatoly.30.Bb3?

Perdendo um ataque muito poderoso. 30.Cf6+! Rg7? 31.Ce8+! e as Brancas estão vencendo. As Pretas seriam forçadas a jogar

30....Rf8 31.Td7 Bb4 32.Cxd5 Cxd5 33.Txd5 Ta7, com um final de bispos de cores opostas com um peão e3 a mais para as Brancas. Em minha opinião, estes finais são vitoriosos no jogo prático pois a defesa é uma tarefa brutal.

Em sua coluna na Chess Life de novem-bro de 2007 (páginas 56 e 57), Pal Benko es-creveu uma análise brilhante sobre estes fi-nais de torre e bispos de cores opostas, e eu recomendo sua leitura aos leitores. Pal citou Carlsen-Xiangzhi, Cap d’Agde, 2008; Keres--Pirc, Munique, 1936; e Ragozin-Bondarevsky, Leningrado, 1939. Minha estimativa aproxi-mada é que o lado com um peão a mais deve vencer em 75% dessas posições. Mais uma que fugiu...30...Rg7

Certamente não 30...a4? 31.Cb6, vencendo.31.a4 Bb4! 32.Ce5?!

Depois disso, a crise para as Pretas pas-sou. Lamento não ter escolhido 32.Tb5! Td8 33.Ce5 Bc3 34.Cd3 (34.Tb7!?) 34...d4 35.e4, quando, apesar dos bispos de cores opostas, as Brancas têm uma vantagem agradável.32...Tc8!

A diferença-chave entre a continuação da partida e a nota acima. As Pretas têm uma torre ativa.33.Tb5 Tc1+ 34.Rg2 Bc3 35.Tb7 Bb4 36.Tb5 Bc3 37.Tb7

Fui um pouco duro em minha auto crí-tica, pois agora não continuei a partida com 37.Cd3 Tb1 38.Tb7, quando as Brancas ficam melhores.37...Bb4 38.Tb5 Bc3 ½-½

Infelizmente, a planilha de nossa pró-xima partida se perdeu no tempo. Mazatlán, México, sediou um novo evento, o Campeo-nato Mundial de Xadrez Rápido da FIDE. Hou-ve um Aberto preliminar em que os melho-res colocados qualificavam-se para matches eliminatórios. Eu não consegui me qualificar nas preliminares devido a um estranho revés. Numa partida crucial com Anatoly, eu estava

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de Pretas e uma partida tensa acabou em um final Blitz furioso. Nossas duas setas estavam na horizontal, eu dei meu lance, apertei o relógio e declarei: “Seta!”, apontando para a seta caída de Anatoly e indo parar o relógio. Anatoly respondeu quase instantaneamen-te, batendo o relógio antes que eu pudesse parar os botões e minha seta caiu também. Como ambas as setas estavam caídas, o árbi-tro declarou empate. Como foi revelado, a te-levisão mexicana estava filmando os minutos finais, e ficou claro que a seta de Anatoly caiu primeiro, mas as regras diziam que, quando você reivindicava uma vitória por tempo, sua própria seta tinha que estar para cima. Uma boa regra. O justo é justo. Anatoly prosseguiu para vencer o torneio e se tornar o primeiro Campeão Mundial de Xadrez Rápido da FIDE.

Após sua vitória no Campeonato Mun-dial de Xadrez Rápido da FIDE em dezembro, Anatoly e sua esposa Natalie vieram a Seattle em uma visita de vistoria. Ele enfrentaria o islandês Johann Hjartarson em um Match de Candidatos de 28 de janeiro a 6 de fevereiro de 1989. O match fazia parte das atividades culturais do Seattle Goodwill Games. O Presi-dente do comitê de organização era um ami-go, Bob Walsh. Bob pediu-me que eu acom-panhasse Anatoly e Natalie durante sua visita, tarefa que aceitei avidamente. Passeamos pela cidade, fizemos compras e jogamos Blitz. Minha recordação é de que Anatoly saiu-se muito bem, com clara maioria de pontos. (O convidado do Inferno.)

Em algum ponto durante a estadia, visitei Bob em seu escritório e ele me per-guntou como estavam indo as coisas com o casal Karpov, eu lhes disse que estava des-frutando imensamente de sua estadia. Ele me jogou alguns ingressos e disse: “Hoje à noite há uma apresentação do Circo de Mos-cou. Por que você não leva os Karpov? Antes da apresentação vai haver uma reunião VIP no local, leve-os lá também.” Eu protestei, ex-plicando que os Karpov moravam em Mos-cou, que eles provavelmente viam o Circo

de Moscou o tempo todo e que ficariam en-tediados. “Neste caso, dê os ingressos para seus familiares ou amigos.”

Quando me encontrei com os Karpov naquele dia, perguntei se eles gostariam de assistir ao Circo de Moscou. “Com certe-za!”, disse Anatoly, “Nós sempre quisemos ir mas por algum motivo nunca encontramos tempo. Seria ótimo”. Expliquei-lhes sobre a reunião VIP e Anatoly também estava entu-siasmado: “Vamos!” Telefonei para Bob para dizer-lhe que nós íamos.

A recepção VIP foi agradável. Boa co-mida e bebida, alguns discursos e trivialida-des, e então Bob me puxou para um canto. “Yasser, este é o programa hoje à noite. Fa-rei um discurso de apresentação, tocaremos o hino soviético, depois o hino americano, outro discurso breve e eu quero apresentar Anatoly para o público, explicando que te-mos um convidado especial na cidade. O que você acha?”

Fui tomado de horror. Expliquei meus receios imediatamente. “Bob, a maioria do público não tem conhecimento de xadrez, eles não conhecem o nome de Anatoly. Se a recepção for de silêncio, ele se sentirá ofen-dido. Por que arriscar? Melhor não. Vamos deixar que tenham uma noite agradável e ninguém vai saber.”

“Não”, disse Bob. “Você está errado. Diga a Anatoly que vou apresentá-lo. As lu-zes vão se apagar e um foco de luz brilhará sobre ele. Tudo que ele tem que fazer é le-vantar-se de sua cadeira, acenar para o pú-blico e voltar a sentar-se.”

Eu disse a Anatoly quais eram os planos. Ele disse: “Ótimo”, sem a menor preocupação, enquanto eu temia pelo que iria acontecer.

Em breve a apresentação iria começar, e fomos para a arena e tomamos nossos as-sentos. Bob havia nos colocado os três di-retamente sobre a pista. Bem em cima de nossas cabeças estavam as redes para os acrobatas. Eram realmente as cadeiras da frente. Como planejado, Bob deu as boas-

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 261

-vindas, o hino soviético foi tocado e o pú-blico de Seattle aplaudiu com educação e vi-gor. Depois veio o hino dos Estados Unidos, seguido de aplausos mais fortes.

Bob dirigiu a palavra ao público outra vez. “E, nesta noite, caros amigos, temos o ex-traordinário privilégio de ter um convidado muito especial. Seu nome é Anatoly Karpov, e ele é considerado o maior enxadrista do mundo! Por favor, vamos dar-lhe calorosas boas-vindas!” A arena ficou completamente escura e um raio de luz branca incidiu direta-mente sobre Anatoly, cortando minha perna pela metade. Anatoly levantou-se, e eu pren-di a respiração. Os aplausos foram estontean-tes, facilmente duplicando os do hino ameri-cano. Os cidadãos de Seattle bateram os pés. Lembranças de Riga me vieram à cabeça. Os aplausos duraram por um tempo considerá-vel, até que Bob os interrompeu para avisar que a apresentação tinha que começar.

Anatoly sentou-se e estava radiante de satisfação. Seu rosto tinha uma expressão de surpresa. “Meu Deus! Eu não sabia que o xa-drez era tão popular em Seattle!”

“Mas claro!”, respondi. “Você está na minha cidade agora!” Às vezes é preciso ir no embalo.

A noite foi absolutamente encanta-dora. Eu recomendo muito se você tiver a oportunidade de assistir ao Circo de Mos-cou. Não hesite, vá! Depois da apresentação, a pista se esvaziou e uma nova reunião VIP foi realizada. Os artistas vieram com vários animais para os convidados poderem tocar e parecia que todos vieram até Anatoly para tirar uma fotografia junto com ele. Este fato não passou desapercebido por nossos convi-dados VIP, e eles fizeram o mesmo, inclusive o Governador de Washington Booth Gardner e sua esposa. Bob tinha um brilho no olhar, e aproximou-se discretamente de mim para um sério eu-te-falei. Uma das mais felizes ocasiões estando completamente errado.

Meu próximo duelo clássico com Anatoly Karpov foi na Copa do Mundo da

GMA em Roterdã, realizada no prestigio-so World Trade Center de 3 a 24 de junho de 1989. Mais uma vez, Anatoly estava em grande forma, pois ficou claramente em primeiro lugar com 11 pontos de 16. O torneio teve um pequeno revés de patro-cínio no último minuto, e Bessel Kok veio a calhar para salvá-lo. Foi o mais perto que a GMA chegou de cancelar um evento de Copa do Mundo.

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovRoterdã, 1989

Defesa Nimzo-Índia

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cc3 Bb4 4.Dc2Por alguns anos eu estivera jogando a

linha clássica da Nimzo-Índia. Além do fato de que as posições me atraíam, eu simples-mente não encontrei uma boa continuação contra a Índia da Dama. A Catalã também não dava a paulada que eu estava buscando com as peças brancas.4...0-0 5.a3 Bxc3+ 6.Dxc3 b6 7.Bg5 Bb7 8.f3 h6 9.Bh4 d5 10.cxd5?!

Esta captura é prematura porque en-coraja as Pretas a desenvolverem pressão na coluna e semiaberta. Uma variante teó-rica longa seria estabelecida com o tempo após 10.e3 Cbd7 11.cxd5 Cxd5 12.Bxd8 Cxc3 13.Bh4 Cd5 14.Bf2, quando as Brancas têm dois bispos mas se atrasam no desenvolvi-mento.

Eu queria fixar os peões centrais e jo-gar o tipo GDR de posição com o par de bis-pos como meu trunfo.10...exd5 11.e3

Esta era minha novidade. Anterior-mente, 11.Bxf6 Dxf6 12.Dxc7 Ba6 tinha sido jogada e, continuando rapidamente com

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262 Yasser Seirawan

...Tf8-c8, as Pretas têm plena compensação pelo peão perdido.11...Te8 12.Bf2?

Eu quero ter e também comer o bolo. O esquema de desenvolvimento que tenho em mente é jogar Bf1-d3 e Ng1-e2, quando as Pretas terão compensação insuficiente pelo par de bispos e seu peão c7 também pode ficar exposto. O problema é que eu simplesmente não tenho tempo suficiente para atingir a posição desejada.

Em partidas futuras eu jogaria 12.Bb5 c6 13.Ba4, esperando que as Pretas jogas-sem ...Dd8-e7 antes de recuar meu bispo h4.

Outros esquemas de desenvolvimento, tais como 12.Ce2 e 12.Ch3 também poderiam ser experimentados mas, como o cavalo bran-co terá que se mover novamente, a impressão geral é de que as Pretas estão se saindo bem e meu décimo lance é útil para as Pretas.12...c5!

Natural e muito forte. As Pretas pre-cisam contra-atacar no centro o mais cedo possível. Se as Brancas puderem jogar Bf1--d3 e Cg1-e2 desimpedidas, a partida logo assumirá as características de uma Nimzo--Índia Sämisch sem peões dobrados na colu-na c e sem alvo para as Pretas atacarem.13.Bb5

13.dxc5? seria sem dúvida um erro, pois 13...d4! dá às Pretas uma forte iniciativa.13...cxd4

Eu estava esperando provocar 13...Bc6 14.Bd3 c4 15.Bc2 b5 16.Ce2, quando as Pre-tas têm uma iniciativa na ala da dama, mas as Brancas preparariam a ruptura central e3-e4, quando eu prefiro a posição das Brancas.14.Dxd4 Bc6 15.Bd3 Cbd7 16.Ce2 Cc5 17.Bc2 Bb5 18.Dd2 Tc8

Aqui Karpov pensou que 18...Bxe2, abrindo mão de seu outro bispo, era uma ideia interessante. Depois da relativamente obrigatória 19.Rxe2 d4 20.e4, ele considerou a posição “incerta”. Mas, neste caso, 20...d3+ 21.Bxd3 Cb3, ganhando peças, deveria favo-recer as Pretas. Eu teria jogado 20.Tad1! em

vez disso e achei que poderia alegar alguma vantagem. Por exemplo, 20...Ce6 (20...dxe3 21.Dxd8 Taxd8 22.Txd8 Txd8 23.Bxe3 é bom para as Brancas) e agora 21.e4 mantém a posi-ção estável. As Brancas jogarão Bf2-g3, Th1-e1 e Re2-f1, mantendo o par de bispos.19.Cd4

Eu estava começando a me sentir des-confortável sobre fazer este lance. Uma alter-nativa era 19.Td1 (planejando 20.0-0) 19...Bc4 20.0-0 d4 21.Cxd4 Bxf1 22.Rxf1, sacrificando uma qualidade para evacuar o rei. Com um peão e o par de bispos, as Brancas têm algu-ma compensação, mas talvez não suficiente. Neste momento eu achava que a posição não exigia medidas tão desesperadas.19...Bc4 (Diagrama 148)

DIAGRAMA 148. Jogam as Brancas

Embora eu não pudesse ter certeza de que chegaríamos a esta exata posição de meio-jogo, este era o tipo de posição que eu esperava ao jogar 10.e3, fixando a estrutura de peões. Agora eu me pergunto por que afi-nal me senti atraído pela posição. É claro que, se o rei das Brancas estivessem na casa g1 e a torre h1 estivesse na casa d1, as Brancas teriam uma imensa vantagem estratégica. Portanto, meu “único” problema é meu rei. Eu achava que teria tempo de jogar Bf2-g3,

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 263

Re1-f2 e Th1-e1/d1, problema resolvido. As Pretas teriam um peão da dama isolado, e eu teria um bom jogo pela frente. Infelizmente, a situação gira em torno do tempo e parece que as Brancas não terão os tempos que pre-cisam para resolver seu único problema...20.Bg3

Quero criticar este lance e dizer que as Pretas têm um jogo fácil a partir daí, mas as alternativas também parecem todas fáceis para as Pretas. Considerei 20.Bf5 Ce6 21.Cxe6 fxe6 22.Bg6 Tf8 como bom para as Pretas, pois eu ainda não fiz nada com meu rei.

Minha segunda alternativa era 20.b3, lance difícil de combater. Por um lado, é bom que o bispo c4 permaneça onde está, pois ele bloqueia a coluna c. Assim, por que afastá-lo? Bem, o plano sobre o qual pen-sei estava ligado com bloquear a diagonal f1-a6. A linha era 20.b3 Ba6 21.a4, telegra-fando minha intenção óbvia de b3-b4-b5, com tempo. Mas as Pretas saem do caminho com 21...Ce6 22.Cb5 d4! 23.e4 Ch5, quan-do eu tinha aquele pressentimento de que algo estava errado. As Pretas têm ...Ch5-f4 e ...Dd8-g5 em vista, quando minha dama sente-se colocada na cena de um futuro acidente. Talvez a linha seja viável, mas meu senso de perigo estava formigando.20...Ch5!

Eliminando meu orgulho e minha alegria, o par de bispos, antes que eles pu-dessem ser usados. Este é o meu problema, pois assim que um dos bispos for trocado, as Brancas não tem nada do que se orgulhar em sua posição.21.Rf2?!

Embora isto simplesmente dê segui-mento ao meu lance anterior, eu logo escor-rego para uma posição pior. Em retrospecto, 21.Bf5! seria um aperfeiçoamento significati-vo sobre a partida pois eu bloqueio a coluna f, cuja importância veremos em breve. Seria altamente insatisfatório jogar 21...Ta8, embo-ra as Pretas também fossem gostar de “adiar” a troca do cavalo h5 pelo bispo g3, pois neste

caso a torre h1 estaria bem colocada. A rea-ção natural das Pretas seria 21...Dg5 22.Rf2 Cb3 23.Cxb3 Dxf5 24.Cd4, com um jogo bas-tante equilibrado, pois o peão d5 isolado permanece no tabuleiro.21...Df6! 22.Tac1 Ce4+!

Este é o objetivo das Pretas e a razão pela qual o comentário anterior recomenda-va 21.Bf5, para bloquear este xeque. Após o texto, as Pretas têm a vantagem pois são ca-pazes de dissolver seu peão isolado.23.Bxe4 dxe4 24.Tc3 exf3 25.gxf3 Bd5 26.Txc8 Txc8 27.Tc1 Td8! 28.De2 Cxg3 29.hxg3 h5 (Diagrama 149)

DIAGRAMA 149. Jogam as Brancas

A partida evoluiu de uma maneira bas-tante natural para a posição diagramada. As Pretas levam a melhor na partida graças a minha fraca estrutura de peões. O último lance das Pretas prepara a ação de sonda-gem ...h5-h4, a qual irá induzir enfraqueci-mentos adicionais.30.Da6??

Um erro feio que provoca uma reação estrondosa. Eu tinha que jogar 30.f4 a fim de responder a 30...h4 com 31.g4, tentando manter a ala do rei fechada. Mas eu simples-mente não consegui enfraquecer as casas brancas ao redor de meu rei.

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264 Yasser Seirawan

Em seus comentários na Informant, Anatoly indicou 30.Th1 g6 31.Th4 Tc8 como sua principal linha de jogo. Talvez ele tenha razão, mas eu não estou certo do que vou fa-zer na posição resultante.30...Bxf3!

Simplesmente estraçalhando. Eu tinha visto 31.Cxf3 Td2+ 32.Re1, mas agora com-preendi que 31.Cxf3 Dxb2+ vence de ime-diato.31.Dxa7 Bg4+ 32.Re1 Txd4! 33.exd4 De6+ 34.Rd2 De2+ 35.Rc3 De3+ 36.Rc2 Bf5+ 37.Rd1 Dxd4+ 38.Re1 De3+ 39.Rd1 Dd3+ 40.Re1 Dxg3+ 41.Rd1 Dg1+ 42.Rd2 Df2+ 0-1

Ganhando a casa. Decidi abandonar a partida.

Mais uma pérola de vitória de Anatoly. Você identificou algum erro no jogo dele? Por que será que eu pareço salientar o me-lhor em meus adversários?

Antes de sair de Roterdã, tenho uma história para compartilhar sobre o russo muito afável Arthur Yusupov. Geralmen-te os cassinos na Europa são muito mais controlados do que nos Estados Unidos e são certamente menos comuns. Como revelou-se, os enxadristas ficaram no Rot-terdam Hilton Hotel, que tinha um cassi-no em seu subsolo. Os enxadristas muitas vezes iam lá para tomar um drinque antes de dormir e ver o movimento. Alguns joga-vam blackjack (vinte e um) apostando pe-quenas quantias.

Certa noite, visitei o cassino e vi Arthur Yusupov de rosto pálido comendo um sor-vete, uma dame chocolate. Fui até ele para perguntar qual era o problema. Ele levou certo tempo para murmurar uma resposta. “Agora eu entendo Dostoievski,” ele por fim conseguiu dizer. Dostoievski. Minha nossa, puxei uma cadeira e pedi-lhe que explicasse.

Como ávido leitor dos romances de Dostoievski, Arthur perguntava-se por que era viciado em jogos de aposta. Ele desco-

briu-se na roda da roleta e apostou cinco florins holandeses no Preto. Deu Vermelho. Ele então pôs dez florins holandeses no Pre-to novamente. O resto você já sabe. Ele con-tinuou perdendo até dar-se conta de que, com a rodada final, ele tinha gasto todo o seu dinheiro na mesa e estava chocado. Ele estava apostando uma fortuna pelos pa-drões soviéticos. Ele ganhou. O sorvete que ele estava tomando era tudo que ele havia ganho. “Nunca mais!”, disse-me ele, com uma expressão pétrea. Ufa! Eu espero, caros leitores, que vocês aprendam com os erros dos Grandes Mestres: fiquem longe da roda da roleta.

O evento final da Copa do Mundo da GMA teve um encerramento espetacular. A corrida pela liderança foi acirrada, com Ana-toly perseguindo Garry furiosamente. Em-bora tenha se esforçado ao máximo, Anatoly não ganhou por pouco e Garry foi o grande vencedor. Mais uma vez, Anatoly jogou uma partida brilhante contra mim.

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanSkellefteå, 1989

Gambito da Dama Aceito

1.d4 d5 2.c4 dxc4O Gambito da Dama Aceito figurava

com destaque em meu repertório na maior parte de minha carreira. Como gosto de jo-gar contra peões da dama isolados, esta era uma escolha natural.3.e4!

Mas esta não é uma daquelas varian-tes do PDI! Em princípio, este lance natural deveria ser a melhor resposta das Brancas ao GDA. Afinal, se as Pretas vão abrir mão do centro, as Brancas devem tomá-lo. O problema é que as Brancas não podem

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 265

manter sua falange central e uma série de trocas darão às Pretas uma desvantagem jogável.3...e5

Depois desta partida, desisti desta li-nha, escolhendo 3...Cf6 4.e5 Cd5 5.Bxc4 Cb6, quando as Brancas têm uma vantagem de espaço, mas as Pretas têm mais chances de igualar.4.Cf3 Bb4+ 5.Bd2 Bxd2+ 6.Dxd2 exd4 7.Dxd4 Dxd4 8.Cxd4 Bd7 9.Bxc4 Cc6 10.Cxc6 Bxc6 11.Cc3 Td8 12.Re2 Cf6 13.f3 Re7 (Diagrama 150)

DIAGRAMA 150. Jogam as Brancas

Rapidamente chegamos a uma po-sição que é reconhecidamente “um pouco melhor” para as Brancas. Coloque o bispo c6 de volta na casa c8 e o peão c7 na casa c6 e começaríamos a falar de “total igualda-de”, mas as Pretas não podem realizar esta formação. Infelizmente, subestimei comple-tamente o perigo na posição das Pretas. As Brancas têm um domínio muito confortável sobre a casa d5 e todas as suas peças pare-cem apenas um pouco mais ativas do que as minhas. Estas não são apenas vantagens “mesquinhas” – elas se tornam maiores à medida que a partida continua.14.Thd1 a5

Eu já me sentia pressionado por um plano. O que eu deveria fazer? Eu não que-ria comprometer minha estrutura de peões depois de 14...Cd7 15.Bd5! Cb6 16.Bxc6 bxc6, com uma vantagem estrutural a longo prazo para as Brancas. Mas, como o curso da parti-da deixa claro, em algum momento eu tinha que aceitar uma debilidade de peões para poder jogar com as peças.15.Tac1 Txd1

Eu tinha que concordar com esta troca para trazer minha torre h8 ao jogo.16.Txd1 Tb8 17.Re3! g6?!

Deixando de dar seguimento a meu plano de expansão na ala da dama. Para me-lhor ou para pior, eu deveria ter continuado com 17...b5 18.Bf1! Cd7 19.b3! quando fica claro que meu jogo na ala da dama não está indo à parte alguma, mas eu teria alguma coisa a fazer, mesmo que fosse apenas con-sertar o que eu tinha feito...

Minha outra alternativa, como men-cionado acima, era jogar 17...Cd7 18.Bd5! Cb6 e aceitar os peões na coluna c dobra-dos. O texto é algo como um lance de es-pera, deixando que as Brancas se compro-metam.18.Bb3!

Profilaxia típica de Karpov. Ele coloca suas peças fora de alcance e mantém todas as suas opções abertas.18...Ta8

A frustração estava começando a ba-ter. Eu tinha que engolir em seco e jogar 18...b5 19.e5!? Cd7 20.Bd5 Tb6 21.f4 b4 22.Ce4 f6, que é apenas ligeiramente me-lhor para as Brancas. Meu medo era que 18...b5 19.Tc1! Ba8 20.Ce2 c6 21.Bd1 me le-vasse a uma posição passiva.19.Td4 Cd7 20.Bd5 Ta6

O objetivo de todas as minhas mano-bras. Estou tentando evitar peões dobrados em c. Observe que, se eu fosse forçado a jogar 20...Bxd5 21.Cxd5+ Rd8, teria sido me-lhor não ter enfraquecido minha casa f6.

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266 Yasser Seirawan

21.f4 f6 22.h4 h6 (Diagrama 151)

DIAGRAMA 151. Jogam as Brancas

Todos adoramos aqueles diagramas em que existe uma combinação tática vito-riosa que podemos tentar encontrar. Esta posição diagramada é de uma variedade completamente diferente. Não existem tá-ticas a procurar, apenas jogo técnico. O que você faria se estivesse com as Brancas?

Pare um minuto para ponderar sua resposta. O lance seguinte de Karpov causa uma impressão fantástica.23.g3!!

Provavelmente estou sendo generoso demais com os pontos de exclamação, mas este lance quase me deixa em Zugzwang. Eu não quero mover meus peões nem meu ca-valo ou torre. Isso me deixa apenas com meu bispo para mover.23...Bxd5 24.Cxd5+ Rd8 25.Cc3! Tb6 26.Td2!

Recuos magistrais. Minhas peças têm menos opções do que suas equivalentes e agora as Brancas estão prontas para usar sua maioria na ala do rei.26...c6

Finalmente, protegendo a casa d5. In-felizmente, agora é tarde demais, pois minha torre está na posição errada. Se a torre b6 es-

tivesse centralizada, as Pretas poderiam ter uma posição decente, mas do jeito que está não posso bloquear a iniciativa das Brancas na ala do rei.27.h5! g5 28.Rf3!

A cada lance estou mergulhando na-quele longo adeus do sono. O texto abre ca-minho para Rf3-g4 e, muito mais importan-te, as Brancas querem manobrar seu cavalo para a casa f5.28...Re7 29.Ce2

Sem dúvida um lance excelente, mas eu o considerei como um certo deslize. Um lance mais forte era 29.Cd1!, com a mesma ideia de chegar à casa f5. Após 29...gxf4 30.gxf4 Tb5 31.Th2!, a situação parece incor-rigível, pois Cd1-e3-f5 terminará a partida.29...c5

Eu tinha que impedir que o cavalo chegasse à casa f5. Você pode imaginar a minha frustração, tendo me esforçado tanto para proteger a casa d5, quando agora en-trego a mercadoria.30.Cc3! Td6 31.Td5 Txd5

Acelerando minha descida, pois o fi-nal de cavalo não oferece chances. Um lan-ce preferível era 31...Tc6, mas eu temia que 32.Tf5 e Cc3-d5 causariam asfixia.32.Cxd5+ Re6 33.Ce3!

A chegada do cavalo indica que o jan-tar está servido.33...b5 34.Cf5 Cb6 35.Cxh6 Cc4 36.Cf5 Rf7 37.b3 Cd2+ 38.Re3 Cf1+ 1-0

Mais uma partida magistral de Anatoly. Eu estava tirando meu chapéu com tanta frequência que estava perdendo cabelo! O que dizer? É por isso que ele é o enxadrista tecnicamente mais talentoso que já existiu.

Depois de minhas últimas experiências com Anatoly, uma reavaliação era definiti-vamente apropriada. Minha Nimzo clássica não tinha funcionado. A Catalã era uma op-ção razoável, e eu realmente não tinha uma boa resposta para o Gambito da Dama Recu-sado. Apenas algumas ideias para obter uma

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 267

pequena tração. Era hora de adotar uma abordagem diferente. Que tal uma Abertura Inglesa? Eu a joguei na maior parte de mi-nha carreira com bons resultados...

Os comentários a seguir foram publica-dos na revista Inside Chess como um artigo, “Scaling K2.” Os comentários atualizados são marcados com “YS, 2010”. O parágrafo a se-guir foi o preâmbulo na Inside Chess:

“Joguei com Karpov pela primeira vez em Mar del Plata, Argentina, em 1982. Eu o superei totalmente em uma Defesa Francesa, mas não consegui efetuar o nocaute. Venci a segunda partida que disputamos naquele ano em Londres. Durante os dois anos seguin-tes, muitas posições promissoras escorreram pelos meus dedos. Então Karpov pareceu ter me entendido. Ele venceu duas partidas en-tre muitos empates. Em nossas duas últimas partidas, fui despachado. De alguma forma, ele tinha se adaptado – mas eu não.”

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovHaninge, 1990

Abertura Inglesa

1.c4Eu queria evitar a Defesa Nimzo-Índia,

tendo me preparado para responder ao GDR com a seguinte ordem de lances: 1...e6 2.Cc3 d5 3.d4, etc.1...e5

Minha preparação já era! Com isso, Karpov mostra que quer uma luta encorpa-da. Quando quer garantir um empate, ele geralmente opta por 1...e6.2.g3!

Ao retardar o desenvolvimento do cavalo, eu fujo da análise dos recentes con-frontos Kasparov-Karpov.

2...g6Uma grande surpresa. Que eu saiba,

esta é a primeira vez que Karpov fez esse lance. Quando confrontado pela ordem de lances das Brancas, Karpov geralmente joga 2...Cf6 3.Bg2 d5 etc. ou 2...Cc6 3.Bg2 g6 etc.3.d4!?

Tentando atrair Anatoly para um terri-tório desconhecido.3...d6 4.dxe5

Também senti-me fortemente tentado a jogar 4.Cc3 Cd7 5.Cf3, com uma provável transposição para a Defesa Índia do Rei. O texto produz uma posição de meio-jogo sem dama, com a qual estou muito familia-rizado.4...dxe5 5.Dxd8+ Rxd8 6.Cc3 c6?

Que legal! Um erro. Karpov levou qua-se quinze minutos para dar este lance. Evi-dentemente, as Pretas estão preocupadas com a posição de seu rei, e assim preparam um lar em c7. O problema é que fazendo este lance agora, as Pretas perdem o timing e permitem às Brancas um forte ataque. Após 6...Be6 7.b3 Cd7, as Brancas têm uma ligeira vantagem.

O que eu deveria ter enfatizado é que as Pretas devem esperar que as Brancas joguem Bf1-g2 antes de jogarem o texto. Como veremos, este será um fator importan-te no jogo que está por vir. (YS, 2010)7.f4!

Somente este lance expõe a vulnera-bilidade da posição das Pretas. As Brancas querem abrir o centro e negar a casa c7 às Pretas. É também o prelúdio de um longo e complexo sacrifício de peão.7...Be6!

Melhor. Ruim é 7...exf4? 8.Bxf4 Be6 9.0-0-0+ Cd7 10.Cf3 Bxc4? 11.Bh3 f5 12.Be5! ou 12.e4, com vantagem para as Brancas. Esta variante mostra o perigo extremo que as Pre-tas estão enfrentando. Um erro fundamental seria 7...f6? 8.fxe5 fxe5, quando as Brancas abriram a coluna f para sua vantagem e as ca-sas g5 e e5 das Pretas ficam fracas. Nesta po-

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268 Yasser Seirawan

sição, é importante observar o papel do peão e2 das Brancas. Por não ocupar a casa e4, ele fica aberto para um poderoso cavalo.8.Cf3 Bxc4

Não dá para deixar de admirar o jogo sem rodeios de Karpov (...c7-c6, ...Bc8--e6xc4). Mas as Pretas poderiam conside-rar 8...Cd7 9.fxe5 (9.b3) 9...Bxc4 10.Bf4! h6 11.0-0-0 g5 12.Bh3 Be6 13.Bxe6 fxe6 14.Be3, quando as Brancas têm uma perigosa ini-ciativa. Nesta linha, se as Pretas não cap-turarem o peão c4 das Brancas, elas ainda ficam com um mau jogo. 8...Cd7 9.fxe5 h6 (9...Rc7 10.Cg5) 10.b3 Bg7 11.Bg2 Rc7 12.0-0-0, pretendendo Cc3-e4, é agradável para as Brancas.9.Bh3!

A continuação mais decisiva, pois 9.Cxe5 Be6 10.Be3 Bg7 é fraca, uma vez que as Pretas têm menos problemas. Com o tex-to, as Brancas ameaçam o explosivo Cxe5.

O motivo de minha ênfase anterior sobre esperar por Bf1-g2, antes de jogar ...c7-c6, agora fica comprovado. Sem dúvi-da, o bispo é muito mais forte na diagonal h3-c8 do que na longa diagonal que está bloqueada. (YS, 2010)9...f5

Obrigatória. As Pretas têm diversas continuações desagradáveis: 9...Bg7?! (9...Cd7 10.Bxd7; 9...f6? 10.fxe5 e as Brancas estão melhores) 10.Cxe5 Bxe5 11.fxe5 Be6 12.Bg5+ Re8 (12...Rc7 13.Bxe6 fxe6 14.0-0 e as Brancas têm a vantagem) 13.Td1 Cd7 14.Bxe6 fxe6 15.Ce4 Cxe5 16.Cd6+ Rf8 17.0-0+ vencendo. Outra linha divertida para as Brancas é 9...Bb4!? 10.Cxe5 Bd5 11.e4!? Bxe4 12.0-0 Bc5+ 13.Tf2, com uma posição afia-da. Se as Brancas querem uma vantagem tranquila, então 9...Bb4 10.Rf2 oferece essa garantia. O desenvolvimento superior das Brancas promete um excelente ataque.10.b3!!

Um lance do qual fico muito orgulho-so. O motivo para meu orgulho provém do

fato de que eu tinha que recusar a óbvia “esmagadora” 10.e4! Esta investida implora para ser jogada, é claro. As Pretas não es-tão prestes a serem despedaçadas? Sim e não.

Meu lance, 10.b3, vai direto ao âmago da posição. A pergunta-chave diante das Brancas é: “O que você vai fazer com o bis-po em c1?” Ele vai para g5 com xeque? Isso é atraente, com certeza, mas implica f4xe5, que envolve uma imensa perda de tempo. Além disso, o cavalo não pretende ir para e5? Assim, isso deixa Bc1-e3. Pouco inspi-rador.

Vejamos por que eu recusei 10.e4 (o lance que Karpov mais receava!). Segue en-tão 10...Ch6! (Obrigatório. Por alguma estra-nha razão, Karpov pretendia 10...Cd7?, que é simplesmente esmagada após 11.exf5. Tam-bém ruim é 10...Be6 11.Cg5, quando as Bran-cas ficam melhores.) 11.Cxe5 Be6 12.Be3 Bd6 13.0-0-0 Rc7 14.Bd4?! Te8. Essa foi minha principal razão para recusar 10.e4. Embo-ra as Brancas certamente possam escolher, eu estava muito insatisfeito com o cavalo em e5! Paradoxalmente, apesar de parecer poderoso, o que ele faz? Foi somente por minha própria familiaridade com estas po-sições que eu fui capaz de encontrar 10.b3. Observe como a longa diagonal a1-h8 pare-ce sensível!10...Bb4!

Karpov encontra a única defesa! Mas quando em sua carreira aconteceu de, após dez lances, restar-lhe apenas 27 minutos para os 30 últimos lances do controle de tempo? As Pretas têm que rejeitar 10...Be6? 11.Cg5 Rd7 12.Bb2, com ameaças decisivas. Se 10...Bf7, segue-se 11.Cxe5 Be6 12.e4! (jo-gada somente agora, quando um lance a mais, b2-b3, fará uma diferença decisiva). Sobre 10...Ba6, 11.Cxe5 é matador pois o bis-po em a6 está bem fora de ação.

Portanto, a única outra tentativa de-fensiva é 10...e4!? 11.bxc4!? (11.Cxe4 Bg7

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 269

12.Ce5 Bd5) 11...exf3 12.Bb2 Bg7 13.0-0-0+ Cd7 14.e4!, e a vantagem das Brancas é qua-se decisiva.

Com o texto, Karpov permanece vivo. Ele vai manter seu posto em d5 venha o que vier e tentará resistir ao ataque.11.Bb2 Bd5 (Diagrama 152)

DIAGRAMA 152. Jogam as Brancas

12.e4!Fantástico! Estou lutando pela ini-

ciativa a todo custo. De alguma forma, as Brancas conseguiram desenvolver todas as suas peças menores e jogaram c4, d4 e f4, ao passo que as Pretas só conseguiram mo-ver seus bispos e peões e colocar seu rei em uma casa ruim!12...fxe4

O único lance. Se 12...Bxe4??, 13.0-0-0+, pretendendo Cc3xe4, vence na hora. Outra má ideia é 12...Bxc3+? 13.Bxc3 Bxe4 14.0-0-0+ Cd7 15.Cxe5, vencendo. Durante nossa caminhada voltando para o hotel (fi-camos analisando a partida no post mortem por tanto tempo que perdemos nossas ca-ronas), Karpov confidenciou que também tinha se preocupado com 12.0-0-0!? Bxc3 13.Bxc3 Cf6 14.Cxe5 Tf8 15.The1, e ele não gostava de seu jogo, pois 15...Cbd7? vai di-reto para 16.Cxd7 Cxd7 (16...Rxd7 17.e4 ven-

cendo) 17.e4! fxe4 18.Txe4 Bxe4 19.Txd7+, vencendo.

Foi exatamente esta variante que me levou a jogar 12.e4!. Na linha acima, as Pretas têm que jogar 15...Ca6. Neste caso, as Pretas têm um jogo detestável mas, ao menos, po-dem jogar pela casa e4 enquanto meu bispo em h3 está meio quieto. Com 12.e4!, a diago-nal h3-c8 fica aberta, e as Pretas são obriga-das a ocupar e4 com um peão.13.0-0-0 Bxc3!

Excelente. As Pretas encontram a única chance: sacrifício de qualidade! Uma rápida olhada mostra que elas não têm escolha. Se 13...Cf6?, então 14.Cg5! (novamente não Cf3xe5), e as Pretas estão prestes a serem en-cestadas.14.Bxc3 exf3 15.Bxe5 Cd7! 16.Bxh8 Ce7! (Diagrama 153)

DIAGRAMA 153. Jogam as Brancas

A partida tem sido incrivelmente complexa e isso causou considerável estra-go em ambos os relógios. Eu tinha previsto esta posição com 12.e4 e tinha pensado: “Tudo bem, as Pretas têm um peão pela qualidade”. Mas raciocinei que o pequeno camarada das Pretas em f3 estava muito longe de suas linhas de suprimento e que, depois de alguns lances hábeis, a partida

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270 Yasser Seirawan

estaria acabada. Assim, eu despreocupada-mente fiz uma análise preguiçosa e cometi um erro.17.Thf1?

Erroneamente acreditando que isso arrebanharia o peão em f3. Depois da sim-ples 17.The1! (torres ficam em colunas aber-tas!) 17...Cf5 18.Bd4 Rc7 19.Bxf5 gxf5 20.Te7 Rd6 21.Txh7, as Pretas estão tecnicamente perdidas. O texto permite uma resistência heroica.17...Cf5!

Cinco minutos para os próximos 23 lances!18.Bd4 h5!

Obrigatório. As Brancas ameaçavam Bh3-g4xf3, com uma atitude e personalida-de absolutamente vencedoras.19.g4

Era provavelmente melhor jogar 19.Tfe1 Rc7 20.Bxf5 gxh5 21.Te7, como aci-ma. Agora eu comprometo minha estrutura na ala do rei e dou às Pretas melhores chan-ces de continuar.19...hxg4 20.Bxg4 Ch4

Eu tinha visto até este ponto ao jogar 17.Thf1. Eu estava pensando que 21.Bxd7 Rxd7 22.Bf6 Cf5 23.Txf3 apenas capturava um peão quando me dei conta de que 23...Re6! atingia duas peças. Ops! Pense! – Pense! – Pense! Quanto tempo lhe resta? Hora de um novo plano. O peão em f3 vive.21.Bf2 Cg2

Neste ponto, entendi que Karpov per-deria por tempo. Seria fisicamente impos-sível que ele atingisse o controle de tempo. Mas isso não o impediu de continuar ten-tando.22.Bg1 Ch4 23.h3 Rc7 24.Bh2 Cf6! 25.f5+ Rb6 26.fxg6 Cxg4 27.hxg4 Tg8 28.Td4 a5! 29.g5 Cxg6! 30.Rd2!

Neste momento minha seta começou a subir, preparando-se para a descida íngre-me. Era hora de colocar o criminoso em f3 atrás das grades!30...Tf8 31.Bg1?

As Pretas estão ainda piores depois de 31.Bg3.30...Ra6?

No post mortem, concordamos que 31...Rc7! era igual. Como minha seta conti-nuava subindo, jogávamos à velocidade da luz.32.Bf2! Tf5 33.Tg4 Ce5 34.Tg3 Cg6 35.Th1! Te5 36.Te1! (Diagrama 154) 1-0

DIAGRAMA 154. Jogam as Pretas

E nesta posição a seta de meu adver-sário caiu! Após 36...Tf5 37.Te8 b6 38.Td8 (visando a Td8-d6) 38...Rb7 39.Th3 Txg5 40.Th7+ Ra6 41.a4, as Pretas sofrem xeque--mate. Em um post mortem muito prolon-gado (três horas), Karpov não foi capaz de salvar a posição final.

Este último trecho de análise está in-correto. Após 37.Te8 b6 38.Td8 Te5 39.Be3 Ch4! 40.g6 Cf5 41.Tg5 Txe3 42.Txf5 Te2+ 43.Rc3 Tg2, as Pretas deveriam ter gratidão por seu bispo d5 bem ancorado. Talvez eu devesse jogar 38.Tb8 c5 39.Te8, para desen-gatar o bispo d5. As Brancas têm uma van-tagem, mas as Pretas têm boas chances de jogo. De modo geral, uma análise muito boa que sobrevive a um exame minucioso mo-derno. (YS, 2010)

Uma partida difícil! Sou muito grato a Tolya por despender uma longa sessão de

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 271

análise comigo. Na caminhada de volta ao hotel, ele disse: “Parabéns, você jogou muito bem!” Obrigado!

Haninge revelou-se um grande su-cesso para mim, pois venci o torneio com 8½ pontos em 11 partidas sem derrotas, dando-me o primeiro lugar com “mais seis” no evento de Categoria 14. Na cerimônia de encerramento, fiz um discurso em nome dos enxadristas e acabei sentando-me per-to de Anatoly. Perguntei-lhe como tinha me saído. Ele perguntou-me o que eu queria dizer. E eu disse: “Bem, você fez muitos dis-cursos de vitória em sua carreira, deve ter dezenas preparados. Como o meu se com-parou?” Demos uma boa risada.

Nosso próximo encontro veio no que deveria ser a segunda série dos eventos da Copa do Mundo da GMA. Anatoly tinha per-dido seu Match do Campeonato Mundial da FIDE de 1990 em Nova Iorque e Lyons, e estava ansioso para voltar para o auge da batalha. Em Murcia, Espanha, na Assembleia Geral da GMA em 9-10 de junho de 1990, Garry tinha se demitido da presidência da GMA quando a Assembleia Geral ratificou a moção para aprovar o contrato com a FIDE. Garry sugeriu indiretamente que, se ele mantivesse seu título no Campeonato Mun-dial, poderia voltar para a diretoria da GMA, mas por ora ele queria dedicar-se à sua pre-paração. Garry manteve seu título, mas não voltou para a diretoria da GMA.

Houve considerável confusão sobre a segunda série da Copa do Mundo. Kasparov jogaria nos torneios? Bessel Kok achava que sim, e os eventos foram anunciados. Reykja-vik, Islândia, sediaria o primeiro e, como re-velou-se, também o único. Garry decidiu se retirar da competição nos eventos. Então os patrocinadores se retiraram, e a série inteira desmoronou. Ainda que a GMA tenha lutado por mais alguns anos, seu fim estava claro: a organização tinha perdido sua raison d’être, além de seu visionário criador. Foi uma lição

amarga para todos. O que teria acontecido se Garry tivesse ficado com a GMA e perse-guido sua ideia? Jamais saberemos.

Existe uma história muito engraçada sobre o match do Campeonato Mundial em Nova Iorque e Lyons em relação a Anatoly que eu tenho que compartilhar. Um amigo meu, Dodd Darren, de Los Angeles, tinha entrado no ramo editorial de livros de xa-drez e estava me mostrando seus últimos artigos no saguão do Hotel Macklowe em Nova Iorque. Em nossa conversa, ele me disse que acalentava o sonho de conhecer Anatoly e dar-lhe alguns livros de presente, e avisar-lhe que ele estaria pronto para pu-blicar qualquer coisa que Anatoly quisesse escrever. Respondi-lhe que, como ele estava totalmente envolvido no match, era impos-sível que eu intercedesse para apresentá-lo naquele momento. Dodd implorou que eu tentasse.

No exato momento em que eu estava explicando que era absolutamente impos-sível fazer a desejada apresentação, Ana-toly adentrou o saguão, viu-me e veio me cumprimentar. Fiz uma breve apresentação para Dodd, e Anatoly perguntou se podía-mos subir no elevador junto com ele. Fize-mos isso, e Dodd começou a explicar quem ele era, apresentando seu livro mais recente recém-publicado. Anatoly foi muito educa-do, aceitou o livro de Dodd com gratidão, e nos despedimos. Dodd e eu descemos de elevador de volta para o saguão. Dodd esta-va radiante de alegria.

“Isso foi ótimo!”, disse ele. “Muitíssimo obrigado!”

Resolvi pregar uma peça em Dodd. “Não posso acreditar que você fez isso co-migo,” exclamei. “Você me pede um grande favor. Eu o faço. E o que você faz? Você in-sulta a nós dois! Por que você foi fazer isso?”, protestei.

Dodd ficou completamente confuso. “O que você quer dizer? Eu achei que tinha sido ótimo. O que eu fiz de errado?” perguntou.

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272 Yasser Seirawan

“Dodd, você acaba de dar a Anatoly seu livro mais recente, certo? Bom, olhe o título...” Era How to Defeat a Superior Oppo-nent*, de Edmar Mednis.

“Ah não! Você não acha que Anatoly tomou isso como uma ofensa, acha?”, per-guntou Dodd.

“Relaxe, Dodd”, eu disse, dando uma ri-sadinha. “Tenho certeza de que Anatoly não se ofendeu”. Foi um momento muito diver-tido.

De volta ao xadrez. Você já se preparou para uma abertura mas depois estragou a ordem de lances planejada? Que constran-gedor! Imagine meu constrangimento quan-do fiz isso em meu último grande confronto com Anatoly...

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovReykjavik, 1991Abertura Catalã

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.g3 d5 4.Bg2 Be7 5.Cf3 0-0 6.Cc3(?)

Esta é ordem de lances bagunçada. Não faço ideia do que se apossou de mim para fazer esse lance. Eu tinha me preparado ativamente para a partida e, de alguma for-ma, os lances se misturaram.

Minha intenção tinha sido jogar a po-sição após 6.0-0(!) dxc4 7.Ce5 Cc6 8.Bxc6 bxc6 9.Cxc6 De8 10.Cxe7+ Dxe7 11.Da4 c5 12.Dxc4 cxd4 13.Dxd4 e5 14.Dh4 Tb8 15.b3!, que eu achava que era um aper-feiçoamento-chave na linha. Ao menos eu queria sondar as coisas e segurar o peão a mais.

6...dxc4 7.Ce5 Cc6 8.Bxc6 bxc6 9.Cxc6 De8 10.Cxe7+ Dxe7 11.Da4 c5 12.Dxc4 cxd4 13.Dxd4 e5 14.Dh4 Tb8 (Diagrama 155)

DIAGRAMA 155. Jogam as Brancas

Ambos os jogadores tinham feito seus lances com relativa rapidez até este ponto, e aqui eu parei e me dei conta, horrorizado, de que meu cavalo está em c3 e eu não fiz o roque. Agora 15.b3 esbarra num grande problema, pois a torre h1 fica pendurada depois de 15...Dc5 16.Bb2 Tb4 17.Ca4?? Dd5/Dc6, e eu posso abandonar a partida. Evidentemente, eu deveria jogar 17.Dg5 mas, depois de 17...Bh3!, impedindo-me de fazer o roque, eu preferiria jogar na posição das Pretas.

A partir da posição diagramada, eu pensei por um longo tempo, primeiro para me recuperar do choque de minha prepara-ção danificada e então encontrar o melhor lance. Decidi que não gostava de minha po-sição depois de 15.0-0 Tb4 16.e4 Db7! 17.f3 Db6+ 18.Tf2 Td8, com um bom jogo para as Pretas.15.Bg5!

Nas circunstâncias, o melhor lance.15...Txb2 16.0-0 De6 17.Bxf6 Dxf6 ½-½Empate por oferta de Karpov. Suas primei-ras palavras para mim foram: “Esta foi a 15a

* N. de R.: “Como vencer um adversário superior” (tradução literal).

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 273

Partida de meu match do Campeonato Mundial com Victor Korchnoi”. Suspiro. Eu com certeza acompanhei aquele match atentamente e me esqueci completamen-te da partida. Uma situação muito emba-raçosa.

Nosso próximo encontro foi no even-to inaugural Melody Amber em Roquebru-ne/Mônaco. O Midas do xadrez, Joop van Oosterom e sua esposa Muriel queriam se-diar um evento em homenagem à sua filha de cinco meses, Melody Amber. Eles con-vidaram 12 dos melhores enxadristas do mundo para disputar um round robin duplo – competição que, aliás, eu sempre achei a mais justa.

Durante o sorteio os enxadristas ti-nham que escolher dentre bichos de pelú-cia. Havia mais animais do que números, e Melody ficou com os que sobraram.

Esta foi a época em que o xadrez rápi-do (30 minutos para toda a partida por jo-gador, máximo uma hora) estava realmente começando a pegar. Houve a fantástica Copa de Xadrez Rápido Immopar em Paris, e a SWIFT em breve iria sediar um evento de Copa de Xadrez Rápido. (Mais sobre isso posteriormente.) Pouco tempo depois, a PCA também realizou seus torneios de Xa-drez Rápido da Intel.

Embora eu tenha maior apreço pelas partidas de xadrez clássico, depois pelo xa-drez rápido e por último pelo xadrez Blitz, em qualquer das modalidades é possível ver partidas muito boas e algumas parti-das muito ruins. O xadrez rápido é meio uma mistura em que a primeira metade das partidas parecem todas boas, até clássicas, mas, bem no final, um final Blitz pode estra-gar bastante. Por fim, 22 partidas de xadrez rápido enfrentando enxadristas de classe mundial todos os dias pode ser exaustivo. As partidas foram disputadas em etapas, de modo que podíamos acompanhar outros

enxadristas durante nosso “intervalo”. Mas o resultado foi que eu senti que joguei oito horas de xadrez por dia assistindo a tantas partidas em andamento.

Na Primeira Rodada enfrentei Anatoly.

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovRoquebrune (rápido), 1992

Defesa Nimzo-Índia

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cf3 b6Eu esperava uma Defesa Índia da Dama

e há alguns anos vinha jogando uma linha que eu mesmo criei.4.Cc3 Bb4 5.Db3

Ei-la. Minha ideia é jogar um tipo de formação Nimzo “clássica”, mas primeiro “tocando” o bispo b4 para obter algum tipo de concessão das Pretas. Por exemplo, alguns enxadristas jogaram 5...a5 contra mim, o que não serviria bem caso as Pretas decidam fazer o roque na ala da dama. Ou-tros tentaram 5...c5, que é a resposta mais popular; após 6.a3 Ba5, as Pretas não têm necessariamente que entregar o par de bispos de uma vez só. Neste caso, as Pre-tas têm que manter vigilância sobre a casa d6. Por fim, existe a escolha de Anatoly na partida.5...De7 6.a3 Bxc3+ 7.Dxc3 Bb7

Tendo “desvirtuado” o tempo ...Dd8-e7 das Pretas não é grande coisa, pois as Bran-cas ainda precisam provar se seus dois bis-pos podem ou não dar-lhe uma vantagem no meio-jogo. Minha linha de abertura tem que ter algumas desvantagens, e tem. Po-sicionei meu cavalo na casa f3 e não posso jogar f2-f3, o que significa que as Pretas têm maior controle sobre a casa e4. A fase se-guinte da luta gira em torno da disputa pelo

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274 Yasser Seirawan

centro. Se as Pretas puderem garantir um cavalo no centro, elas vão obter igualdade contra o par de bispos.8.e3

É uma pergunta estranha quanto ao que fazer com o bispo f1. Se eu usar um fian-chetto com 8.g3, as posições tendem a ficar estéreis quando os bispos das casas brancas forem trocados. Em minha experiência, o texto oferece as melhores chances de uma vantagem.8...d6 9.Be2 Ce4 10.Dc2 Cd7 11.0-0 0-0 12.Cd2! f5 13.f3! Cg5! (Diagrama 156)

DIAGRAMA 156. Jogam as Brancas

Uma posição meio comum para “mi-nha” abertura. As Pretas querem manter as peças no tabuleiro zunindo em torno de minha ala do rei. As Brancas têm que ficar vigilantes para que as peças das Pretas não comecem a produzir ameaças e, ao mesmo tempo, tentar criar jogo no centro.14.Tf2!

O início de uma importante reorgani-zação das peças. Além de oferecer prote-ção extra para o peão g2, as Brancas ain-da estão seguindo o princípio de Larsen: “Com um cavalo em f1, você nunca pode levar xeque-mate”. Meu objetivo é levar

meu bispo das casas pretas para a longa diagonal, jogar Ta1-e1 e tentar avançar com d4-d5 e e3-e4, com bom domínio no centro.14...e5

As Pretas, é claro, têm suas próprias ideias.15.Cf1 exd4 16.exd4 Ce6 17.d5 Cd4 18.Dd1 Df6 19.Be3 Cxe2+ 20.Txe2 Tae8 21.Bd4 Df7 22.Cg3 (Diagrama 157)

Num primeiro olhar, a posição parece bastante equilibrada. Equilíbrio de peças, estruturas de peões semelhantes, reis se-guros, bispos de cores opostas; a partida está se encaminhando para um empate. Mais devagar. Em primeiro lugar, meu bis-po é muito mais ativo do que o das Pretas e está ameaçando o peão g7, algo que o bis-po b7 não pode fazer. Em segundo, o peão d5 cruzou a linha de demarcação, abrindo caminho no centro e dando-me uma van-tagem de espaço. Finalmente, o peão f5 das Pretas poderia tornar-se um alvo. As torres estão na tábua de cortar da coluna e, e, uma vez eliminadas, o peão f5 se des-taca, pois as Pretas vão relutar em jogar ...g7-g6, enfraquecendo as casas pretas em torno do rei.

DIAGRAMA 157. Jogam as Pretas

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 275

22...f4!?Uma solução meio radical, pois as Pre-

tas cedem o controle sobre a casa e4. Uma inversão de papéis e tanto desde uma dúzia de lances atrás. Eu esperava que Anatoly jo-gasse algo como 22...b5 ou 22...c6, destruin-do minha cunha central.23.Ce4 h6 24.Dc2 Te7 25.Tae1 Tfe8 26.Cc3 a6 27.Txe7 Txe7 28.Txe7 Dxe7 29.Ce2 Cf8 30.Rf1 Df7 31.Bc3 b5 32.b3 bxc4 33.bxc4 Bc8

Meio inconsistente. Mais uma vez, 33...c6 parece a continuação certa.34.Dd2 Cg6 35.Dd4 Bd7

Embora as Brancas tenham peças mais ativas, não há certeza sobre como progredir. Após 36.Bd2 Df5! 37.Bxf4 Db1+ 38.Rf2 Bf5, as Pretas têm compensação.36.Da7?!

Uma ação de sondagem que não vai à parte alguma com pressa.36...Bf5 37.Dd4! Rh7?!

Procurando tirar vantagem de meus passos refeitos. Na verdade, o melhor lance era 37...Bd7, perguntando às Brancas como elas pretendem continuar. A dama das Pre-tas precisa transitar pela casa f5 e agora está bloqueada.38.Bd2! Bc2 39.Bxf4 Df5 40.Rf2 Dd3 41.Bc1 Ce5 42.Dxd3+ Bxd3 (Diagrama 158)

Apesar dos diversos soluços, a parti-da continua razoavelmente equilibrada, ou talvez a posição seja apenas um pouquinho melhor para as Brancas, pois meu rei fica mais ativo no final.43.c5 Bc4 44.cxd6 cxd6 45.Re3 Bxd5 46.Cg3 Rg6 47.Ce4 Cc4+ 48.Rd4 Bf7 49.a4 Rf5?!

Um erro que traz problemas. Com 49...Ca5!, as Pretas devem empatar.50.g4+ Rg6?

Isso também ajuda excessivamente. As Pretas deveriam ter jogado 50...Re6!, pois assim são capazes de recuperar sua

peça: 51.Rxc4 d5+ 52.Rd4 dxe4 53.Rxe4 e, embora elas estejam com um peão a me-nos, os bispos de cores opostas garantem um empate.

DIAGRAMA 158. Jogam as Brancas

51.f4! Rh7 52.h3Subitamente, tenho uma agradável

vantagem. Eu não sabia se podia vencer, mas o tempo de Anatoly estava quase no fim.52...d5 53.Cc5 a5 54.f5 h5 55.Bf4 hxg4 56.hxg4 g6?

Uma “reação de pânico” ao apuro de tempo. Eu esperava algo como 56...Be8, pro-curando trocar ou simplesmente atacar o peão a4.57.f6 g5?! 58.Bxg5 Rg6 1-0

Anatoly perdeu por exceder o controle de tempo. Apesar da profusão de erros in-duzidos pelo controle de tempo, depois de 59.Bh4 Be8, as Pretas ainda estão com pro-blemas.

Nossa segunda partida veio na 12a ro-dada. Anatoly tinha vantagem no placar, e, além de querer revanche por nosso primei-ro encontro, ele estava tentando alcançar os líderes.

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276 Yasser Seirawan

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanRoquebrune (rápido), 1992

Defesa Moderna

1.d4 d6Eu tenho uma profunda predileção

pela Defesa Moderna, ou do “Rato”, desde que comecei a jogar xadrez. Às vezes, é bom cumprimentar um bom amigo, mesmo que ele seja meio cruel.2.Cf3 g6 3.c4 Bg7 4.Cc3 e5

Depois de nossa partida em Haninge, Anatoly percebeu minha grande familiari-dade com estes meios-jogos sem dama e tinha vindo preparado para uma de minhas defesas prediletas. Esta variante é duvidosa, e certa vez fui brutalmente esmagado por Lev Polugaevsky (Lone Pine, 1978), o que di-minuiu meu apreço pela linha. Suponho que fui suficientemente corajoso para tentá-la em uma partida rápida.5.e4 Cc6

Possivelmente, este lance natural de desenvolvimento seja inoportuno neste momento. O lance 5...Bg4!? poderia ser uma escolha melhor. Evidentemente, eu poderia transpor para um velha DIR com 5...Cd7, mas esta não era minha intenção.6.Bg5!

Um pequeno golpe irritante. Agora 6...Cge7 leva embora a casa de recuo para o cavalo c6 e, depois de 7.d5, o esquema de desenvolvimento das Pretas fica deses-truturado. Ainda mais preocupante: 7.dxe5! cerca as Pretas com graves problemas. Eu ti-nha esperado por 6.d5 Cce7, quando estou todo preparado para ...f7-f5, e uma Índia do Rei favorável – uma linha que conheço mui-to bem.6...f6 7.Be3 Ch6

Minhas observações anteriores tam-bém se aplicam aqui. Se 7...Cge7 8.d5, o cavalo c6 não pode usar a casa e6. Talvez 7...Bg4, tentando atrair d4-d5, poderia ser melhor, mas as Pretas perderão tempos após 8.d5 Cce7 9.c5, pois o bispo g4 não está bem colocado. Aqui, o lance radical 7...Bh6!? é digno de atenção e poderia ter sido melhor.8.dxe5! dxe5

Uma recaptura infeliz. Mas quais são as alternativas? 8...Cg4? 9.exf6! simplesmente ganha um peão; 8...Cxe5 9.Be2 (9.Cxe5 fxe5!? 10.Be2 0-0 10.c5 é melhor para as Brancas) 9...0-0 10.0-0 deixa as Pretas com problemas sobre como se desenvolver; e, finalmente, 8...fxe5 9.c5! Cg4 10.Bg5 é simplesmente muito bom para as Brancas.9.Dxd8+ Rxd8

Este não é o final que eu queria quan-do joguei minha velha defesa predileta. Especificamente, o cavalo c6 está “no cami-nho”. Infelizmente, 9...Cxd8? permite 10.Cd5, ganhando o peão f6 ou o peão c7.10.0-0-0+ Bd7 11.h3 (Diagrama 159)

As Brancas têm que tomar um tempo para impedir ...Ch6-g4, que é algum conso-lo para mim. Agora eu tenho que fazer um trabalho de reparação para harmonizar as minhas peças.11...Rc8! 12.c5 Cf7 13.Bc4 Ccd8 14.b4 c6 15.Cd2 Be6

Eu gosto muito de meus últimos lan-ces e mantive a vantagem das Brancas no mínimo.16.Be2

Um recuo surpreendente. Eu esperava 16.a4, jogando por uma iniciativa na ala da dama, ou talvez 16.g3, preparando para f2-f4 e tentando abrir a posição para seu desen-volvimento superior.16...Bh6!

Recorrendo ao bom dogma estratégi-co: trocar suas peças inativas por peças ati-vas do seu adversário. O texto prepara um futura ...b7-b5, para tomar espaço também na ala do rei.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 277

DIAGRAMA 159. Jogam as Brancas

17.Bxh6 Cxh6 18.Cc4 Cdf7 19.a4 Rc7 20.b5 Tad8!

Escapando por pouco do toque de recolher. Eu joguei isso na hora certa, antes que a ala da dama seja chaveada.21.b6+ Rb8 22.Ce3 Td4! 23.Cc2 Txd1+ 24.Txd1 Td8! 25.Rb2 f5 26.a5 Cg8 27.Txd8+ Cxd8 28.Ra3 Cf6 29.Bd3 (Dia-grama 160)

DIAGRAMA 160. Jogam as Pretas

Consegui acompanhar o fluxo muito bem. Visualmente, as Brancas estão bem em

termos de espaço e contagem de casas, mas a posição das Pretas não é tão difícil quanto parece. As Brancas precisam genuinamente cuidar para que o peão c5 não se torne um alvo após ...Cf6-d7 e ...Cd8-e6, que realmente parece uma boa ideia.29...fxe4! 30.Cxe4 Cd7 31.Ce3 Bd5 32.Rb4 Ce6 33.Bc4 Cf4 34.Cg5 h6 35.Cf7

Aumentando consideravelmente a vee-mência do jogo, Anatoly decide trocar seus peões na ala da dama pelos meus na ala do rei. Eu considerava que o final resultante es-tava equilibrado.35...Bxf7 36.Bxf7 Cd3+ 37.Rc4 C3xc5 38.Bxg6 axb6 39.axb6 Ca4 40.Cg4 Caxb6+ 41.Rd3 (Diagrama 161)

DIAGRAMA 161. Jogam as Pretas

Apesar do reduzido número de peças, se puderem capturar o peão h6, as Brancas terão um jogo muito superior, pois o peão h3 passado tornar-se-á o mais perigoso no tabuleiro. Felizmente, eu tenho algumas tá-ticas para retardar as Brancas.41...Cd5! 42.g3 Ce7 43.Bf7 Cf5! 44.Rd2 Rc7

Meu rei sai de sua toca na hora certa para manter a posição equilibrada.45.Be6 Cd4 46.Bxd7 Rxd7 47.Cxe5+

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278 Yasser Seirawan

Anatoly pisca primeiro e decide garan-tir um empate. Qual lado fica melhor após 47.Cxh6 Re6 ninguém sabe. Ambos os lados têm peões passados interligados apoiados por seus cavalos. Eu estava feliz por meu cavalo estar bem centralizado e poder rapi-damente voltar para se sacrificar caso neces-sário.47...Re6 48.Cg4 h5 49.Ce3 b5 50.Rd3

Provavelmente não importa mas, se eu estivesse com as Brancas, 50.f4 e 51.g4 seria minha escolha para começar a avançar os peões.50...c5 51.f4 Cf5 52.g4 Cg3

Uma tentativa interessante de jogar pela vitória. Após 52...hxg4 53.hxg4 Cxe3 54.Rxe3, o empate poderia ser acordado. Eu queria manter meu peão da coluna h no ta-buleiro e explorar minhas chances.53.Cc2 h4 54.Ce3?!

A pressão do tempo estava começan-do a ser um fator para Anatoly mais uma vez. Uma linha mais segura era 54.Ca3 b4 55.Cc4 Ch1 56.f5+ Rd5 57.g5 Cf2+ 58.Re3 Ce4 59.g6 Cf6 e, com os peões de ambos os lados blo-queados, a partida está empatada.54...c4+

Meus peões são os primeiros a cruzar a linha de demarcação. Uma reviravolta e tan-to desde os diagramas anteriores.55.Rd2?!

Procurando problemas. Aqui, 55.Rc3 Ce2+ 56.Rb4 Cxf4 57.Rxb5 e as Brancas de-vem empatar.55...Ce4+ 56.Re2 Cd6!

Preparando para avançar meus peões ainda mais.57.Cg2?

Uma flagrante superestimação de sua posição. As Brancas estão brincando com fogo e deveriam ter jogado 57.Rd2, vigiando de perto os criminosos fugitivos.57...b4 58.Cxh4?

Agora as Brancas estão perdidas. Elas devem jogar 58.Rd2, mas elas já dificultaram muito as coisas para si mesmas. Por exem-

plo, 58.Rd2 c3+ 59.Rc2 (59.Rd3 Cb5) 59...Rd5 60.Rb3 Re4 61.Ce1 Rxf4 62.Rxb4 Ce4, com chances práticas para as Pretas. Em um mo-mento desses, estou contente que os peões da coluna h continuam no tabuleiro.58...b3 59.Rd2 Ce4+ 60.Rc1 0-1

Neste momento, a seta de Anatoly caiu, mas a posição já está perdida. Após 60...c3 61.Cf3 Cd2! 62.Cd4+ (62.Cxd2 b2+!, é um Zwischenzug horrível) 62...Rd5 63.Cxb3 Cxb3+ 64.Rc2 Rc4, eu vou jogar ...Cb3-d4+ e promover meu peão em c com xeque.

Antes de a segunda partida rápida ser disputada, foi realizado um torneio de Blitz de última hora no dia de folga. Ljubo levou as honrarias máximas e Karpov ficou em se-gundo. Eu terminei com “+1”, mas não joguei bem. Em nossa partida, Anatoly superou-me totalmente, mas o relógio foi meu aliado, pois Anatoly excedeu seu limite em uma po-sição vitoriosa.

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanRoquebrune (Blitz), 1992

Benoni Tcheca

1.d4 Cf6 2.c4 c5 3.d5 e5Quando joguei no Campeonato Mun-

dial Juvenil em Skien, Noruega, em 1979, vi Jim Plaskett massacrar seu adversário no lado das Pretas desta defesa em uma va-riante da linha principal. Impressionado, utilizei esta defesa com as Pretas em várias ocasiões, com resultados razoáveis. Embora seja uma linha especialmente eficaz contra computadores e oposição em torneios aber-tos, ceder tanto espaço a Anatoly foi uma péssima ideia.4.Cc3 d6 5.e4 Be7 6.g3

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 279

Surpreendentemente, este trata-mento ligeiramente passivo é o preferido pela maioria dos Grandes Mestres. A linha principal é 6.h3 0-0 7.Cf3 Cbd7 8.Bd3 Ce8 9.g4, quando as Brancas jogam por Dd1-e2 e roque na ala da dama. A ideia desse tipo de posição Índia do Rei/Benoni um pouco incomum é ser capaz de jogar ...f7-f5, após o fianchetto do cavalo e8. Neste sentido, as Pretas atingem uma saída DIR, e o bispo e7 fica melhor posicionado.

A ideia do texto é responder ao avanço ...f7-f5 com f2-f4, para impedir que as Pretas expandam-se ainda mais. Além disso, devido à estrutura central dos peões, existe um pe-rigo de que o bispo f1 possa tornar-se “mau”, e as Brancas assim poderiam escolher jogar Bf1-h3 para trocar o bispo c8 das Pretas.6...0-0 7.Bg2 Ce8 8.h4 g6 9.h5 (Diagrama 162)

DIAGRAMA 162. Jogam as Pretas

9...g5??Um erro estratégico ridículo de gran-

des proporções. Este lance é errado por vários motivos. Primeiro, porque eu fecho o lado do tabuleiro que eu preciso abrir para adquirir um contra-ataque. Segundo, perde-se a oportunidade de ...Be7-g5, uma ideia estratégica importante para as Pretas, trocando seu bispo mau. Por fim, crio uma

gritante lacuna na casa f5. Eu devo ter visto um fantasma depois de 9...Cd7 10.Bh6 Cg7 11.Dd2, ficando insano.10.Bh3!

Imediatamente jogando pelo controle sobre a casa f5.10...h6

Uma aquiescência meio dócil ao último lance das Brancas. Embora eu não goste da posição das Pretas, eu deveria jogar 10...Cd7, ao menos preservando os bispos nas casas brancas por um tempo. Se eu conseguisse ...h7-h6, ...Ce8-g7 e ...f7-f5, eles poderiam permanecer no tabuleiro, algo que favorece-ria as Pretas.11.Bxc8 Dxc8 12.Cf3 Cg7?

Agora eu estou tendo muita dificulda-de para compreender o que estou fazendo. Após 12...f5 (estrategicamente obrigató-rio) 13.Ch2, as Brancas têm uma vantagem saudável. Mas, com 13...Cf6 14.De2 Bd8, eu poderia tentar posicionar minhas peças em casas ativas.13.Ch2 Cd7 14.Cg4 Rh7 15.Ce3 Cf6 16.De2 Cg8 17.Bd2 f5 18.exf5 Cxf5 19.Dd3 Rh8 20.Cxf5 Dxf5 21.Dxf5 Txf5 (Diagrama 163)

DIAGRAMA 163. Jogam as Brancas

22.g4!As Brancas agora têm um domínio po-

sicional maciço.

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280 Yasser Seirawan

22...Tf7 23.Re2 Taf8 24.Thf1 Cf6 25.f3 Bd8?

Cometendo erro grave com o peão. Eu tinha que prefaciar o texto com 25...a6! e so-mente então tentar ativar meu bispo.26.Cb5!

Ops. A velha Variante do Garfo. Eu per-co um peão e minha posição afunda de ruim para perdida instantaneamente.26...Be7 27.Cxa7 e4 28.Bc3 Rh7 29.Bxf6 Bxf6 30.fxe4 Bxb2 31.Txf7+ Txf7 32.Tf1 Te7 33.Rd3 Be5?

É, olhando esta partida fico me per-guntando o que estou fazendo. Até parece uma equipe de lutadores na qual estou tra-balhando junto com Anatoly para ajudá-lo a surrar este personagem do Seirawan. Eu deveria ao menos jogar 33...Rg7 para cobrir a casa f8.34.Tf8! Rg7 35.Tb8 Bh2 36.a4 Rf6 37.Cb5 Td7 38.Te8! Be5 39.Te6+ Rg7

Minha posição está arruinada. Imagino que o único motivo pelo qual não renunciei foi que Anatoly estava significativamente atrás no relógio.40.a5 Rh7 41.Rc2 Rg7 42.Rb3 Rh7 43.Ra4 Rg7 44.Ca7 Bg3 45.Rb5 Rh7 46.Rb6 Rg7 47.Cb5 Rh7 48.Cc7 Be1 49.Ce8 Tf7 50.Cxd6 Tf2 51.Cxb7 Tc2 52.a6 Tb2+ 53.Rc6 0-1

Lamentavelmente para Anatoly, mas felizmente para o herói deste livro, a seta de meu adversário caiu nesta posição incorrigi-velmente vencida. Não é meu momento de maior orgulho... Se ouso dizê-lo, alguns lan-ces antes ofereci um empate – em uma posi-ção perdida – porque meu adversário estava muito atrás no relógio. Anatoly achou que tinha tempo suficiente para fazer dama e dar xeque-mate. Em Mônaco é preciso apostar...

Na cerimônia de encerramento do primeiro torneio Melody Amber, eu estava sentado ao lado de Anatoly desfrutando da camaradagem do evento quando ele me disse: “Sabe, Yasser, não tenho certeza se al-

guma vez já perdi três partidas em torneios em uma semana, e com certeza não para o mesmo adversário”. Tivemos que rir. Foi um evento e tanto. Felizmente, Muriel e Joop também acharam, e o torneio Melody Am-ber é um destaque no circuito de torneios todos os anos. Fico muito grato a eles e a Melody também!

A partir de 5-10 de julho de 1992, Bes-sel Kok e a SWIFT organizaram um evento de nocaute com 32 jogadores como uma espécie de consolo para aqueles que ti-nham se qualificado para a segunda sé-rie dos torneios da Copa do Mundo que a GMA cancelou. O formato consistia em duas partidas rápidas seguidas por duas partidas de Blitz se necessário para o de-sempate, e por fim a partida Armagedom, na qual as Brancas têm seis minutos para os cinco das Pretas mas as Pretas têm a vantagem do empate. O seguinte é meu preâmbulo na Inside Chess para nosso ma-tch de nocaute.

“É sempre um prazer jogar com um en-xadrista magnífico como Anatoly Karpov, mas as coisas não começaram como eu gostaria. Na primeira partida, uma Índia da Dama, Karpov, de Pretas, neutralizou totalmente a posição e empatou com facilidade. Ele então estava pronto para vencer o match com as Brancas, mas a partida lhe escapou. Em certo momento, eu estava dez minutos à frente no relógio – uma vantagem insuperável.”

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovBruxelas (rápido), 1992Defesa Índia da Dama

1.Cf3 Cf6 2.c4 b6 3.Cc3 Bb7 4.d4 e6 5.a3O lance de Tigran Petrosian. Linha, de

passagem, que Victor Korchnoi despreza

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 281

totalmente. “É o antixadrez. Você despende um tempo inteiro na abertura para negar uma casa ao bispo f8. O que é isso?”, ele pro-testava. Bom argumento, mas as Brancas têm realmente um motivo: elas esperam usar o cavalo c3 para aumentar seu controle sobre o centro. Tendo estudado tantas linhas da Índia da Dama, eu estava ficando deses-perado pelas Brancas.5...d5 6.cxd5 Cxd5 7.Dc2 Cxc3 8.Dxc3

O lance-padrão é 8.bxc3, reforçando o peão d4 e preparando para criar uma falange de peões no centro. A ideia do texto é com-plicar a ruptura libertadora ...c7-c5 das Pretas graças ao possível ataque sobre o peão g7.8...Cd7 9.Bg5 Be7

Na época, isso foi uma certa surpre-sa. Eu tinha esperado 9...f6 10.Bh4 e, conti-nuando rapidamente com e2-e3 e Bf1-c4, eu esperava exercer pressão sobre o peão e6.10.Bxe7 Rxe7! (Diagrama 164)

DIAGRAMA 164. Jogam as Brancas

Asneiras. Embora não seja todo dia que se vê o rei de Karpov no centro des-se jeito, foi a recaptura correta. Após a es-perada 10...Dxe7?! 11.Dxc7! Cf6 12.Dxe7+ Rxe7, eu acho que as Pretas não têm a devida compensação, diferentemente de meu final com Spassky do Aberto dos Es-tados Unidos.

11.e3 Tc8 12.Bb5 c6 13.Be2 c5 14.Td1Agora tenho dúvidas quanto à sabe-

doria de capturar o peão g7. Após 14.dxc5 Txc5! 15.Dxg7 Tg8 16.Dxh7 Cf6, seguida de 17...Txg2, o rei das Pretas subitamente pa-recia muito mais seguro no centro do que o meu.14...Cf6 15.0-0?!

Depois disso, desisto de qualquer chance de uma vantagem na abertura. Eu tinha que jogar 15.dxc5 Bd5 16.b4! bxc5 17.0-0, e esperar tirar vantagem do rei das Pretas.15...Dd5!

Assumindo uma posição dominante no centro com sua dama, as Pretas resol-vem todos os seus problemas. As peças logo são evacuadas do tabuleiro e o ponto é dividido.16.Tc1 a5 17.Tfd1 cxd4 18.Dxd4 Dxd4 19.Cxd4 Txc1 20.Txc1 Tc8 21.Txc8 Bxc8 22.f3 e5 23.Cb5 Cd5 24.Rf2 Bd7 25.Bc4 Bxb5 26.Bxd5 f6 27.h4 h6 28.Re1 ½-½

Os comentários a seguir para a segun-da partida foram publicados na revista Inside Chess (Volume 5, número 15, páginas 9 e 10).

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanBruxelas (rápido), 1992

Defesa Moderna

1.d4 d6 2.e4 g6 3.g3(?)Nunca entendi este lance, mas já vi for-

tes Grandes Mestres usarem-na como um antídoto para a Pirc. Por que posicionar mal o bispo f1?3...Bg7 4.Bg2 Cc6 5.Ce2 e5 6.d5 Cce7 7.c4 f5 8.Cbc3 Cf6 9.0-0 0-0

Prefiro as Pretas aqui porque eu ace-lerei a DIR e as peças menores das brancas estão descoordenadas.

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282 Yasser Seirawan

10.f4 Cxe4Jogando por “igualdade”. Manter a ten-

são com 10...Rh8 é provavelmente melhor.11.Cxe4 fxe4 12.Bxe4 Bg4 13.Dd3 Dd7 14.Bd2 Cf5 15.fxe5 Bxe2 16.Dxe2 Bxe5 17.Tab1 Tf7 18.Dd3 Taf8 19.Bg2? (Diagra-ma 165)

Tentando manter o jogo. As Brancas estão em melhor situação jogando pelo em-pate com 19.b3, seguida por uma troca geral na casa f5.

DIAGRAMA 165. Jogam as Pretas

19...Da4! 20.a3 Da6 21.Rh1 Db6 22.Bh3 Dd4 23.Dxd4 Cxd4 24.Txf7 Txf7 25.Rg2 Rg7 26.Bg4 Cb3 27.Be1 Cc5?

Ainda jogando por igualdade. Depois de 27...a5! 28.Bd1 a4, as Brancas têm proble-mas.28.Be2 Ca4 29.b4?

Karpov acredita nas Brancas por prin-cípio, mas isto é excessivo. Ele mantém uma boa desvantagem com 29.b3, com um jogo parecido com a partida.29...Cc3 30.Bxc3 Bxc3 31.Td1 Te7 32.Rf2 a5 33.b5 b6 34.Td3 Bb2 35.Bf3 Rf6 36.h4 h6 37.Bg2 Te5 38.a4 g5 39.Tf3+ Re7 40.hxg5 hxg5 41.g4 Bd4+ 42.Rf1 Be3 43.Th3?!

Anatoly estava preocupado com um final de bispos de cores opostas depois de 43.Tf5, mas isso deve dar empate.43...Bf4 44.Th7+ Rd8 45.Th6 Te3 46.Te6 Be5! 47.Tg6 (Diagrama 166)

DIAGRAMA 166. Jogam as Pretas

47...Bg3!Este lance acentua a diferença entre os

bispos.48.Bh1 Te1+ 49.Rg2 Bf4 50.Tg8+ Rd7 51.Tg7+ Rc8 52.Th7 Tc1 53.Th8+ Rb7 54.Te8 Txc4 55.Rf2 Txa4

Mais simples era 55...Be5, mantendo o bispo das Brancas fora.56.Be4 Tb4 57.Bd3 a4 58.Bf5 Txb5 59.Bc8+ Ra7 60.Bd7 Txd5

Posteriormente, um Grande Mestre perguntou-me, perplexo, como eu consegui tomar os quatro peões brancos em casas claras. “Mas onde estava o bispo de Karpov?” Mentes curiosas precisam saber.61.Bc6 Td2+ 62.Re1 b5 63.Bxb5 a3 64.Bc4 d5

(Valery) Salov perguntou-me: “Por que você não jogou 65...a2?”. O problema com esse lance é que ele acelera a partida.65.Bb3 c5! 66.Te2 c4 67.Ba2 Tb2 68.Rd1 Rb6 69.Txb2+ axb2 70.Rc2 Bc1 71.Rc3 Rc5

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 283

72.Rc2 Rb4 73.Rd1 d4 74.Bb1 d3 75.Re1 Be3 76.Rd1 Rc5 77.Re1 Rd4 78.Rd1 c3 79.Bc2 dxc2+ 80.Rxc2 Re4 81.Rb1 Rd3 82.Ra2 Rc2 0-1

Finalmente, Anatoly desistiu e eu ven-ci nosso match por nocaute. Eu acho que as duas partidas acima mostram claramente por que o evento FIDE de nocaute para de-cidir o título do Campeonato Mundial é uma loteria. Em um match de 24 partidas contra Anatoly, eu não teria chance. Em um match de duas partidas, minhas chances aumen-tam e tornam-se “razoáveis”, pois as parti-das de desempate apresentam controles de tempo cada vez mais rápidos. Agora con-sidere que, para vencer o evento, Anatoly teria que enfrentar sete adversários assim, cada um tendo uma chance razoável. Neste caso, as chances de ele vencer um evento desses – mesmo sendo um favorito antes do torneio – não podem ser maiores do que 10%.

Uma das coisas fantásticas sobre este evento da SWIFT foi que o patrocinador Bes-sel Kok convidou Eric Lobron como um “jo-gador-curinga”. Bessel comentou que alguns Grandes Mestres criticaram sua escolha por-que isso significava que alguém teria um match fácil de primeira rodada. Não aconte-ceu exatamente assim, pois Eric conseguiu chegar à final. Demais para uma vítima fácil. Ele perdeu para Michael Adams na final.

Meu próximo encontro com Anatoly foi no evento Melody Amber em Mônaco, em 1993. Dessa vez, Joop van Oosterom tinha uma surpresa para os participantes: a metade das partidas rápidas seriam joga-das às cegas. Minha nossa! Eu nunca tinha jogado uma partida formal às cegas antes e, como todos na área, receei que algo daria errado...

A real mecânica para jogar às cegas era que os enxadristas sentavam-se em frente a uma tela de um terminal de computador

com um tabuleiro bidimensional sem pe-ças. Víamos o lance em texto e digitávamos nossa resposta. Os lances em texto desapa-reciam, e tudo que víamos no transcurso da partida era um lance de “meia camada” de texto. As partidas podiam ser observadas por árbitros e espectadores normalmente, mas os jogadores não podia ver as peças. Era preciso se acostumar, pois é meio estranho ficar olhando para um tabuleiro vazio.

A partida a seguir foi nossa partida “rá-pida às cegas”. E a partida depois dessa foi uma rápida “normal”, na qual movíamos ma-deira da maneira convencional.

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovMonte Carlo (às cegas), 1993

Ruy López

1.e4!“Comprovadamente melhor”, segun-

do Bobby Fischer, e minha surpresa especial para Anatoly. Eu nunca tinha usado isso con-tra ele anteriormente. Nunca se sabe; às ce-gas, um lance inesperado desses pode fazer o jogador olhar o tipo realmente de perto.1...e5 2.Cf3 Cc6 3.Bb5 a6 4.Bxc6!

De acordo com a teoria moderna, a Va-riante das Trocas da Ruy López não deve ofe-recer às Brancas muita chance de vantagem. Embora isso possa ser verdade, jogar uma partida às cegas é mais fácil depois que as damas estão fora do tabuleiro e as estruturas estão fixas. Esse era o meu plano, ao menos. A ironia é como o jogo acabou sendo.4...dxc6 5.0-0 f6 6.d4 exd4 7.Cxd4 c5 8.Cb3 Dxd1 9.Txd1 Bg4 10.f3 Bd7 11.Bf4 0-0-0 12.Cc3 c4 13.Ca5! Bc5+ 14.Rf1 (Dia-grama 167)

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284 Yasser Seirawan

DIAGRAMA 167. Jogam as Pretas

Chegamos a uma posição muito trai-çoeira que deveria ser igual. Embora isso seja verdade, as Pretas têm que navegar com algumas táticas perigosas para alcançar a igualdade e um único passo em falso dará às Brancas uma vantagem considerável.14...b5!

Essencialmente obrigatório, pois as Pretas precisam proteger seu peão c4. Pa-rece atraente jogar 14...Bb4? 15.Cxc4 Bxc3 16.bxc3 Bb5!, quando as Pretas ganham material graças ao cavalo c4. A armadilha é que as Brancas jogam 15.Bxc7!, protegendo o cavalo a5 e atacando a torre d8. Quando as Pretas capturam com 15...Rxc7, então 16.Cd5+, e 17.Cxb4 ganha um peão.

Outra coisa a salientar nesta posição é que as Pretas têm que decidir se vão jogar ...g7-g5 ou não, ganhando um tempo contra o bispo f4. Após Bf4-g3, as Pretas ganham a opção de ...Cg8-h6 para preparar uma ex-pansão com ...f7-f5 ou apenas para redirecio-nar o cavalo. Por outro lado, deixar o bispo f4 em paz pode permitir ...Cg8-e7-g6, levan-do o cavalo à casa e5 com tempo. Às vezes é difícil pesar as duas linhas. Por enquanto, Anatoly deixa o bispo f4 em paz.15.Cd5! c6?

Eu me dei conta de que este era um erro conhecido e agora esforcei-me por compreender por quê. Afinal, eu geral-mente não jogo 1.e4, e portanto não estou tão familiarizado com todas as linhas. A “teoria” que eu esperava continuava com 15...Ce7! 16.Bxc7! Cxd5 17.Txd5 Rxc7 (17...Bb4? 18.Bxd8 Txd8 19.a4! Bxa5 20.axb5 Bb6 21.bxa6 é muito bom para as Bran-cas) 18.Txc5+ Rb6 19.b4 cxb3 20.Cxb3 Be6 21.Tc3, quando as Pretas têm suficiente compensação por seu peão.

É sempre um estranho desafio: seu ad-versário sai da teoria que você conhece para um canal lateral que “tem que ser bom” para você. Mas por quê? Seremos capazes de so-lucionar a questão sobre o tabuleiro?16.b4! Ba7!

O único lance. Eu tinha compreen-dido que 16...cxd5? 17.bxc5 dxe4 18.c6! Bf5 19.Cb7! Txd1+ 20.Txd1 Ce7 21.Cd6+ é um xeque vencedor, pois o rei preto tem que se expor a um xeque descoberto, permitindo Cd6xf5+, engolindo uma peça.

Aqui eu parei para pensar por muito tempo, usando a maior parte de meu tempo. Esta é a posição crítica.17.Be3?

Covardemente furtando-me ao de-safio. Embora eu simplesmente “soubesse” que 17.Cc7! tinha que ser o lance correto, eu estava ficando perdido no emaranhado de variantes. A ideia de 17.Cc7 é a mais di-reta possível. As Brancas querem capturar o peão a6 e depois jogar a2-a4 e Ca6-c5, quando eu teria tanto um peão quanto a iniciativa.

Embora as táticas sejam obscuras, elas são favoráveis às Brancas. Minha linha prin-cipal era 17.Cc7 Bb8!, que é essencialmente obrigatória. De outra forma, o peão a6 é per-dido por compensação insuficiente. As Bran-cas continuam com 18.Ce6! Bxf4 19.Cxc6! Te8 – até aí tudo bem. Ambos os lados es-tão em uma corda bamba muito estreita e

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 285

não devem desviar. Por exemplo, 18...Bxe6?? 19.Txd8+ Rxd8 20.Cxc6+ e 21.Cxb8 é muito bom para as Brancas, enquanto 19.Cxf4?! nos leva a uma posição muito semelhante à da partida.

A posição depois de 19...Te8 é mui-to aguda. Os dois cavalos brancos estão pendurados, eu sacrifiquei meu bispo f4 e preciso recuperar material. Eu tenho que continuar com 20.Ca7+! Rb8 (o único lance) 21.Cxf4, recuperando meu bispo. Em minha imaginação eu vi que o cavalo a7 não pode ser capturado, pois o bispo d7 está pendu-rado. Sem dúvida, meu cavalo está encurra-lado se não lhe for permitido fugir pela casa c6. As Pretas protegem seu bispo d7 com 21...Te7 (Diagrama 168), chegando-se ao diagrama de análise:

DIAGRAMA DE ANÁLISE 168. Jogam as Brancas

As Brancas não têm escolha exceto continuar 22.Cd5 Te6! 23.Cf4 Te7!, e tudo que eu vi era uma repetição. Hmm. Isso era estranho. Onde estava minha refutação? Eu vi rapidamente mas descartei 23.Cb6!? Be8 24.Cbc8, e parei de analisar. “O que meus cavalos estão fazendo em a7 e c8?”, eu me perguntava enquanto verificava

cada um dos lances acima procurando desvios vitoriosos; mas não encontrei ne-nhum. Eu não estava preparado para dar a Anatoly um empate fácil e por isso escolhi o texto, o qual dá uma pequena vantagem às Pretas.

Por bizarro que pareça e muito além de minhas habilidades às cegas, os cavalos das Brancas, embora desesperadamente agarrados um ao outro para sobreviverem, estão fazendo alguma coisa: eles dificultam que as Pretas completem seu desenvolvi-mento natural. Embora de forma alguma exaustiva, a seguinte linha parece muito natural: 24...Ch6 25.Td5 Cf7 26.Tad1 Ce5 27.Td6 Txd6 28.Txd6 Bd7 (28...Rb7? 29.Tb6+! e 30.Txa6 – um modo atraente de mostrar como os cavalos teimosos fazem “alguma coisa”) 29.f4 Bxc8 30.Cxc8, os cavalos fogem e as Brancas terminam com um final me-lhor.

Uma linha de jogo realmente profunda em que uma mistura de táticas e estratégia deixou-me perplexo. Como mencionado, eu simplesmente parei de considerá-la quando vi meus cavalos “encurralados”.17...Bxe3 18.Cxe3 Ce7 19.Td6?! Rc7 20.Tad1 Bc8!

O lance que eu simplesmente não vi em meus cálculos. Por algum motivo, “vi” apenas 20...Cc8 21.T6d4 e pensei: “Eu tenho uma repetição ao menos e talvez mais.” Agora, todos os problemas de aber-tura das Pretas ficaram para trás. Desper-tei com a compreensão de que meu “forte cavalo a5”, embora bem protegido, estava encurralado. Agora, Anatoly tem uma po-sição ligeiramente melhor, mas a posição das Brancas é sólida o suficiente e elas de-vem empatar.21.Txd8 Txd8 22.Txd8 Rxd8 23.Re2 Rc7 24.Rd2 Rd6 25.Cd1 c5 26.a3 cxb4 27.axb4 f5 28.exf5 Cxf5 29.c3 Ch4 30.Ce3 g5 31.Re2 Cg6 32.g3 Ce7 33.f4 g4?! (Dia-grama 169)

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286 Yasser Seirawan

DIAGRAMA 169. Jogam as Brancas

Depois deste lance, permitindo-me um peão passado protegido, a posição é igual. As Pretas deveriam jogar 33...gxf4 34.gxf4 para manter a partida viva. A posição ain-da seria ligeiramente melhor para as Pretas, mais uma vez graças ao cavalo a5 na lateral.34.Rd2 Rc7 35.Cc2

Indo para uma missão de tentativa de resgate. A ideia é jogar Cc2-d4, tornando Ca5-c6 possível caso seja permitida.35...Cd5 36.Cc6?? Rxc6 0-1

Ops. Não é à toa que se chama xadrez às cegas. Eu simplesmente pensei que já tivesse jogado 36.Cd4. Um fim muito trá-gico para uma partida interessante. Meu único consolo era que, naqueles primeiros dias de Amber, estes erros graves não eram excepcionais, pois muitos de meus colegas cometiam seus erros crassos (howlers). A palavra howler, aliás, merece uma explica-ção. Trata-se de erros que são tão graves que, depois de retirar-se com dignidade do salão de jogos, o enxadrista pode dar uma caminhada (longe do hotel dos enxa-dristas) onde pode gritar tão alto que seu uivo (howl) pode ser ouvido no município vizinho!

Em nosso segundo encontro, uma par-tida rápida normal, ambos tínhamos visão do tabuleiro – para meu alívio.

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanMonte Carlo (rápido), 1993

Defesa Semi-Tarrasch

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cf3 d5 4.Cc3 c5 5.cxd5 Cxd5 6.e4 Cxc3 7.bxc3 cxd4 8.cxd4 Cc6 9.Bc4 Bb4+ 10.Bd2 Bxd2+ 11.Dxd2 0-0 12.0-0 b6 13.d5?!

Se este impulso é bom para as Brancas, toda a variante seria ruim para as Pretas. Em teoria, as Brancas deveriam pacientemen-te preparar seu avanço com 13.Tfe1 Bb7 14.Tad1, obtendo uma vantagem. Desta forma, as Brancas fizeram as Pretas compro-meterem seu bispo à casa b7, o que é impor-tante pois impede a manobra de bloqueio ...Cc6-a6-b7-d6, depois da qual as Brancas podem jogar o avanço d4-d5 e, esperam, continuar andando.13...Ca5 14.Be2 exd5 15.exd5 Bg4!?

Pretendendo livrar-me do cavalo f3 e jogar ...Dd8-d6, montando um bloqueio nas casas pretas. A imediata 15...Dd6 16.Cd4 se-ria um pouco melhor para as Brancas.16.d6!?

Anatoly sentiu-se obrigado a tentar atrapalhar meus planos. A questão é se o pe-quenino foi muito longe rápido demais.16...Df6 17.Tfd1 Tad8 18.Dd4 Tfe8 19.Dxg4 Txe2 20.Tac1 Cb7 21.Tc8? (Dia-grama 170)

Um equívoco tático que causa a perda do peão d6. Eu esperava 21.Tc7 Cxd6 22.Txa7, com um empate. Outro erro sério seria 21.d7? Cc5, quando o peão em d fica cercado.

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 287

DIAGRAMA 170. Jogam as Pretas

21...Cxd6 22.Txd8+ Dxd8 23.h3!?Confessando seu equívoco. As Brancas

tinham pretendido 23.Cd4, atacando a torre e2, seguido de 24.Cf5, ameaçando xeque--mate em g7, além de atacar o cavalo d6 cravado e “estar vencendo”. O problema é que 23...Te4!, atacando a dama das Brancas, é um lance muito bom, que detém o plano das Brancas imediatamente. As Pretas então continuam com ...Dd8-e7, com um peão só-lido a mais.23...De7 24.Da4 g6 25.Dc6 Te6?

Uma reação natural, pois eu quero manter a posição e também meu peão extra. Em vez desse recuo, era melhor partir para o ataque por meio de 26...Ce4! 27.Td7 Dc5! 28.Dxc5 bxc5 29.Txa7 c4, com um final muito melhor para as Pretas.26.Td5 Ce8?!

Não é tão fácil livrar-se da pressão das Brancas, mas esta foi a forma errada. Eu de-veria jogar 26...Rg7! 27.Dc3+ Df6 28.Cd4 Rg8!, lance que não vi. Eu vi 28...Te7 como um modo desejável de me consolidar, pois ...Cd6-e4-c5 colocaria o cavalo em uma casa ancorada; mas 28...Te7? permite 29.Txd6! Dxd6 30.Cf5+, e o duplo xeque é vitorioso para as Brancas. Após 28...Rg8!, as Pretas serão capazes de melhorar suas peças. Por

exemplo, 29.Dg3 Te1+ 30.Rh2 Ce8! 31.Td7 a6, e a vantagem de um peão a mais será lentamente sentida.27.Dc8 Dc7?

Jogando fora um peão e o resto de mi-nha vantagem. As Brancas estariam ainda pio-res depois de 27...Te2 28.Td8 (28.Td7? De6 é agora muito bom para as Pretas) 28...b5!, len-tamente melhorando minha posição. Anatoly agora aproveita a oportunidade para recupe-rar seu peão.28.Dxc7 Cxc7 29.Td7! Cb5

Minha intenção tinha sido 29...Tc6 30.Ce5 Tc1+ 31.Rh2 f5, quando achava que teria uma chance de ...Cc7-b5 e ...Tc1-c7, mas isso é lento demais, pois após 32.Cf7! as chances das Brancas certamente não são piores.30.a4 Cc3 31.Txa7 h6 32.a5 bxa5 ½-½

Eu fiquei realmente irritado comigo mesmo por estragar esta partida. Foi como se Anatoly me entregasse um peão e pudes-se empatar à vontade.

O Grande Cisma revisitadoNo segundo evento Melody Amber em 1993, todas as discussões foram dominadas pelo match dissidente entre Garry Kasparov e Nigel Short. Como Nigel estava jogando no torneio, era muito interessante saber seu ponto de vista. Lamento relatar que Nigel estava meio estupefato, talvez até horro-rizado, por seus amigos terem achado tão ruim sua declarada decisão de romper com a FIDE, sendo que muitos deles, e mais espe-cialmente John Nunn, pediram-lhe, não da forma mais educada, que por favor reconsi-derasse sua decisão.

Apesar das críticas que lhe foram fei-tas, inclusive de minha parte, Nigel man-teve sua decisão. Em sua visão, Florencio Campomanes, o presidente da FIDE, tinha se envolvido em algumas práticas clandestinas. Nigel esperava uma oferta de quase dois mi-

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lhões de libras esterlinas de Manchester, ba-seado em conversas que ele teve com auto-ridades municipais. Quando a FIDE anunciou a oferta de Manchester, foi de um milhão e duzentas mil libras. Nigel queixou-se amarga-mente: “O que é isso? Oitocentas mil libras do prêmio em dinheiro desapareceram no orça-mento.” (Nos bolsos de Campomanes, fomos convidados a presumir.) Nigel pôs a culpa por sua decisão de romper com a FIDE direta-mente nos ombros de Campomanes e deixou claro que não queria mais nenhum negócio com ele ou com a FIDE. “Eu não me importo com a taxa de 20% da FIDE, a qual, tudo bem, é uma paulada; mas, quando a verba de pre-miação é propositalmente sabotada, esque-ça. Eu me recuso a fazer o papel de babaca.”

Sem dúvida, Nigel Short não será o pri-meiro nem o último Desafiante a se sentir mal remunerado. Sinto-me muito solidário com ele nesta questão em particular. Recor-de que, em 1990, os “dois Ks”, Kasparov e Kar-pov, dois enxadristas soviéticos, competiram por um prêmio de três milhões de dólares no Ocidente (Nova Iorque e Lyons), e agora Nigel, o primeiro Desafiante ocidental desde Bobby Fischer a competir pelo título mun-dial, tinha que competir por muito menos. Suas expectativas eram compreensivelmen-te altas. Além disso, não vamos esquecer que, no ano anterior, Fischer tinha jogado contra Spassky por um prêmio de cinco milhões de dólares. Nigel não podia simplesmente livrar-se do sentimento de que algo estava errado ou confuso. Pessoalmente, sem quais-quer ideias em particular, o que sempre me perguntei é de onde vinham estes milhões. No caso de Nova Iorque, Ted Field tinha sido o Midas por trás da oferta, ao passo que, no caso do novo match Fischer-Spassky na Iu-goslávia, foi Jezdimir Vasiljević, o chefe das empresas Jugoskandic: um esquema fraudu-lento gigantesco que posteriormente ruiu ti-nha sido o patrocinador. Estas não eram ofer-tas do “livre mercado”; eram patrocinadores “privados” gastando milhões.

Como grande fã dos esportes america-nos, tenho inveja dos milhões ganhos pelos profissionais do golfe e do tênis, mas com-preendo que os eventos são televisionados e atraem muito dinheiro com a publicida-de, justificando a economia subjacente aos eventos. Os importantes eventos de xadrez exibidos na televisão são realmente raros, e as forças mercadológicas não justificam os milhões que os enxadristas querem ou es-peram. Está tudo bem e é bom dizer: “Em 1990, o Campeonato da FIDE foi por três milhões e, com a inflação, o prêmio deve aumentar”, mas cada match é um evento separado com pessoas diferentes, dinâmi-ca diferente e circunstâncias econômicas diferentes. O xadrez tem dependido de fi-nanciamentos privados e, quando as cida-des fazem ofertas, públicos. A publicidade na mídia não tem apoiado esses eventos. Sem James Slater, o homem que dobrou a verba do prêmio de 1972, será que teria ha-vido um primeiro match Spassky-Fischer? Às vezes grandes ofertas em dinheiro se encai-xam, às vezes não. A história do xadrez está repleta de histórias de supostos grandes patrocinadores que almejam um evento de primeira, mas, quando chega a hora, o che-que simplesmente não sai.

Considerando o match de 1993, do lado da FIDE fomos informados de que tudo tinha sido feito conforme as regras e regu-lamentos, que os procedimentos de concor-rência foram abertos e transparentes, e que, se os enxadristas tivessem outros patroci-nadores para serem considerados, a FIDE estava disposta a estender o prazo de apre-sentação de propostas para sua inclusão. As ofertas da FIDE não deram em nada. Os da-dos tinham sido lançados.

Juntos, Garry Kasparov e Nigel Short, juntamente com o advogado de Nova Ior-que Bob Rice, fundaram a Associação Pro-fissional de Xadrez (PCA) para sancionar seu match. O jornal londrino The Times tornou-se o anfitrião e patrocinador. Kasparov e Short jogariam por um milhão de libras esterlinas.

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Sem a necessidade de subtrair a taxa de 20% da FIDE, não era uma diferença insignifican-te; e os enxadristas provavelmente saíram “ganhando” no curto prazo. Por outro lado, a cisão produziu tremendas futuras perdas financeiras para o mundo do xadrez, pois os patrocinadores simplesmente não queriam ter que “escolher lados” ao tomarem uma decisão sobre o pagamento de um anfitrião para um evento de xadrez.

Consumada a ruptura, a FIDE viu-se diante de um enorme problema: grande par-te de seu orçamento dependia da comissão proveniente do match pelo título do Cam-peonato Mundial. A maior parte do resto do ciclo mal cobria suas próprias despesas, e era a joia da coroa do match que colocava o balanço de contas da FIDE no saldo cre-dor durante um período de três anos. Esta dependência a um match do Campeonato Mundial significava que a FIDE não tinha es-colha a não ser organizar um match por sua própria conta. Os estatutos da Federação eram muito claros a esse respeito, pois Nigel Short tinha derrotado Anatoly Karpov nas Finais de Candidatos em 1992 assim como Jan Timman nas Semifinais dos Candidatos. Como mencionado anteriormente, ambos os enxadristas foram convidados a disputar um match pelo título do Campeonato Mun-dial da FIDE e ambos aceitaram.

A rivalidade entre a PCA e a FIDE era feroz. Ambas as organizações estavam deses-peradas para superar a outra em termos do prêmio em dinheiro. Campomanes tinha uma surpresa: anunciou que Omã sediaria o match Karpov-Timman e deu a entender que o prê-mio envolvido seria maior do que o do match da PCA em Londres. O match da FIDE foi pro-gramado para ser dividido entre Holanda e Omã. O interessante é que o lado holandês da proposta não incluiu verbas para a premiação, somente os custos de hospedagem. Foi um negócio estranho: os árbitros, organizadores, hotéis e salões do torneio seriam todos pagos pelo comitê organizador holandês, mas nada iria para os enxadristas. Outra vez, isso era por-

que os organizadores da segunda metade do match em Omã deveriam levantar os milhões de dólares inteiramente por sua conta.

Depois que a primeira metade do match de 24 partidas tinha sido concluída na Holan-da, com Anatoly na liderança com um placar de 7½-5½, emergiu uma crise: no último mo-mento a proposta de Omã ruiu e a FIDE não havia providenciado uma garantia financeira. O match ficou em tumulto. Houve uma reu-nião com Bessel Kok para salvar a segunda metade do match, mas Campomanes tinha uma segunda opção em Jacarta, Indonésia. O Sr. Bob Hassan patrocinaria a segunda meta-de do match.

Como eu era assistente de Jan Timman durante este match, juntamente com Ulf Andersson e Jeroen Piket, posso dizer que todos estávamos preocupados com a pro-posta de Omã, pois nenhum de nós tinha qualquer conhecimento sobre os organi-zadores omanis. Foi tudo um blefe para su-perar a PCA ou foi uma oferta genuína can-celada no último momento possível? Não sabíamos. O Sr. Hassan revelou-se um anfi-trião encantador, e Jacarta organizou um match impecável mas, no final, houve uma defasagem nas verbas para os prêmios. Os enxadristas aceitaram um esquema de paga-mento com atraso, e muitas das autoridades e patronos tiraram de seus próprios bolsos para cobrir o déficit. Dizer que foi uma épo-ca de desafio para os líderes da FIDE seria pouco. Quando a proposta das Olimpíadas ruiu em 1994 e foi salva pelos esforços de Kasparov e dos organizadores de Moscou, foi um período crítico para a FIDE.

O Campeão Mundial da FIDEEm minha partida seguinte com Karpov, eu es-tava mais uma vez diante do Campeão Mun-dial da FIDE, em virtude de sua vitória sobre Jan Timman em 1993. O renascido Campeão Mundial continuava sendo a mesma pessoa que era antes de reconquistar o título da FIDE.

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A campeonite não tinha batido, e nossos en-contros foram sempre muito amigáveis.

A pergunta constante era: quando o cisma no mundo do xadrez encontraria sua cura? Kasparov e Karpov iriam se en-contrar pela sexta vez? Como mencionado no capítulo sobre Kasparov, Garry queria um match, mas não nos termos que a FIDE poderia lhe oferecer: um match em que Karpov, como Campeão, teria a vantagem do empate. Além disso, os respectivos ci-clos da PCA e da FIDE estavam a pleno va-por e, em breve, cada um deles teria um Desafiante. Parecia que as chances de uma reconciliação continuavam diminuindo depois disso.

Em 1994, Anatoly venceu o torneio de Linares sem derrota com impressionan-tes 11 pontos de um total de 13 partidas. O enxadrista com maior rating, Garry Kas-parov, empatou em segundo e ficou dois pontos e meio atrás. Segundo vários sites na internet, a vitória de Anatoly em Lina-res foi o maior Rating de Desempenho em Torneio na história. Às vezes, e eu sei que isso pode parecer estranho, o xadrez pode ser um jogo de confiança. Quando sua con-fiança está alta, você joga mais rápido, está mais disposto a correr riscos e espera que a oportunidade o cumprimente. Isso aconte-ce com frequência.

Mais uma vez, Anatoly e eu disputa-mos duas partidas de xadrez rápido em Mônaco, no terceiro torneio Melody Am-ber. Dessa vez eu não entreguei uma peça em nossa partida às cegas, felizmente. Sempre que você enfrenta Karpov, é a mes-ma história: o que jogar com as Brancas? Havia problemas em toda parte. Quando eu me preparava para nossas partidas era como se eu obtivesse igualdade com as Brancas e uma pequena desvantagem com as Pretas. Parecia tão injusto. Carente de outras ideias, ao menos fui à partida com um plano: o Ataque Torre, que é uma aber-tura tranquila mas também com uma pita-da de veneno.

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovMonte Carlo (às cegas), 1994

Ataque Torre

1.d4 Cf6 2.Cf3 e6 3.Bg5 h6 4.Bxf6!?Abrir mão do par de bispos tão preco-

cemente não parece particularmente inspi-rador, mas em compensação as Brancas for-mam uma falange no centro.4...Dxf6 5.e4 d6 6.c3!?

Possivelmente, esta abordagem é simplesmente muito pacata e não promete nada. As Brancas podiam querer tirar van-tagem de sua mobilidade e jogar 6.Cc3 g6 (6...g5!?) 7.Dd2 Bg7 8.0-0-0, com a ideia de Bf1-c4 e tentando estourar o centro.6...g6 7.Cbd2 Bg7 8.Bc4 Cd7 9.0-0 0-0 10.Te1 e5 11.dxe5?!

Neste tipo de posição, é sempre um negócio traiçoeiro tentar decidir quando clarear o centro fazendo esta troca e quan-do avançar os peões na ala da dama. Em-bora eu ache que a posição não promete muito para as Brancas, provavelmente era melhor manter a tensão. Nunca se sabe quando d4-d5, estancando o centro e man-tendo o bispo g7 bloqueado, vai funcionar. Com o texto, eu simplesmente perco a op-ção para sempre.

Uma escolha melhor era 11.b4 (11.a4 a5) 11...Cb6!? 12.Bb3 a5 13.a3 Td8 14.h3, com uma posição que oferece possi-bilidades para ambos os lados.11...dxe5 12.Dc2?! a5 13.a3?!

Considero meus dois últimos lances simplesmente tímidos demais. Jogar por uma “posição sólida” é uma coisa, mas per-mitir que seu adversário ganhe espaço livre-mente é bem outra.13...a4! 14.Cf1 Cc5 15.Ce3 c6 16.Tad1 h5! (Diagrama 171)

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 291

Um lembrete de que as Pretas pos-suem o par de bispos e conseguiram vanta-gem. O texto abre caminho para ...Bg7-h6, ativando o clérigo adormecido.

DIAGRAMA 171. Jogam as Brancas

17.Ba2 De7 18.Cd2Neste ponto estou meio que lutando

para encontrar um plano adequado. Estou tentando criar alguma flexibilidade em minha posição, mas não tenho uma ideia concreta de como jogar, então decidi aguardar desenvol-vimentos. Infelizmente, na arte do “não fazer nada”, estou diante do profissional consumado.18...Tb8 19.f3 b5 20.Cdf1 Be6 (Diagrama 172)

DIAGRAMA 172. Jogam as Brancas

Tudo bem, com certeza este é um lance muito bom, pois as Pretas ganham contro-le sobre a casa b3. Por outro lado, eu fiquei muito satisfeito por estar livre dos dois bis-pos das Pretas e me perguntava o que meu bispo a2 poderia estar fazendo depois de, digamos, 20...Tb7!, com o plano de ...Rg8-h8 e ...f7-f5 a seguir. A torre b7 poderia balançar para o lado do rei ou apenas desafiar pelo controle da coluna d.

Nos próximos doze lances, ambas as partes movimentam suas peças no tabulei-ro, mas, sem uma séria mudança na estrutu-ra de peões, nada de mais acontece.21.Bxe6 Cxe6 22.Df2 Dc7 23.Cc2! Tfd8 24.Cb4 Tbc8 25.Ce3 Bf8 26.Rf1 Cf4 27.Cec2 Td7 28.g3 Ce6 29.De2 Bd6 30.Ce3 Tcd8 31.h4 Db6 32.Cbc2 Cc5 33.Rg2 Cb3 34.Cf1 Dc7 35.Cce3 Cc5

Como anunciado: nada está aconte-cendo, ao menos se você comparar diagra-mas. Posso ouvir a voz do comentarista: “Fique sintonizado para a emocionante conclusão, mas primeiro vamos assistir ao comercial”.36.Td2

Preparando a tábua de cortar da colu-na d para trocar todas as torres. Neste ponto eu não queria oferecer um empate porque as Pretas ainda tem um pouquinho de van-tagem.36...Bf8 37.Ted1 Bh6 38.Txd7 Txd7 39.c4!

Optando por este lance libertador na hora certa. Embora eu abra mão do controle da casa d4, se eu puder obter algumas casas em troca, a posição das Brancas vai se bene-ficiar.39...Txd1 40.Dxd1 bxc4 41.Cxc4 Cb3 42.Cfe3!

Evitando a tentadora 42.Dd6? Dxd6 43.Cxd6 Ca5! (43...Bc1? 44.Cc4), quando as Pretas têm grande vantagem.42...Bf8 43.Cc2 De7 44.Ca1? (Diagrama 173)

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DIAGRAMA 173. Jogam as Pretas

44...Cc5?Cegueira mútua. Este lapso (espera-

do) permite-me tirar meus peões na ala da dama das casas pretas. As Pretas ainda te-riam opções após 44...Dc5! 45.Cxb3 Dxc4 46.Cc1 Bc5, graças a meu cavalo muito passivo. Em vez da fraca 44.Ca1?, 44.Cb4 era melhor, mantendo uma pequena vanta-gem. Isso tudo foi uma consequência de ter entregado território na ala da dama. O cava-lo b3 das Pretas vinha “pesando” na posição e em minha cabeça, e eu queria descartá--lo. Com a mesma clareza, Anatoly queria segurá-lo.45.b4! axb3 46.Cxb3 De6

Ambos Anatoly e eu labutamos sob a crença de que as Pretas ainda estavam me-lhores. Não é verdade. Livrar-me de meus dois peões b2 e c3 significa que o calcanhar de Aquiles em minha posição se foi. Agora eu posso me concentrar em avançar meu peão passado na coluna a. A posição está equilibrada.47.Cbd2 Cd7?

O objetivo deste lance me escapou. Eu esperava 47...Bh6 48.Dc2 Bxd2 49.Cxd2 Dd6 50.Dc3 Ca4 51.Dc2 Cc5, com uma re-petição.48.a4! Bb4 49.Dc2 Cc5 50.a5! De7 (Diagra-ma 174)

DIAGRAMA 174. Jogam as Brancas

51.Cb3!Graças aos lapsos das Pretas, uma súbi-

ta e grande transformação ocorreu: o peão mais perigoso na posição é o peão das Bran-cas. Agora o jogo das Brancas tem a prefe-rência.51...Ca6 52.Dd3 Cc7 53.Cb6 Cb5?

Com a partida escapulindo, Anatoly me ajuda com este grande empurrão. A melhor linha era 53...De6 54.Dc4 Dxc4 55.Cxc4 f6, com um final viável. A diferença entre este final e o final na partida logo ficará clara: o peão branco da coluna a avançará uma casa e as Pretas não podem jogar ...f7-f6 para seu rei.54.Dd7! Dxd7 55.Cxd7 Bc3 56.a6 Ca7 57.g4! Rg7 58.g5! (Diagrama 175)

DIAGRAMA 175. Jogam as Pretas

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 293

Com extraordinária rapidez, a partida está acabada. O peão e5 está artificialmen-te isolado, e as Brancas ameaçam a simples Cb3-c5-d3xe5, ganhando um peão de graça.58...f5

Desespero, mas a partida se foi. Mes-mo às cegas posso lidar com isso.59.gxf6+ Rf7 60.Cbc5!

Dessa vez eu chispo para reforçar meu cavalo antes de deixá-lo pendurado ou colo-cá-lo en prise.60...Re8 61.f4 exf4 62.e5 Cc8 63.e6 Bxf6 64.Cxf6+ Re7 65.Cfe4 Ca7 66.Rf3 1-0

Não uma partida para a história, mas eu estava satisfeito com minha partida no final. Desperdicei tantas oportunidades em minhas partidas com Karpov que fiquei feliz ao aproveitar essa quando ela chegou. Não é comum ver as peças de Anatoly dominadas como estavam no final desta partida.

Obviamente, Anatoly não estava feliz com o resultado desta partida e queria vin-gança. Afinal, ele era o Campeão Mundial da FIDE!

Anatoly Karpov-Yasser SeirawanMonte Carlo (rápido), 1994

Defesa Moderna

1.d4 d6 2.Cf3 g6 3.g3Uma abordagem muito cautelosa, sem

dúvida. Anatoly quer evitar um meio-jogo sem damas após uma subsequente ...e7-e5, chegando ao ponto de restringir o avanço de seu peão da coluna c. Contra esta posição é muito difícil transpor para o tipo de meio--jogo que estou procurando.3...Bg7 4.Bg2 Bd7

Tomando emprestada a criatividade do Grande Mestre canadense Duncan Suttles,

que vive em Vancouver, na Colúmbia Britâ-nica. No começo de minha carreira, Duncan teve grande influência sobre mim e muitos outros enxadristas no Pacífico Noroeste. To-dos aprendemos a fazer o fianchetto do bis-po do rei, jogar ...Cg8-h6 e ceder o controle do centro. A ideia do texto é alinhar uma troca do bispo g2 das Brancas e, ao mesmo tempo, poder avançar ...e7-e5 sem ter que me preocupar com o constrangimento de recapturar a dama na casa d8.5.0-0 Dc8

“Ameaçando ...Bd7-h3,” as Pretas ga-nham um tempo por vagarem a casa d8.6.Te1 e5

Seria meio atrevido jogar 6...Bh3 7.Bh1 h5, lançando um ataque de xeque-mate sem nenhum desenvolvimento. Surpreendente-mente, estes ataques têm força, mas eu não consegui me fazer tentar.

Também existe um bom argumento para jogar 6...Bh3 7.Bh1 e depois cancelar o ataque para jogar 7...e5, como na partida. Neste caso, a casa d7 fica liberada e, se a co-luna d se abrisse, as Brancas não ficariam tão felizes com seu bispo h1. Outra ideia interes-sante depois de 6...Bh3 7.Bh1 é 7...Cc6, con-vidando 8.d5, bloqueando a longa diagonal h1-a8.7.e4 Cc6 8.dxe5

Droga, eu simplesmente não persuadi Anatoly a jogar uma posição fechada. O es-quema de desenvolvimento das Pretas fica claro após 8.d5 Cd8!, com o plano de ataque de “vá pegá-los” da Índia do Rei de ...f7-f5, ...Cd8-f7, e ...Cg8-f6. É verdade, as Brancas também não vão ficar quietas, mas esta con-figuração é muito harmoniosa, especialmen-te depois que as Brancas têm um fianchetto na ala do rei.

Depois do texto, não é que as Brancas estejam melhores, é somente que elas não estão sujeitas ao meio-jogo que eu queria.8...dxe5 9.b3 Cge7 10.Ba3 0-0 11.Cbd2 f6

Um lance complicado de fazer. Meu problema é que o cavalo c6 está desajeita-do e no “circuito errado”, que é também o

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caso de meu cavalo e7. O texto prepara a boa casa e6 para o bispo de casas brancas, quando eu não tenho que ser perturbado por Cf3-g5, causando alguma importuna-ção. Contudo, poderia ter sido melhor jogar normalmente com 11...Bg4 12.c3 Td8 13.De2 Dd7 14.Cc4 Dd3 15.Db2!. Eu fui até aí e parei, reconhecendo que 15...Bxf3 16.Te3 era me-lhor par as Brancas. Eu deveria ter levado um passo adiante: 16...Dd7 17.Txf3 (dando espa-ço na casa e3 para o cavalo c4) 17...b5 18.Ce3 Dd2, quando as Brancas têm dois bispos e não muito mais.12.Cc4 Be6 13.De2 Td8 14.Ce3 (Diagrama 176)

DIAGRAMA 176. Jogam as Pretas

14...Bf8Cada lance tem que ser cuidadosamen-

te ponderado porque existem muitas peças que querem melhorar suas posições. Por exemplo, na posição no diagrama, 14...Td7 devia ser considerada, pois prepara ...Cc6-d8, e cria espaço para a dama passar e então do-brar as torres. Por exemplo, 14...Td7 15.c3!? (15.Tad1) 15...Cd8 16.Tad1 Cf7 melhora signi-ficativamente a coordenação das Pretas.15.c3 Dd7 16.Ted1 De8 17.Ce1!

Um lance muito agradável. As Brancas não podem ficar quietas e esperar enquanto

as Pretas melhoram suas peças, senão quais-quer vantagens que as Brancas possam ter logo vão desaparecer. Não existem pontos débeis óbvios na posição das Pretas exceto pela casa d5 e o texto expõe o bispo g2 para ajudar as Brancas a controlar aquela casa.17...Txd1

Como minha posição está levemente constrita, faz sentido aliviar a pressão atra-vés de trocas. Pena que 17...a5!? não tenha funcionado, pois seria bom ser capaz de jo-gar ...a5-a4. O problema é que 18.Db5 b6? 19.Cd5! é forte para as Brancas. Por este motivo, também havia algo a ser dito para 17...Df7, aguardando 18.Cd3 b6, quando as Pretas estão prontas para ...a7-a5, bisbilho-tando em volta da ala da dama.18.Txd1 Td8 19.Cd3! b6 20.Bc1 Td7 21.h4 Cd8 22.f4

Um tipo de decisão “agora ou nunca”. Mudando a estrutura de peões as Bran-cas dão maior dinamismo a suas peças. Se as Brancas retardarem este avanço, então, quando as Pretas jogam ...c7-c6 e ...Ce7-c8--d6, a posição vai começar a parecer idên-tica. Evidentemente, 22.f4 também encer-ra um risco. Se as posições resultantes não funcionarem, as Pretas terminarão com um cavalo gordo em e5.22...exf4 23.Cxf4 Txd1+ 24.Dxd1 Bg7?!

Existem partidas em que todos os seus lances possuem um fluxo. “Isso vai aqui, aquilo vai ali, nesta ordem, damos espaço, tomamos a coluna d, penetramos, vence-mos. Obrigado pela partida”. Depois exis-tem as costumeiras partidas “lamacentas”, nas quais você tem algumas críticas depois. Bem, esta partida foi um verdadeiro cabo de guerra, cada lance tendo segundas e tercei-ras opções.

Embora o texto melhore meu bispo – ele permanecerá passivo na casa g7 –, maior preferência deveria ter sido demonstrada pelo cavalo e7, que realmente é uma criatu-ra carrancuda. O melhor lance era 24...Cec6!, simplesmente procurando pôr o cavalo na

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 295

casa e5. As Brancas vão pôr um dos cavalos na casa d5, eu vou cobrir os peões c7 e f6 com 25...Df7, e as Pretas ficarão bem. O bis-po f8 pode encontrar uma casa melhor do que o texto.25.c4 Dd7

Eu estava me cansando de todo o in-trincado jogo sutil e agora buscava alguma resolução. Mesmo assim, havia bons moti-vos para considerar 25...Bc8!?, preparando ...Cd8-f7-e5, além de ...c7-c6, protegendo casas vitais e preservando o bispo nas casas brancas.26.Ced5 Cxd5 27.Cxe6!

Uma captura crucial. Se 27.exd5 (ou 27.cxd5) 27...Bg4, e o bispo salta fora. As Pre-tas rapidamente jogarão ...Cd8-f7-e5, sem mais problemas.27...Cxe6 28.exd5 (Diagrama 177)

DIAGRAMA 177. Jogam as Pretas

28...Cc5?Desconcertante. Em dois lances, eu

jogo fora uma posição perfeitamente razoá-vel. Eu simplesmente não sei como explicar. Posso primeiramente preparar o texto com 28...a5!?, assegurando a casa c5, ou pos-so dar seguimento ao meu 24o lance com 28...f5!, simplesmente colocando meu bispo g7 no jogo. Neste caso, não vejo vantagem para as Brancas.

29.Bf4 a5?Minha nossa. Meus miolos devem

ter queimado. Não sei como explicar isso. 29...Bf8! era obrigatório, para impedir d5-d6, quando as Pretas têm mais uma vez uma posição razoável. Por exemplo, 30.b4 Ce6 31.Bd2 Cg7, planejando meu próprio contra--ataque contra o peão g3.30.d6!

Tum! E sem mais nem menos os dois bispos das Brancas tornam-se abrasadora-mente poderosos.30...cxd6 31.Dd5+ Ce6 32.Bxd6 f5 33.Rf1 h5?

Com uma troca de damas iminente, era muito melhor jogar 33...Rf7, preparando para levar o rei para o jogo.34.Bf4 De8?

Adicional capitulação. Provavelmente estou perdido, mas 34...Dxd5 35.Bxd5 Rf7 36.Be3 Be5 37.Bxb6 Bxg3 era a única forma de continuar lutando.35.Be3 Rh7 36.Bxb6 De7 37.Bf2 Df6 38.Bf3 f4 39.g4 hxg4 40.Bxg4 Cd4 41.h5 gxh5 42.Dxh5+ Rg8 43.Bxd4 Dxd4 44.Be6+ 1-0

Uma vitória impressionante de Ana-toly. Meio um colapso meu no final, sen-do o problema de tempo o provável cul-pado. Para começar, foram todas aquelas decisões complicadas na abertura com as quais as Brancas envenenaram a posição que me causaram o problema. Às vezes o xadrez pode ser tão simples quanto criar inúmeros problemas para seu adversário resolver. Mesmo que ele os resolva todos, ele pode cair no problema do tempo e co-meter erros posicionais graves. Isso tam-bém é xadrez.

Nossa última partida clássica ocorreu em Bali, Indonésia. Foi um “empate de Gran-des Mestres”, e eu sei exatamente o motivo: jet lag. Eu voei de Seattle a Taipei, um voo de 12 horas, depois segui para Jacarta e de-pois Bali. Foram mais de 24 horas de viagem

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296 Yasser Seirawan

e eu fiquei exausto. Mesmo que tenhamos jogado na segunda rodada, quando olhei para o outro lado do tabuleiro, pareceu-me óbvio que Anatoly não estava em melhor forma.

Yasser Seirawan-Anatoly KarpovBali, 2000

Gambito da Dama Aceito

1.Cf3 Cf6 2.c4 e6 3.Cc3 d5 4.d4 dxc4 5.e3 a6 6.Bxc4 c5 7.0-0 b5 8.Be2 Bb7 9.dxc5 Bxc5 10.Dxd8+ Rxd8 11.b3 Cbd7 12.Bb2 Re7 13.Tac1 ½-½

Empate acordado por minha sugestão.

E assim nossos duelos juntos termi-nam com um choramingo, e não com um estrondo.

Ao conferir a Anatoly Karpov a posi-ção de segundo maior enxadrista de todos os tempos, posso apontar para uma série de estatísticas, tais como 167 vitórias em tor-neios e matches internacionais, um recorde que nunca foi igualado. Entretanto, foi du-rante minha visita à Olimpíada em Dresden, Alemanha, em novembro de 2008, que eu li algo no boletim de 23 de novembro, do-mingo, que realmente me tocou. Citando, “Anatoly Karpov foi Campeão Mundial de Xadrez por 16 anos. Embora tenha adquiri-do o título por default em 1975, ele alegou que suas 11 defesas e desafios durante os 25 anos seguintes perfizeram um total de 766 dias. ‘Dois anos e meio lutando somen-te pelo título mundial’, ele disse”. Isso não é apenas impressionante – é absolutamente espantoso.

Partidas clássicas contra Anatoly Karpov

Karpov-Seirawan, Mar del Plata, Argen-tina, 1982: ½-½

Seirawan-Karpov, Londres, Reino Uni-do, 1982: 1-0

Karpov-Seirawan, Lucerne, Suíça, 1982: ½-½

Karpov-Seirawan, Linares, Espanha, 1983: ½-½

Karpov-Seirawan, Tilburg, Holanda, 1983: 1-0

Seirawan-Karpov, Londres, Reino Uni-do, 1984: ½-½

Karpov-Seirawan, Bruxelas, Bélgica, 1986: 1-0

Seirawan-Karpov, Bruxelas, Bélgica, 1988: ½-½

Seirawan-Karpov, Rotterdã, Holanda, 1989: 0-1

Karpov-Seirawan, Skellefteå, Suécia, 1989: 1-0

Seirawan-Karpov, Haninge, Suécia, 1990: 1-0

Seirawan-Karpov, Reykjavik, Islândia, 1991: ½-½

Seirawan-Karpov, Bali, Indonésia, 2000: ½-½

Seirawan: duas vitórias, quatro der-rotas, sete empates. Placar clássico: 5½-7½

Partidas rápidas contra Anatoly Karpov

Seirawan-Karpov, Hamburgo, Alema-nha, 1982: 0-1

Karpov-Seirawan, Hamburgo, Alema-nha, 1982: 1-0

Karpov-Seirawan, Mazatlán, México, 1988: ½-½ (planilha perdida)

Seirawan-Karpov, Roquebrune, França, 1992: 1-0

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Karpov-Seirawan, Roquebrune, França, 1992: 0-1

Seirawan-Karpov, Bruxelas, Bélgica, 1992: ½-½

Karpov-Seirawan, Bruxelas, Bélgica, 1992: 0-1

Seirawan-Karpov, Monte Carlo, Môna-co, 1993: 0-1

Karpov-Seirawan, Monte Carlo, Môna-co, 1993: ½-½

Seirawan-Karpov, Monte Carlo, Môna-co, 1994: 1-0

Karpov-Seirawan, Monte Carlo, Môna-co, 1994: 1-0

Seirawan: quatro vitórias, quatro derrotas, três empates. Placar rápido: 5½-5½

Partidas Blitz contra Anatoly Karpov

Karpov-Seirawan, Lugano, Suíça, 1988: ½-½ (planilha perdida)

Karpov-Seirawan, Roquebrune, França, 1992: 0-1

Seirawan: uma vitória, nenhuma derrota, um empate. Placar Blitz: 1½-½

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10

Garry Kasparov, Após 2000

Kasparov perde o títuloEmbora Kasparov tenha perdido por forfeit o título de Campeão Mundial da FIDE em 1993, suas vitórias sobre os Desafiantes Ni-gel Short em 1993 e Viswanathan Anand em 1995 foram aceitas pelo público do xadrez como prova de que ele era o melhor enxa-drista do mundo e merecedor do título de “Campeão Mundial”. Contudo, à medida que os anos foram passando, foi crescendo a in-quietação de que Kasparov não estava de-fendendo seu título.

Não era por falta de esforço da parte dele. A PCA tinha silenciosamente se dissi-pado, e ele não tinha mais a infraestrutura necessária para organizar um match ade-quado. Isso tornou-se evidente quando, no ciclo final da PCA, Alexey Shirov tornou-se o Desafiante ao derrotar Vladimir Kramnik em uma vitória conturbada. Na opinião de Garry, a vitória de Shirov foi um golpe, pois dificultou muito o levantamento de verbas de patrocínio para financiar um match con-tra um Desafiante que não estava entre os cinco com maior rating. De fato, somente uma oferta foi obtida: de Los Angeles por menos de um milhão de dólares. Shirov não

obteve um match contra Kasparov – um direito que ele tinha adquirido de maneira justa e honesta. Para piorar as coisas ainda mais para Alexey, Vladimir Kramnik tinha ganhado um prêmio de “perdedores” por ter perdido o match final da PCA. A recompensa de Alexey deveria ser um match de um mi-lhão de dólares. Esta não foi a primeira vez na história do xadrez que o vencedor de um evento ficou sem pagamento.

A situação era incômoda para Garry, para dizer o mínimo. Ele não estava tentan-do evitar seu Desafiante – pelo contrário. Ele queria jogar, mas somente por um prêmio que ambos os enxadristas considerassem adequado. Não havia quem aceitasse/pa-trocinasse as garantias que os enxadristas estavam pedindo. À medida que o tem-po foi passando e o match contra Shirov ia perdendo visibilidade na opinião pública, Garry decidiu tentar resolver o nó górdio de encontrar um Desafiante apropriado da maneira mais direta possível: ele desafiaria abertamente o segundo jogador com maior rating na lista, Viswanathan Anand. “Vishy” aceitou o desafio e um acordo foi assinado. Infelizmente para ambos os enxadristas, o

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financiamento para o match fracassou e o evento foi cancelado.

Em 2000, Viswanathan Anand venceu o evento de nocaute da FIDE e foi condecora-do como o novo Campeão Mundial da FIDE. Em seu contrato com a FIDE, ele estava proi-bido de competir contra outros “requerentes do título de Campeão Mundial”. A guerra en-tre a FIDE e Kasparov estava ardendo como sempre. Em Londres, um novo patrocina-dor, Brain Games, se apresentou, disposto a patrocinar um match com um prêmio de um milhão de dólares entre Kasparov e um Desafiante merecedor. Como Vishy estava amarrado, o próximo enxadrista óbvio por rating era Vladimir Kramnik – o mesmo joga-dor que tinha perdido para Alexey Shirov no match das Finais da PCA. Kramnik foi convi-dado para disputar o match contra Kasparov em Londres pelo título de Garry. Ele aceitou com prazer. Tenho certeza de que não preci-so explicar os sentimentos de Alexey Shirov sobre esta situação.

Muito se escreveu sobre o match de 2000 em Londres, e eu não tenho novidades a acrescentar pois só o acompanhei à dis-tância. Foi um negócio estranho, para dizer o mínimo. Em primeiro lugar, o match foi encurtado. Em vez da disputa normal com 24 partidas, Garry insistiu em um confron-to com 16 partidas. Isso era estranho, visto que ele criticara a FIDE com tanta veemên-cia e com razão em relação aos minimatches de 6 partidas para decidir as Finais da FIDE, argumentando que ele queria preservar a “tradição” de confrontos prolongados pelo Campeonato Mundial. Contudo, suas ações traíam suas palavras, pois ele estava encur-tando a duração do match em um terço.

Mais uma vez, não tenho nada a acres-centar, mas o jogo de Garry causou uma impressão lamentavelmente estranha. Per-dendo no match, ele concordou com em-pates curtos com as peças brancas na 9a e 13a partidas, esta última em um momento especialmente crítico. Partidas nas quais ele

tinha absolutamente que lutar para manter sua coroa ele abandonou com o tabuleiro cheio de peças. Vladimir Kramnik venceu o match por 8½-6½ sem perder uma partida. Foi um resultado estonteante. O Vladimir de voz suave agora foi lançado à ribalta, tendo uns sapatos muito grandes para encher. Ele também herdou uma guerra com a FIDE que não era de sua autoria.

A cisão continuaCom novos atores no palco, Vladimir Kramnik e Viswanathan Anand, talvez final-mente a cisão pudesse ser resolvida. Sem chance. Vladimir também era um tradicio-nalista, defendendo um prolongado duelo para o Campeonato. A FIDE tinha seu presi-dente/patrocinador e seu novo regulamen-to, e nenhum dos lados estava disposto a fazer concessões – e nem pareciam ter mo-tivos para isso. De modo geral, as duas par-tes seguiram seu próprio caminho e igno-ravam-se mutuamente. Em uma entrevista coletiva, Ilyumzhinov, o presidente da FIDE, fez um ótimo trocadilho quando indagado sobre Vladimir Kramnik, o “Campeão Mun-dial da Brain Games”: “Talvez também exista um Campeão Mundial da Pepsi”, observou.

A carreira de Garry “AM” ou “Após a Morte” como ele disse a mim, continuou cintilante. Sua derrota para Vladimir pare-ceu dar-lhe nova energia, e seus resultados decolaram à medida que vencia um evento atrás do outro, o que o manteve no alto da lista de ratings. Garry estava ansioso por um novo match. Em seu contrato de Londres em 2000, ele tinha terminantemente se recusa-do a incluir uma cláusula de direito a novo match, considerando-a injusta. Em vez disso, deveria haver um “Evento de Qualificação” da Brain Games a ser realizado dentro de um certo prazo, cujo vencedor se tornaria o pró-ximo Desafiante.

Como Kasparov antes dele, Kramnik estava tendo dificuldades na execução dos eventos. O prazo para o Evento de Quali-

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ficação da Brain Games expirou sem que nada acontecesse, e então Kasparov elevou o nível de retórica significativamente e exi-giu um novo match direto com Kramnik. A resposta de Vladimir foi esquivar-se deste desafio direto e apontar para o contrato que assinara para o match de Londres; ele tinha a obrigação legal de (primeiro) enfrentar um Desafiante do Evento de Qualificação. Caso rompesse o acordo, ele poderia ser proces-sado.

Posteriormente, a Brain Games anun-ciou que, no verão de 2002, Dortmund, Ale-manha, sediaria o Evento de Qualificação, e o vencedor seria o Desafiante de Kramnik. Kasparov ficou furioso. O Evento de Quali-ficação seria um evento de oito enxadristas dividido em duas seções. Haveria quatro jo-gadores em cada seção, com os dois melho-res finalistas de cada seção qualificando-se para um match semifinal curto com quatro partidas. Os dois vencedores então dispu-tariam um match final igualmente curto de quatro partidas. Ainda que duas vezes me-lhor do que o regulamento da FIDE com dois minimatches de duas partidas, era um even-to em que Kasparov poderia facilmente não conseguir vencer. Ele se recusou a jogar em Dortmund. Consequentemente, ele estava fora do “ciclo de Kramnik” e, da mesma for-ma, recusou-se a jogar no evento de nocau-te da FIDE com 128 enxadristas. O melhor enxadrista do mundo estava fora de dois ci-clos do Campeonato Mundial. A situação era absurda, para dizer o mínimo.

Esta situação faz-me lembrar de uma cena incrivelmente familiar: no filme Patton, em que George C. Scott desempenha o papel de um famoso general dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Após a invasão da Sicília, ele é dispensado do co-mando por bater em um soldado em um hospital por ser este, em sua opinião, um co-varde. Patton vocifera: “O maldito mundo in-teiro está em guerra e eu estou fora disso!?” Esse era o caso de Kasparov. Não havia um

ciclo do Campeonato Mundial em que ele pudesse jogar?

O paralelo com Bobby Fischer também era evidente. O melhor enxadrista do mun-do não era o Campeão Mundial, mesmo com dois títulos disponíveis. Kasparov ainda esta-va jogando em torneios e tinha o rating mais alto no mundo, mas mesmo assim...

Sempre esteve aberto para os entendi-dos alegar que o presente Campeão Mundial não era realmente o melhor enxadrista do mundo. Petrosian, especialmente, teve que sofrer com críticos que não apreciavam que seu estilo era mais apropriado para o jogo em matches do que em torneios. A resposta a essas críticas sempre tinha sido: “Se você quer o título, venha e pegue-o!” Mas agora burocratas, advogados e a simples inércia pareciam estar conspirando para confun-dir o que deveria ser uma questão simples: quem era o verdadeiro Campeão Mundial de Xadrez?

O Acordo de PragaDe minha parte, eu achei que a cisão no mundo do xadrez tinha sido um golpe ter-rível para o xadrez e particularmente para o xadrez profissional. Os patrocinadores esta-vam desaparecendo diante de meus olhos. Muitos eram amigos meus. Os torneios de elite tinham menos participantes, enquanto que a dissolução da União Soviética e o co-lapso da Cortina de Ferro significaram exérci-tos de novos competidores apresentando-se para lutar por uma fatia cada vez menor dos prêmios dos torneios. Ser um profissional do xadrez nunca tinha sido um trabalho tão árduo. Diante destas frias e duras realidades, comecei a questionar se eu queria continuar sendo um enxadrista profissional. Quando perguntas deste tipo começam a surgir em sua cabeça, você sabe que está em apuros. Meu coração não estava mais no jogo como tinha estado durante minha juventude.

No fim de 2001, decidi que eu me pre-pararia para me aposentar. Embora sempre

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tenha me parecido que a fraternidade do xa-drez notoriamente demore para enraivecer--se, eles estavam se superando, pois o longo sofrimento da cisão continuava. Antes de sair do xadrez como enxadrista profissional, eu queria oferecer algo em retribuição por todos os maravilhosos presentes que o xa-drez havia me trazido – o mais especial de-les foi ter conhecido Yvette, minha esposa. A melhor coisa que eu poderia imaginar como uma nota de agradecimento era tentar curar a cisão e reconciliar o mundo do xadrez. Lan-cei um novo projeto, “Fresh Start” (Novo Co-meço). Era um itinerário sobre como todas os envolvidos, a FIDE e seu então Campeão Ruslan Ponomariov, o Campeão Kramnik e o líder no rating Kasparov poderiam parti-cipar de uma série de eventos que levariam a um título de Campeão Mundial unificado. O Fresh Start foi publicado no site do Chess Café e provocou uma avalanche de interes-sados. Como os envolvidos reagiriam?

Primeiramente, fiquei profundamente grato que Garry endossou a iniciativa com todo o coração. Vladimir acolheu a ideia mas mencionou o contrato que ele não podia desrespeitar. Assim, reuni-me com o diretor executivo da Brain Games, Steve Timmins, a outra parte do contrato de Vladimir, e ele deu pleno apoio ao Fresh Start e ao método de unificação que eu havia delineado. Em suas palavras, “é a única coisa que faz sentido”. Maravilhoso. Só restava a FIDE. Mais uma vez, para minha satisfação, a reação inicial das au-toridades da FIDE também foi positiva. Com a boa vontade sendo exibida a toda volta, era hora de programar uma reunião.

Por um golpe de sorte, em maio de 2002, Bessel Kok, então morando em Praga, estava trabalhando como o diretor executivo da tcheca Telecom, assim como da subsidiária de telefonia sem-fio Euro-Tel. Esta última pa-trocinaria um torneio de elite com a participa-ção dos melhores enxadristas do mundo mas com uma ausência gritante: o Campeão Mun-dial da FIDE Ruslan Ponomariov. Bessel Kok

enviou convites aos líderes da FIDE, oferecen-do-se para hospedá-los em Praga. O presiden-te Ilyumzhinov aceitou o convite juntamente com as autoridades máximas da FIDE. Haveria um confronto em Praga.

Escrevi extensos artigos no site do Chess Café descrevendo os pormenores de todos os acontecimentos em Praga. Houve vários solavancos, mas, findas as discussões, o “Acordo de Praga” foi elaborado e assina-do por todas as partes. Bessel Kok presidiu as reuniões e tenho certeza de que, sem suas habilidades, não teria havido acor-do. A essência era que o Campeão da FIDE Ruslan Ponomariov disputaria um match com Kasparov; o Evento de Qualificação de Dortmund de junho de 2002 produziria um Desafiante para Vladimir Kramnik (Peter Leko, da Hungria, venceu em Dortmund e tornou-se o Desafiante), e os vencedores dos dois matches teriam um match de unificação do Campeonato Mundial. A Brain Games re-alizaria seu Evento de Qualificação e match, e a FIDE realizaria seu match e os futuros ci-clos. Decisivamente, o match de unificação seria administrado sob os auspícios da FIDE. O título de Campeão Mundial era proprieda-de da FIDE. O mundo do xadrez tinha forma-do um grande círculo. Todas as partes com-prometeram-se a fazer o máximo possível.

Embora fossem grandes as esperanças de que o Acordo de Praga seria bem-suce-dido, ele pareceu esbarrar em problemas desde o princípio. Os matches separados deveriam ocorrer em 2003 ou início de 2004, com a meta de um match de unificação até o final de 2004. Em Praga, o presidente da FIDE prometeu encarregar-se de que o Campeão da FIDE, Ruslan Ponomariov, que não tinha assinado o Acordo de Praga, o apoiaria e jo-garia contra Kasparov... Quem pode dizer de quem foi a culpa pelo Acordo de Praga ter fracassado? Uma série de acontecimentos aparentemente intermináveis e personali-dades chocaram-se de frente contra nossos melhores esforços. A cadeia de fracassos foi

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posta em curso por Ruslan Ponomariov. Em seu Compromisso dos Jogadores, assinado antes de conquistar o título do Campeonato Mundial da FIDE, havia uma cláusula com-prometendo-o a jogar um match “Homem contra Máquina”. Ofereceram-lhe cinquenta mil dólares para disputar este match, quantia que ele considerou insignificante. Ele recu-sou a oferta. Em seu lugar, Kasparov dispu-tou um match contra o Deep Junior na cidade de Nova Iorque em janeiro de 2003 por um milhão de dólares, o que foi pessoalmente garantido pelo presidente da FIDE. Compre-ensivelmente, esta notícia não foi bem rece-bida por Ruslan, pois ele corretamente sentiu que sua posição como Campeão da FIDE ti-nha sido usurpada. Sua resposta foi dificultar as negociações para o programado match com Kasparov o máximo possível.

Até hoje, ainda não consigo entender como um Grande Mestre de xadrez profis-sional poderia recusar-se a disputar um ma-tch de um milhão de dólares contra o maior enxadrista da história. Como eu afirmei na época, eu pagaria cinquenta mil dólares di-retamente a Garry para disputar um match contra ele.

Apesar das difíceis negociações que estavam ocorrendo entre a FIDE e seu pró-prio Campeão, em 2003 a FIDE anunciou que o match entre Ponomariov e Kasparov seria realizado naquele junho em Buenos Aires. Eu, pessoalmente, suspirei aliviado. “Tudo certo”, pensei. “Um match foi, resta o outro”. A Brain Games estava lutando para encontrar um patrocinador para o match de Kramnik contra Leko, mas eu esperava que, depois que o match da FIDE começasse, o outro atrairia patrocinadores, pois havia muitos burburinhos sobre o patrocínio do próprio match de unificação. Comecei a me preocupar quando o Grande Mestre argen-tino Miguel Quinteros declarou à imprensa que o salão de jogos em Buenos Aires não ficaria pronto a tempo e que um adiamento para dezembro de 2003 seria melhor. “De jei-

to nenhum”, retrucou Ilyumzhinov; “o match seria realizado em Buenos Aires como plane-jado e na data prevista”. Como? O organiza-dor local no piso explica que eles não estão prontos e de cima vem a ordem: “Sim, vocês estão!” Este era um claro sinal de problemas à frente. De fato, o evento em Buenos Aires posteriormente foi cancelado.

Meses depois do cancelamento do match de Buenos Aires, a FIDE divulgou um novo local: Yalta, Ucrânia, sediaria o match de Ponomariov contra Kasparov em setem-bro de 2003. Isso me pareceu muito mais promissor. Ruslan, sendo da Ucrânia, estaria bem em casa, e agora eu me sentia confian-te de que o match seria disputado. Mais uma vez, entre o copo e a boca...

Ainda que eu não tenha certeza dos reais detalhes do cancelamento do match de Buenos Aires, o resultado foi que isso ar-ruinou os cronogramas de trabalho tanto de Ruslan quanto de Garry. Os dois passaram meses contratando treinadores enquanto recusavam convites na expectativa de seu duelo. Com o cancelamento do match, os enxadristas perderam a renda e também ti-veram que arcar com pesadas despesas para seus treinadores. Gato escaldado tem medo de água fria – para o evento de Yalta, am-bos os enxadristas solicitaram e receberam uma garantia, além de seus prêmios, para cobrir seus custos de treinamento. No caso de Ponomariov, contudo, os organizadores ucranianos trataram diretamente com ele e não sob os auspícios da FIDE. As autoridades da FIDE ficaram furiosas, e o match em Yalta foi cancelado. Mais uma vez, de quem foi a culpa? O que deu errado? Quem sabe? Ao que parece, uma sequência completa de re-botes explosivos estava ocorrendo.

A FIDE continuou realizando seu evento de nocaute com 128 enxadristas, e, em junho de 2004, Trípoli, Líbia, sediou o evento. Um novo Campeão da FIDE, Rustam Kasimdzhanov, do Uzbequistão, foi coroado Campeão Mundial. O novo Campeão anun-

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ciou que ele estava mais do que disposto, na verdade ansioso, para disputar um match contra Kasparov por um milhão de dólares. Em outubro de 2004, a FIDE anunciou que um match entre Kasimdzhanov e Kasparov seria realizado, dessa vez nos Emirados Ára-bes Unidos. Mais uma vez, dei um hesitante suspiro de alívio, pois o financiamento não seria um problema para os EAU.

No outro lado da moeda, a Brain Games e o match entre Kramnik e Leko não estavam indo melhor. Embora anúncios de adiamentos e cancelamentos constran-gedores não tivessem sido feitos, avanços também não foram divulgados. Mais de dois anos se passaram antes de o match ser rea-lizado. Ele se iniciou em 25 de setembro de 2004 em Brissago, Suíça. Em um final emo-cionante, Vladimir venceu a última partida empatando o match em 7-7 e assim conser-vando seu título. Mais uma vez, embora ale-gasse ser um tradicionalista e pregasse um confronto prolongado pelo Campeonato Mundial, Vladimir encurtou o match ainda mais, disputando uma competição de ape-nas 14 partidas, duas a menos do que em Londres quando ele havia conquistado o título. Finalmente, a Brain Games tinha cum-prido sua parte do Acordo de Praga, e todas as atenções voltaram-se para a FIDE.

Pela terceira e última vez, depois de anunciar as datas e o local para o confronto nos EAU, o evento não se materializou. Nes-ta ocasião, o motivo foi o falecimento, em 2 de novembro de 2004, do governante e primeiro presidente do país, o xeique Zayed bin Sultan Al Nahyan. Um longo período de luto foi declarado pelo governo dos EAU, e as iniciativas culturais como sediar o match do Campeonato Mundial de Xadrez foram canceladas durante este período.

Tinha sido uma sequência de três falhas e a paciência de Garry estava se es-gotando. Houve uma disputa renhida final para salvar o match de Kasimdzhanov con-tra Kasparov e boatos sobre uma oferta da

Turquia rapidamente se espalharam. Parece que as verbas não puderam ser garantidas dentro de um prazo estipulado, e esta pro-posta também fracassou.

Garry estava com raiva e perplexo, pois achava que tinha feito tudo para retornar à caça pelo título e queixou-se amargamente: “Não me deixam jogar”. Em março de 2005, com uma rodada a jogar, Garry estava na li-derança do torneio de Linares por um ponto inteiro. Ele tinha se resignado com o fato de que, depois daquele evento, ele se aposen-taria e gostaria de encerrar sua carreira com chave de ouro. Durante sua última partida, o destemido veterano foi atormentado por uma emoção predominante: “Não cometa um erro grave”. Era muito, muito diferente de uma carreira de descarada ousadia, de constantemente esforçar-se pelo resultado máximo. Garry cometeu um erro grave e per-deu a última partida para Veselin Topalov, da Bulgária, e os dois dividiram o primeiro lugar. No fim do torneio de Linares de 2005, Garry anunciou sua aposentadoria do xadrez. O maior enxadrista que já existiu estava pendu-rando as chuteiras para sempre. Foi uma ilus-tre carreira que, mais uma vez, não terminou com um estrondo mas com um choramingo.

Embora eu tenha me aposentado an-tes dele, senti que a perda para o xadrez era mais um golpe trágico. Garry estava se reti-rando enquanto ainda era o número um, no auge de sua vida, ansioso para disputar um match pelo Campeonato Mundial e encan-tar o mundo com um retorno sensacional. Mais uma vez, só podemos especular sobre o que teria acontecido se ao menos um dos anunciados matches de Kasparov tivesse se realizado.

A aposentadoria de Kasparov deixou o mundo do xadrez em uma triste condição. Foi negada a alegria de ver Kasparov jogar, e o próprio título do Campeonato Mundial não parecia mais ter legitimidade. Afinal, o título só significava alguma coisa se os en-xadristas ao redor do mundo assim pensas-

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sem. Com múltiplos Campeões e sempre mudando, e matches cada vez mais curtos, o mundo do xadrez só podia mesmo conside-rar a lista de ratings para determinar quem era o “número um”. Com sites da internet publicando mudanças de rating diariamen-te, até este critério de supremacia tornou-se efêmero após a saída de Kasparov. Podia ha-ver um “melhor enxadrista” diferente quase todos os dias, dependendo dos resultados do torneio mais recente.

Os dias do ciclo estruturado de três anos da FIDE e o match de 24 partidas com contro-les de tempo clássicos começaram a parecer maravilhosos para muitos enxadristas.

De volta ao xadrezApós o fim da GMA, por algum motivo eu e Garry não conseguimos jogar muito um contra o outro. No festival de xadrez St. John em New Brunswick, em 1988, nós tínhamos jogado juntos em um match de aquecimen-to para o Campeonato Mundial de Blitz, cujo vitorioso foi Mischa Tal. Garry venceu nosso match de treinamento por 7-5, sendo que algumas partidas foram decididas por um triz no relógio. Aquelas seriam nossas últi-mas partidas um contra o outro por um bom tempo.

Garry não participou da Olimpíada de 1990 em Novi Sad. Em 1992, em Manila, quando as equipes dos EUA e da URSS se en-contraram, Gata Kamsky jogou no primeiro tabuleiro para a equipe americana. Eu joguei no terceiro tabuleiro e recusei uma proposta de empate de Vladimir Kramnik, decisão da qual em breve eu me arrependeria, pois ele venceu nossa partida. Em 1994, as equipes dos EUA e da URSS não se encontraram por causa de uma apavorante crise da equipe americana durante o torneio. Mesmo que tivéssemos jogado, eu não teria sido em-parceirado com Kasparov, pois eu estava ficando com a medalha de ouro no quarto tabuleiro. Em 1996, eu não joguei na Armê-nia; em 1998, Garry não jogou em Elista e ele

também pulou Istambul, em 2000. Em Bled, em 2002, também sentimos falta um do ou-tro. Na época da Olimpíada de Calvià, em 2004, eu já estava aposentado.

No evento “URSS Contra o Resto do Mundo”, eu capitaneei o Resto do Mundo até a vitória. Meu relato pode ser lido no site do Chess Café. Depois do evento, Garry convidou-me para ir a seu apartamento em Moscou, onde tomamos chá com biscoitos. Também disputamos mais uma sessão de 12 partidas de Blitz. Desta vez ele venceu por 7½-4½ e eu fiquei desolado. Ele lembrou-me de que ele tinha “melhorado” em relação a seu resultado em St. John, enquanto eu con-fessei que tinha perdido “toda” a minha força.

Nosso último duelo de xadrez clássico em torneios foi disputado no torneio do VSB (Verenigde Spaarbank) em Amsterdã, em 1996. Na cerimônia de abertura ou de en-cerramento, não sei ao certo qual, o discurso do patrocinador foi uma repreensão dolo-rosa ao mundo do xadrez. Diante da cisão, e com referência direta à figura controversa do presidente da FIDE Kirsan Ilyumzhinov, o VSB suspendeu seu patrocínio ao xadrez. Foi um recado muito pesado, o qual eu compre-endi muito bem. Em minhas viagens e em diversos encontros com patrocinadores do xadrez, a mesma história era contada repe-tidamente: a cisão estava destruindo o inte-resse pelo patrocínio do xadrez.

No sorteio para o evento do VSB, os organizadores tinham adotado um sistema muito original. Os jogadores eram convida-dos a esmurrar um saco de boxe que estava ligado a um equipamento que registrava a força do soco e atribuía ao jogador um nú-mero. Joël Lautier saiu-se melhor, Kasparov ficou em segundo e eu em terceiro.

Os comentários a seguir foram publi-cados na revista Inside Chess. Comentários atualizados aparecem marcados com “YS, 2010” no fim de cada novo parágrafo.

Estas foram minhas observações intro-dutórias à partida na Inside Chess:

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“Jogar contra Anatoly Karpov ou Garry Kasparov sempre inspira sentimentos espe-ciais de excitação e preocupação. Desde que recebi o convite para o evento do VSB em 1996, fiquei esperando ansioso para jogar contra Garry mais uma vez. Minha última par-tida com ele foi na Copa do Mundo de 1989 em Skellefteå! E aquela partida motivou-me a produzir oito páginas de comentários. O que esta partida traria? Bem, em primeiro lugar, decepção, pois eu passei a maior parte de minha preparação com as peças brancas e o sorteio não foi tão generoso.” Eu deveria ter esmurrado aquele saco com mais força.

“Antes da partida, eu estava muito oti-mista, para não dizer eufórico. Eu não tinha percebido o quanto eu tinha aguardado por aquela partida. Parece estranho dizer o quanto eu estava exageradamente otimis-ta. Eu venho acompanhando a carreira de Kasparov atentamente, é claro, e ele venceu praticamente tudo de que participou. Então, por que o otimismo? Não sei explicar. Ele simplesmente parecia vulnerável neste mo-mento”.

Garry Kasparov-Yasser SeirawanAmsterdã, 1996

Gambito da Dama Recusado

1.d4 Cf6 2.c4 e6 3.Cf3Uma espécie de vitória. Kasparov evita

a Nimzo-Índia clássica que eu defendi ante-riormente contra Gelfand. A desvantagem do texto, como Garry bem sabe, é que as Brancas perdem um pouco da flexibilidade contra a defesa do GDR.3...d5 4.Cc3

Uma surpresa, pois eu esperava que Garry tentasse uma Catalã (4.g3) aqui.

4...Cbd7Seguindo o exemplo oferecido por

Nigel Short, venho experimentando com o texto por alguns anos. Deste modo, as linhas arriscadas para as Pretas após 4...Be7 5.Bf4!? 0-0 6.e3 c5 7.dxc5 Bxc5 8.a3 Cc6 9.Dc2! são evitadas.5.Dc2?!

Fiquei muito satisfeito ao ver este lance de espera. As Brancas conseguem pouco de-pois de 5.cxd5 exd5 6.Bf4 c6 7.e3 Ch5, como em Piket-Seirawan, no Memorial Donner, em 1995. O texto tenta 5...Be7 6.cxd5 exd5 7.Bf4, com uma vantagem de longo prazo para as Brancas, mas compromete prematuramente a dama das Brancas e enfraquece o peão d4.5...dxc4! 6.e4

O único modo de obter uma vantagem. Depois de 6.e3 c5 7.Bxc4 a6, estamos em um Gambito da Dama Aceito com o fraco lance de espera Dd1-c2 tendo sido jogado.6...c5 7.dxc5?!

Depois disso, as Brancas rapidamente ficam em desvantagem. A única chance era 7.d5! exd5 8.e5 (8.exd5 a6 9.a4 Bd6 10.Bxc4 0-0 [10...De7+!?] 11.0-0 h6, não tem proble-ma para as Pretas), mas as Pretas podem en-saiar um sacrifício de peça muito comum ao GDA; i.e. 8.Cxe5!? 9.Cxe5 Bd6 10.Da4+ (mos-trando as desvantagens de Dd1-c2) 10...Bd7 11.Cxd7 Dxd7 12.Dxd7+ Rxd7 13.Bg5 The8+ 14.Rd2 Ce4+, com compensação suficiente pela peça sacrificada.

Embora este sacrifício de peça seja muito interessante e equilibrado, meu programa prefere 8...Cg4, consideran-do as posições após 9.Cxd5 Cdxe5, bem como 9.Bg5 f6 10.exf6 gxf6 11.Cxd5 fxg5 12.De4+ Cde5 13.Cxe5 Bf5! 14.Dxf5 Dxd5 15.Dxg4 Dxe5+ 16.Be2 h5!, ligeiramente fa-voráveis às Pretas. Estas linhas confirmam a impressão que tive durante a partida: de que 5.Dc2?! foi jogado no momento errado e abriu mão da vantagem de abertura das Brancas. (YS, 2010)6...Bxc5 8.Bxc4 a6 9.a4 Dc7! 10.0-0 Cg4!

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Agora, com alguns lances precisos, as Pretas podem alegar uma vantagem devido a seu controle sobre as casas e5 e d4. Garry compreende isso muito bem, como pode ser observado em seu match de Candidatos com Vassily Smyslov. Sacudindo a cabeça e fazendo um beicinho com evidente insatis-fação, Garry soltou...11.h3?! (Diagrama 179)

DIAGRAMA 179. Jogam as Pretas

...e deixou o tabuleiro. O lance teve o efeito pretendido no sentido de que me deixou aturdido. Eu esperara que Kasparov lutasse pelo controle da casa e5, conside-rando 11.Ce2 obrigatório. Após 11...Bd6!? 12.h3 Cge5 13.Cxe5 Cxe5, as Brancas estão obviamente lutando rumo a uma posição desagradável.

Eu tinha considerado o texto, breve-mente, por causa da fantasia de xeque--mate com 11.h3?! h5!? 12.b3? Dg3 13.Ba3 Cde5, quando um telefonema para o Livro Guinness de Recordes talvez fosse apropria-do.

Agora eu estava recebendo um convi-te que era simplesmente tentador demais para recusar: ter uma qualidade e um peão a mais contra o Campeão da PCA dentro de 12 lances – e com as Pretas! Mas, em meus cálculos, eu cometi um pecado capital: não

importa o que sai do tabuleiro, e sim o que fica!

Com visão retrospectiva de 20/20, a melhor escolha era 11...Cge5 12.Cxe5 Cxe5 13.Be2 b6 14.Bf4 Bb7, quando Kasparov con-siderou que as Pretas tinham clara vanta-gem. “O que minhas peças estão fazendo?,” protestou ele posteriormente.11...Cxf2

Até mesmo hoje parece incrível, de modo que eu deveria enfeitar este lance com dois pontos de interrogação. Não consi-go obrigar-me a isso, e portanto não o farei. Contudo, este é o lance que me leva à der-rota. Joguei de acordo com minha mentali-dade: Garry estava descendo, isso era tudo!

Por motivo de precisão, o lance mais preciso era 11...Cde5!, quando Garry pro-vavelmente teria jogado 12.Cxe5 (12.hxg4 Cxf3+ 13.gxf3 Dg3+ leva a um imediato xeque perpétuo) 12...Cxe5 13.Be2 b6, trans-pondo para a nota acima. O motivo para a precisão neste caso é que 11...Cge5 12.Be2 Cxf3+ 13.Bxf3 Ce5 14.De2 é uma opção me-lhor para as Brancas. (YS, 2010)12.Txf2 Bxf2+ 13.Dxf2 Dxc4 14.Dg3 (Dia-grama 180)

DIAGRAMA 180. Jogam as Pretas

E agora eu comecei a ter as primeiras pontadas de arrependimento por minha

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 307

decisão materialista. A compensação das Brancas é assustadoramente concreta. Eu ti-nha visto a continuação da partida ao fazer meu saqueio, mas, em um exame mais aten-to, conscientizei-me das peças ativas das Brancas. Mais uma vez, observe o que per-maneceu no tabuleiro. As Pretas estão fra-cas nas casas pretas e o bispo c1 está pronto para pular na briga, ao passo que meu bispo c8 e torre a8 não estarão na batalha por al-gum tempo.14...f6

Não importava como eu torcesse as variantes em minha cabeça, eu tinha que seguir a escolha que eu tinha feito quando capturei o peão f2. Foi isto que eu recusei:

A. 14...0-0 15.Bh6 g6 16.Td1 Td8 17.Td4 Dc5 18.e5! Cf8 (18...Cxe5 19.Dxe5) 19.Ce4, e você não precisa ser um gênio para contar as chances de sobrevivência das Pretas em nanossegundos.

B. 14...Dc5+ 15.Rh1 Df8 (essa era a al-ternativa crucial para minha escolha real. As Pretas pretendem se abrir com ...f7-f6 e ...Df8-f7, assim as Brancas precisam ser rápidas) 16.e5! (sobre 16.Bf4 f6 17.Bd6 Df7 18.Tf1 Dg6 19.Df4 b6, as Pretas têm tempo de uma posterior liberação) 16...f5 17.exf6 gxf6, que é semelhante à partida. A diferença decisiva é que aqui as Bran-cas sentem falta de seu peão e4, tornando mais fácil introduzir o cavalo c3 na partida. Após 18.Ce4 Tg8 19.Dc7 Rf7 20.Bg5!? fxg5 21.Cfxg5+ pode ser um sacrifício desneces-sário mas, em minha situação, isso parecia horripilante.

Diante da escolha entre a linha B e a partida, eu achei correto deixar as Brancas manterem seu peão e4.

Parece que eu tinha que expandir mi-nha consciência para incluir uma terceira opção: 14...g6!, lance que mal considerei, porque ela enfraquece muitas casas pre-tas. Mas, se eu vou sofrer depois de 15.Bh6, posso também sofrer com um peão a mais na mão. A posição depois de 15...f6 16.Td1

Dc5+ 17.Rh1 pode não ser muito agradável, mas as chances de briga das Pretas são mui-to superiores às da partida. (YS, 2010)15.Dxg7 Dc5+ 16.Rh1 Df8 17.Dg4 Df7 (Diagrama 181)

DIAGRAMA 181. Jogam as Brancas

É aqui que minha análise parou ao to-mar o peão f2. Eu errei ao avaliar a posição como boa para as Pretas, porque o plano de ...Th8-g8 e ...Df7-g6 parecia muito promissor e, além disso, não estou com vantagem ma-terial?18.e5!

Natural e muito forte. As Brancas estão prontas para atacar nas casas pretas. Agora a consciência de minha situação estava real-mente começando a bater. O sabor do peão f2 estava começando a ficar desagradavel-mente azedo.18...Tg8

Este lance também merece ser critica-do. Mais uma vez em retrospecto, 18...f5 de-veria ter sido jogado imediatamente. Neste caso eu preservo o direito de fazer o roque. Por exemplo, 19.Dc4, como jogado na parti-da, 19...0-0!, que é uma versão muito supe-rior da partida. (YS, 2010)

Além disso, eu deveria ter explicado por que recusei 18...Cxe5 19.Cxe5 fxe5, que

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só por razões estéticas é bem feio e motivo suficiente para rejeição. Eu receava que a linha 20.Ce4 Dg6 21.Cd6+ Rd7 22.Dd1 seria boa para as Brancas. Na verdade, 22.Bg5! era mais forte, quando o rei das Pretas está em grandes apuros. Um ponto interessante é que 22...h6 23.Cf7! Dxf7? 24.Dd1+ leva a um rápido xeque-mate. (YS, 2010)19.Dc4 f5

Lance com extrema relutância. Sem o peão f6, as casas pretas estão ficando mais fracas ainda, ao passo que o efeito restritivo do peão e5 significa que o cavalo d7 está do-minado. Mas, diante de Cc3-e4-d6, este era o único antídoto.20.Bg5 h6 21.Bh4!

Agora, aquele sentimento de apreensão estava ficando pior. Meu ataque ao longo da coluna g não se vê em parte alguma. Eu sabia que meu destino estava selado. Após 21...Cf8 (o único lance de desenvolvimento razoável) 22.Td1 Bd7 23.Dc7! Cg6 24.Bf6, as Pretas mal podem se mexer. Sem ter cometido nenhum erro óbvio desde 11...Cxf2, eu agora conside-rava a posição perdida. Não desejando descer sem ao menos criar uma ameaça...21...Dg6?

Este lance não ajuda a causa das Pretas de forma alguma, pois ele não resolve o pro-blema do desenvolvimento e torna Cc3-e2-f4 muito tentador (e bom). A única chance das Pretas era 21...Rf8, tentando correr para um abrigo. Entretanto, a posição após 22.Ce2 Rg7 23.Cf4 Cf8 24.Td1 b5 25.axb5 axb5 26.Dxb5 não é exatamente inspiradora.

Juntamente com 21...Rf8, uma segun-da escolha superior era 21...Cf8 22.Td1 Bd7, retirando as peças da fileira de trás. (Geral-mente uma ideia muito boa.) Eu tinha rejei-tado esta linha porque achava que, depois de 23.Dc7, eu estaria em Zugzwang. Na verdade, eu ignorei o fato de que 23...Dg7! (desocupando a casa f7 com tempo) 24.Td2 Bc6! é possível pois não há xeque-mate em d8. Está certo, eu ainda não gosto de minha posição, mas 21...Cf8, era um lance muito melhor. (YS, 2010)

22.Tg1!Óbvio, mas mais uma vez eu tinha su-

bestimado a força de um dos lances de Garry. Eu quis manter a torre fora da coluna d e, por extensão, da casa d8; assim, ter a torre escon-dida na casa g1 não parecia um mau negó-cio. Agora, meu pretenso ataque com 22...b5 23.Dc6 Tb8 24.Cd5! exd5 25.e6 é um desastre. Como a água de uma represa que estoura, as peças das Brancas inundaram minha posição. Sem tempo de cuidar do sonho agradável de usar o fianchetto de meu bispo, é hora de pânico! Espere um pouco. E se eu saísse cor-rendo com meu rei como em ...Re8-f7-g7-h8? Não, isso conduz a um disparo g2-g4 agora que eu forcei a torre das Brancas para a colu-na g. Suspiro! De volta à humilhação.

Uma boa análise. (YS, 2010)22...Cf8 23.Db4!

Assegurando que, se as Pretas ten-tarem jogar ...Bc8-d7, seus peões na ala da dama serão o preço.

Embora este lance tenha causado uma forte impressão no momento, o direto 23.Dc7! era ainda melhor. (YS, 2010)23...Tg7 24.Ce2 b5

Desespero. O sonho do fianchetto do bispo ainda não morreu completamente.25.axb5?

Ei, o que é isso? Um erro genuíno que me permite voltar à partida? “Veja você”, eu disse a mim mesmo, “é meu dia, afinal!” As Brancas poderiam e deveriam socar a tor-re g7 de volta à sua caixa com 25.Cf4 Df7 26.Bf6 Tg8 27.axb5, quando as Pretas ficam então sem boas perspectivas.25...Td7!

Finalmente minha torre está funcio-nando... bem, como se supõe que uma torre funcione. Enquanto comentava esta par-tida, lembrei-me de um comentário feito por Evgeny Bareev em que ele disse que, ao jogar com Kasparov, ele tinha a sensação de que suas peças não se moviam como as de Garry. Nos últimos 12 lances foi assim que eu me senti. Meus bispo c8, cavalo f8, torre g7 e dama g6 têm sido espectadores

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 309

mudos, ao passo que as peças de Garry têm realizado maravilhas. Mesmo a idiota torre g1 ameaçou-me com uma possibilidade, g2-g4. Mas agora minha torre está funcio-nando. E depois?26.Cf4 Df7 27.Tc1

O nervosismo de Kasparov tinha se re-velado com 25.axb5? Agora ele se apressava em corrigir-se.27...Bb7

Rapaz, este lance causou uma boa sen-sação!28.bxa6 (Diagrama 182)

DIAGRAMA 182. Jogam as Pretas

28...Bxf3??O efeito cumulativo da longa labuta

sob as ameaças das Brancas tinha cobrado seu preço em meu relógio, e o texto é um colapso por pressão de tempo. Eu vi que 28...Bxa6 29.Da4 Bb7?? 30.Dxa8+ levava a um xeque-mate na primeira fileira e por isso eu não estava disposto a deixar a fileira indefesa nem mesmo temporariamente. As Pretas ainda estão sob forte pressão, mas 28...Txa6 deixa que as Brancas se encarre-guem de encontrar sua vitória. O que tenho mais dificuldade de compreender é por que eu não escolhi esta recaptura. Pelo menos minhas peças antes passivas estariam dan-do duro.

Apenas para mostrar que não é fá-cil provar uma vitória, considere 28...Txa6 29.Db5 (29.Cd4? Cg6 30.Ch5? Cxh4 31.Cf6+ Rd8 32.Cxe6+ Txe6! 33.Da5+ Tc7, e as Bran-cas saem perdendo) 29...Ta8! 30.Tc7 Bxf3 31.gxf3 Dg8! (introduzindo minha segunda ameaça de xeque-mate ao longo da colu-na g, i.e ....Ta8-a1+) 32.Rh2 Ta1 33.Bf2 Td1! 34.Ch5!? Rf7! 35.Cf6 Txc7 36.Cxg8 Rxg8, e a crise das Pretas passou.

Uma correção ao último parágrafo me-rece ser feita. Meu programa reconhece que as Brancas podem realmente provar a vitória diretamente após a superior 28...Txa6 29.Db5 Ta8 30.Cd4! Cg6 31.Cdxe6! Cxh4 32.Cc5!, com ameaças de vitória. Portanto, embora eu pudesse ter me defendido melhor, a posi-ção estava perdida. De qualquer forma, sem dúvida, uma boa vitória, e o lance 28...Bxf3?? acelera minha derrocada. (YS, 2010)29.gxf3 Tda7 30.Tg1!

Uma conversão arrasadora que me pe-gou totalmente desprevenido. Eu só tinha antevisto 30.Tc6 Dd7 31.Td6 Dc8 32.Td8+ Dxd8 33.Bxd8 Txd8 34.Db6 Td1+ 35.Rh2 Tg7, com sonhos de um xeque perpétuo.30...Txa6

Ignorando o propósito do último lance das Pretas. Mas eu acho que é impossível sal-var a posição.31.Ch5!

Ai! Isso realmente dói!31...Dc7 32.Tg7 Ta1+ 33.Rg2 Dc2+

Ferroadas de xeque fazem bem à alma.34.Bf2 1-0

Uma partida maravilhosa de Garry. Ele transformou uma posição inferior em um lindo exemplo de como explorar a iniciativa. Seu deslize no lance 25 não deve ser julgado com muita severidade, pois ele levou a uma maravilhosa criação.

Pensamentos finais sobre GarryGostaria de compartilhar uma história en-cantadora que aconteceu no torneio em Wijk aan Zee, Holanda, em 2001. Eu estava com meus sogros no bar do De Moriaan, o

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310 Yasser Seirawan

prédio onde se realiza o festival. Garry veio até mim e perguntou se eu poderia acom-panhá-lo em sua caminhada de volta a seu hotel. Pedi-lhe que me desse alguns minu-tos e que sem dúvida o acompanharia. Garry não quis ficar esperando no De Moriaan por muito tempo porque caçadores de autógra-fos iriam atormentá-lo e, na hora em que eu peguei meu casaco, ele já estava um pouco adiantado no caminho para o hotel. A noite estava fria e tinha começado a nevar. Estava escuro, e minha visão ficou obscurecida pela neve que caia suavemente. Apressei o passo e distingui dois vultos à minha frente e logo estava caminhando ao lado deles. Percebi que a terceira pessoa era Vassily Ivanchuk. Sua voz revelava sofrimento. Garry e Vassily falavam em russo, mas pude entender que eles estavam movendo peças. Vassily recém tinha perdido uma partida decisiva para Vladimir Kramnik. Uma partida que eu acha-va que ele deveria ter vencido...

Eu costumo dizer que existem dois Garrys: o Bom e o Mau. O Garry Bom é mui-to agradável. Se existe uma pessoa no mun-do que eu gostaria que representasse o xa-drez e que falasse com um patrocinador, é o Garry Bom. Ele é espirituoso, encantador e simplesmente um extraordinário porta-voz do xadrez. Ele consegue arrancar o cheque. Da mesma forma exagerada, se existe al-guém que deveria ser proibido de falar com um patrocinador ou com qualquer outra pessoa, esta pessoa é o Garry Mau. O Garry Mau pode ser mal-humorado, zangado e rude, fazendo o patrocinador mais compro-metido guardar o talão de cheques e correr para a saída mais próxima.

Enquanto caminhávamos através da neve para o hotel, fiquei pensando sobre o que Garry queria falar comigo. Eu não que-ria interromper a conversa, e os únicos sons eram os de nossos passos e as vozes deles. Vozes suaves. Foi uma caminhada de dez minutos, mas durante este tempo o tom das vozes mudou. O sofrimento de Vassily pouco

a pouco deu lugar à empolgação. Quando chegamos ao hotel, ele estava totalmente “curado” e de bom humor. Garry explicou--lhe como ele poderia ter vencido. Vassily estava encantado. No saguão, eu e Garry conversamos sobre algo, que eu esqueci, e logo eu comecei minha caminhada de vol-ta para De Moriaan, pensando sobre a con-versa entre Garry e Vassily. Eles eram sérios competidores no torneio. Guerreiros que se conheciam bem. Este era o Garry Bom aju-dando um colega e tirando-o do buraco de tormento que conhecíamos tão bem. Eu fi-quei orgulhoso de meu irmão mais novo. O Garry Bom podia ser tão bondoso...

Mais uma história, esta meio constran-gedora para mim, aconteceu na capital tche-ca, Praga, em 2001. Garry tinha realizado uma exibição simultânea impressionante, desa-fiando a seleção tcheca. Ele venceu com um placar de 5½-2½. Ele convidou um grande grupo de pessoas, inclusive eu, para um jan-tar de comemoração; houve muita conversa e o vinho correu solto. Por algum motivo, eu e Garry começamos a recordar fatos do pas-sado, e surgiu a questão de quais enxadristas soviéticos competiram em meu evento inter-zonal de Toluca em 1982. Garry recapitulou os nomes e incluiu Arthur Yusupov. Não, eu o corrigi, ele estava errado – Yusupov não jo-gou em meu Interzonal. Garry insistiu, e não demorou para fazermos uma aposta de dez coroas tchecas. Todas as mulheres ficaram interessadas no resultado da aposta. Quem estava certo? O homem que jogou no evento, eu, ou o espectador, Garry?

Como resolver a aposta? Como todo mundo sabe, em toda festa existe um cara sabido. Alguém havia levado um laptop que tinha um banco de dados, e o vencedor foi... Garry Kasparov. Gemido. Garry lembrava-se de minhas partidas melhor do que eu, e mais uma vez se tornou o centro das atenções das mulheres. Garry deu um largo sorriso e ex-plicou-me: “Sabe, nessas coisas eu sou real-mente muito bom. Eu lembro de todas estas

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partidas. O único contra quem eu não joguei nesta competição é Yuri Balashov. Uma vez todos os participantes estavam em um ôni-bus que ia do hotel para o salão de jogos de Spartakiad. Começou uma grande discussão, e todos os enxadristas estavam discutindo sobre onde uma determinada partida foi disputada e quem eram os jogadores. Eu dei minha resposta gritando, e todos pararam para considerá-la por um instante. Durante este breve momento de silêncio, Balashov respondeu: ‘Garry está correto, a partida foi disputada na nona rodada’. Daí todo mun-do parou completamente. Está certo, já é uma proeza lembrar dos participantes, do torneio e até do ano. Mas da rodada? Não, não, Balashov é a exceção. Eu não sou páreo para ele!”

Comecei a escrever este livro em 2008, e agora, no primeiro mês de 2010, o traba-lho está sendo concluído. O que aconteceu com o homem das “grandes ideias” após sua aposentadoria do xadrez? Garry fundou um Partido Democrático de oposição na Rússia, “A Outra Rússia”, e tentou candidatar-se para presidente do país. A iniciativa foi bloqueada pelas autoridades. Ah, como me lembro de nossa caminhada ao cinema em Bugojno em 1982, quando Garry explicou como o comu-nismo era nosso derradeiro destino. Embora as democracias sejam terríveis, coisas baru-lhentas, as alternativas são muito piores. Ele vai, sem dúvida, tentar concorrer para a pre-sidência da Rússia, uma meta que está reple-ta de perigos. Ele já foi preso. Durante seus poucos dias de encarceramento, ele recebeu uma visita: seu rival Anatoly Karpov. A gente fica pensando sobre o que será que eles con-versaram. Será que riram cruelmente um do outro como tinham feito em Malta e Sevilha? Ou olharam um para o outro e trocaram um aperto de mãos com profundo respeito e mútua estupefação? “Obrigado por vir. Você me trouxe chocolates?”

Garry continua envolvido com o mun-do do xadrez. Ele disputa partidas simul-

tâneas, além de um match de exibição de vez em quando. Recentemente, disputou um desses contra Anatoly Karpov. Ele tam-bém aceitou treinar o norueguês Magnus Carlsen, sem dúvida uma grande promessa. Garry continua escrevendo, inclusive sua cé-lebre série Meus Grandes Predecessores (My Great Predecessors). Espera-se que ele conti-nue seus escritos, palestras, apresentações e treinamento. Pessoalmente, eu adoraria vê--lo disputar um match com o atual Campeão Unificado, Viswanathan Anand, mas esta es-perança parece ser uma causa perdida.

Garry afirmou após sua vitória em um match de xadrez rápido e Blitz contra Anatoly Karpov em Valência, Espanha, em setembro de 2009: “Preciso deixar isto cla-ro, e as pessoas não estão ouvindo: não te-nho interesse [em voltar para o xadrez pro-fissional]. Porque eu já realizei tudo o que eu queria no jogo de xadrez, e agora eu o aprecio imensamente, mas jogar profissio-nalmente é uma coisa bem diferente. Não vamos esquecer, estou trabalhando com Magnus, e esta é minha atividade profissio-nal. É impossível aliar as duas coisas. Estou feliz por ter jogado bem com Karpov – bem, isso é exagero. Karpov fez alguns lances muito bons, mas a qualidade de seu xadrez não foi estável. Às vezes ela caía dramatica-mente, e também seu manejo do tempo. Como enxadrista profissional você sabe que muita vezes o seu jogo depende do seu adversário.”

Em outubro de 2009, o protegido de Garry, Magnus Carlsen, venceu em Nan-jing, um dos eventos mais fortes do ano, com um placar de “+6”. Esse ficará como um dos melhores desempenhos na his-tória. Jogar bem às vezes pode ser uma simples questão de ter confiança. Muita confiança. Saber que Garry o apoia ele-vou Magnus. Sua confiança está sempre em alta máxima. Podemos esperar outras grandes conquistas dele.

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312 Yasser Seirawan

Garry, o que eu posso dizer que ainda não escrevi? Meus melhores votos para você e sua família. Que você encontre paz e felici-dade, meu amigo e querido irmão mais novo.

Nosso placar em torneios termina com um registro de três vitórias, uma derrota e dois empates a favor de Garry, 4-2.

Partidas clássicas contra Garry Kasparov

Seirawan-Kasparov, Nikšić, Iugoslávia, 1983: 0-1

Seirawan-Kasparov, Dubai, Emirados Árabes Unidos, 1986: 1-0

Kasparov-Seirawan, Salônica, Grécia, 1988: 1-0

Kasparov-Seirawan, Barcelona, Espa-nha, 1989: ½-½

Seirawan-Kasparov, Skellefteå, Suécia, 1989: ½-½

Kasparov-Seirawan, Amsterdã, Holan-da, 1996: 1-0

Seirawan: uma vitória, três derrotas, dois empates. Placar clássico: 2-4

Campeão Mundial Seirawan?Bem, um título sugestivo, não? Nunca acon-teceu, é claro, e por favor desculpe-me pelo título pretensioso, mas tinha sido um so-nho. Este livro não é realmente sobre minha carreira no xadrez, exceto enquanto meu caminho se cruzou com Campeões e ex--Campeões Mundiais. Isso aconteceu com frequência, e o resultado foram as 50 parti-das que vocês viram. Às vezes o topo pare-ceu próximo, mas não era para ser.

No decorrer dos anos tive a graça de ter conquistado alguns fãs entusiásticos que me apoiaram, e alguns podem às vezes ter se perguntado: “Por que não Yasser como Campeão Mundial?” Para retribuir sua leal-dade e gentileza, vou tratar esta questão se-riamente, não por ter quaisquer pretensões, mas sim porque isso pode lançar alguma luz

sobre o que é preciso para escalar os picos mais altos no mundo do xadrez.

Em primeiro lugar, vou apontar o ób-vio. A qualquer momento, só pode haver um Campeão Mundial (bem, talvez dois ou pos-sivelmente três como em tempos recentes...). Para ser Campeão Mundial, você não tem que ser apenas bom – você tem que ser o melhor. O melhor mesmo. É preciso ser o me-lhor tanto durante todo o match pelo título quanto pelos matches ou torneios de qualifi-cação que antecedem o Grande Match. É por isso que, nos capítulos anteriores, eu muitas vezes me referi às realizações dos Campeões Mundiais ao se qualificarem para os matches pelo título, além dos êxitos nos matches pelo título propriamente dito. Tornar-se Campeão Mundial ou mesmo um Desafiante, portanto, não é tarefa fácil.

David Bronstein estava literalmente a apenas um lance de distância de tirar o tí-tulo de Botvinnik, embora existam teorias mais sinistras sobre seu empate no match de 1951. Paul Keres foi “o melhor enxadrista a jamais tornar-se Campeão Mundial”, tendo--lhe sido negada a chance de um match pelo título por fenômenos imprevisíveis como Tal. Victor Korchnoi perdeu dois matches por um único ponto. A lista dos que estiveram tão próximos continua.

As probabilidades contra qualquer jo-gador tornar-se Campeão Mundial são for-tes, simplesmente porque existem muitos concorrentes legítimos. Ainda que ninguém chegaria ao ponto de dizer que é preciso sorte para ganhar o título, eu sugeriria que é verdade que você precisa ser afortunado. Você pode fazer quase tudo certo e mes-mo assim ser-lhe negado. Isto é algo que os Campeões tendem a ter em comum – eles estão no lugar certo no momento certo, jo-gando seu melhor xadrez. Mas os Campeões Mundiais fazem sua própria sorte. Com cer-teza, os matches do Campeonato Mundial ti-veram seus momentos decisivos e pontos de virada, assim como os matches e torneios de

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Candidatos, mas nunca houve um Campeão Mundial que não merecesse deter o título.

Sim, como todo mundo, os Campeões Mundiais precisam ter a oportunidade de ter êxito, mas todos eles são insuperáveis em aproveitar suas oportunidades quando elas aparecem, tanto durante uma determinada partida quando de modo geral ao longo de suas carreiras. Spassky conseguiu pelo ca-minho mais duro, não conseguindo derrotar Petrosian em sua primeira tentativa em 1966, depois abrindo seu caminho através do ciclo para, em 1969, vingar sua derrota. Fischer pe-gou um atalho no Interzonal de 1970 e tinha amigos e colegas dedicados que o salvaram de si mesmo e administraram sua campa-nha por fim bem-sucedida para tirar o título de Spassky em 1972. Karpov, um enxadrista nato e incrivelmente talentoso, trabalhou com afinco, e os grandes esforços da má-quina do xadrez soviético para garantir seus triunfos provavelmente eram mais garantia do que estritamente necessários. Quanto a Kasparov, como Mikhail Tal antes dele, como uma força da natureza pode ser detida...?

Voltando à pergunta original, eu não tive azar e não tive oportunidades ou apoio injustamente negados. Nunca me queixei so-bre nada disso e com certeza não pretendo começar agora. Não, é simplesmente mais simples do que isso, caros leitores. Para ser um Campeão Mundial, você precisa jogar com um nível consistente de excelência, e isso é algo que apenas um punhado de enxadristas po-dem fazer, e nem sempre por muito tempo.

Uma analogia. A maioria dos jogadores de golfe levam boas memórias para casa de-pois de cada rodada – a condução colossal no 4o buraco, o pouquinho que faltou para o buraco no 9o, a longa tacada marcando pon-to no 18o buraco para terminar a rodada. Pe-gue suas dez melhores tacadas e atenha-se a elas, e você está na turnê. Faça nela suas melhores cinco tacadas e observe. Mas tente fazer isso todos os dias, em todas as rodadas, quase o tempo todo. Sem ganchos no mato,

sem tacadas na água, sem jogadas erradas. Talvez algumas, mas excelência como norma quase sempre. Quase perfeição. Impossível? Para a maioria, mas não para os melhores.

O mesmo se aplica ao xadrez. Não ape-nas alguns bons lances, boas partidas, bons torneios ou bons anos. Tudo isso, exceto pelo raro lapso para mostrar que você é hu-mano. Não é tão fácil.

Apesar do que considero alguns resul-tados muito bons e muitas partidas muito boas, isto era em última análise o que eu não consegui superar: a necessidade de absoluta consistência jogando excelente xadrez por períodos prolongados. Mesmo erros ocasio-nais, de cálculo e de avaliação, são suficien-tes para detê-lo a um passo do topo. Apenas um passo, mas que grande passo para tentar dar! Não é tanto uma questão de não com-preender uma posição ou de ficar perdido em variantes em um momento decisivo – trata-se de mais de um lance, daquele único momento de desatenção, que você adoraria ter de volta. E, quando você está jogando contra os melhores, eles não deixam a chan-ce escapar, elas a pegam, agarram-na com firmeza e levam a vitória para casa...

Meu placar geral com os gigantes do ta-buleiro de xadrez em partidas clássicas, que eu considero o teste “supremo”, não foi nada mau. Você pode ver as estatísticas no fim de cada capítulo, mas aqui elas foram reunidas:

Seirawan contra Smyslov: uma vitória, uma derrota, três empates. Placar: 2½-2½

Seirawan contra Tal: quatro vitórias, um empate. Placar: 4½-½

Seirawan contra Petrosian: um empate. Placar: ½-½

Seirawan contra Spassky: uma vitória, quatro derrotas, cinco empates. Placar: 3½-6½

Seirawan contra Karpov: duas vitórias, quatro derrotas, sete empates. Placar: 5½-7½

Seirawan contra Kasparov: uma vitória, três derrotas, dois empates. Placar: 2-4

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Seirawan contra Gigantes: nove vi-tórias, doze derrotas, dezenove empates.Placar: 18½-21½

Das partidas apresentadas neste tra-balho, incluindo os pontos perdidos de mi-nha partida rápida em Mazatlán (empate) e da partida do torneio de Blitz (empate) contra Anatoly Karpov, o total é de 16 vi-

tórias, 17 derrotas e 25 empates. Mais uma vez, este placar geral é lisonjeado pela vi-tória por tempo em partida Blitz contra Anatoly Karpov e vitória em partida Blitz contra Boris Spassky. Foi um prazer e uma honra duelar com os gigantes do tabulei-ro. Obrigado a cada um, obrigado a todos vocês.

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O Futuro do Campeonato Mundial

A Fédération Internationale des Échecs (FIDE)Se a FIDE, a Fédération Internationale des Échecs, ou Federação Internacional de Xa-drez, não existisse, ela teria que ser criada. Todos diriam: “Sim, é claro, o xadrez precisa de um órgão internacional de xadrez”, de-pois do que as discussões e discórdias co-meçariam para valer. A velha piada de que, onde existem dois enxadristas, haverá três opiniões fortes tem um fundo de verdade.

Para entender a FIDE e por que ela se saiu mal quando comparada com o sucesso de outras instituições esportivas, devemos começar por sua história e o papel que ela desempenhou no mundo do xadrez.

A história e o papel da FIDEDurante A 8a edição dos Jogos Olímpicos em Paris, em 1924, a Federação Francesa de Xadrez também sediou um torneio. Os participantes criaram a FIDE como um sindi-cato de enxadristas, não muito diferente da GMA. Naquela época, o Campeão Mundial José Raúl Capablanca queria definir os regu-lamentos do Campeonato Mundial com as “Regras de Londres”. Diferentemente da re-gra de “deve vencer dez partidas” de Steinitz,

Capablanca preferia “deve vencer seis parti-das”, sem contar os empates e sem paralisa-ção em um empate em 5-5.

À medida que a nascente organiza-ção cresceu, ela assumiu a responsabilidade de organizar as Olimpíadas de Xadrez, nas quais seleções nacionais jogavam umas con-tra as outras. As Olimpíadas de Xadrez bie-nais tornaram-se o principal evento da FIDE, e, quando delegados de países ao redor do mundo compareciam, uma Assembleia Ge-ral da FIDE era realizada paralelamente. Com a morte de Alekhine em 1946, quando ele ainda estava em posse do título do Campeo-nato Mundial, parecia natural que o próximo evento para coroar o novo rei fosse realizado sob os auspícios da FIDE. Regulamentos para o match e para o ciclo do Campeonato Mundial foram cuidadosamente redigidos e codificados.

De um sindicado de enxadristas a FIDE havia se transformado em um sindicato de federações nacionais de xadrez. Cada fede-ração enviava um delegado para participar da Assembleia Geral, submeter moções e vo-tar sobre elas. Os países que não pudessem enviar um delegado davam sua procuração para outro delegado. É comum que um de-

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legado empunhe várias procurações. Quan-do a Assembleia Geral não está em sessão, a FIDE é administrada por seu presidente e comitê presidencial. Numerosos comitês foram criados, com delegados disponibili-zando seu tempo para servir. A FIDE tem um quadro profissional pequeno, mas de modo geral conta com ofertas das federações na-cionais para sediar os eventos e cobrir os custos resultantes.

Desde este princípio, a FIDE se desen-volveu e cada federação nacional tinha um voto. Que maravilhosamente democrático, poderíamos dizer. Nenhuma federação é mais poderosa do que outra. As Ilhas Virgens Americanas têm os mesmos direitos de voto que a Rússia, a maior federação mundial e lar da maioria dos Grandes Mestres do pla-neta, enquanto as Ilhas Virgens Americanas não possuem Grandes Mestres ou Mestres Internacionais (que eu saiba), e existem tal-vez uma dúzia de pessoas que vivem lá que realmente participam de competições de xadrez. Imediatamente, começamos a ter uma noção do abismo nos problemas que existem.

Diferentemente das Nações Unidas, que possuem um Conselho de Segurança em que alguns países têm direito de vetar quaisquer ações, na FIDE a Assembleia Geral pode aprovar qualquer legislação adotada por uma maioria dos delegados. A maioria pode ter interesses muito diferentes dos de federações maiores. Por exemplo, enquanto a Federação de Xadrez dos Estados Unidos (USCF) tem um grande quadro profissional e um orçamento anual de milhões de dólares, quase três vezes maior do que o da FIDE, as federações nacionais de países fora da OECD são, em sua maioria, organizações peque-nas baseadas em trabalho voluntário. Elas necessitam de materiais de xadrez, tabulei-ros, jogos de peças, relógios e livros, além do custeio de viagens para eventos como as Olimpíadas. Questões como os regula-mentos do Campeonato Mundial têm baixa prioridade para a maioria das federações de

xadrez, ao passo que Campeonatos Escolás-ticos e Juvenis são prioridades.

A FIDE assume muitas tarefas e fun-ções que têm um impacto tremendamente positivo sobre o xadrez. Além dos eventos que realiza, ela também estabeleceu um sistema mundial de ratings que classifica os eventos disputados ao redor do planeta. Existem categorias mundiais para os melho-res enxadristas, assim como para cada na-ção-membro. A FIDE tem um sistema de titu-lação que concede títulos de Grande Mestre (GM), Mestre Internacional (MI) e Mestre da FIDE (FM) tanto para homens como para mulheres. Os ratings e títulos da FIDE afe-tam todo enxadrista profissional, semipro-fissional e amador. A FIDE fornece jogos de peças, tabuleiros e relógios para federações nacionais em desenvolvimento, tributando as federações mais abastadas e ajudando as menos afortunadas.

Houve momentos em que a FIDE emi-tiu sanções contra determinados enxadris-tas, retirando seu nome da lista de ratings, além de revogar seus títulos. Existe um conflito nestes momentos, pois não são os indivíduos que são membros da FIDE e, por princípio, deveria caber às federações nacio-nais penalizar seus próprios enxadristas. Por exemplo, quando Garry Kasparov e Nigel Short renunciaram a suas posições como Campeão da FIDE e Desafiante da FIDE, seus nomes foram retirados da lista de ratings da FIDE, o que causou confusão para organiza-dores. Pouco tempo depois, a FIDE reverteu sua decisão e reintegrou os nomes dos dois enxadristas. A FIDE não pode se ocupar com a punição ou denúncia de indivíduos, pois isso pode gerar ações políticas pessoais in-significantes do tipo mais tolo.

A política da FIDEÀs vezes, a liderança da FIDE tem pareci-do terrivelmente insegura, aprovando um grupo de resoluções que estipulam que aqueles que criticarem a FIDE podem ser banidos do xadrez. Persona non grata vem à

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mente – não tenho certeza sobre as qualifi-cações exatas necessárias e se uma ou duas normas são suficientes. Repetindo, a FIDE é uma organização de federações nacionais de xadrez, e ela precisa deixar de se ocupar com o policiamento de condutas indivi-duais para se concentrar em seus membros, as federações.

Outros conflitos pessoais surgem em relação a eventos que envolvem muito di-nheiro. Nestes, comitês específicos e o Co-mitê Presidencial da FIDE decidem quem sedia os eventos lucrativos sancionados, tais como Campeonatos Escolásticos, em que os prêmios são medalhas e títulos mundiais da FIDE. A maioria dos participantes paga indi-vidualmente por suas despesas de viagem, acomodação e refeições, ou é subsidiada por federações nacionais ou patronos. Os organizadores destes eventos recebem uma grande proporção de seus orçamentos dos participantes que se hospedam nos hotéis oficiais, onde as quantias obtidas das diárias de hospedagem voltam para o orçamento do evento, além do dinheiro dos ingressos e assemelhados. Embora os comitês de orga-nização sejam constituídos por voluntários, alguns organizadores são profissionais em tempo integral, sendo importante manter boas relações com aqueles que trabalham nos comitês que distribuem as ofertas bem--sucedidas. Recentemente, por exemplo, a Federação Turca questionou os procedimen-tos da FIDE em tribunais civis e venceu sua causa. Às vezes, os leilões para os eventos pareceram corrompidos e artificiais. As pro-postas vencedoras são, às vezes, conhecidas de antemão por pessoas de dentro da FIDE.

Assim, existe um conflito constante dentro da FIDE, bem como nas federações nacionais, entre os que dedicam seu tra-balho voluntariamente à causa do xadrez como trabalho caridoso e outros que dese-jam fazer do xadrez uma profissão para seu ganho pessoal privado. Isso deu origem ao “catador profissional de emprego na FIDE”. Assim como existem políticos profissionais

no Congresso e no Senado dos Estados Uni-dos que passam décadas servindo em busca de reeleição, não existem limites de man-dato para as autoridades da FIDE. Florencio Campomanes, presidente da FIDE por mui-tos anos e atualmente “presidente honorá-rio”, é um bom exemplo do “político de car-reira do xadrez.”

Pode-se argumentar que os políticos profissionais são as pessoas mais experien-tes e capazes de desempenhar um papel proeminente em eventos de xadrez mun-diais de grande divulgação. Neste caso, os potenciais conflitos de interesse deveriam obrigá-los a serem agnósticos e a não po-derem votar quando se decide quais ofer-tas para eventos serão aceitas. Senão seria como se membros do Comitê Olímpico In-ternacional (COI) aprovassem as ofertas das nações-sede e depois desempenhassem em funções remuneradas em tais eventos.

Uma das formas mais simples e limpas de evitar estes conflitos de interesse é a FIDE ceder os direitos organizacionais para seus principais eventos a uma terceira parte, uma organização comercial que administraria e desempenharia estas obrigações profissio-nalmente. Isso nos leva para mais perto da atualidade.

A economia da FIDEA FIDE é uma organização em que “se cor-rer o bicho pega, se ficar o bicho come”. Nós precisamos de tal organização, mas suas estruturas de governo a tornam pra-ticamente ingovernável. Ela não funciona tão bem quanto gostaríamos. Uma sim-ples razão é que ela se mantêm com uma terrível insuficiência de pessoal e com um orçamento muito pequeno para seu porte. Os gastos são de menos de um milhão de euros por ano.

Na Olimpíada de Turim em 2006, eu es-tava apoiando Bessel Kok em sua campanha pela presidência da FIDE, e fomos ao escri-tório do Comitê Financeiro da FIDE e rece-bemos um relatório contábil detalhado de

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seu mais recente exercício financeiro. Não me recordo do número exato do orçamento anual da FIDE, mas provavelmente ficava em torno de 880.000 euros. Eu apontei o núme-ro para Bessel, e ele me corrigiu: “Não, des-culpe Yasser. Você está lendo o número er-rado. Os números do balancete geralmente são expressos em números muito maiores”. Rindo, eu garanti a ele que estava lendo cer-to. Bessel ficou abalado ao ver o quanto era pequena a cifra dos gastos anuais de toda a FIDE. Bessel tentou novamente: “Você tem certeza de que isso não é o orçamento para um Comitê da FIDE? Por exemplo, o trabalho da FIDE com o COI?” Mais uma vez, eu garan-ti a ele que era para a FIDE inteira. Bessel foi em busca de uma segunda opinião.

Em 1995, Kirsan Ilyumzhinov tornou--se presidente da FIDE e continua sendo até a presente data (janeiro de 2010). Embo-ra seja possível argumentar que 15 anos é tempo suficiente para qualquer um ser Pre-sidente de uma organização internacional e notabilizar-se, a FIDE tem sido bem nutrida por seu presidente e tem dependido de sua generosidade.

Kirsan concordou, em 1995, que sua república russa, a Calmúquia, da qual é presidente, e sua capital, Elista, sediassem o match do Campeonato Mundial de Xa-drez no ano seguinte entre Anatoly Karpov (Campeão em virtude de sua vitória sobre Jan Timman em 1993) e seu Desafiante Gata Kamsky. Foi um match de um milhão de dó-lares, e Kirsan pagou a verba do prêmio. De-pois, em 1998, Elista sediou a Olimpíada de Xadrez, um evento muito mais caro para os organizadores, pois equipes de muitos paí-ses em desenvolvimento foram hospedadas pelos organizadores. Kirsan construiu toda uma “Cidade do Xadrez” com um “Palácio do Xadrez” para realizar este imenso evento. E assim, Kirsan tornou-se tanto o patrocinador do evento como presidente da FIDE.

Ele trouxe muitas novas ideias para o xadrez. Quando “uma centena de flores desabrocham”, algumas inevitavelmente

acabam sendo ervas daninhas. Ele preten-dia estabelecer um braço comercial da FIDE que levasse em conta os conflitos entre os políticos da Federação que foram mencio-nados anteriormente. Ele criou a “FIDE Com-merce,” uma empresa com fins lucrativos registrada em Londres, que detinha os di-reitos de sediar os eventos do Campeonato Mundial. Ele injetou milhões de dólares em seu tesouro e designou Artiom Tarasov como presidente da FIDE Commerce. Foi um empreendimento desastroso. Tarasov era totalmente incompetente para o cargo que ocupava. Em minha opinião, ele embar-cou em uma onda de gastos desenfreados e não produziu nada. Comicamente, a FIDE Commerce sugeriu uma roupa com uma estampa xadrez em preto e branco. Piedo-samente, a FIDE Commerce por fim fechou suas portas.

O conceito de haver uma empresa com fins lucrativos separada administrando o ciclo do Campeonato Mundial faz todo o sentido, e é uma pena que Kirsan tenha posto a pessoa errada no comando. Por ou-tro lado, existe algo muito duvidoso sobre o presidente da FIDE também ser o maior acionista da empresa comercial que detém os direitos da FIDE sobre seus principais eventos. A separação entre Igreja e Estado deve ser rigorosa.

Sem dúvida, Kirsan Ilyumzhinov foi o maior patrocinador do xadrez que já existiu. Recordo-me de um almoço em Nova Iorque logo depois do match de Kasparov com o Deep Fritz em 2003 quando começamos a discutir sobre quanto dinheiro, naquela épo-ca, Kirsan tinha dedicado ao patrocínio do xadrez. Sem incluir os custos para a Cidade do Xadrez, Garry contou até 29 milhões de dólares e não pôde estimar quanto Tarasov poderia ter gasto na FIDE Commerce. Era uma quantia descomunal, e ambos imagina-mos como as coisas poderiam ter sido dife-rentes se este nível de investimento tivesse sido conhecido de antemão e o dinheiro ti-vesse sido gasto de uma maneira mais sábia.

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A FIDE e o Campeonato MundialAté 1993, quando Kasparov e Short abdica-ram de seus papéis e saíram para disputar seu match pelo Campeonato sob os aus-pícios da recém-formada PCA (passo que Kasparov posteriormente descreveu como o maior erro de sua carreira), as regras do match da FIDE permaneceram praticamen-te intactas. Após o primeiro match aborta-do entre Karpov e Kasparov, o sistema foi revertido para um match de 24 partidas, sendo o vencedor o primeiro a obter 12½ pontos. As regras de match com 24 parti-das estavam em vigor para o match entre Karpov e Kamsky em Elista, 1996. Foi a últi-ma vez que a FIDE organizou um Campeo-nato com match de 24 partidas.

Depois que Kasparov derrotou Short em seu match em Londres, surgiu um novo Desafiante da PCA para Kasparov: Viswanathan Anand, da Índia. Kasparov e Vishy disputaram um match de 20 partidas em 1995 no World Trade Center em Nova Iorque, match disputado no “topo do mun-do”. A cerimônia de abertura foi realizada pelo prefeito Rudy Giuliani, por triste ironia no dia 11 de setembro de 1995. Kasparov venceu o match e manteve sua “coroa da PCA”. A maioria dos fãs de xadrez conside-raram Kasparov o verdadeiro Campeão mas ainda queriam ver os dois detentores do tí-tulo, Kasparov (PCA) e Karpov (FIDE), dispu-tarem um match pelo título unificado para desfazer a cisão no mundo do xadrez.

Em vez de reunir os dois detentores do título para um confronto, o presidente da FIDE teve uma ideia completamente di-ferente. Como mencionado anteriormente, ele infelizmente tinha os recursos financei-ros para executar seu plano. Sua concepção era um grande evento de nocaute (KO) com 128 enxadristas como nos campeonatos de tênis de Wimbledon. Os participantes joga-riam rodadas de dois minimatches curtos de duas partidas; os desempates seriam feitos com partidas de xadrez rápido e Blitz. Os

dois enxadristas que chegassem às semifi-nais seriam reunidos com os dois “semifina-listas pré-selecionados”: Anatoly Karpov e Garry Kasparov. As semifinais seriam um mi-nimatch de quatro partidas. Os dois vence-dores disputariam uma final de seis partidas. Como em todas as rodadas de jogo, partidas de xadrez rápido e Blitz fariam o desempate. O evento de nocaute teria uma rica verba de premiação de cinco milhões de dólares, uma quantia sem precedentes para um even-to sem precedentes no mundo do xadrez. Kirsan era o patrocinador.

Os primeiros Campeonatos Mundiais de Xadrez KO foram realizados em Gronin-gen, Holanda, em dezembro de 1997. A fi-nal de seis partidas foi realizada alguns dias depois, em janeiro de 1998, em Lausanne, Suíça. Eu era um participante em Groningen e assisti à cerimônia de abertura, na qual Kirsan fez um discurso incrível. Ele explicou que sua visão de um Campeonato Mundial KO com 128 participantes ocorreria a cada dois anos, e que ele tinha depositado 50 milhões de dólares na “World Chess Foun-dation” na Suíça para garantir os próximos dez eventos durante os 20 anos seguintes. O evento KO em Groningen foi incomum, porque um enxadrista, Karpov, estaria pré--selecionado para a final, mas, nos futuros eventos KO, os participantes começariam na Primeira Rodada ou no Primeiro Match.

Oferecendo um prêmio tão grande, Kirsan pretendia convencer Kasparov e Karpov a aceitarem seus convites para as semifinais e resolverem suas diferenças no tabuleiro. Para tornar a oferta ainda mais atraente, se um jogador recusasse o convi-te para jogar nas semifinais, o jogador que aceitasse o convite estaria diretamente pré--selecionado para a final. Kasparov recusou seu convite, e o Campeão da FIDE Anatoly Karpov ficou pré-selecionado para a final. O adversário de Karpov na final era Viswa-nathan Anand. Tendo recém competido em um série exasperante de minimatches, ele enfrentou um Campeão bem descansado e

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perdeu no desempate de xadrez rápido. Os fãs de xadrez sabiam que isso era extrema-mente injusto com Vishy.

No evento KO seguinte, organizado em Las Vegas, Karpov estava ausente, alegando que o evento indevidamente infringia seu rei-nado de dois anos como Campeão Mundial e recusou-se a jogar. Ele inclusive apresentou uma queixa junto aos organismos despor-tivos suíços – um caso notável de “morder a mão que te alimenta”. Os eventos do Cam-peonato Mundial KO da FIDE produziriam um novo Campeão em cada excursão: o rus-so Alexander Khalifman em 1999; o indiano Viswanathan Anand em 2000; o ucraniano Ruslan Ponomariov em 2002; e o uzbesquis-tanês Rustam Kasimdzhanov em 2004...

Por que Garry Kasparov recusou seu convite para o primeiro evento KO altamen-te lucrativo? Ele corretamente declarou que um evento daquele tipo pelo maior título no xadrez barateava o título, pois tais eventos de nocaute eram “loterias”, considerando--se que qualquer Grande Mestre em qual-quer dia poderia inesperadamente derrotar outro. Comprovou-se que ele estava certo. Xadrez não é tênis e, em todos os eventos KO da FIDE, somente uma vez o enxadrista mais bem classificado, Viswanathan Anand, venceu. O vencedor do evento KO detinha o título de “Campeão Mundial da FIDE” e era coroado como tal de acordo com as regras, mas o público de xadrez não reconhecia os vencedores como o melhor jogador no mun-do. Segundo o próprio rating ELO e lista de classificação da FIDE, o jogador número um era Garry Kasparov. Kasparov faria o célebre comentário cruel de que “o Campeão da FIDE deveria receber um convite para jogar em Li-nares”.

A confusão aumentou ainda mais quando, em 2000, a PCA de Kasparov fe-chou e um novo patrocinador, a Brain Ga-mes, apareceu, como já foi mencionado. Ela sediou um match de 16 partidas entre Kasparov e Kramnik, que Kramnik surpre-endentemente venceu. Em 2004, Kramnik

defendeu seu título em Brissago, Suíça, em-patando em um match de 14 partidas con-tra seu Desafiante, o húngaro Peter Leko. Parecia que havia três enxadristas que eram o “melhor do mundo”: Vladimir Kramnik, em virtude de sua vitória no match con-tra Garry Kasparov; Kasparov, em virtude de sua classificação mais alta no mundo; e o detentor do título FIDE KO. Mas quem era o “Campeão Mundial?” Embora eu pes-soalmente favorecesse a reivindicação de Kramnik, apesar da duração cada vez mais curta dos matches pelo “Campeonato”, os fãs de xadrez ansiavam por uma resolução dos conflitos, e os patrocinadores do xadrez continuavam um silencioso êxodo.

Depois do primeiro evento FIDE KO com alta premiação, as competições pos-teriores tiveram problemas financeiros. Em Groningen, Kirsan tinha explicado seu depó-sito de 50 milhões de dólares na World Chess Foundation para os orçamentos de dez eventos, mas aquele dinheiro parecia ter de-saparecido. Em 1999, no evento FIDE KO em Las Vegas, houve alguns cheques devolvidos e o vencedor, Khalifman, levou vários meses para receber seu prêmio. Posteriormente, ele foi pago integralmente. Os eventos KO seguintes não foram tão lucrativos quanto o primeiro.

A história recente doCampeonato MundialDepois que a FIDE Commerce se extinguiu e o vigor do Campeonato KO enfraqueceu, a FIDE mudou o formato para determinar o Campeonato Mundial em 2006. San Luis, Ar-gentina, sediaria um torneio round robin du-plo com oito enxadristas. O vencedor seria o novo Campeão Mundial da FIDE. O Campeão Mundial FIDE KO, Rustam Kasimdzhanov, jogou para defender seu título, juntamen-te com os enxadristas com maior rating no mundo. Kasparov tinha se aposentado em março de 2005, enquanto Vladimir Kramnik recusou-se a jogar no torneio, insistindo que

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um formato de match deveria decidir o título de Campeão Mundial.

Uma pergunta que se fez era por que uma competição pelo título máximo no xa-drez seria tão diferente de um evento de alta categoria como o de Dortmund, Linares ou o de Sófia. Na verdade, estes torneios priva-dos com frequência apresentavam formatos round robin duplo entre os jogadores mais bem classificados. A “mística” do que consti-tuía o título do Campeonato Mundial de Xa-drez estaria ausente. É exatamente devido ao jogo prolongado em match que o título do Campeão Mundial de Xadrez é tão pres-tigiado. Este é o evento que se distingue de todo outro tipo de evento de xadrez. O jogo prolongado em match pela coroa do Cam-peonato Mundial não tem igual, e dessas competições nascem lendas.

Em 2006, o búlgaro Veselin Topalov venceu o evento San Luis e tornou-se o novo Campeão Mundial da FIDE sob seu novo for-mato. As credenciais de Topalov como Cam-peão Mundial eram impecáveis. Ele venceu em San Luis de maneira dominante e era o jogador mais bem classificado no mundo, após a aposentadoria de Kasparov. O agente de Topalov, Silvio Danailov, ficou encantado com o resultado. “Por que precisamos de matches?”, ele me perguntou. “O formato de torneio é muito melhor”. É realmente muito triste quando os líderes no mundo do xadrez não fazem a menor ideia sobre o que torna o xadrez especial e por que ele captura a ima-ginação do público em geral.

O presidente da FIDE introduziu uma outra “inovação” na luta pelo título do Cam-peonato Mundial. Como a FIDE recebe 20% da bolsa para eventos por títulos, Kirsan abriu a porta para potenciais Desafiantes. Se um enxadrista com rating de 2700 con-seguisse encontrar um patrocinador para uma verba de premiação de um milhão de dólares, um desafio poderia ser lançado. Isso era uma regressão aos dias de Steinitz, Lasker, Capablanca e Alekhine. A sensação Teimour Radjabov, do Azerbaijão, encontrou

um patrocinador assim em seu país rico em petróleo e parecia que um match de Topalov contra Radjabov estava por vir. Embora aque-la fosse uma bela excursão para ambos os en-xadristas, o mundo do xadrez ansiava por um fim do cisma.

Por fim, em outubro de 2006, Topalov desafiou Kramnik para um match de 12 parti-das para unificar o título e terminar a cisão. A competição foi realizada em Elista e recebeu cobertura mundial pelo que Fleet Street ape-lidou de “toilet-gate” (escândalo do banhei-ro). Kramnik não compareceu a uma partida quando seu uso do banheiro foi restringido por uma decisão do Comitê de Apelação e ele quase se retirou do match. No fim, quan-do a partida perdida por forfeit foi incluída, o match resultou em um empate em 6-6. Um desempate de quatro partidas de xadrez rá-pido foi usado para decidir o resultado do match: Kramnik venceu por 2½-1½, e o cisma no mundo do xadrez estava acabado, mas isso dificilmente resolvia os problemas do Campeonato Mundial.

Os contratos dos enxadristas para o match de Elista exigiam que o vencedor do match defendesse o título na Cidade do México em 2007 no mesmo tipo de tor-neio round robin duplo entre oito jogado-res disputado em San Luis, Argentina. Se o vencedor em Elista (Kramnik), não vences-se o evento no México, ele disputaria um match com o vencedor do torneio do Mé-xico. Esta cláusula foi bastante traiçoeira para Vladimir Kramnik. Afinal, ele tinha de-fendido o formato de match para decidir o título do Campeonato Mundial e agora ele colocaria em jogo a coroa do Campeonato Mundial jogando em um formato de tor-neio. Viswanathan Anand venceu o round robin duplo na Cidade do México à frente de Kramnik para tornar-se o novo Campeão Mundial da FIDE. Era a segunda vez que Anand tinha conquistado o título da FIDE, tendo uma vez vencido o evento KO. Anand e Kramnik se prepararam para disputar um match de 12 partidas em Bonn, Alemanha,

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em 2008. Viswanathan Anand venceu o match e é merecidamente considerado o Campeão Unificado incontestável do mun-do atualmente. Ufa! Foi um longo caminho, mas o cisma finalmente acabou.

Seguindo o molde de Karparov com seus matches na PCA, a FIDE tem tomado o rumo errado em relação à extensão do match do Campeonato Mundial de Xadrez. O match de Bonn de 2008 era para o melhor de 12 partidas, a metade da distância dos confrontos épicos que formaram os gigan-tes do passado e foram responsáveis pela criação de suas lendas. Bonn foi um even-to fantástico que simplesmente foi curto demais. Eu entendo as realidades econô-micas e que organizar matches é caro, mas se tanto vai ser gasto, por que fazê-lo para um evento de duas semanas se um evento mais longo não é muito mais dispendioso? Eu conclamo vigorosamente a FIDE a vol-tar a adotar os matches de 24 partidas pelo Campeonato Mundial. O público leva várias semanas apenas para se dar conta de que um evento do Xadrez Mundial está sendo realizado, e se ele tiver terminado antes que esta consciência tenha se estabelecido, o patrocinador vai perder o legado de interes-se que a acompanha.

Enquanto a FIDE estava organizando torneios round robin duplos com oito enxa-dristas para decidir o detentor de seu título e também matches, ela encontrou um novo patrocinador para o evento KO, que mudou o nome para “Copa do Mundo”. Rica em re-servas de petróleo, a cidade de Khanti-Man-siisk, na Rússia, sediou três eventos conse-cutivos da Copa do Mundo. O vencedor de 2008 foi Gata Kamsky, dos Estados Unidos. A FIDE decidiu que Kamsky, o Campeão da Copa do Mundo, disputaria um match con-tra o búlgaro Veselin Topalov, o enxadrista com maior rating ELO na lista da FIDE. Em 2009, Topalov venceu o match em Sófia, Bul-gária, e obteve o direito de desafiar Anand para um match pelo título a ser disputado

em abril de 2010, em Sófia, Bulgária. Este é o ponto em que nos encontramos hoje.

Seria muito pouco dizer que, de 1993 até hoje, houve muita confusão no mundo do xadrez. A FIDE produziu tantos Campeões Mundiais em um período de seis anos quan-tos existiram nos primeiros 60 anos. O que aconteceu com o ciclo da FIDE para criar um Desafiante? Infelizmente, a questão ainda está nebulosa. Em 2007, a FIDE decidiu lan-çar uma série de eventos Grand Prix de alta visibilidade, seguindo o molde dos eventos da Copa do Mundo da GMA. O vencedor do Grand Prix deveria tornar-se o finalista em um match para produzir o Desafiante. Na Olimpíada de 2008 em Dresden, as regras fo-ram alteradas durante o ciclo. Isso levou dois dos mais bem classificados enxadristas a se retirarem do Grand Prix: Mickey Adams, do Reino Unido, e Magnus Carlsen, da Noruega. Parece que a FIDE gostaria de organizar um torneio de Candidatos de oito jogadores nos moldes de San Luis, cujo vencedor desafia-ria o vencedor do match Anand-Topalov, em vez de fazer o vencedor do Grand Prix dispu-tar um match com o vencedor da Copa do Mundo como originalmente anunciado.

Agora temos um ciclo que conta com o Grand Prix de torneios round robin clás-sicos, um evento KO em que partidas rápi-das e Blitz muitas vezes determinam o re-sultado e, por fim, outro round robin duplo com oito enxadristas, sabe-se lá com que controles de tempo, tudo para produzir um Desafiante durante um período de dois anos. Neste meio tempo, o Campeão Mun-dial, presumivelmente a grande atração no xadrez, fica fora destas competições aguar-dando um rival.

É difícil explicar o ciclo da FIDE para o público em geral, especialmente quando um Grande Mestre como eu não compreende as regras que estão sempre mudando. (As regras podem mudar de uma Assembleia Geral da FIDE para outra.) Tem que haver um sistema melhor, mais eficiente. O comitê do

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Campeonato Mundial criou um camelo em vez de um cavalo.

Sugestões para a FIDEVoltarei ao tema do Campeonato Mundial em um instante, mas primeiro farei algumas sugestões que, espero, sejam construtivas para a FIDE.

Embora o exposto acima seja uma acu-sação bastante dura a uma Federação que age aleatoriamente com sua própria joia da coroa, existem alguns extraordinários pon-tos positivos. Primeiro, e mais importante, as regras do xadrez são universais. Quer dis-putemos uma partida na China, no Brasil ou na Europa, as regras são as mesmas. Isso be-neficia imensamente o xadrez. Se tomarmos o esporte do basquetebol, por exemplo, as regras são diferentes para os jogos universi-tários, para os Campeonatos Mundiais e para a Associação Nacional de Basquete (NBA). O xadrez beneficiou-se imensamente dos esforços da FIDE para codificar as regras de jogo. Em segundo lugar, os títulos da FIDE prestam um grande serviço aos seus agra-ciados, dando-lhes o reconhecimento e as honrarias que eles merecem. Em terceiro lu-gar, a FIDE faz um bom trabalho ao publicar e atualizar as listas de ratings de uma ma-neira imediata e organizada. Este trabalho é realizado em um escritório em Elista, e os en-xadristas e organizadores são imensamente beneficiados por ele. Finalmente, se em cer-ta época a FIDE dependia de Kirsan, seu pre-sidente, como o principal patrocinador dos eventos, seu papel tornou-se o de patroci-nador de último recurso, o que é muito sau-dável para a organização. Seria ainda melhor que ele não patrocinasse nenhum evento de xadrez, e que os eventos sancionados pela FIDE fossem independentes em um sistema de livre mercado.

Como a FIDE vai evoluir? O que ela fará no futuro? Uma coisa que poderia beneficiar a FIDE é uma revisão de sua estrutura de go-verno. Isso não significa necessariamente convocar um “Conselho de Segurança”, mas

alguma descentralização do poder precisa ser introduzida onde as maiores federações tenham maior voz em questões que as afe-tem diretamente. Os enxadristas também devem desempenhar um papel mais forte e apoiador nas regras e regulamentos que afetam seus sustentos. Eles devem envolver--se em comitês que determinem os regu-lamentos do (ciclo do) Campeonato Mun-dial. A postura da maioria dos enxadristas profissionais tem sido esperar para receber seus convites para eventos e ponderar se é do seu interesse aceitar ou recusar. Os enxa-dristas devem compreender que eles têm a responsabilidade de garantir que as regras e regulamentos do ciclo sirvam aos melho-res interesses de todos os envolvidos. Eles devem desempenhar um papel muito mais ativo em seus próprios assuntos.

Para este fim, os enxadristas se reu-niram para criar uma Association of Chess Professionals (ACP), ou Associação dos Profissionais de Xadrez, um grupo pouco coeso que compartilha suas opiniões so-bre o ciclo, os controles de tempo, mudan-ças nas regras e coisas deste tipo. Embora não tão prestigiosa quanto a GMA, ela está desempenhando um papel importante e merece o forte apoio de enxadristas pro-fissionais, assim como da FIDE. É somente através do diálogo baseado no mútuo res-peito entre os enxadristas e as autoridades da FIDE que o xadrez pode avançar. Uma parceria forte baseada na confiança e boa vontade precisa ser forjada.

De passagem, recordemos a votação de 65½-60½ na reunião dos membros da GMA em Murcia que decidiu a guerra de Garry. Hoje, um marco foi ultrapassado – existem atualmente mais de 1200 Grandes Mestres de xadrez no mundo, um aumento de dez vezes. Recordo-me de uma das plata-formas na qual Campomanes fez campanha em 1982. Ele queria “um Grande Mestre de xadrez para cada federação”. No atual ritmo no qual a FIDE está concedendo títulos de Grandes Mestres, parece que as Ilhas Virgens

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Americanas não terão que esperar muito mais tempo.

O bom senso dita que, quando um ciclo se inicia, ele deve ser concluído de acordo com as regras vigentes em seu iní-cio. Mudar as regras na metade do caminho é simplesmente ridículo. Seria um grande passo à frente se dois e possivelmente três ciclos pudessem seguir o mesmo formato, e que ele pudesse ser facilmente acompanha-do e compreendido pelo público em geral.

Outro de meus aborrecimentos de es-timação tem a ver com a promoção de even-tos do Campeonato Mundial. O match em Bonn, em 2008, teve bom público, e, apesar dos altos preços cobrados, houve vários dias em que todos os ingressos foram vendidos. Isso foi reflexo do bom trabalho feito pela Universal Event Promotions, a empresa que sediou o evento. Contudo, eu já vi fotogra-fias do público em outros grandes eventos que, para colocar de forma suave, eram constrangedoras. É vital que eventos proe-minentes importantes tenham grandes pla-teias no salão de jogos assistindo à partida. Para este propósito, seria simples realizar eventos escolásticos de um dia, dois dias e três dias, exibições simultâneas e mesmo um evento aberto de xadrez rápido disputados paralelamente ou antes da principal compe-tição. Os participantes nestes eventos para-lelos então confluiriam para o salão de jogos para assistir os mestres, poupando-nos das imagens pouco lisonjeiras de um salão vazio. Lembro-me tão bem de ficar encurralado no salão de jogos de Riga em 1979 – “mais lota-do do que um ônibus em Kiev”. Estas multi-dões são o que patrocinadores e enxadristas adoram. Como é maravilhoso jogar diante de uma casa lotada.

Além de uma revisão de sua estrutura de governo, a FIDE precisa atentar melhor para suas próprias reuniões e comitês. Exis-tem numerosas reuniões que envolvem dis-cussões tediosas infindáveis com pouco re-sultado. “Muita conversa mas pouco avanço” é o que melhor define as coisas. A FIDE preci-

sa selecionar seus próprios comitês e reduzir o escopo de interesses a uns poucos seletos, e depois dar a estes comitês um orçamen-to adequado para colocarem seus planos e ideias em ação. Aprimorar o processo e focar nas questões importantes. Marcos devem ser criados e medidos. Metas devem ser con-troladas por relatórios de progresso em um ano, três anos e cinco anos. Comitês inefi-cientes devem ser dissolvidos, ao passo que comitês bem-sucedidos devem ser recom-pensados com aumentos orçamentários.

Em nossa era digital, a internet tornou--se uma benção maravilhosa para o mundo do xadrez. Embora seja verdade que a fre-quência em clubes sofreu, isso deve-se em grande parte aos servidores de xadrez da internet que disponibilizam adversários a qualquer hora do dia ou da noite. Os públi-cos que acompanham importantes eventos de xadrez pela internet continuam crescen-do. O xadrez é perfeitamente adequado para acompanhamento e participação do público pela internet. Perguntas escritas podem ser digitadas para um anfitrião, que fornece uma descrição em áudio ou mesmo em vídeo da ação em tempo real. Se este público puder ser adequadamente moneti-zado para patrocinadores e anunciantes, o interesse pelo xadrez assim como os susten-tos de seus enxadristas profissionais estarão garantidos. Minha perspectiva global é que a liderança da FIDE ficou para trás no uso da nova tecnologia que está emergindo. Isso não é necessariamente uma coisa ruim, pois muitas vezes é melhor ser um retardatário do que um pioneiro, mas eu sugeriria uma maior ênfase a essa oportunidade.

Por fim, eu aconselharia vigorosamen-te que os dirigentes da FIDE pensassem em termos de um “Jantar de Premiação”. Um evento deste tipo seria uma oportunida-de de reconhecer os esforços excepcionais de voluntários e profissionais e de duplicar como angariador anual de fundos. O objeti-vo seria levantar um milhão de dólares por ano através do leilão de souvenirs e de ser-

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viços de enxadristas na forma de palestras e exibições simultâneas. Estes fundos pode-riam ser usados para auxiliar federações em desenvolvimento bem como comitês. Repe-tindo, serve fortemente aos interesses dos enxadristas profissionais o envolvimento em trabalhos beneficentes. Retribuindo ao seu esporte, com satisfação, sua imagem é enaltecida e o sorriso de uma criança é uma recompensa comovente.

O Campeonato MundialAntigamente, os fãs do xadrez podiam fi-car horas discutindo sobre quem poderia ser o Desafiante mais digno ou provável e se o Campeão Mundial manteria o título no inevitável match. Todo mundo tinha um enxadrista predileto, exatamente como os fãs dos esportes têm um time predileto de futebol ou de hóquei. As opiniões variavam, mas de uma coisa ninguém duvidada – da legitimidade do Campeonato Mundial. O en-xadrista que detinha o título era o Campeão Mundial e, se alguém quisesse o título, ele ti-nha que ser conquistado. Muitos pensavam que Fischer era o enxadrista mais forte no mundo depois de sua passagem arrasado-ra pelos matches de Candidatos em 1971 (e eles tinham razão), mas até que ele derro-tasse Spassky cara a cara, ele não era Cam-peão Mundial. Se Bobby não tivesse termi-nado seu match, ele não teria sido Campeão Mundial – indiscutivelmente.

O caos nos escalões mais altos do mun-do do xadrez foi resultado de diversos fato-res, que juntos destruíram a legitimidade do Campeonato Mundial por muitos anos.

O primeiro fator, evidentemente, foi o cisma no mundo do xadrez que resultou na existência de um “Campeão Mundial” e de um “Campeão Mundial da FIDE”. Este foi um desdobramento desastroso e levou o xadrez para mais perto do boxe do que qualquer um teria desejado. Já falei o suficiente sobre isso e parece que o problema ficou para trás.

O segundo fator foram as constantes mudanças no formato para decidir o Cam-

peonato Mundial. Eu recontei a história do Campeonato Mundial. As “Regras de Stei-nitz” (primeiro a ganhar dez partidas) fun-cionavam suficientemente bem quando a teoria do xadrez era menos desenvolvida e as partidas decisivas eram mais frequen-tes. Quando os empates tornaram-se mais comuns, as “Regras de Londres” (primeiro a ganhar seis partidas) foram introduzidas. Os formatos variaram nos anos 30, mas, após um match-torneio especial pelo Campeo-nato Mundial em 1948 para encontrar um novo Campeão após a morte de Alekhine, o formato do match estabilizou-se em 24 par-tidas, incluindo empates, sendo que o Cam-peão conservava o título em caso de 12-12.

Este formato durou cerca de 20 anos, até 1972. Fischer procurou reintroduzir as Regras de Steinitz para o match de 1975, e, em 1978, 1981 e 1984, as Regras de Lon-dres “mais curtas” foram usadas. O match Karpov-Korchnoi em 1978 e especialmente o match Karpov-Kasparov em 1984-85 abor-tado mostraram que o xadrez tinha mudado e, independentemente das regras do match, os empates contavam. Eles cobraram seu preço dos enxadristas, dos organizadores e dos fãs. Matches ilimitados simplesmente não funcionavam.

E assim retornamos aos matches de 24 partidas, e Kasparov e Karpov produziram um xadrez maravilhoso usando este forma-to. Os matches eram fechados, emocionan-tes e tinham uma data fixa para terminar. Kasparov manteve o título repetidas vezes e foi Campeão Mundial em todos os aspec-tos. Então as rodas se soltaram. Torneios de nocaute, round robins duplos, matches de 16 partidas, matches de 14 partidas, matches de 12 partidas... Mesmo sem dois Campeões Mundiais, muitos fãs do xadrez não podiam deixar de questionar se o enxadrista que casualmente ganhava um desses eventos realmente merecia estar no Panteão com Steinitz, Lasker, Capablanca, Alekhine e to-dos os outros grandes enxadristas.

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O terceiro fator foi o concomitante co-lapso do ciclo de três anos do Campeonato Mundial. Um match correto é um empre-endimento extenuante, tanto em termos de tempo de preparação quando do match em si. Não se esqueça, você está jogando contra um adversário muito forte pelos in-teresses mais altos. É insensato pedir aos enxadristas que passem por esta provação mais do que uma vez a cada três anos, mas é igualmente insensato fazer os concor-rentes esperarem por mais de três anos. Eu penso que o ciclo histórico de três anos es-tava na medida certa, equilibrando o direito do Campeão de usufruir de seu título con-quistado arduamente contra os direitos de potenciais Desafiantes de fazer uma tenta-tiva pelo título. Matches mais curtos e mais frequentes não são substitutos, e torneios são piores.

Para devolver o brilho ao Campeonato Mundial, a FIDE e os enxadristas dominan-tes devem aprender com a história e agir de acordo. Com isso, a legitimidade do Cam-peonato Mundial será garantida. O conceito de um Campeão Mundial define o xadrez na opinião pública e é fundamental para o pa-trocínio, o reconhecimento e a participação pública em nosso esporte.

Para este fim:1. Os matches do Campeonato Mun-

dial devem ser de 24 partidas, incluindo os empates, sendo que o Campeão conserva o título em caso de 12-12. Sem novo match.

2. O sistema para decidir as datas e local(is) do match deve ser transparente e justo.

3. Os matches do Campeonato devem ser realizados a cada três anos; nem mais nem menos do que isso. Se o Campeão recu-sar-se a jogar, o Desafiante deve ser agracia-do com o título.

4. Um sistema de qualificação justo deve ser estabelecido. O sistema interzonal desmoronou com o número sempre crescen-te de enxadristas fortes, mas os Campeona-tos Mundiais, assim como a lista de ratings,

oferecem uma oportunidade para um siste-ma aberto e inclusivo.

5. Uma abordagem razoável é um tor-neio de Candidatos round robin duplo para os vencedores Continentais, finalistas da Copa do Mundo e os três enxadristas melhor classificados no mundo (além do Campeão vigente), seu vencedor devendo jogar pelo Campeonato. Outra maneira é fazer os qua-tro grandes finalistas jogarem matches de Candidatos mais curtos (12 partidas).

Inovador? Não realmente – mas os jogadores e fãs do xadrez estão imersos na história, e a continuidade histórica tem um papel importante a desempenhar nas per-cepções do público do xadrez e em geral. A FIDE e os enxadristas “consertaram” algo que não estava quebrado. Ainda haverá for-tes torneios por convite, outros matches e outros eventos. Isso é bom tanto para o xa-drez como para os profissionais que o jogam nos níveis mais altos. Mas o Campeonato Mundial é o que aglutina tudo isso e, neste campo, organizadores, patrocinadores e en-xadristas devem limitar sua criatividade. O Campeonato Mundial “funcionou” por mui-tos anos, e pode voltar a funcionar.

O Campeão MundialGostaria de encerrar com algumas palavras de respeito, apreciação e admiração por Viswanathan Anand, o atual Campeão Mun-dial de Xadrez unificado. Em minha opinião, Vishy merece reconhecimento como o quar-to maior enxadrista de todos os tempos. Considere-se que ele é o único Campeão Mundial na história a obter o título de um evento de nocaute, de um torneio round robin duplo, e de um match. Uma trinca e tanto! Além dessas façanhas, na melhor parte de 20 anos ele tem estado entre o punhado superior de enxadristas mais bem colocados e em diversas ocasiões foi o número um e, durante a época de Kasparov, o número dois bem próximo. Ele ultrapassou a marca de ra-ting de 2800 depois de Kasparov. Ele tem um histórico fantástico em torneios e matches,

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do qual qualquer Campeão merecidamente se orgulharia. Caso continue desempenhan-do tão bem quanto tem feito, derrotando Ve-selin Topalov em seu match de 2010, ele ga-nharia meu reconhecimento como o terceiro maior enxadrista na história. Se mantiver estas proezas por cinco anos, ele pode bem ser chamado de melhor enxadrista de todos os tempos. Será preciso um imenso esforço de sua parte para ter êxito, e eu desejo a ele sucesso em todos os seus esforços.

Finalmente, com ironia, eu passo o mi-crofone a Nigel Short, em uma recente en-trevista:

“Você está se candidatando ao cargo de delegado da FIDE nas próximas eleições

da Federação Inglesa de Xadrez. O que o fez decidir entrar na política do xadrez, e quais são suas intenções caso seja eleito?”

“Se eleito, pretendo continuar as tra-dições inglesas de sigilo, falta de comunica-ção, obstinação, ignorância e total desprezo pelos interesses daqueles cujos sustentos serão afetados por meu voto. E demonstra-rei um apetite gigantesco por comes e be-bes – minha raison d’être. Quanto a por que eu decidi entrar na política do xadrez: basta dizer que não estou plenamente convencido de que os interesses do Xadrez Inglês estão melhor representados por nosso atual dele-gado.”

Nigel venceu sua eleição.

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Índice Geral

Adams, Faneuil 242-243Adams, Michael 283, 322-323Adorján, András 108Akhmilovskaya-Donaldson, Elena 67-68Alburt, Lev 25-26, 76-77, 91-92, 150, 211-212Alekhine, Alexander 41-43, 45-47, 138-139, 148-149, 257, 315, 321-322, 325-326Amber, Melody 272-273Anand, Viswanathan 238-239, 244, 298-299, 311, 318-323, 326-327Anderssen, Adolf 41Andersson, Ulf 57-58, 91-92, 124-125, 289-290Armstrong, Garner Ted 18Armstrong, Lance 38-39Associação de Grandes Mestres (GMA) 36-37, 47, 85-86, 191, 206-210, 216-219, 222,

238-240, 257, 261, 270-271, 322-323Associação Profissional de Xadrez (PCA) 240-245, 288-290, 298-299, 319-322

Balashov, Yuri 108, 310-311Beers, Jackie 24-25, 27-28Beliavsky, Alexander 91-92, 102-105, 185Benjamin, Joel 122Benko, Pal 73-76, 144, 259-260Bisguier, Arthur 39-40Bjelica, Dimitrije 191, 197Bobby Fischer vs. the Rest of the World 18Boleslavsky, Isaac 136-137Botvinnik, Mikhail 15, 45-49, 67-68, 91-92, 94, 138, 146-148, 184, 186-187, 189-190, 312Brain Games 298-303, 320-321

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Bronstein, David 48, 103-104, 184, 312Browne, Walter Shawn 29, 95-96, 162-163Byrne, Donald 18Byrne, Matt 19-20Byrne, Robert 18, 22-23, 49-50, 113, 125-126

Calvo, Ricardo 190Campomanes, Florencio 141-143, 190-191, 203-206, 217-219, 238-244, 287-290,

316-317, 323Capablanca, José Raúl 21-24, 41-42, 138, 144, 257, 315, 321-322, 325-326Carlsen, Magnus 22-23, 311, 322-323Carson, Johnny 17Cayce, Edgar 12-13Chapman, David 13-14Chess Informant 27-28, 74, 166-167, 180-181, 183, 194-195, 220, 249-253, 257-259, 264Chess Life 38-39, 103-104, 144-145, 210-211, 259-260Chess Life & Review 18-20Chess Notes 15-16Christiansen, Larry 73-74, 150-151Cinco Coroas 39-40, 189-190Cramer, Fred 144-145Cuchi, Jose 58

Darrach, Brad 18-20Darren, Dod 270-272Day, Angela 207-208Donaldson, John 15-16, 202-203, 216-217Donner, Hein 43-44Dostoievski, Fyodor 264Doyle, Steven 210-211Dubeck, Leroy 144-145Dullea, Gerard 210-211Dzindzichashvili, Roman 210-211, 225-226

Edmondson, Ed 18, 20-21, 144-145Ermenkov, Evgeny 149-150Euwe, Max 15, 20-21, 41-46

Família Seirawan 9-14Federação de Xadrez dos Estados Unidos (USCF) 20-21, 38, 144-146, 209-211, 316Federação Internacional de Xadrez (FIDE) 19-22, 45-49, 79-80, 138-142, 144-147, 185-188,

190-191, 203-207, 209-210, 217-219, 238-244, 270-271, 287-290, 298-305, 315-327Fédération Internationale des Échecs (FIDE) veja Federação Internacional de Xadrez (FIDE)Fedorowicz, John 210-211

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330 Yasser Seirawan

Fischer, Bobby 15-28, 33-41, 44-47, 49-50, 56-57, 91-92, 94, 101, 138-148, 162-163, 185, 188-190, 210-211, 239-240, 244-245, 287-289, 299-300, 312-313, 325

Forman, Milos 90Fox, Chester 18-19, 51-52Ftacnik, Lubomir 91-92Furman, Semyon 147-148

Geller, Efim 101, 147-148, 159-162, 202-203Georgiev, Kiril 206Giuliani, Rudi 318-319Gligorić, Svetozar 39-40, 88-89, 189-190Goichberg, Bill 16Grandmasters Association veja Associação de Grandes Mestres (GMA)Grumette, Lina 144-145Gufeld, Eduard 200Gurevich, Mikhail 257Gutman, Lev 33-34

Hamilton, Robert 210Harper, Bruce 15-16Hoffman, Asa 24-25Hope, Bob 17How to Defeat a Superior Opponent 271-272Howell, David 22

I Was Tortured in the Pasadena Jailhouse! 36Ilyumzhinov, Kirsan 243-244, 298-302, 304-305, 317-319Inside Chess 14-16, 39-40, 79, 129, 216-219, 222, 242-243, 267, 280-281, 304Ivanchuk, Vassily 91-92, 309-311Ivanov, Igor 33-34

Jaeg, Catherine 79Jarecki, Carol 238-239

Kamsky, Gata 243, 304, 317-318, 322-323Karch, Robert Anthony 16Karjakin, Sergey 21-22Karpov, Anatoly 15-16, 19-22, 27-29, 33-35, 39-40, 44-45, 47, 76-77, 89-90, 101-102, 104-

105, 110-111, 116, 128-129, 138-183, 185-190, 192-193, 202-210, 215-216, 220, 224-225, 237-244, 246-297, 304-305, 311-314, 317-320, 325-326

Kasimdzhanov, Rustam 302-304, 319-321Kasparov, Garry 15-16, 27-29, 36-39, 47, 67-68, 73-74, 76-77, 79-80, 85-86, 89, 92-93, 112,

118, 122-123, 128-129, 138-144, 149-150, 164-165, 170, 184-245, 267, 270-271, 287-290, 298-316, 318-322, 325-327

Kaufman, Allen 28, 210-211Kavalek, Lubomir 108, 144-145, 150-151, 210-211

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 331

Keene, Raymond 25-26, 190-191Keres, Paul 53-54, 102-103, 312Kissinger, Henry 144-145Kok, Bessel 36-37, 89, 191, 206-207, 217-219, 238-239, 246, 261, 270-271, 280-281, 283,

289-290, 300-301, 317-318Korchnoi, Petra 30-32, 34-35, 151-152Korchnoi, Victor 14, 28-35, 47, 96-97, 138-139, 141-143, 145-147, 149, 151-153, 159-160,

166-169, 178-179, 185-187, 228-229, 256-257, 272-273, 280-281, 312Kramden, Ralph 201-202Kramnik, Vladimir 15-16, 226-227, 298-305, 309-310, 320-322

Larsen, Bent 43-45, 70-73, 88-89, 145-146, 154-155, 216-217, 247, 274Lasker, Emanuel 15, 41-42, 138-139, 144, 321-322, 325-326Lawrence, Al 91-92, 144-145Lee, Bruce 39-40Leko, Peter 301-303, 320-321Life 17-18Ljubojević, Ljubomir 195-197, 206-209, 278Lobron, Eric 283Lombardy, Bill 144-145Lucena, Lincoln 190-191Lynn, Hugh 12-13

Martin, Andrew 219-220McCormack, Mark 204-205Mecking, Henrique 49-50Mednis, Edmar 70-73, 271-272Meus Grandes Predecessores 311Min Yee 89-91Minev, Nikolay 115, 147-148, 216-217Morozevich, Alexander 172-173Morphy, Paul 15, 40-41My 60 Memorable Games 22-23, 39-40

Nagel, Jan 29Najdorf, Miguel 22-24, 41-43, 94-95, 101, 191Nakamura, Hikaru 21-22Negi, Parimarjan 21-22New in Chess 142-143, 190Nikitin, Alexander 228-231Nikolić, Predrag 219Nixon, Richard 17, 36-37No Regrets 38-40, 188-189Nunn, John 91-92, 206-208, 216-217, 287-288

Page 330: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

332 Yasser Seirawan

O Iluminado 119O que não se ensina na Harvard Business School 204-205Oxford Companion to Chess 11

Pagel, Arnfried 24-28Petrosian, Tigran 15, 22-24, 30, 34, 48-50, 93-100, 280, 300Piket, Jeroen 289-290, 305Plaskett, Jim 278Podgaets, Mikhail 148Polgar, Judit 92Polugaevsky, Lev 47, 73-74, 108, 145-148, 256-257, 276Ponomariov, Ruslan 300-303, 320Portisch, Lajos 102, 108, 206-209, 237-238Power Chess with Pieces 246Professional Chess Association veja Associação Profissional de Xadrez (PCA)

Quinteros, Miguel 27-28, 58, 124, 302

Radjabov, Teimour 22, 321Rentero, Luis 110-111, 191Reshevsky, Samuel 28, 43-45Ribli, Zoltán 79-80, 186-187Rodríguez, Amador 222-223Rodriguez, Ruben 72-73Rubinetti, Jorge 28Russell, Hanon 14-16

Saidy, Anthony 144-145Schultz, Don 79-80, 203-206, 209-210Seirawan, Yvette Nagel 189-190, 218-219, 300-301Serper, Greg 103-104Shakhmatna Misl 147Shamkovich, Leonid 33-34Sherwin, James 210-211Shirov, Alexey 298-299Short, Nigel 129-130, 232-233, 238-245, 257, 287-289, 305, 315-316, 318-319, 326-327Shultz, George 209-210Smyslov, Vassily 15, 48, 53-68, 95-97, 148-149, 186-187, 306Sokolov, Andrei 187-188Spassky, Boris 15, 17, 19-21, 28-29, 38-40, 44-45, 47-52, 80, 94, 101-138, 146, 162-163, 167,

170, 178, 187-188, 195, 212, 216, 240, 281, 288, 313-314, 325Speelman, Jonathan 89, 217-219Spiegel, Michael 90-92Statham, Louis 34, 44, 58Stean, Michael 33-35

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 333

Steinitz, Wilhelm 15, 20-21, 25, 41-42, 142, 240, 315, 321, 325Stellwagen, Daniel 21-22Suba, Mihai 81Suetin, Alexey 22-23Suttles, Duncan 293-294

Tal, Mikhail 23-24, 48-50, 69-93, 94-97, 102-104, 116, 147-148, 150, 189-190, 210, 246, 303-304, 312

Tal-Botvinnik 1960 48, 91Tan Chin Nam 202-204Tarasov, Artiom 317-319Tarjan, James 69-70, 256-257The Art of Bisguier, Selected Games 1961-2003 39-40The Life and Games of Mikhail Tal 90-91The Weekly 152Three days with Bobby Fischer & other chess essays 91-92Timman, Jan 29-30, 91-92, 117-118, 159-160, 195-196, 206-207, 209-210, 217-219,

241-242, 246-257, 288-290Timmins, Steve 300-301Topalov, Veselin 303-304, 320-323, 326-327Torre, Eugene 26-27, 39-40, 108, 189-190Tudela, Rafael 204-206

United States Chess Federation veja Federação de Xadrez dos Estados Unidos (USCF)

Vachier Lagrave, Maxime 172-173Vaganian, Rafael 89Van der Wiel, John 29, 92Van Oosterom, Joop 272-273, 283Vasiljević, Jezdimir 287-288

Walker, Johnny 151-152Walsh, Bob 187, 260Weltgeschichte des Schachs 28Whyld, Ken 11-12Winning Chess Brilliancies 159Winter, Edward 15-16Wojtkiewicz, Aleksander, 70-71

Yifan Hou 21-22Yuchtman, Jacob 125-126Yusupov, Arthur 91-92, 108, 264, 310-311

Zaitsev, Igor 147-148, 166-167Zuk, Robert 224-225Zukertort, Johannes 41

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Índice de Partidas

Karpov, Anatoly-YSBruxelas, 1986 ...........................................................................................................................................247Bruxelas (rápido), 1992 ...........................................................................................................................281Linares, 1983 ..............................................................................................................................................167Mar del Plata, 1982 ..................................................................................................................................152Monte Carlo (rápido), 1993 ...................................................................................................................286Monte Carlo (rápido), 1994 ...................................................................................................................293Olimpíada de Lucerna, 1982 ................................................................................................................163Roquebrune (Blitz), 1992 .......................................................................................................................278Roquebrune (rápido), 1992 ..................................................................................................................276Segunda Partida do Match, TV de Hamburgo (rápido), 1982...................................................181Skellefteå, 1989 .........................................................................................................................................264Tilburg, 1983 ..............................................................................................................................................170

Kasparov, Garry-YSAmsterdã, 1996 .................................................................................................................................................... 305Barcelona, 1989 ........................................................................................................................................219Olimpíada de Salônica, 1988 ...............................................................................................................212

Smyslov, Vassily-YSAberto de Nova Iorque, 1987 ........................................................................................................................59Candidatos de Montpellier, 1985 ......................................................................................................... 54Segunda Partida do Match, Tilburg, 1994 ......................................................................................... 65

Spassky, Boris-YSAberto de Zurique, 1984 .............................................................................................................119Baden, 1980 ...............................................................................................................................................103Barcelona, 1989 ........................................................................................................................................128Candidatos de Montpellier, 1985 .......................................................................................................125

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Duelos de Xadrez: Minhas Partidas com os Campeões Mundiais 335

Interzonal de Toluca, 1982 ............................................................................................................................. 108Linares, 1983 ..............................................................................................................................................112Londres, 1982 ............................................................................................................................................105Primeira Partida do Match, EUA contra o Mundo, Nova Iorque (rápido), 1990 ..................129Terceira Partida do Match, EUA contra o Mundo, Nova Iorque (Blitz), 1990 ........................134

Tal, Mikhail-YSSkellefteå, 1989 ........................................................................................................................................... 89

YS-Karpov, AnatolyBali, 2000 .....................................................................................................................................................296Bruxelas, 1988 ...........................................................................................................................................257Bruxelas (rápido), 1992 ...........................................................................................................................280Haninge, 1990 ...........................................................................................................................................267Londres, 1982 ............................................................................................................................................159Londres, 1984 ............................................................................................................................................175Monte Carlo (às cegas), 1993 ...............................................................................................................283Monte Carlo (às cegas), 1994 ...............................................................................................................290Primeira Partida do Match, TV de Hamburgo (rápido), 1982 ....................................................179Reykjavik, 1991 .........................................................................................................................................272Roquebrune (rápido), 1992 ..................................................................................................................273Roterdã, 1989 ............................................................................................................................................261

YS-Kasparov, GarryNikšić, 1983 ................................................................................................................................................193Olimpíada de Dubai, 1986 ....................................................................................................................197Skellefteå, 1989 .........................................................................................................................................223

YS-Petrosian, TigranNikšić, 1983 .................................................................................................................................................. 97

YS-Smyslov, VassilyInterzonal de Biel, 1993 ............................................................................................................................ 59Primeira Partida do Match, Tilburg, 1994 ..............................................................................................62

YS-Spassky, BorisAberto dos EUA, Hollywood, Flórida, 1985 .........................................................................................122Nikšić, 1983 ................................................................................................................................................116Quarta Partida do Match, EUA contra o Mundo, Nova Iorque (Blitz), 1990 ..........................135Quinta Partida do Match, EUA contra o Mundo, Nova Iorque (Blitz), 1990 ..........................136Segunda Partida do Match, EUA contra o Mundo, Nova Iorque (rápido), 1990 .................132Tilburg, 1983 ..............................................................................................................................................118

YS-Tal MikhailBruxelas, 1988 ............................................................................................................................................. 85Candidatos de Montpellier, 1985 ......................................................................................................... 83Nikšić, 1983 .................................................................................................................................................. 80Olimpíada de Valletta, 1980 ................................................................................................................... 74

Page 334: Duelos de Xadrez - Minhas Partidas Com Os Campeões Mundiais

Índice de Aberturas

Abertura Catalã 175, 272Abertura Inglesa 59, 74, 267Ataque Torre 290Benoni Tcheca 278Defesa Bogo-Índia 54, 62Defesa Caro-Kann 65, 103, 105, 108, 128, 129, 134, 163, 167, 170Defesa Francesa 152Defesa Grünfeld 72, 197Defesa Índia da Dama 112, 122, 181, 280Defesa Índia do Rei 118, 219, 223Defesa Moderna 276, 281, 293Defesa Nimzo-Índia 80, 85, 97, 261, 273Defesa Petrov 247Defesa Pirc 59, 119Defesa Polonesa 132, 135, 136Defesa Semieslava 83Defesa Semi-Tarrasch 89, 286Defesa Tarrasch 193Gambito da Dama Aceito 212, 264, 296Gambito da Dama Recusado 116, 159, 179, 257, 305Gambito do Rei 125Ruy López 283