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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Curso de Bacharelado em Ciências Sociais A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA UM ESTUDO COMPARATIVO DOS CASOS BRASIL E URUGUAI Jéssica da Silva Duarte Priscila Primo Fenelon Shariza Oliveira Lucas Porto Alegre, Novembro de 2013.

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Curso de Bacharelado em Ciências Sociais

A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA –

UM ESTUDO COMPARATIVO DOS CASOS BRASIL E URUGUAI

Jéssica da Silva Duarte

Priscila Primo Fenelon

Shariza Oliveira Lucas

Porto Alegre, Novembro de 2013.

Jéssica da Silva Duarte

Priscila Primo Fenelon

Shariza Oliveira Lucas

A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA –

UM ESTUDO COMPARATIVO DOS CASOS BRASIL E URUGUAI

Pesquisa apresentada no Curso de

Ciências Sociais da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul, para a disciplina de

Política IV – Política Comparada.

Professor Responsável: Rodrigo Stumpf

Gonzalez

RESUMO

A análise acerca do desenvolvimento e da qualidade da democracia constitui uma

importante área de pesquisa da Ciência Política, amplamente desenvolvidos por autores como

Guilhermo O’Donnell, Rodrigo González, Marcello Baquero, José Álvaro Moisés, e outros.

Com efeito, a problemática que envolve o desenvolvimento e a consolidação da democracia

desperta especial interesse e significativos resultados no que concerne à compreensão dos

regimes políticos. Neste sentido, o que este trabalho se propõe a discutir, através do estudo

dos casos latino-americanos Brasil e Uruguai, o que leva a uns países terem mais êxito do que

outros na implementação deste tipo de regime político. O objetivo geral desta pesquisa é

compreender o que na trajetória dos países justifica as discrepâncias existentes na qualidade

da democracia. Os objetivos específicos do estudo são: revisar a trajetória histórica, política,

econômica e social do Brasil e do Uruguai, analisar os indicadores de qualidade de

democracia e cultura política dos dois países através de surveys, como o Latinobarômetro, e,

por fim, comparar o processo de desenvolvimento da democracia nos dois países.

Palavras-chave: Democracia, trajetória, qualidade, Brasil, Uruguai.

LISTA DE FIGURAS E GRÁFICOS

Gráfico 1 – “Apoio à Democracia”: 1994 - 2010 ..................................................................... 27

Gráfico 2 – “Satisfação com a Democracia”: 1994 – 2010 ...................................................... 28

Gráfico 3 – “Haja democracia ou não, quem manda são sempre os mesmos”: 1994 – 2010 .. 29

Gráfico 4 – “Quão sério é o problema da corrupção hoje no país?”: 1994 – 2010. ................. 30

Gráfico 5 – “Corrupção entre os políticos”: 1994 – 2010. ....................................................... 30

Gráfico 6 – “Confiança nos partidos políticos”: 1994 – 2010. ................................................. 31

Gráfico 7 – “Avaliação dos partidos políticos”: 1994 – 2010. ................................................. 32

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11

2. JUSTIFICATIVA ............................................................................................................... 15

3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ........................................................................................... 16

4. O CASO BRASILEIRO ..................................................................................................... 17

5. O CASO URUGUAIO ....................................................................................................... 21

6. ANÁLISE DE DADOS ...................................................................................................... 27

6.1 Gráficos ........................................................................................................................ 27

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 33

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 34

11

1. INTRODUÇÃO

O problema de pesquisa proposto é: dado que há diferenças na qualidade da

democracia dos países da América Latina, o que na trajetória destes justifica essas

discrepâncias? Deste modo, para resolver tal questionamento, trabalho a seguir apresenta

alguns dados referentes aos índices de qualidade da democracia e cultura política no Brasil e

no Uruguai com intenção de estabelecer um quadro comparativo do comportamento político e

democrático dos dois países. A pesquisa terá como unidades de análises o Brasil e o Uruguai e

terá por objetivo principal compreender o que na trajetória dos países justifica as

discrepâncias existentes na qualidade da democracia, embasando os padrões encontrados na

herança política, histórica e social dos mesmos – com ênfase na concepção do

institucionalismo histórico no sentido de que a cultura e as trajetórias sociais geram uma

rotina que tende a ser sempre repetida e reforçada. Serão considerados como principais

fatores: questões formais – como a existência de eleições livres, sufrágio universal, órgãos de

governo compostos por membros eleitos direta ou indiretamente; questões culturais – como

apoio e confiança nas instituições democráticas, satisfação com a democracia, confiança

interpessoal.

Primeiramente será feita uma breve revisão bibliográfica da herança histórica, política

e social do Brasil e do Uruguai. Partindo, principalmente, das análises já realizadas por vários

autores dos padrões de comportamento democrático dois países e dos fatores ou

características históricas marcantes que possam influenciar o perfil político e social atual

desses países. Para efeitos conceituais e de compreensão é necessário definir três termos

largamente utilizados neste estudo: democracia, qualidade da democracia e trajetória.

Democracia é um termo muito utilizado em estudos de diversas áreas e, por isso, acaba

absorvendo os mais variados significados. Contudo, Bobbio (1909: 319) define três tradições

históricas do conceito: a) a teoria clássica, b) a teoria medieval e c) a teoria moderna. Na

primeira, o principal ator é o povo, distinguindo-se da Monarquia e da Aristocracia por serem

governos com poder centralizado em um ou em poucos indivíduos, deste modo o principal

requisito desta forma de governo é o direito à cidadania. A segunda se apoia na ideia de

soberania popular, isto é, o poder se legitima e se torna supremo por derivar de um povo, o

governante é um representante dos interesses da população. A terceira, conhecida como teoria

de Maquiavel, diz respeito à contraposição entre a monarquia e a república, sendo que esta

12

seria o equivalente à democracia, visto que foi idealizada como uma forma de governo em

que o poder não está concentrado, mas distribuído em diversos órgãos colegiados.

Também é possível enquadrar o conceito de democracia em outras duas tipologias: a)

Democracia representativa – que se refere às teorias medieval e moderna e à interpretação

liberal de democracia; e b) Democracia Direta – que diz respeito à teoria clássica e à

interpretação socialista de democracia. Na Democracia Representativa, a participação no

poder político significa a conquista de liberdades individuais contra o Estado absoluto, além

disso, a participação compreende ainda, o direito do cidadão assegurado pelo próprio Estado

de exprimir sua opinião, de reunir-se ou associar-se com outros visando influir no poder e a

capacidade de eleger representantes para o Parlamento e ser eleito. Isto é, o governo não ser

composto por todo o povo, mas por um grupo de representantes eleitos por esses, outrossim, a

participação ou não é livre autonomia dos cidadãos (caso contrário incorreria no que os

autores liberais chamam de liberdade negativa1). Na democracia Direta, o sufrágio universal é

apenas um dos pontos constituintes de uma democracia, além disso, é fundamental que as

decisões políticas e econômicas partam de baixo, ou seja, da participação popular, por meio

da instituição de órgãos de controle, conselhos com poder político compostos pelo povo.

Deste modo, para essa concepção, a democracia não pode ser restringir ao âmbito político e

formal, mais do que isso, deve abranger as questões econômicas e instituir instrumentos

deliberativos compostos pelo povo.

É inevitável, então, que entremos na discussão da Democracia Formal e da

Democracia Substancial. A primeira vertente, se preocupa com a face mais protocolar do

regime, isto é, os meios e as normas devem compor um modelo democrático. A segunda

interpretação, foca as questões referentes aos fins, isto é, aos resultados sociais, econômicos e

jurídicos que uma democracia deve estabelecer. Esta pesquisa busca assumir como

democracia um conceito mais universal que absorva a visão formal e a substancial, de modo

que as duas teorias não sejam auto-excludentes, mas sim complementares. A dimensão formal

é imprescindível para que se possa analisar institucionalmente as democracias do Brasil e do

Uruguai. No entanto, é fundamental considerar, também, os resultados efetivos - em termos

de participação e cidadania – desse aparato formal. Outrossim, as questões que dizem respeito

1 Para ver mais, consultar Berlin, Isaiah: 2002.

13

à cultura política são essenciais para compreender as discrepâncias do desenvolvimento e da

consolidação da democracia nas diferentes sociedades, conforme Inglehart (2009), as

mudanças estruturais são importantes na consolidação da democracia, porém as concepções

de mundo reproduzidas via socialização interferem de forma direta na disposições pró ou anti

democráticas de cada lugar.

Deste modo, este trabalho busca correlacionar, fundamentalmente, as teorias de

democracia de Joseph Schumpeter (1942), Robert Dahl (1971) e Almond e Verba (1963).

Schumpeter desenvolveu uma teoria democrática baseado na ideia de concorrência, ou seja, é,

fundamentalmente, caracterizada por uma disputa livre pelo entre vários grupos pelo voto

popular com vistas à conquista do poder. Contudo, para que esta disputa se dê de forma

democrática é necessário que se cumpra três requisitos: 1) o recrutamento político deve se dar

por meio de uma competição eleitoral livre (não através de transmissão hereditário ou

cooptação); 2) a heterogeneidade da classe política precisa ser tão grande que garanta a

formação de uma classe governante e outra de oposição que abranjam a variância da

população (não deixando que o poder se concentre na mão de um grupo pequeno e fechado);

3) A fonte do poder deve ser legitimada por ser representativa, com delegação periodicamente

renovável e fundada em uma relação de confiança (e não em uma dominação carismática2 ou

na tomada de poder via violência).

Robert Dahl, por sua vez, estabelece no que ele denominou como uma “Poliarquia”

um modelo de democracia que estabelece normas essenciais para a garantia “da livre

expressão do voto, da prevalência das decisões mais votadas e do controle das decisões por

parte dos eleitores”3. Com isso, este autor correlaciona parâmetros institucionais com

parâmetros sociais. Almond e Verba, utilizam a palavra cultura política para abranger os

enfoques da antropologia, da sociologia e da psicologia na compreensão das orientações

especificamente políticas, posturas relativas ao sistema político e aos seus diferentes

elementos. Os autores afirmam que a cultura cívica política possibilita o desenvolvimento da

democracia em um país, tendendo a buscar sua estabilidade, mostrando que o sistema

democrático está alicerçado ao desenvolvimento desta; exigindo, deste modo, uma

participação ativa do cidadão dentro do sistema político.

2 Para compreender melhor, ver Max Weber: Ciência e Política Duas Vocações.

3 Bobbio, 1909: 328.

14

Doravante qualidade da democracia, como compreendido neste trabalho, significa o

cumprimento de uma série de requisitos considerados básicos para a consolidação deste

regime. Primeiramente, dentre os fatores formais: a) os órgãos políticos que tenham

competência legislativa devem ser compostos por membros diretamente ou indiretamente

eleitos pelo povo; b) esses órgãos devem ter seus componentes – ou representante, no caso do

chefe de Estado - renovados ou reeleitos periodicamente; c) todos os cidadãos que tenham

atingido a maioridade, sem nenhuma outra distinção, devem ter o direito de votar e possuir

igual peso de voto; c) todos os eleitores devem ter liberdade para votar conforme a sua livre

escolha; e) os partidos políticos devem poder disputar pela livremente por representação; f)

“nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria”4, em especial o

direito de torna-se maioria em condições equitativas. Além, disso, também fazem parte da

qualidade da democracia, os indicadores de apoio e satisfação com a democracia, visto que

eles mede a efetividade real dos parâmetros institucionais do regime. Dentre os principais: a)

satisfação com a democracia; 2) apoio à democracia, 3) confiança nas instituições

democráticas; 4) confiança interpessoal.

A ideia de trajetória utilizada neste trabalho é derivado da interpretação do

institucionalismo histórico do conceito de dependência de trajetória, isto é, da concepção de

que só se pode compreender as estruturas institucionais e a forma com que os indivíduos

agem dentro deste arranjo a partir de uma análise historicista das sociedades5. De um modo

geral, a ideia central é de que o passado condiciona o futuro. Desta forma, para compreender

um determinado contexto social, institucional, é preciso avaliar quais os acontecimentos que,

ao longo do tempo, resultaram nesse padrão atual6. Em outras palavras,

“o conceito de dependência da trajetória (path dependence) é oferecido justamente como a ferramenta

analítica para entender a importância de sequências temporais e do desenvolvimento, no tempo, de eventos e

processos sociais.” (Bernardi, Boti Bruno, 2012)

4 Bobbio, 1909: 326.

5 Kay, 2005, p.555 apud Bernardi in Perspectivas, São Paulo, v. 41, p. 137-167, jan./jun. 2012.

6 David 1985, 2000 apud Bernardi in Perspectivas, São Paulo, v. 41, p. 137-167, jan./jun. 2012.

15

2. JUSTIFICATIVA

Os estudos que analisam os regimes democráticos têm por função ampliar o

conhecimento acerca da instauração e consolidação deste tipo de sistema nas sociedades. Na

América Latina, há um motivo especial para a realização deste tipo de análise, visto que os

países desta região passaram, na história recente, por regimes ditatoriais e posterior

reimplementação da democracia. Neste sentido, o presente estudo tem por objetivo contribuir

para a compreensão do desenvolvimento e da qualidade dos regimes democráticos, em

especial os casos do Brasil e do Uruguai.

O trabalho justifica-se por buscar fazer uma discussão que consiga relacionar a

interpretação institucional à interpretação culturalista acerca da qualidade da democracia.

Enquanto autores como Robert Dahl e Joseph Schumpeter realizaram estudos referentes à

definição de democracia e da qualidade desta em uma perspectiva essencialmente

institucional e/ou procedimental, outros autores como Almond e Verba, José Álvaro Moisés e

Marcello Baquero buscaram realizar estudos comparados acerca da qualidade da democracia,

mas com uma ênfase fundamentalmente culturalista. A integração destas duas epistemologias

é um componente analítico muito interessante para que se consiga superar, em parte, a

separação entre estas abordagens, e para que se consiga fazer uma análise mais universalista

do fenômeno.

16

3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Bobbio (2010) contribuiu de forma providencial para o presente trabalho, na medida

em que possibilitou que se formasse um quadro geral das principais teorias acerca do conceito

de democracia. Almond e Verba (1989) descreveram a importância das circunstâncias

culturais, em especial cívicas, para a consolidação de uma democracia de qualidade; a

principal contribuição desta obra para o trabalho é a afirmação de que o sucesso da dimensão

estrutural da democracia está alicerçado ao desenvolvimento de um tipo de cultura cívica,

cooperativa e, fundamentalmente, participativa. Nesta mesma perspectiva, Inglehart (2009)

afirma que as mudanças estruturais são um fator importante na consolidação da democracia,

porém as concepções de mundo reproduzidas via socialização também interferem de forma

direta nas disposições pró ou antidemocráticas de cada lugar. Em contrapartida, autores que

evidenciaram a importância da dimensão legal, institucional também foram fundamentais para

a formação da concepção de democracia utilizados no presente trabalho. Joseph Schumpeter

(1984) desenvolveu uma tipologia de democracia que tem como foco central os parâmetros

legais necessários para a consolidação de um sistema competitivo e livre. Robert Dahl (1997),

por sua vez, buscou ampliar a dimensão legal da democracia e correlaciona-la com as

demandas sociais do processo, desenvolvendo uma noção de democracia que prioriza os

procedimentos referentes à garantia da liberdade de expressão e do empoderamento dos

cidadãos na tomada de decisão.

17

4. O CASO BRASILEIRO

Entender certos períodos da história política brasileira é essencial para se compreender

a construção da nação de hoje e situá-la no contexto da América Latina. Sabe-se que o Brasil,

constitucionalmente, é um Estado democrático. O problema é que este Estado democrático

apresenta fissuras causadas por uma descendência patrimonial e por um longo período de

ditaduras. Dessa forma, as experiências da trajetória democrática brasileira podem explicar o

comportamento político das instituições e dos cidadãos – o modo de governar, as percepções e

as atitudes políticas.

Em determinada conjuntura, o debate sobre a identidade brasileira teve significância

em muitos autores. Cabe aqui um breve apanhado das principais ideias a fim de constatar as

congruências dos diferentes pensamentos. Para Sérgio Buarque de Hollanda, em sua obra

“Raízes do Brasil”, o país é “herdeiro de uma nação ibérica e de uma cultura personalista,

em que os vínculos pessoais têm sido mais decisivos nas relações sociais e políticas”

(BAQUERO, 2007, p.57). Estes vínculos pessoais, segundo o autor, se estenderiam para o

campo político, o Estado. A democracia seria então algo corrompido, visto que estes traços

tradicionais levariam à tomadas de decisões completamente particularistas. Na teoria de

Raymundo Faoro, a colonização portuguesa e a formação do Brasil estão associadas a uma

elite, o patronato político. Estes “donos do poder” atuariam na máquina política e

administrativa de acordo com interesses particulares e com a manutenção de um status,

garantido pelo poder central7. A continuidade deste modelo patrimonial tradicional é

explicada por Schwartzman (1988), que acrescenta a noção de “neopatrimonialismo”. Num

cenário de ditadura militar, o autor defende que as bases deste sistema estão relacionadas com

a dinâmica própria da formação do Estado brasileiro. Sem naturalizar este processo,

Schwartzman explica que os padrões de relacionamento entre o Estado e a sociedade passam

por uma estrutura burocrática pesada, porém ineficiente; os que comandam a estrutura

burocrática tornam-se “déspotas” e a sociedade cada vez menos representada. Para funcionar,

o jogo político precisa “cooptar” setores importantes da população (e, ao cooptar alguns

setores, acaba por excluir outros). Pode-se observar esta dinâmica nos anos de ditadura

7 Mais em: BAQUERO, Marcello. Obstáculos Formais à Democracia Social. Poliarquia, Cultura Política e

Capital Social no Brasil. In: GONZÁLEZ, R.S. (Org). “Perspectivas sobre participação e democracia no Brasil”.

Ijuí: Ed Unijuí, 2007.

18

varguista e nos anos de ditadura militar: enquanto a primeira se preocupou em incorporar ao

Estado o setor urbano, a segunda “cooptou” o campesinato. O regime populista também faz

parte do neopatrimonialismo e é de extrema importância para a análise da cultura política

brasileira. A relação direta entre o executivo e a população, sem o intermédio de grupos

sociais, acabou por firmar a confiança em uma só pessoa, o “salvador da pátria”. Como

exemplo, três presidentes eleitos após 1945 podem ser considerados praticamente líderes

messiânicos: Getúlio Vargas, Jânio Quadros e Fernando Collor8. Lula também pode ser

considerado, porém, em uma época de democracia consolidada.

Nos três autores supracitados o quadro político brasileiro implica em um Estado

fortemente centralizado e burocrático, onde as relações pessoais tem mais valor que as leis,

incorporando assim, valores privados ao espaço público. Depreende-se disto a desconfiança

na vida política em geral, tendo em vista a corrupção e a confiança excessiva em uma figura

pública, diminuindo a importância de outros quadros políticos. Cabe aqui uma explanação

sobre o personalismo no comportamento eleitoral brasileiro. Historicamente, os partidos

brasileiros têm sido instáveis e frágeis na mediação entre a sociedade e o Estado; os

parlamentares atuam sob a proteção do “todo poderoso” Executivo e negociam votos em troca

da patronagem deste. As atuais regras eleitorais também incentivam o personalismo político,

já que na representação proporcional, os candidatos – além de competir com os outros

partidos – competem com seus próprios correligionários9. O discurso eleitoral passa a ser

parte de uma competição individual e os verdadeiros ideais políticos são escanteados. A

fragilidade dos partidos políticos e a descrença da população em relação a eles também

podem ser entendidas pelo fato de que, no Brasil, os políticos eleitos podem trocar facilmente

de partidos durante uma legislatura. As estratégias coletivas de políticas e a coesão dos

partidos tornam-se ausentes, reforçando as bases da desconfiança e a falta de identificação da

população com os partidos e a política.

Diante desse panorama onde as articulações de poder vêm de cima para baixo, uma

cultura política que estimule a cidadania torna-se ausente. Não significa dizer que os cidadãos

brasileiros são passivos: ao longo da história o sentimento de cidadania fez-se presente, como

8 CARVALHO, 2010, p. 221-222.

9 “No sistema de representação proporcional com listas abertas, os partidos não controlam a classificação de

seus candidatos na lista; na verdade, os cidadãos votam em candidatos individuais integrantes da lista partidária e se o partido ganha N cadeiras, então os N candidatos mais votados ficam com as vagas.” (SAMUELS, 1997).

19

nos movimentos Diretas Já na transição para a democracia. O problema que parece se

apresentar é que durante muito tempo os direitos civis – garantia fundamental da vida,

liberdade e igualdade – ficaram distantes ou foram sobrepostos por outras prioridades

políticas.

Sobre a transição democrática, por maior participação cívica que teve, foi inteiramente

coordenada pelos detentores do poder. O processo de democratização brasileiro foi longo e

teve como pontapé inicial o governo de Geisel, em 1974, que manteve os militares

participando “diretamente das negociações e dos pactos estabelecidos, com o objetivo de uma

abertura política, lenta, segura e gradual” (AMORIM, 2011, p.125). Em 1979, com a

extinção dos dois únicos partidos (ARENA e MDB) a questão eleitoral e partidária passou a

orientar os rumos do país. A motivação militar para acabar com o sistema bipartidário era

logicamente manipuladora: a oposição, MDB, estava crescendo e ocupando cargos

importantes no país. Assim, ao implementar o multipartidarismo, a oposição se fragmentaria

em vários outros partidos, perdendo sua força. Do Movimento Democrático Brasileiro

surgiram quatro novos partidos: PMDB, PDT, PTB e PT; da Aliança Nacional Renovadora,

apenas o PDS (Partido Democrático Social). A oposição, mesmo dividida, se preocupava com

as disputas eleitorais, com a abertura do regime político e com a Assembleia Constituinte. O

regime autoritário foi enfraquecido, mas a sobrevivência política dele se deu, ao passo que:

A divisão da oposição em vários partidos antes mesmo do final do regime autoritário

facilitou a reacomodação das elites políticas, permitindo que a transição "pactuada"

se realizasse exclusivamente em termos institucionais, sem pactos explícitos e

substantivos entre os atores políticos. (LESSA, 1989, apud ARTURI, 2001, p. 19).

A transição política brasileira foi, na verdade, um processo de negociação e de

liberalização. A democracia nasceu sob arranjos constitucionais e a população não pode

desfrutar da vivência democrática, pois os acordos da direção política acabaram por manter a

continuidade das elites autoritárias e das elites tradicionais. Nas eleições para a Assembleia

Constituinte, por exemplo, a maioria dos deputados eleitos era da antiga ARENA. O primeiro

presidente após a democratização, José Sarney (PDS), havia sido presidente da ARENA;

Fernando Collor, presidente eleito em 1990, foi deputado federal pelo PDS. Na verdade,

“reformistas do regime autoritário foram os herdeiros políticos privilegiados do processo de

transição” 10

.

10 Arturi, 2001, p. 26

20

Mesmo com essa continuidade, a democracia brasileira avançou significativamente: a

Constituição Democrática e a evolução do processo eleitoral certamente mostram este avanço.

Porém, é preciso analisar se a cidadania é encontrada na cultura da população e não só em

moldes normativos. As pesquisas de opinião realizadas através do Latinobarômetro (1994 -

2010) serão a fonte de observação para se entender a cultura política brasileira após o

processo de democratização. Dentro da análise comparativa entre cultura política e

democracia, o outro país a ser observado, como supracitado será o Uruguai.

21

5. O CASO URUGUAIO

A fim de entender-se o funcionamento da democracia no Uruguai, também

precisaremos retomar alguns aspectos de sua história política e social. Os esforços para

consolidar a institucionalidade democrática no país, foram constituídos por um período de

longa duração, que atravessou o século XX. Ao longo deste, o Uruguai veio produzindo uma

série de reformas constitucionais e legislativas, que foram fatores importantes e levaram à

ampliação da cidadania, o aumento da participação eleitoral, representação de diferentes

partidos no governo e maiores garantias ao sufrágio.

Na tentativa de melhor elucidar algumas características histórico-políticas do país, é

pertinente aqui um breve comentário sobre os partidos tradicionais uruguaios, que se

encontram entre os mais antigos do mundo. O Partido Nacional (ou Blanco) foi fundado em

1836, e igual aconteceu com o Partido Colorado. A divisão social uruguaia teria seu reflexo

no sistema partidário dividido entre centro e periferia. O Partido Blanco refletia os interesses

do interior rural, dos povos e dos grandes proprietários de terras, já o Partido Colorado

representava os interesses dos centros urbanos, particularmente Montevidéu, e refletia os

grupos sociais emergentes, oriundos da vinda de mão de obra imigrante.11

Estes dois, foram

os partidos que detiveram o poder na maior parte do período democrático uruguaio e somente

perderam sua hegemonia no governo nacional em 2005, quando a esquerda ganhou pela

primeira vez as eleições presidenciais.

É necessário retornarmos ao século XIX, para que possamos entender como se deram

as mudanças em direção a uma democracia mais ampla no país. Naquele período, as práticas

fraudulentas em eleições eram recorrentes, a tal ponto de que o ministro britânico no Uruguai

em 1907 denunciou veementemente tal prática dizendo que a mesma era feita de maneira

inescrupulosa e reclamou da indiferença e apatia da população frente a tais fraudes.12

Um dos

motivos disto era o de que os mecanismos eleitorais tendiam a causar obstáculos às ações da

oposição, logo, parte do público eleitoral não votava, pois pressupunha que as eleições tinham

11 (Gutierrz apud Lipset, S. y Rpkkan, S. (1967). Party Systems and Voter Alignments. Nueva York: Free Press.)

12 Discurso do ministro britânico em 1907: “A maneira inescrupulosa com que tem sido manipulada

oficialmente a máquina eleitoral e a indiferença e apatia do público em geral [...]” (CAWEN, Inês. Partidos,

Elecciones y Democracia Política. In: FREGA, Ana; et al. Historia Del Uruguay em em siglo XX [1890-2005].

Uruguai: E.B.O.,2008. p. 322. apud José Pedro Barrán e Banjamín Nahum, Battle, los estancieros y el Imperio

Británico, Montevideo, E.B.O., Tomo 3: El nacimiento Del Batlismo, 1982 tradução nossa)

22

resultados previamente estipulados (CAWEN, 2008). Tal situação levou o partido opositor

(Partido Blanco) a um movimento armado nos anos de 1897 e 1904. Entre os objetivos um

destes foi exigir uma maior e mais estável coparticipação no governo, aonde saiu vitorioso no

primeiro ano, com algumas de suas demandas atendidas. Anos depois, em 1910, entrava em

vigor a lei do voto duplo simultâneo, também conhecida como Ley de Lemas13

. Para o

sociólogo Aldo Solari se encaixava bem na conjuntura política, pois “servia para manter a

unidade dos grandes partidos pese suas fraturas internas, satisfazia aos que queriam afirmar

a preeminência dos partidos e aos que desejavam fortalecer a liberdade do

eleitor.”(SOLARI, 1991 p. 132 tradução nossa). Ao mesmo tempo em que serviu para evitar a

desagregação dos partidos tradicionais (Blancos e Colorados), que tiveram em contrapartida

seu fracionamento interno. Tais partidos sempre estiveram fortemente relacionados com o

Estado e as distintas modalidades de coparticipação na administração pública vieram a

favorecer práticas clientelísticas (troca por empregos, pensões, facilitar gestões públicas), para

manter ou aumentar seu eleitorado. Tal clientelismo foi uma prática frequente de

relacionamento entre estes partidos e a sociedade civil. (CAWEN, 2008)

Segundo os autores Barran e Nahun a democracia política uruguaia nasceu de fato com

as eleições da Convenção Nacional Constituinte eleita através do voto popular em 30/06/1916

a fim de estabelecer uma reforma constitucional.14

Cabe aqui ressaltar que tal reforma ocorreu

devido aos esforços do Presidente Batlle y Ordoñez15

. Em 1918 promulgou-se uma nova

13 Ley de Lemas: Cada partido ou coalizão de partidos era um lema. Cada lema poderia ter vários sublemas e

em tais sublemas existia uma lista de candidatos, que normalmente se agrupavam de acordo com suas ênfases e

preferências políticas. O eleitor votava em uma lista de candidatos que formava um sub-lema, no caso uruguaio,

para eleições presidenciais, por exemplo, ganhava a maioria simples dos votos do lema escolhido, e dentro

deste o candidato do sub-lema mais votado, ou seja, não necessariamente o candidato mais votado das eleições

ganhava, mas primeiro o que estava dentro do lema mais votado no total, e em seguida o mai votado entre os

sub-lemas deste.

14 FREGA, Ana. La formulación de um modelo. 1980-1918. In: FREGA, Ana; et al. Historia Del Uruguay en el

siglo XX [1890-2005]. Uruguai: E.B.O.,2008 apud apud José Pedro Barrán e Banjamín Nahum, Battle, los

estancieros y el Imperio Británico, Montevideo, E.B.O., Tomo 8:La derrota Del batllismo, op. Cit., caítulos 2 y

3., 1982 tradução nossa)

15 No primeiro mandato de José Batlle y Ordóñez, de 1903 a 1907: reforma na legislação portuária; intervenção

estatal na economia; saneamento das finanças uruguaias; diminuição da dívida externa; ampliação da rede

ferroviária e de ensino; aumento do protecionismo alfandegário e criação de monopólios ao comércio e seguros.

No seu segundo mandato, de 1911 a 1915: codificação de um sistema previdenciário e securitário; tentativas de

diminuir as diferenças entre o meio urbano e o rural; aprovação da lei que reduzia o poder do Executivo pela

criação do Conselho Administrativo (colegiado), cuja terça parte se reservava à oposição e criação das condições

necessárias para que suas idéias se refletissem na Constituição de 1918. (SOUZA, M. A.: O reformismo

uruguaio sob a égide do “batllismo” na primeira metade do século XX. In: Anais Eletronicos do III Encontro da

23

constituição que consagro o voto secreto, assim como a representação da minoria também

ganhou espaço. As mulheres passaram a participar das eleições em 1938 e em 1970 o voto se

tornou de efetivamente obrigatório. Em conjunto com a ampliação da cidadania, foram

acontecendo reformas legislativas e constitucionais que garantiram maiores garantias

eleitorais à população. Devido à persistência de práticas fraudulentas, em 1923 se formou uma

comissão de todos os partidos com representação parlamentar, onde foram estabelecidos uma

série de mecanismos a fim de aumentar as garantias eleitorais e desarticular mecanismos de

fraudes. Entre as mudanças algumas seguem vigentes ainda hoje, como por exemplo, a

impressão digital e a fotografia como elementos comprobatórios da identidade do eleitor. A

maioria destes mecanismos tem contribuído para dar confiança aos cidadãos sobre a

transparência eleitoral. Como exemplo disto, em 1980 se plebiscitou uma reforma

constitucional proposta pelos militares e o resultado foi contrário, ainda segundo a autora, o

triunfo do “NO” tem sido considerado um claro exemplo da solidez dos valores democráticos

na sociedade uruguaia e da transparência e rigorosidade dos mecanismos eleitorais. (CAWEN,

2008, p. 326). Segundo Serna, se fizermos uma análise sobre a democracia no Uruguai, um

dos fatores é o de que na cultura política uruguaia a confiança na resolução eleitoral dos

dissensos políticos é uma constante, todos os atores políticos aceitam o ato eleitoral como

uma expressão cidadã legítima – e inapelável – do jogo democrático. (SERNA, 1998 p. 149).

Cabe aqui uma pequena referência a um dos períodos não democráticos do Uruguai.

Na década de sessenta, a partir do ano de 1965 o país passa por uma grande inflação,

especulação financeira e aumento da dívida externa que acarretaria em grandes mudanças

políticas nas décadas seguintes. Os governantes blancos e colorados seguiram uma política

econômica seguindo recomendações do Fundo Monetário Internacional que tinha como

exigências a liberação do comércio exterior e a estabilidade da moeda. Com isso houve

grandes mobilizações sociais com demonstrações da insatisfação popular, que foram

respondidas sob repressão e autoritarismo dos governos. As práticas de interrogatórios e

torturas começaram a ser denunciadas em algumas oportunidades neste período. Em 1967,

após a morte repentina do presidente Gestido, os Partidos Socialista, Movimento

Revolucionário Oriental, Federação Anarquista Uruguaia, Movimento de Esquerda

Revolucionário e Movimento de Ação Popular Uruguaio foram suspensos, medidas estas

ANPHLAC. Disponível em: <http://anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/marcos.pdf>. Acesso em:

10 nov. 2013.

24

justificadas, pois ligava estes partidos e movimentos à luta armada. Em 1971 houve eleições

aonde se notou um grande crescimento da esquerda nacional através da Frente Amplo, que

representava a insatisfação de uma parcela da população ao atual governo. O partido colorado

foi eleito com diferença apertada de votos para o partido Nacional nesta eleição. As

mobilizações populares persistiram durante o período. À diferença de outros países latino-

americanos em que as forças armadas tomaram os governos eleitos constitucionalmente, no

Uruguai foi o próprio presidente que firmou o decreto de dissolução do parlamento, onde em

27 de junho de 1973 finalizava o processo de golpe de estado e o próprio presidente com o

apoio das forças armadas se convertia em ditador (SAN MARTIN, 2008 p. 191), embora

posteriormente tenha sido deposto pelos militares. Em novembro de 1973 o governo

suspendeu a atividade de todos os partidos políticos, tornando ilegais os partidos de esquerda.

Em agosto de 1977 as forças armadas anunciaram sua vontade de realizar uma reforma

constitucional, que legitimasse as modificações que vinham realizando através dos atos

institucionais. Assim, houve um plebiscito em 1980, já citado anteriormente, e, apesar do

contesto repressivo e desigual em que se realizou a discussão no país, o resultado do

plebiscito foi favorável para o “NO” com 57,9% dos votos. Assim, em 1982 foi aprovado pelo

Conselho do Estado a Ley de Estatuto de los Partidos Políticos que autorizava o

funcionamento dos Partidos Colorado, Nacional e União Cívica, neste mesmo ano havia sido

anulada a participação da esquerda, que regressou em 1984. (SAN MARTIN, 2008 p. 204-

208)

Analisando-se o período pós-ditadura, segundo Caetano e Rilla (CAETANO, 2005 p.

19) a transição democrática somente se iniciou de fato com as eleições de 1984 com a eleição

de autoridades constitucionalmente eleitas e não no último período da ditadura uruguaia

(1980-1985) que este a caracteriza como uma ditadura transicional. Essa transição incluía uma

ampla agenda de temas (anistia política, investigação e envio a justiça dos as autorias e

responsabilidades das violações dos diretos humanos na ditadura, restituição ou compensação

aos funcionários públicos demitidos, regularização do funcionamento das instituições dentro

de um Estado de direito pleno, etc.), sem dúvida foi a principal tarefa do primeiro governo

democrático pós ditadura.

Neste período, o presidente eleito pelo partido colorado nas eleições de 1984,

Sanguineti, (colorado) fez um acordo limitado, mas operativo com o partido nacional (tendo

seus membros bons cargos no seu governo) e como uma prática inovadora, que logo teve fim,

25

mas que destinou seis cargos de direção no estado ao Frente Amplio, o que mostrou uma

vocação de reconhecimento e incorporação da esquerda a um esquema de maior presença na

fiscalização das tarefas governamentais. Tratava-se em suma de um Governo de partido

minoritário que contava com um esquema de governabilidade amplo garantido pelo Partido

Nacional (CAETANO, 2005 p. 20-21). Houve também reuniões de cúpula com lideres dos

partidos com representatividade parlamentar, a fim de consolidar uma pendente transição

democrática que os militares haviam deixado pendente. Nos governos pós-ditadura houve

uma nítida melhora na economia do país e na diminuição da pobreza, o que levou nesta época

o Uruguai ao posto de país mais igualitário da América Latina (CAETANO, 2005).

Em suma, fechando este breve panorama histórico, é pertinente analisar que para

Serna, o Uruguai é um dos raros casos onde a democracia se implantou como um regime

democrático estável e de participação ampla. Segundo o autor em seus estudos de cultura

política, um dos fatores seria a tradição, neste caso encontramos algumas explicações de

cunho culturalista onde ele associa a estabilidade do regime democrático como a existência e

reprodução de uma tradição democrática pluralista. Defende que nesta análise a democracia

uruguaia foi resultado de um conjunto de crenças políticas transmitidas ao longo das gerações.

A cultura política uruguaia seria compreendida como “um sistema de tradições assentadas e

reproduzidas através de instituições políticas democráticas liberais”. (Serna, 1999 p. 56-58).

Uma das hipóteses a partir desta perspectiva é a de que a existência de uma tradição político-

partidária seria uma variável fundamental para a estabilidade democrática. Dentro desta

análise cita autores Gerardo Caetano e Jose Rilla que interpretam a história política nacional a

partir da hipótese que coloca a centralidade dos partidos políticos como autores dominantes na

vida política uruguaia. “A alta “capacidade de adaptação” e continuidade do sistema

partidário ao longo das décadas expressaria uma tendência inercial à reprodução e da

“configuração originária” de um sistema político “partidocêntrico””. (Sierna, 1999 p. 58).

A partidocracia para estes autores teria sido o resultado de uma mistura de tradição e

modernidade:

Esta partidocracia foi antes de tudo, o resultado de uma mistura particular de tradição e

modernidade. De um lado, o núcleo do sistema, os denominados partidos tradicionais

teriam características “modernas”: a ascensão de uma cultura “mesocrática” e da formação

de uma “política de cidadãos”, sustentada em uma “tradição eleitoreira” que legitimava a

ação da participação política de masas ampliada; a conformação de um sistema político

pluralista inclusivo e do consenso nas regras eleitorais para a resolução das disputas pocas.

De outro lado, a prática política recorria aos mecanismos tradicionais de mediação

clientelística da sociedade civil, de cooptação dos atores coletivos, organizados e da captura

26

do aparato estatal com a finalidade dividir os cargos públicos e a “coparticipação” no

governo. . (Miguel Serna, 1999, p. 58)

Assim, ao encontro do proposto por Serna, é pertinente analisar o que Gutiérrez nos

coloca em seu estudo, que a negociação e cooperação entre os partidos poderiam ser

consideradas como um dos fatores que levaram à manutenção da estabilidade política e à

resolução de conflitos políticos sem ameaçar a sobrevivência do sistema (2012 p. 55). Ou

seja, a questão da partidocracia, seria um dos fatores responsáveis pela estabilidade do sistema

democrático no Uruguai.

27

6. ANÁLISE DE DADOS

A partir das reflexões acerca da trajetória política, serão analisados dados pertinentes

para se compreender a atual cultura política do Brasil e do Uruguai. Os apontamentos

escolhidos dizem respeito a questões como atitude em relação à democracia, partidos

políticos, votos e confiança política. A fonte da análise será o Latinobarômetro, com dados

temporais (1994 – 2010) dos dois países.

6.1 Gráficos

Os primeiros dados a serem analisados, no Gráfico 1, dizem respeito às principais

percepções e atitudes sobre uma instituição democrática. Foram correlacionadas as perguntas

referentes ao apoio à democracia e a assimilação dos partidos políticos para com a

democracia.

Gráfico 1 – “Apoio à Democracia”: 1994 - 2010

Fonte: Latinobarômetro

Nota-se que o Uruguai atribui maior importância ao regime democrático e aos partidos

políticos que o Brasil. Os índices de apoio uruguaios, para a resposta “A democracia é melhor

do que qualquer outra forma de governo” chegam a quase 80%, enquanto no Brasil, giram em

torno de 40%. A outra resposta, “Não pode haver democracia sem partidos políticos” também

apresentam diferenças significativas nos países. No Brasil, a porcentagem de pessoas que se

28

identificam com esta resposta é de 50%, no Uruguai chega a 80%. Depreende-se deste

Gráfico o que foi elaborado na análise das trajetórias políticas: o papel importante dos

partidos políticos e da cultura democrática construída no Uruguai difere-se substancialmente

da fragilidade partidária brasileira e da forte influência de regimes autoritários que ainda

persistem no país.

O Gráfico 2 apresenta os índices de satisfação com a democracia:

Gráfico 2 – “Satisfação com a Democracia”: 1994 – 2010

FONTE: Latinobarômetro

A pergunta feita para medir a satisfação com a democracia nos dois países foi: “em

geral, você diria que está muito satisfeito, bastante satisfeito, não muito satisfeito ou nada

satisfeito com a democracia no país?” Aqui, para efeito de análise, as respostas “muito

satisfeito” e “bastante satisfeito” foram associadas à categoria “satisfeito”, e as respostas “não

muito satisfeito” e “nada satisfeito”, à “insatisfeito”. Claramente estas categorias mostram a

diferença entre a satisfação com a democracia entre os uruguaios e os brasileiros. Pode-se

compreender que, mesmo sendo democracias consolidadas, as avaliações gerais dos dois

países mostram que no Brasil, a relação de confiança entre população e instituição se mostra

debilitada. As atitudes políticas após a democratização certamente evoluíram, mas:

[...] quando prevalece a ineficiência ou a indiferença institucional diante de

demandas para fazer valer direitos assegurados por lei ou generalizam-se práticas de

corrupção, de fraude ou de desrespeito ao interesse público, instala-se uma

atmosfera de suspeição, de descrédito e de desesperança, comprometendo a

aquiescência dos cidadãos à lei e às estruturas que regulam a vida social; floresce,

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

Satisfeito Insatisfeito

BRASIL

URUGUAI

29

então, a desconfiança e o distanciamento dos cidadãos da política e das instituições

democráticas (MOISÉS; CARNEIRO, 2008)

Sobre a desconfiança com a democracia, o Gráfico 3 permite mensurar as opiniões em

relação às continuidades de poder no Brasil e no Uruguai.

Gráfico 3 – “Haja democracia ou não, quem manda são sempre os mesmos”: 1994 –

2010

FONTE: Latinobarômetro

Os valores em relação às pessoas que concordam com a afirmação são altos nos dois

países, mas o índice brasileiro é mais alto, com 86,2%. Aquelas que não concordam são

apenas 13,7% no Brasil e no Uruguai o número de concordantes é maior: 28%. O poder

concentrado em um grupo de poder atinge negativamente as democracias, ao passo que a

identificação com a política e o empoderamento da população se torna muito difícil. Níveis

como estes apresentados são relacionados com a apropriação do espaço público pelo privado e

com a corrupção no âmbito político. O Gráfico 4 traz a opinião dos uruguaios e brasileiros

sobre a corrupção no país no âmbito geral, ou seja, no dia-a-dia. As respostas avaliam o

problema da corrupção como “muito sério”, “sério”, “pouco sério” e “não é um problema”.

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

80,00%

90,00%

Concorda Não concorda

BRASIL

URUGUAI

30

Gráfico 4 – “Quão sério é o problema da corrupção hoje no país?”: 1994 – 2010.

FONTE: Latinobarômetro

Os dados mostram que, novamente, os índices são altos. Os cidadãos consideram a

corrupção em seus determinados países como um problema “muito sério”. No Brasil, a

porcentagem para esta resposta é de 79,6% e no Uruguai, 65%. Porém, é interessante analisar

os dados do próximo gráfico, que especifica a corrupção para o âmbito político:

Gráfico 5 – “Corrupção entre os políticos”: 1994 – 2010.

FONTE: Latinobarômetro

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

80,00%

"Muito sério"

"Sério" "Pouco sério"

"Não é um problema"

BRASIL

URUGUAI

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

"Mais" "Igual" "Menos"

BRASIL

URUGUAI

31

O gráfico ilustra a grande diferença de percepções entre brasileiros e uruguaios.

Pergunta-se se a corrupção entre os políticos é maior, igual ou menor que no resto da

sociedade. No Uruguai, como visto no Gráfico 4, há a consciência da corrupção no país, mas

quando comparada ao âmbito político, consideram igual a sociedade em geral (62,7%). Pode-

se interpretar que neste caso existe uma confiança maior na ação dos políticos que no Brasil,

que julga a corrupção como um problema muito mais corrente na política: 68,4% consideram

a corrupção entre os políticos maior.

Por fim, associando os problemas em relação à corrupção, à satisfação e o apoio à

democracia, faz-se necessária a análise dos dados referentes à confiança nos partidos

políticos. Foi visto no Gráfico 1 que a porcentagem de uruguaios que consideram a existência

de partidos como um fator importante para o funcionamento da democracia é maior que a dos

brasileiros. As próximas análises são referentes a avaliação do partidos políticos dos países e a

confiança que os cidadãos têm nestes.

Gráfico 6 – “Confiança nos partidos políticos”: 1994 – 2010.

FONTE: Latinobarômetro

De modo geral, os índices de desconfiança no Uruguai e no Brasil são altos. O que

chama a atenção é que os índices positivos (“muita confiança” e “alguma confiança”) são

maiores entre os uruguaios, e um dos índices negativos também - “pouca confiança” -, mas

com uma diferença pequena do caso brasileiro (34,3% no Brasil e 36% no Uruguai). O índice

negativo “nenhuma confiança” é mais alto no Brasil, com 47,1%, e no Uruguai 27,3%. Neste

contexto, o Gráfico 7 ilustra como a população avalia a atuação dos partidos políticos.

0,00%

5,00%

10,00%

15,00%

20,00%

25,00%

30,00%

35,00%

40,00%

45,00%

50,00%

"Muita confiança"

"Alguma confiança"

"Pouca confiança"

"Nenhuma confiança"

BRASIL

URUGUAI

32

Gráfico 7 – “Avaliação dos partidos políticos”: 1994 – 2010.

FONTE: Latinobarômetro

O descrédito dos brasileiros em relação aos partidos políticos é claramente ilustrado

neste gráfico. A avaliação negativa dos partidos políticos no Brasil é de 70,6% e a positiva,

apenas 29,4%. O Uruguai, conhecido pela questão da partidocracia, apresenta avaliações

positivas sobre a atuação dos partidos políticos uruguaios: os valores positivos são de 54,8%.

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

80,00%

"Positiva" "Negativa"

BRASIL

URUGUAI

33

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados do Latinobarômetro junto ao conhecimento das trajetórias políticas do Brasil

e do Uruguai mostram que há uma diferença substancial na democracia dos dois países. A

principal diferença encontrada nos dois regimes diz respeito à questão procedimentalista da

tomada decisão: no Uruguai os cidadãos se sentem muito mais empoderados. Isso contribui

para que tenham maior satisfação em relação à democracia, aos atores políticos e à sua

participação na mesma. No Brasil, a tomada de decisão se dá de forma mais centralizada e

distante, com atores políticos frágeis, fazendo com que os eleitores mantenham a

desconfiança no processo político.

No Uruguai, desde cedo, os governos, por motivos já expostos neste trabalho, foram

criados mecanismos a fim de melhorar transparência eleitoral no país, também este, possui

uma confiança na resolução eleitoral que se tornou uma constante, pois todos os atores

políticos aceitam o ato eleitoral como uma expressão cidadã legítima. Somando a isto

podemos dizer que em razão de que a maior parte da história política do Uruguai foi

conduzida sobre uma forma hegemônica de um bipartidarismo, que tinham em seus governos

uma coparticipação um do outro, foi criada uma partidocracia, que permitia a continuidade do

sistema partidário. A própria negociação e cooperação entre os partidos seriam um dos fatores

que mantiveram a estabilidade política, assim conseguindo também de certa forma, manter a

confiança eleitoral. No Brasil, durante muito tempo, o ato eleitoral foi instrumento de

cooptação política e de manutenção dos poderes de uma minoria. Junto a isto, o descrédito em

relação aos partidos políticos favorece o personalismo, remetendo aos problemas patrimoniais

que permearam a história do país. Este “fisiologismo” da política brasileira é reforçado –

mesmo em tempos de democracia – pela perpetuação de alguns grupos de poder e pela

relativa distância da população em relação ao mundo político.

A discrepância entre a democracia dos dois países estudados é decorrente, conforme a

interpretação aqui adotada, de uma questão essencialmente estrutural, que por sua vez se

reflete na cultura política dessas sociedades.

34

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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