Vikings chegaramà Madeira e Açores
Estudos dos ge-nes do ratinho
caseiro das ilhase do norte da Euro-
pa, feitos pela Facul-dade de Ciências da
Universidade de Lisboa e pe-las universidades de York e
Cornell, concluíram que os vi-kings passaram pela Madeirae pelos Açores 500 anos an-tes dos portugueses. P29
Vikings chegaram à Madeira e AçoresGenes do ratinho caseiro revelam viagens às ilhas feitas 500 anos antes da descoberta oficial pelos portugueses
VIRGÍLIO AZEVEDO
O segredo esteve guardado du-rante 1000 anos, mas não foidesvendado em qualquer velhomanuscrito, barco afundado, la-
je ou construção em pedra es-condida na Madeira ou nos Aço-res. Foi antes nos genes de umpequeno mamífero que todos co-nhecem — o ratinho caseiro —
que cientistas da Faculdade deCiências da Universidade de Lis-boa, das universidades de York(Reino Unido) e de Cornell(EUA) fizeram uma descobertasurpreendente.
A colonização da Madeira poresta espécie de crescimento ver-tiginoso e incrível capacidade de
adaptação ficou a dever-se à pas-
sagem dos vikings da Dinamar-ca pela ilha, quase 500 anos an-tes da chegada dos portugueses(1418). E, na mesma altura, os
Açores (descobertos oficialmen-te em 1427) foram colonizados
por ratinhos caseiros transporta-dos nos barcos dos vikings da
Noruega e de outros territórios
por eles ocupados, como Islân-dia, Escócia ou Irlanda.
"A história da colonização do ra-tinho caseiro oferece uma oportu-nidade ímpar e empolgante de ti-rar ilações acerca da história das
colonizações e movimentaçõeshumanas", afirma Sofia Gabriel,que está a trabalhar num projetode investigação das raças cromos-sómicas do ratinho da Madeira,
no polo do Centro de Estudos doAmbiente e do Mar (Cesam) daFaculdade de Ciências da Univer-sidade de Lisboa.
380 amostras de ADN
A investigadora, de 34 anos, dou-torou-se em 2012 em biologiaevolutiva e a sua tese foi precisa-mente sobre a história da coloni-
zação do ratinho caseiro (Musmusculus domesticus) numaperspetiva insular, continental e
global. A tese de doutoramentointegra cinco artigos científicos,três dos quais já foram publica-dos em revistas de referência in-
ternacional. A bióloga estudouas sequências de ADN de 380
animais da Madeira, Açores e
Continente. Estas foram, porsua vez, comparadas com maisde 1000 sequências de animaisamostrados em toda a EuropaOcidental, do norte da Escandi-návia ao Mediterrâneo.
As sequências destas regiõesforam obtidas em bases de da-dos internacionais, mas em Por-
tugal continental e ilhas, os roe-dores foram capturados vivoscom armadilhas e foi-lhes retira-da uma amostra de 1 milímetroda cauda, utilizada para a extra-ção de ADN. Os mesmos ani-mais serão usados em estudosfuturos sobre morfometria doscrânios e mandíbulas — o seu ta-manho e forma — que vão deter-minar se houve alguma evolu-
ção morfológica após a coloniza-
ção das ilhas atlânticas.
"Depois de analisarmos estas
sequências de ADN chegámos à
conclusão de que não havia ne-nhuma identidade entre a Ma-deira e Portugal continental. Ecinco das mais de 20 sequênciasúnicas obtidas dos ratinhos daMadeira são 100% idênticas a se-
quências encontradas na Alema-nha, Dinamarca, Suécia e Fin-lândia, o que foi um resultado to-talmente inesperado", conta So-fia Gabriel. A investigadora estu-dou toda a costa do Continenteem 15 locais diferentes, que de-ram origem a 60 amostras deADN de ratinhos e a conclusão é
clara: "Não encontrámos nadasemelhante à Madeira."
Da Noruega aos Açores
Nos Açores, "a maioria das noveilhas revela uma grande identi-dade com Portugal continentalou com o arquipélago da Madei-ra nas amostras de ADN estuda-
das, mas há três exceções: asilhas de Santa Maria, Terceira e
Flores, onde as semelhanças são
com a Noruega, Islândia, Escó-cia e Irlanda", explica Maria daLuz Mathias.
A professora catedrática da Fa-culdade de Ciências e investiga-dora do Cesam foi coorientado-ra da tese de doutoramento de
Sofia Gabriel com Jeremy Sear-
le, investigador da Universidadede Cornell, nos EUA (ver entre-vista ao lado). Maria da Luz Ma-thias tem sido uma das autorasde artigos científicos sobre o ra-tinho caseiro publicados, desde
o início do século, em revistasde referência internacional, in-cluindo a "Nature". E é a granderesponsável pela liderança por-tuguesa nesta área.
Frida Jóhannesdóttir, biólogaislandesa da equipa de JeremySearle, argumenta que, "tendoem conta que os primeiros rati-nhos a alcançar a Madeira e os
Açores vieram do Norte da Euro-pa, alguns dos primeiros navega-dores que chegaram às ilhasatlânticas devem ter vindo da-
quela região". Como os vikings"eram o maior grupo de navega-dores do norte da Europa, pode-mos facilmente avançar com ahipótese de que foram eles a visi-tar a Madeira e os Açores".
Marcadores genéticosnão deixam duvidas
A cientista, descendente dos vi-
kings, salienta ainda que "osmarcadores genéticos usados
nos estudos sobre a história da
chegada do ratinho caseiro àque-las ilhas, que sustentam a hipóte-se viking, parecem ser extrema-mente seguros para determinara colonização original daquelemamífero".
Frida recorda que os seus ante-passados "eram grandes explo-radores e comerciantes que via-
jaram, não apenas no Norte da
Europa e no Mediterrâneo, mastambém até à América do Nor-te". A maior parte destas via-
gens era feita de ilha em ilha e
ao longo da costa, "embora elestivessem sido dos primeiros eu-
ropeus a navegar com sucessono mar alto".
Nesta perspetiva, "enquanto aa localização geográfica da Ma-deira faz com que seja uma ilhaonde não ficámos muito sur-preendidos por encontrar a in-fluência viking, os Açores forne-
cem uma história muito diferen-te e potencialmente única das
viagens feitas por este povo doNorte da Europa".
As viagens inéditas dos vikingsàs ilhas atlânticas nos seus velo-zes barcos, os famosos drakkars(dragões), não surpreendem to-talmente José Manuel MalhãoPereira, membro da Academiada Marinha, embora considereesta hipótese "muito estranha".O comandante reconhece que"a possibilidade da realizaçãodestas viagens por volta do ano1000 existe, em termos de dire-
ção dos ventos e das correntes,bem como da tecnologia náuticausada pelos vikings".vazevedo Oexpresso.impresa.pt
CINCO PERGUNTAS A
Jeremy SearleDiretordo Searle Lab no Departamento
de Ecologia e Biologia da Evolução
da Universidade de Cornell (EUA)
? A investigação feita pela Fa-culdade de Ciências da Universi-dade de Lisboa e pelo seu labo-ratório — primeiro na Universi-dade de York (Reino Unido) e de-
pois em Cornell (EUA) — susten-tam com solidez a hipótese deos vikings terem passado pelaMadeira e pelos Açores, ou é ne-cessário investigar mais?? Acreditamos que os dados jáobtidos na nossa investigação são
mais bem explicados se os rati-nhos tiverem sido trazidos pelosvikings. Portanto, consideramos
que há uma 'hipótese sólida'. Ob-viamente que há sempre vontadede fazer mais estudos. Em parti-cular, acreditamos que estudosmuito sofisticados sobre a histó-ria demográfica dos ratinhos são
possíveis com os seus genomas, e
esperamos usar no futuro estatecnologia emergente. Se houver
investigação arqueológica que ve-nha a revelar sinais de ocupaçãoviking nas ilhas, então será neces-sário procurar com muito cuida-do restos de esqueletos de rati-nhos nesses locais. Essa seria aconfirmação final das nossas des-cobertas.
?As amostras do ADN de 380ratinhos caseiros usadas nos es-tudos são suficientes?? São muito substanciais para es-
tudos desta natureza.
? Com estas descobertas, acha
que a história da Madeira e dos
Açores, bem como do paradig-ma da navegação no norte doAtlântico devem ser mudadas?? Sim, penso que o paradigma da
primeira descoberta dos arquipéla-
gos do norte do Atlântico deveriaser mudado. Isso não diminuiria aimportância dos extraordináriosfeitos dos marinheiros portugue-ses na História mundial.
? Qual é a importância destesestudos para o seu laboratóriona Universidade de Cornell?? O uso do ratinho caseiro como
representante (proxy) da históriahumana tem sido uma área de in-
vestigação de grande relevo nomeu laboratório nos anos mais re-centes, primeiro na Universidadede York e agora em Cornell. Os
estudos vão continuar por mui-tos anos e publicámos em maiode 2013 no "Biological Journal ofthe Linnean Society" um artigocientífico intitulado "A estruturagenética das populações de rati-nhos caseiros no arquipélagoatlântico dos Açores: colonizaçãoe dispersão", que enfatiza a nos-
sa abordagem e onde Maria daLuz Mathias e Sofia Gabriel são
coautoras.
? Nesse artigo especula-se queos dados analisados poderãoeventualmente apontar parauma ligação comercial de longadistância, bastante mais antiga,envolvendo os navegadores fe-nícios. Admite a hipótese deuma ocupação fenícia dos Aço-res há 2500 anos, cono defen-dem alguns investigadores?? Por enquanto não há evidênciadessa hipótese nos estudos já reali-zados sobre a história da coloniza-
ção do ratinho caseiro nas ilhasdos Açores.
Ratinho caseiro, um colonizador de sucesso
O ratinho caseiro é uma espécie comensal, isto
é, "que tira todo o partido da atividadehumana", explica Maria da Luz Mathias. A
professora da Faculdade de Ciências diz que o
roedor "tem uma capacidade de adaptação e de
colonização enorme e uma alimentação muito
pouco seletiva e muito oportunista". Depois, é
uma espécie generalista, "em que o ótimo
ecológico tem limites muito amplos em termosde temperatura, humidade, etc, o que significa
que pode viver emclimas e
habitatsmuitodiferentes".Vive emmédia de umano a um ano e
meio, se tiver
condições ótimas. O seu
tempo de gestação é detrês semanas "e bastauma fêmea grávida paracolonizar uma ilha,desde queencontre certas
condições, como aexistência de poucos
predadores". Na Madeira e Açores não havia
predadores terrestres mas apenas aves de
rapina, e os ratinhos caseiros "não tinham nemtêm competidores diretos por alimento e porabrigo". Ao mesmo tempo, "têm uma estratégiareprodutora 'r': vida curta, muitas crias porninhada e período muito reduzido de
inatividade sexual — as fêmeas podem ficar
prenhes logo a seguir a terem uma ninhada, de21 em 21 dias". Os chamados "r-estrategistas",que ocupam um dos extremos de uma escalade classificação, são espécies de pequenotamanho, "que vão alocar pouca energia à
alimentação e ao crescimento e muita
energia à reprodução", esclarece a
bióloga. No outro extremo estãoos "k-estrategistas", espécies de
grande tamanho, com
reproduções muito espaçadase vida longa, "que vão alocarmuita energia aocrescimento, alimentação e
termorregulação".