UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
FACULDADE DE MEDICINA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE
A PERSONALIDADE COMO CRITRIO PARA O DIAGNSTICO
DIFERENCIAL ENTRE EXPERINCIAS ANMALAS E TRANSTORNOS
MENTAIS
Letcia Oliveira Alminhana
JUIZ DE FORA
2013
LETCIA OLIVEIRA ALMINHANA
A PERSONALIDADE COMO CRITRIO PARA O DIAGNSTICO
DIFERENCIAL ENTRE EXPERINCIAS ANMALAS E TRANSTORNOS
MENTAIS
Tese apresentada ao Programa de Ps-
graduao em Sade da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal de Juiz de
Fora, como requisito parcial obteno do
ttulo de Doutor em Sade.
rea de concentrao: Sade brasileira.
Orientador: Prof. Dr. Alexander Moreira-
Almeida.
JUIZ DE FORA
2013
Ficha catalogrfica elaborada atravs do Programa de gerao automtica da Biblioteca Universitria da UFJF,
com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Alminhana, Letcia Oliveira. A personalidade como critrio para o diagnsticodiferencial entre experincias anmalas e transtornos mentais/ Letcia Oliveira Alminhana. -- 2013. 256 p.
Orientador: Alexander Moreira-Almeida Tese (doutorado) - Universidade Federal de Juiz de Fora,Faculdade de Medicina. Programa de Ps-Graduao em SadeBrasileira, 2013.
1. Experincias Anmalas e Transtornos Mentais. 2.Personalidade. 3. Esquizotipia. 4. Religiosidade. 5.Qualidade de Vida. I. Moreira-Almeida, Alexander, orient. II.Ttulo.
Dedico esta tese minha me, Beatriz.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, meus sinceros agradecimentos so para meus pais, Alberto
Alminhana e Beatriz Alminhana. A vida interia eles me ensinaram a questionar
verdades prontas e me apresentaram para diferentes possibilidades de entender o
mundo.
Em seguida agradeo querida amiga e sempre professora Dra.Luciana
Marques, que me guiou desde a graduao at esse doutorado. Obrigada por me
apresentar pesquisa cientfica e ser minha eterna orientadora. Graas Luciana,
conheci o prof. Alexander e fui para Juiz de Fora.
Agradeo enormemente ao professor Dr. Alexander Moreira-Almeida, por me
transformar em pesquisadora madura, pela pacincia e sobretudo pelo exemplo como
pesquisador e como pessoa.
Ao querido amigo Alexandre Zanini, que ofereceu muito de seu tempo para me
ensinar estatstica e para transformar minhas teorias e hipteses em complexos testes
matemticos.
Ao colega e amigo Adair Menezes Jr., que foi meu companheiro de doutorado e
de coleta de dados, me ajudando a seguir em frente, mesmo quando as dificuldades se
apresentavam.
Agradeo imensamente colaborao annima de cada uma das pessoas que
participaram da amostra desse estudo. Elas so, sem dvidas, personagens centrais para
o desenvolvimento dessa pesquisa. Em cada encontro, falaram de si mesmas,
compartilharam experincias profundas e preencheram uma bateria de questionrios,
sem receber nada em troca. A vocs, meu sincero Muito Obrigada!
Aos trabalhadores e dirigentes dos Centros Espritas que compreenderam a
necessidade de estudar o tema. Minha especial gratido Dona Geni, que nos ofereceu
seu apoio incondicional e que nos recebeu com muito carinho.
Aos colegas e amigos do NUPES (Ncleo de Pesquisas em Espiritualidade e
Sade), pela parceria e por todo o apoio.
Agradeo tambm ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e
Tecnolgico CNPq, pelos dois anos que recebi de bolsa de estudos.
Preciso agradecer pessoas que no estiveram vinculadas a mim academicamente,
mas que, sem elas, esse doutorado teria sido invivel.
Meus sogros que me ajudaram com questes logsticas e financeiras o tempo
todo.
Dora Belgo, segunda me de minha filha e amiga querida, sem a qual eu no
teria feito nenhuma coleta de dados.
Minha grande amiga Romara Lima Delmonte, que passou dias e noites
raciocinando sobre esse estudo e suas hipteses e discusses; que me ofereceu casa, foi
minha irm e meu porto seguro enquanto morei em Juiz de Fora e at hoje.
Minhas trs irms, Tatiana, Clarissa e Vanessa, que esto sempre comigo,
mesmo quando estamos em estados diferentes, que me apoiaram sem limites para que
eu pudesse concretizar esse doutorado.
Minha filha, meu tesouro, minha vida, Clara Luz. Com a idade que tem meu
doutorado (4 anos), soube dividir sua mame com todas as exigncias acadmicas. E, no
final, quando eu no tinha nem tempo para brincar com ela, me dizia: Mame, eu quero
ficar com voc porque eu te amo... H que se ter muito amor pela cincia para no
sucumbir a isso!
E, finalmente, ao meu marido e meu amor, Tiago Tatton. Eu fui para Juiz de
Fora para fazer doutorado e para te encontrar. Sem ti, esse momento perderia o brilho, o
encanto e a alegria. Contigo, minhas teorias encontraram o complemento perfeito, assim
como meus sentimentos.
O mstico, dotado de talentos inatos e seguindo a instruo de
um mestre, entra na gua e descobre que sabe nadar; o
esquizofrnico, por sua vez, despreparado, sem orientao e sem
dotes, caiu nela, ou mergulhou voluntariamente, e est se
afogando. Joseph Campbell, Myths to Live By, 1972.
RESUMO
ALMINHANA, L.O. A personalidade como critrio para o diagnstico diferencial
entre experincias anmalas e transtornos mentais. (Tese). Juiz de Fora: Faculdade
de Medicina, Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF/MG, 2013.
Introduo: H uma alta prevalncia de experincias psicticas na populao geral.
Muitas dessas experincias possuem fenomenologia semelhante a experincias
religiosas/espirituais (R/E), tambm chamadas de experincias anmalas (EA), as quais
no so necessariamente patolgicas. Desse modo, importante encontrar critrios que
possam nortear os profissionais da sade mental para realizarem um diagnstico
diferencial entre uma EA e um transtorno mental (TM). A anlise do perfil de
personalidade de um indivduo pode auxiliar a distinguir se esse apresenta experincias
saudveis ou patolgicas. Porm, poucos estudos se dedicaram a investigar as relaes
entre EAs e personalidade. Os Centros Espritas so locais privilegiados para investigar
o tema pois fomentam as EAs e so procurados por pessoas com EAs em busca de
auxlio.
Objetivos: Verificar se as caractersticas de personalidade, mensuradas pelo Inventrio
de Temperamento e Carter (ITC), podem se constituir como um critrio para o
diagnstico diferencial entre EA e TM. Verificar a associao entre Experincias
Incomuns (Esquizotipia) com TM e qualidade de vida (QV); Observar como as
diferentes formas de religiosidade se associam aos TMs e QV.
Mtodos: Estudo epidemiolgico observacional coorte, prospectivo (1 ano de
seguimento: T0 e T1), com 115 sujeitos que apresentavam EAs e procuraram Centros
Espritas da cidade de Juiz de Fora/MG. Instrumentos: Entrevista Sociodemogrfica;
ITC-R (Inventrio de Temperamento e Carter, revisado e reduzido); DUREL - P (Duke
University Religious Index vero em portugus); WHOQOL - BREF (Instrumento de
Qualidade de Vida da Organizao Mundial da Sade - verso abreviada); SCID
(Entrevista clnica estruturada para transtornos do Eixo I do DSM-IV); O LIFE R
(Inventario Reduzido Oxford-Liverpool de Sentimentos e Experincias). Modelos de
regresso logstica e linear, controlando para fatores sociodemogrficos, foram usados
para investigar as associaes entre dimenses de personalidade, de esquizotipia e de
religiosidade (preditores) com TMs e QV (desfechos).
Resultados: A amostra foi composta por 70% de mulheres, com idade mdia de 38,8
anos (DP 12,5), 55% com nvel superior, perfil semelhante ao de outros estudos com
mdiuns espritas no Brasil. Houve prevalncia atual de 73% de Transtornos de
Ansiedade na amostra; 27,8% de Transtorno Depressivo; 10,4% de Transtorno Bipolar e
7% de Transtorno Psictico. Experincias Incomuns no estiveram associadas a TM ou
QV. Anedonia Introvertida esteve associada presena de Transtorno Psictico; No-
Conformidade Impulsiva se associou presena de Transtorno Bipolar; Busca de
Novidade e Dependncia de Gratificao estiveram associadas presena de Transtorno
Bipolar; Autodirecionamento e Autotranscendncia no se associaram presena de
nenhum TM. Nenhuma dimenso de religiosidade esteve associada presena de TMs. ;
Desorganizao Cognitiva associou-se a pior QV Psicolgica em T0 e T1; Anedonia
Introvertida esteve associada a pior QV em todos os domnios (fsico, psicolgico,
social e ambiental) em T0 e a pior QV fsica em T1. No-Conformidade Impulsiva se
associou a pior QV psicolgica. Autodirecionamento se associou a melhor qualidade de
vida psicolgica e social em T0 e em T1. Evitao de Danos esteve associada a pior QV
Fsica em T0 e em T1. Religiosidade Organizacional e Religiosidade Intrnseca se
associaram a melhor QV Social no T0.
Concluses: A mera presena de EAs no se associou existncia de TM ou a
alteraes na QV. Os resultados desse estudo sugerem que a anlise das caractersticas
de personalidade (temperamento e carter) de um indivduo que apresenta EAs pode
servir como um critrio importante para o diagnstico diferencial entre uma experincia
no patolgica e um transtorno mental. Pesquisas futuras podero buscar teorias e
terminologias mais adequadas para explicar as EAs no patolgicas e deve-se tomar
cuidado para no confundi-las com sintomas de TMs.
Palavras-chave: Experincias Anmalas; Personalidade; Esquizotipia; Religiosidade;
Transtornos Mentais e Qualidade de Vida.
ABSTRACT
ALMINHANA, L.O. Personality as a criterion for the differential diagnosis
between anomalous experiences and mental disorders. (Doctoral Thesis). Juiz de
Fora: Medical School, Federal University of Juiz de Fora - UFJF / MG, 2013.
Introduction: There is a high prevalence of psychotic experiences in the general
population. Many of these experiences have similar phenomenology to
religious/spiritual experiences (R/E), also called anomalous experiences (AEs), which
are not necessarily pathological. Thus, it is important to find criteria that will guide
mental health professionals to perform a differential diagnosis between an AE and a
mental disorder (MD). A profile analysis of the personality of a person can help to
distinguish whether his/her experiences are healthy or pathological. However, few
studies have been developed to investigate the relationships between AEs and
personality. Spiritist Centers are prime locations to investigate the issue because they
foster AEs and people with AEs often seek help in them.
Objectives: To verify whether personality traits, as measured by the Temperament and
Character Inventory (ITC), can be a criterion for the differential diagnosis between AEs
and MDs. To observe if the dimension of Unusual Experiences (Schizotypy) is
associated with MDs or quality of life (QoL). To observe how different forms of
religiosity are associated with TMs and QoL.
Methods: this is a propective observational cohort study (1 year follow-up) with 115
subjects who had AEs and sought Spiritist Centers in the city of Juiz de Fora/MG.
Instruments: Sociodemographic Interview; TCI-R (Temperament and Character
Inventory, revised and short); Durel - P (Duke Religious Index - in Portuguese);
WHOQOL - BREF (Instrument of Quality of Life of the World Health Organization -
abbreviated); SCID (Structured Clinical Interview for Axis I disorders of the DSM-IV)
O - LIFE - R (Oxford-Liverpool Inventory of Feelings and Experiences- short). Logistic
and linear regression models, controlling for sociodemographic factors, were used to
investigate the associations between personality, dimensions of schizotypy and
religiosity (predictors) with TMs and QoL (outcomes).
Results: The sample was composed of 70% women, mean age 38,8 years (SD 12,5)
55% with higher education level, profile similar to other studies with spirit mediums in
Brazil. There was a current prevalence of 73% of Anxiety Disorders in the sample;
27.8% of Depressive Disorder, 10.4% of Bipolar Disorder and 7% of Psychotic
Disorder. Unusual experiences were not associated with QOL or with MDs. Introverted
Anhedonia was associated with Psychotic Disorder; Impulsive Non-Conformity was
associated with Bipolar Disorder; Novelty Seeking and Reward Dependence were
associated with Bipolar Disorder; Self-Directedness and Self-transcendence were not
associated with the presence of any MDs. No dimension of religiosity was associated
with MD; Cognitive Disorganization was associated with worse QoL in Psychological
domain at T0 and T1; Introverted Anhedonia was associated with worse QoL in all
domains (physical, psychological, social and environmental) at T0 and with worse QoL
in physical domais at T1. Impulsive Non-Conformity was associated with worse QoL in
psychological domain. Self-directedness was associated with better quality of life in
social and psychological domains, at T0 and T1. Harm avoidance was associated with
worse QoL in physical domain.
Conclusions: The results of this study suggest that the analysis of personality traits
(temperament and character) of an individual who presents AEs can serve as an
important criterion for the differential diagnosis between a not pathological experience
and a mental disorder. Future research could investigate about more appropriate
terminologies and theories to explain these nonpathological AEs and we must be careful
not to confuse them with symptoms of MDs.
Keywords: Anomalous Experiences, Personality; Schizotypy; Religiosity, Mental
Disorders and Quality of Life.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Caractersticas de pessoas com escores altos e baixos nas dimenses do
ITC..................................................................................................................................64
Tabela 2. Domnios e Facetas do WHOQOL bref........................................................95
Tabela 3. Frequncia de EAs na amostra (N=115) ......................................................100
Tabela 4. Variveis Independentes...............................................................................110
Tabela 5. Variveis Dependentes.................................................................................111
Tabela 6. Resultados e desfechos esperados (T0)..................................................111
Tabela 7. Resultados e desfechos esperados (T1)..................................................113
Tabela 8. Variveis sociodemogrficas .......................................................................114
Tabela 9. Perfil Religioso da amostra ..........................................................................115
Tabela 10. Nveis de envolvimento religioso da amostra .........................................116
Tabela 11. Caractersticas de Temperamento e Carter ..............................................116
Tabela 12. Prevalncia de Transtornos Mentais na amostra ......................................117
Tabela 13. Dimenses de Esquizotipia na amostra .....................................................117
Tabela 14. Qualidade de Vida em seus quatro domnios: fsico, psicolgico, social e
ambiental T0 (N=115) T1 (N=90).........................................................................118
Tabela 15. Relaes entre as dimenses de Esquizotipia e TMs (SCID I)...................118
Tabela 16. Relaes entre as dimenses de Esquizotipia (O-Life-R) e Qualidade de
Vida (WHOQOL bref)...................................................................................................119
Tabela 17. Relaes entre Personalidade (ITC-R) e Transtornos Mentais (SCID I)....120
Tabela 18. Relaes entre Personalidade (ITC-R) e Qualidade de Vida (WHOQOL-
bref)...............................................................................................................................121
Tabela 19. Relaes entre as dimenses de Religiosidade (DUREL-P) e TMs (SCID
I).....................................................................................................................................123
Tabela 20. Relaes entre as dimenses de Religiosidade (DUREL-P) e Qualidade de
Vida (WHOQOL-bref)..................................................................................................123
Tabela 21. Relaes entre as dimenses de Esquizotipia (O-Life-R) (T0) e Qualidade
de Vida (WHOQOL-bref) (T1)...................................................................................124
Tabela 22. Relaes entre Personalidade (ITC-R) (T0) e Qualidade de Vida
(WHOQOL-bref) no Tempo 1.......................................................................................125
Tabela 23. Relaes entre dimenses de Religiosidade (DUREL P) (T0) e Qualidade
de Vida (WHOQOL-bref) (T1)..............................................................................127
Tabela 24. Filiao religiosa entre os sujeitos com EAs do presente estudo (N=115), um
Levantamento nacional sobre religiosidade (N=3.007) e o Censo de 2010.................132
Tabela 25. Comparaes das caractersticas de religiosidade entre os sujeitos com EAs
presente estudo (N=115), uma populao geral de baixa renda (N=383)* e pacientes
com diagnstico de TBH (N=168)................................................................................133
Tabela 26. Comparativo sobre altos nveis das dimenses de religiosidade entre os
sujeitos com EAs, do presente estudo (N=117), Adventistas (N=264) e idosos
(N=30)...........................................................................................................................134
Tabela 27. Comparaes entre as mdias do ITC R, do presente estudo (N=115), a
populao geral de Israel (N=1102), a amostra de mdicos na Austrlia (N=214) e
pacientes diagnosticados na Espanha (N=107)......................................................135
Tabela 28. Comparaes entre as mdias de cada dimenso do WHOQOL Bref, entre
os sujeitos com EAs (N=115); a populao geral (N=700)*; indivduos PEP (N=37) e
pacientes com Esquizofrenia (N=219).....................................................................137
Tabela 29. Comparao da prevalncia de Ansiedade e Depresso do presente estudo
(N=115), do estudo com moradores de So Paulo/SP (N=2.337); do estudo de
moradores de Santa Cruz/RS (N=1.222) e do estudo com moradores de Joo Pessoa/PE
(N=2.470 )..............................................................................................................138
Tabela 30. Prevalncia de Transtornos Mentais no presente estudo (N=115), em CAPS
de Santa Cruz do Sul (N=2470) e do Cear (N=143)...........................................139
Tabela 31. Comparaes entre as mdias do O-Life-R do presente estudo (N=120), com
mdias divididas entre homens e mulheres do estudo realizado com populao geral
inglesa (N=928)....................................................................................................141
Tabela 32. Comparaes entre as mdias do presente estudo (N=115), com as mdias
do estudo com espiritualistas (N=140) e religiosos tradicionais (N=86)....................143
LISTA DE SIGLAS
AD - Autodirecionamento
AE - Anomalous Experience
AT - Auto-transcendncia
AI - Anedonia Introvertida
AME - Aliana Municipal Esprita
APA - Associao Psiquitrica Americana
APS - Ateno Primria em Sade
BN - Busca por Novidade
C - Cooperatividade
CAPS - Centros de Ateno Psicossocial
CIEP - Consrcio Internacional em Epidemiologia Psiquitrica
DC - Desorganizao Cognitiva
DG - Dependncia de Gratificao
DM - Mental Disorders
DP - Desvio Padro
DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
DUREL - Duke University Religious Index
EA - Experincia Anmala
ED - Evitao de Danos
EI - Experincia Incomuns
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
ITC - R - Inventrio de Temperamento e Carter, verso revisada.
NI - No-Conformidade Impulsiva
NUPES - Ncleo de Pesquisas em Espiritualidade e Sade
O-Life-R - Inventrio Reduzido Oxford-Liverpool de Sentimentos e
Experincias
OMS - Organizao Mundial da Sade
P - Persistncia
PEP - Primeiro Episdio de Psicose
PSF - Programas de Sade da Famlia
QV - Qualidade de Vida
RE - Religiosidade Extrnseca
R/E - Religiosa/Espiritual
RNO - Religiosidade No-Organizacional
RO - Religiosidade Organizacional
RP - Religiosidade Privada
SCID - Structured Clinical Interview for DSM-IV Axis I Disorders
SPSS - Statistical Package for the Social Sciences
TM - Transtorno Mental
WHOQOL - World Health Organization Quality of Life
SUMRIO
1. INTRODUO ........................................................................................................16
2. REVISO BIBLIOGRFICA ............................................................................30
2.1. RELIGIO, RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE ...............................30
2.1.1. Religio ..............................................................................................30
2.1.2. Espiritualidade ...................................................................................35
2.1.3. Religio e Espiritualidade na pesquisa em sade: operacionalizando os
conceitos ............................................................................................39
2.2. A RELIGIO ESPRITA E O FENMENO DA MEDIUNIDADE ..............42
2.2.1. Atendimento Fraterno ........................................................................44
2.3. EXPERINCIAS ANMALAS DEFINIES E PESQUISA .....................46
2.4. PERSONALIDADE ...........................................................................................48
2.4.1. Definies e histrico ..............................................................................48
2.4.2. A abordagem integral em Psicologia e a falcia pr-trans...................51
2.4.3. O Modelo Psicobiolgico de Temperamento e Carter...........................54
2.5. PERSONALIDADE, ESQUIZOTIPIA E EAs ...................................................63
2.5.1. Esquizotipia Positiva e Criatividade.......................................................67
2.5.2. Esquizotipia Benigna e Experincias Paranormais..................................72
2.5.3. Esquizotipia Feliz: Experincias R/E e Psicose ..................................77
2.5.4 Modelo Psicobiolgico de Temperamento e Carter versus
Esquizotipia..............................................................................................82
2.5.5. Esquizotipia e Autotranscendncia .........................................................87
2.6. QUALIDADE DE VIDA.....................................................................................92
3. OBJETIVOS E HIPTESES ..................................................................................95
3.1. Objetivo Geral .....................................................................................................95
3.2. Objetivos Especficos..........................................................................................95
3.3. Hipteses ............................................................................................................95
4. MTODO...................................................................................................................97
4.1. Desenho do estudo...............................................................................................97
4.2. Populao.............................................................................................................97
4.3. Critrios de incluso e excluso..........................................................................99
4.3.1. Critrios de Incluso..............................................................................100
4.3.2. Critrio de excluso...............................................................................100
4.4. Contexto ............................................................................................................100
4.5. Procedimentos....................................................................................................100
4.6. Instrumentos.......................................................................................................102
4.7. Mtodos Estatsticos .........................................................................................106
4.7.1. Definio da amostra.............................................................................106
4.7.2. Anlises estatsticas ..............................................................................107
4.8. Variveis e desfechos.........................................................................................108
4.8.1. Variveis de confuso............................................................................109
4.9. Resultados esperados (T0 e T1).........................................................................109
5. RESULTADOS........................................................................................................113
5.1. Caractersticas Descritivas da Amostra.............................................................113
5.2. Resultados das Correlaes entre as variveis dependentes e independentes...116
5.3. Resultados do seguimento longitudinal de um ano...........................................122
6. DISCUSSO DOS RESULTADOS.......................................................................126
6.1. RESULTADOS DESCRITIVOS......................................................................126
6.1.1. Caractersticas Sociodemogrficas........................................................126
6.1.2. Perfil Religioso......................................................................................129
6.1.3. Caractersticas de Personalidade............................................................132
6.1.4. Caractersticas de Qualidade de Vida....................................................134
6.1.5. Prevalncia de Transtornos Mentais .....................................................135
6.1.6. Dimenses de Esquizotipia na amostra (O-Life-R)...............................139
6.2. ESQUIZOTIPIA, PERSONALIDADE E RELIGIOSIDADE EM RELAO A
TRANSTORNOS MENTAIS E QUALIDADE DE VIDA .............................141
6.2.1. Experincias Incomuns podem no ser indicadores de TMs.................141
6.2.2. Alta Experincias Incomuns no est relacionado pior QV...........143
6.2.3. Autotranscendncia pode no indicar presena de TMs...................144
6.2.4. Autodirecionamento e bem-estar psicolgico e social.......................146
6.2.5. Religiosidade e bem-estar nas relaes sociais..................................149
6.3. ESQUIZOTIPIA, PERSONALIDADE E RELIGIOSIDADE EM RELAO
QUALIDADE DE VIDA NO SEGUIMENTO (T1)........................................151
6.3.1. Autodirecionamento e melhor QV psicolgica e social, T1..............151
6.3.2. Autodirecionamento: principal critrio prognstico de bem-estar psicolgico
e social.............................................................................................................153
6.4. PROPENSO PSICOSE OU SADE?...................................................155
7. CONCLUSES.......................................................................................................159
7.1. Hipteses confirmadas................................................................................160
7.2. Consideraes finais....................................................................................161
8. REFERNCIAS......................................................................................................163
APNDICES.................................................................................................................185
ANEXOS.......................................................................................................................193
16
1. INTRODUO
Entre os intelectuais da modernidade especialmente nas universidades o
tema da religio parece ter se escondido... A persistncia da religio no
mundo moderno aparece como um embarao para os estudiosos de hoje.
Mesmo os psiclogos, para quem, presumivelmente, nada de interesse
humano ficaria alienado, parecem fechados em si mesmos quando o assunto
abordado (ALLPORT, 1950).
Durante muito tempo as cincias humanas, cincias da sade e a prpria
psicologia parecem ter excludo a religiosidade e a espiritualidade (R/E) de seu campo
de pesquisa e compreenso. Contudo, nas ltimas dcadas essa tendncia tem sido
revertida com o aumento de pesquisas que investigam as relaes entre R/E e sade.
O Handbook of Religion and Health apresenta mais de 1200 estudos sobre
R/E e sade, publicados no sculo XX. De acordo com os autores, ser religioso possui
um impacto positivo na sade, atuando com efeito protetor para depresso, ansiedade,
uso e abuso de lcool e drogas; bem como para o enfrentamento de doenas cardacas e
cncer (KOENIG; MCCULLOUGH; LARSON, 2001). Em sua segunda edio, o
Handbook apresenta 2.100 estudos originais realizados entre 2001 e 2010 (KOENIG;
KING; CARSON, 2012). Esses dois livros so considerados, atualmente, as revises
sistemticas mais abrangentes a respeito das evidncias sobre as relaes entre R/E e
sade.
Um artigo recente, inspirado pelo Handbook of Religion and Health, revisou
850 estudos sobre a relao entre religiosidade e sade mental, acrescentando pesquisas
realizadas no Brasil e ampliando o contato dos pesquisadores do campo (MOREIRA-
17
ALMEIDA; LOTUFO NETO; KOENIG, 2006). Segundo os autores, a maioria dos
estudos de boa qualidade sugere que maiores nveis de envolvimento religioso esto
relacionados postivamente com indicadores de bem-estar psicolgico, satisfao com a
vida, felicidade e afeto positivo.
Apesar de tais evidncias, o nmero de estudos dedicados investigao das
relaes entre R/E e personalidade pequeno. Segundo Cloninger, Svrakic e Przybeck
(1993), R/E tem sido sistematicamente excluda dos principais modelos de
personalidade, apesar da grande importncia e do alto impacto que apresenta para a
sade mental. Uma reviso sobre Personalidade e R/E observou que a crena em alguma
dimenso de religiosidade, em uma religiosidade transcendente ou em um Deus pessoal
no contemplada no Modelo de Cinco Fatores de Personalidade (ALMINHANA;
MOREIRA-ALMEIDA, 2009).
Segundo Saucier e Goldberg (1998) inmeras pesquisas tm considerado o
poder de sntese dos cinco fatores de personalidade, sendo o modelo mais utilizado no
mundo. No entanto, as anlises fatoriais tm demonstrado que uma srie de contedos
importantes para a descrio da personalidade humana parece no estar inserida na
classificao dos Cinco Grandes. Entre eles, o grupo de adjetivos que apresentou mais
independncia do modelo foi justamente aquele ligado Religiosidade (SAUCIER;
GOLDBERG, 1998; PAUNONEM; JACKSON, 2000).
Apesar da aparente negligncia em relao dimenso de R/E em uma das
principais teorias da personalidade, h outros esforos para compreender melhor a
interao entre religiosidade e personalidade. McCullough e Willoughby (2009),
ressaltam o possvel papel que a religiosidade possui na personalidade. Utilizando a
teoria da Auto-regulao para organizar os estudos empricos sobre o tema, os autores
18
observaram que a influncia da religiosidade na sade mental parece ocorrer atravs de
mecanismos de personalidade, tais como o auto-controle e a auto-regulao
(MCCULLOUGH; WILLOUGHBY, 2009).
O Modelo Psicobiolgico de Temperamento e Carter, desenvolvido pelo
pesquisador C. Robert Cloninger, considerado a primeira grande teoria da
personalidade a incluir R/E em seu corpo de traos e componentes (CLONINGER;
SVRAKIC; PRZYBECK, 1993; McDONALD; HOLLAND, 2002). Neste modelo,
como ser apresentado posteriormente, a personalidade compreendida como o
resultado da interao entre caractersticas hereditrias (temperamento) e adquiridas
(carter). O temperamento visto como a base da personalidade, mas o carter que
oferece sentido e indica maturidade (CLONINGER; SVRAKIC; PRZYBECK, 1993 e
CLONINGER, 2004). A ltima dimenso do carter, denominada Auto-
transcendncia busca mensurar caractersticas ligadas intuio, transpessoalidade e
espiritualidade (CLONINGER; SVRAKIC; PRZYBECK, 1993; CLONINGER, 2004).
O Inventrio de Temperamento e Carter (ITC) foi desenvolvido com base no
Modelo Psicobiolgico, e tem sido utilizado em diversas pesquisas no mundo todo
(BAYON et.al., 1996; BORA; VEZNEDAROGLU, 2007; DANELUZZO; STRATT;
ROSSI, 2005; GONZALEZ-TORRES et.al., 2009; SMITH; RILEY; PETERS, 2009;
SVRAKIC et. al., 2002; HORI et.al., 2007). Tais estudos tm investigado as relaes
entre personalidade e transtornos mentais (TMs), apresentando importantes resultados
sobre o tema. Uma de suas principais contribuies foi a descrio de um perfil de
personalidade que parece estar associado presena de Esquizofrenia e de Esquizotipia.
No entanto, apesar do modelo psicobiolgico incluir a Auto-Transcendncia, no foi
encontrado nenhum estudo que utilizasse o ITC para investigar as possveis relaes
entre experincias religiosas, personalidade e psicopatologia.
19
Reconhecendo que as pessoas podem apresentar experincias religiosas ou
espirituais sem necessariamente configurar transtornos mentais, o DSM-IV criou a
categoria problemas religiosos e espirituais (APA, 1994). O principal objetivo da
criao dessa categoria foi justamente estimular pesquisas que clarifiquem a distino
entre experincias espirituais e transtornos mentais (LUKOFF; LU; TURNER, 1992;
LU et.al., 1995). Problemas espirituais foram definidos como conflitos envolvendo o
relacionamento com questes transcendentais ou provenientes de prticas espirituais,
incluindo a manifestao sbita de experincias consideradas paranormais (APA, 1994;
LUKOFF; LU; TURNER, 1992; LU et.al., 1995; LU; LUKOFF; TURNER, 1995a)
Em virtude das semelhanas fenomenolgicas entre sintomas psicticos da
Esquizofrenia, por exemplo, e algumas experincias R/E no patolgicas, Grof e Grof
(1988; 1989) criaram o conceito de emergncias espirituais (Spiritual emergences) a
fim de nomear crises psico-espirituais em que experincias R/E poderiam surgir tanto
de uma forma tranquila (spiritual emergence) quanto de uma forma perturbadora
(spiritual emergency). Para os autores, tais experincias podem apresentar diversas
caractersticas como alucinaes visuais, auditivas e sensoriais. Contudo, as
emergncias espirituais podem ser encaminhadas para um desfecho saudvel, desde que
sejam identificadas corretamente em seu incio (GROF; GROF, 1988; 1989).
H uma srie de terminologias que so utilizadas para identificar experincias
que se assemelham a sintomas psicticos, embora no sejam necessariamente
patolgicas. Experincias R/E, emergncias espirituais, problemas R/E, vivncias
alucinatrias, experincias psicticas, entre outras (GROF; GROF, 1988; CARDEA;
LYNN; KRIPPNER, 2000). Segundo Stevenson (1983), seria importante que se
utilizasse outro termo para denominar alteraes perceptuais que no so, a priori,
patolgicas. De acordo com Moreira-Almeida e Cardea (2011), o termo psictico
20
geralmente utilizado para se referir a transtornos mentais graves, mas as experincias
alucinatrias no patolgicas, como podem ocorre nas experincias R/E, provavelmente
seriam mais bem agrupadas por meio de um termo mais adequado como, por exemplo,
experincias anmalas (MOREIRA-ALMEIDA; CARDEA, 2011).
O termo Experincia Anmala (EA) tem sido proposto para nomear, sem
assumir implicaes psicopatolgicas, vivncias incomuns, diferentes do habitual ou
das explicaes usualmente aceitas como realidade: alucinaes, sinestesia, sada do
corpo, vivncias interpretadas como telepticas, etc (CARDEA; LYNN; KRIPPNER,
2000). Segundo Almeida e Lotufo Neto (2003), legtimo e possvel investigar as EAs,
sem que se compartilhe das crenas que as envolvem.
O espiritismo, por ser uma religio que enfatiza fortemente as EAs, torna-se um
importante objeto de estudos dessas experincias na populao no clnica.
Frequentemente, pessoas procuram Centros Espritas devido a EAs que possam
apresentar, as quais so usualmente ressignificadas para o contexto religioso da
mediunidade (ALMEIDA, 2004; MOREIRA-ALMEIDA; LOTUFO NETO;
GREYSON, 2007; MENEZES JNIOR; ALMINHANA; MOREIRA-ALMEIDA,
2012). A mediunidade pode ser definida como um conjunto de experincias nas quais
um indivduo (o mdium) alega estar em contato com ou sob o controle de uma pessoa
j falecida ou outro ser imaterial (KARDEC, 1993; ALMEIDA, 2004).
Historicamente, no que tange aos fenmenos anmalos, ao estudo da
paranormalidade ou das chamadas experincias medinicas, h uma srie de
informaes e fenmenos a serem compreendidos, tanto do universo intra-psquico,
quanto psicossocial (ZANGARI; MARALDI, 2009). Nos estudos de abordagem
psicanaltica, o paradigma que se estabeleceu em relao mediunidade foi aquele
21
que explicava o fenmeno como uma forma de histeria. Os autores chamam a ateno
ao fato de que os fenmenos paranormais estavam fortemente associados com o
Espiritismo e o Ocultismo. Isso tornava as manifestaes medinicas um tanto
ameaadoras tentativa de estabelecer a psicologia enquanto cincia, distante de
especulaes metafsicas (ZANGARI; MARALDI, 2009).
Nesse sentido, Almeida e Lotufo Neto (2004), revisaram as principais
explicaes e vises a respeito dos fenmenos medinicos elaboradas por pesquisadores
na rea mental ao longo dos sculos XIX e XX. Os autores resumem o pensamento de
diferentes mdicos e psiclogos que buscaram compreender tais experincias, em trs
grupos:
1. Pierre Janet e Sigmund Freud, para os quais as experincias medinicas
eram patolgicas e produto exclusivo do inconsciente da pessoa;
2. William James e Carl Jung, onde a mediunidade no vista como sendo
necessariamente patolgica, podendo ter origem no inconsciente, mas no
excluda a possibilidade de uma origem paranormal;
3. Frederic Myers, segundo o qual a mediunidade poderia ser uma evidncia
de um desenvolvimento superior da personalidade e sua origem seria mista
(inconsciente, telepatia e comunicao de espritos) (ALMEIDA; LOTUFO
NETO, 2004).
Almeida e Lotufo Neto (2004), consideram digno de nota o fato de que,
embora o fenmeno medinico tenha sido objeto de intensas pesquisas, no houve um
consenso ou o estabelecimento de um paradigma abrangente sobre o assunto. No
entanto, os estudos foram interrompidos ou a viso da mediunidade como
psicopatologia prevaleceu, embora no se tenham realizado estudos controlados e de
22
quantidade necessria para que tal entendimento do fenmeno fosse estabelecido
cientificamente (ALMEIDA; LOTUFO NETO, 2004).
No contexto brasileiro, onde 97% (IBGE, 2010) da populao afirma ter alguma
religio, muitas vezes os profissionais de sade se deparam com situaes complexas.
Isso, porque muitas crenas religiosas, como o Espiritismo e a Umbanda, por exemplo,
apresentam EAs como um elemento central de sua prtica (ALMEIDA, 2004;
ZANGARI, 2007). Desse modo, h alta prevalncia de experincias consideradas como
psicticas nessa populao que nem por isso indicador da presena de TMs.
Para dificultar a situao, muitos profissionais trabalham sem nenhuma
informao ou treinamento adequado. E ainda, como so situaes onde os limites entre
religio e cincia ainda so tnues, h grande carncia de estudos de qualidade sobre o
tema. Logo, parece ser essa a delimitao necessria a ser feita pelas pesquisas que
envolvem sade mental (CLONINGER, 2004; LU; LUKOFF; TURNER, 1995a).
A falta de informaes e a escassez de estudos sobre o diagnstico diferencial
entre EAs e TMs tambm atinge negativamente os servios em Ateno Primria em
Sade (APS). Dados sobre o APS mostram que a presena de TMs acaba representando
um aumento significativo na utilizao dos gastos em sade pblica (WHO, 2000). De
acordo com alguns estudos, um dos principais motivos para que isso acontea a
ausncia de um diagnstico correto, causando utilizao excessiva de tratamentos
paliativos, exames e consultas a especialistas (GONALVES; KAPCZINSKI, 2008;
STEWART et.al., 2003 e BARSKY; ORAV; BATES, 2005).
Atualmente, a necessidade de dar continuidade a esses estudos tem ficado
evidente, especialmente pelo fato da alta prevalncia de EAs na populao geral
(NUEVO et.al., 2012). Recentemente a OMS realizou um levantamento sobre a
23
presena de sintomas psicticos na populao geral (no diagnosticada), envolvendo
256.445 pessoas em 52 pases (NUEVO et.al., 2012). Em mdia, 12,5% da populao
mundial e 32% dos brasileiros relataram ter ao menos uma vivncia psictica
(ocorrendo quando no estava sonolento, sonhando ou sob influncia de lcool ou
drogas) no ano anterior. Ressaltando que em apenas 10% dos casos, essas vivncias
psicticas estavam associadas efetivamente a um diagnstico de Psicose (NUEVO
et.al., 2012).
Do ponto de vista da sade mental, esses fenmenos carecem de pesquisas,
posto que, suas semelhanas e diferenas com sintomas de psicopatologia so inmeras.
Para Moreira-Almeida e Cardea (2011), cada vez mais necessria a existncia de
diretrizes baseadas nas evidncias disponveis que auxiliem no diagnstico diferencial
entre EAs e TMs.
Nesse sentido, uma reviso de literatura identificou nove critrios principais para
distino entre experincias R/E e TMs (MENEZES; MOREIRA-ALMEIDA, 2009).
Assim, em indivduos com experincias R/E ou EA maduras, ou seja, para alm da fase
inicial de emergncia espiritual, temos: ausncia de sofrimento; ausncia de prejuzos
sociais e ocupacionais; ausncia de co-morbidades; a experincia ser curta e ocorrer
episodicamente; a experincia ser controlada, ser compatvel com uma tradio cultural,
gerar crescimento pessoal, ser centrada nos outros; e existir uma atitude crtica sobre a
realidade objetiva da experincia (MENEZES; MOREIRA-ALMEIDA, 2009).
Dois estudos realizados no Brasil foram muito importantes para o avano da
compreeno sobre o diagnstico diferencial entre experincias R/E e TMs. O primeiro
estudo foi conduzido por Negro Jnior (1999), que investigou vivncias dissociativas
(incorporao de espritos, psicografia, experincias fora do corpo) em 110
24
frequentadores de cursos oferecidos em centros espritas da cidade de So Paulo. Em
seus resultados, mostrou que a atividade medinica estava associada a experincias
dissociativas, que podem ou no ser patolgicas, caracterizando um transtorno
dissociativo. Quando houve presena de psicopatologia, esta estava relacionada a menor
idade, menor capacidade de controle da experincia, pior suporte social, bem como a
antecedentes psiquitricos (NEGRO JUNIOR, 1999; NEGRO JNIOR; PALLADINO-
NEGRO; LOUZ, 2002).
O segundo estudo, foi desenvolvido pelo psiquiatra Alexander Moreira-Almeida,
que procurou investigar as mesmas vivncias dissociativas ou medinicas em uma
amostra de 115 indivduos que trabalhavam como mdiuns em centros espritas de So
Paulo (ALMEIDA, 2004; MOREIRA-ALMEIDA; LOTUFO NETO; GREYSON,
2007). A diferena que neste estudo os indivduos j estavam em prtica ou
desenvolvendo suas capacidades medinicas h 10 anos, ao contrrio do estudo de
Negro Jnior (1999), cuja amostra era composta por indivduos que apenas estavam
estudando o Espiritismo.
Os sujeitos do estudo de Almeida (2004) relataram apresentar fenmenos
denominados, no contexto da religio, como: incorporao de espritos, psicofonia,
viso, audio, psicografia, cura, efeitos fsicos e pintura medinica. Interessante relatar
que os sujeitos deste estudo referiram apresentar, em geral, 3 dessas experincias,
concomitantemente (ALMEIDA, 2004). Alm disso, o estudo observou que os
primeiros sinais da mediunidade apareciam em grande parte na infncia (sendo que a
maioria dos sujeitos no era oriunda de famlias espritas). Ao longo do tempo foi
verificado que a pessoa adquiria experincia, controle e amadurecimento em sua
vivncia medinica, apresentando em geral, bom ajustamento social e baixa
25
prevalncia de TMs (ALMEIDA, 2004; MOREIRA-ALMEIDA; LOTUFO NETO;
GREYSON, 2007).
Essas duas pesquisas contriburam bastante para a compreenso das EAs no
contexto religioso esprita. No entanto, h carncia de estudos que observem indivduos
com EAs que buscam auxlio em organizaes religiosas, no estando vinculados a
essas atravs de atividades de estudo ou de prtica medinica. A importncia de
investigar tal populao se deve ao fato de que essas pessoas no possuem o mesmo
suporte social (vnculo com a instituio) que os sujeitos da pesquisa de Negro Junior
(1999) e de Almeida (2004). E tambm porque muitas vezes as pessoas procuram
auxlio religioso para problemas emocionais, antes de buscarem recursos oferecidos
pelo sistema de sade do governo (SCHUMANN; STROPPA; MOREIRA-ALMEIDA,
2011). Isso aumenta a possibilidade de confuso entre problemas religiosos e problemas
mentais.
Dessa forma, preciso esclarecer a seguinte questo: como diferenciar
adequadamente experincias R/E ou EAs de TMs? Como realizar um prognstico
adequado quando nos deparamos com um indivduo que refere ver espritos e ouvir
suas vozes? De que forma podemos compreender se sua experincia possui um carter
religioso ou anmalo, podendo desenvolver-se em direo sade? Ou, ao contrrio, se
os espritos e as vozes so parte de um quadro sintomatolgico, indicando carter
psictico e doente da experincia? O principal fator de confuso que, em ambos os
casos, comum haver sofrimento e dificuldade de controle da experincia (MENEZES
JNIOR; ALMINHANA; MOREIRA-ALMEIDA, 2012).
possvel que o exame de alguns elementos da personalidade possa ajudar a
traar perfis que indiquem a propenso de uma pessoa com EAs para desenvolver TMs.
26
Como se sabe, estudos que utilizaram o ITC para compreender as caractersticas de
personalidade associadas a diagnsticos de TMs, tem encontrado um conjunto de traos
de temperamento e carter bastante especfico (CLONINGER; SVRAKIC;
PRZYBECK, 1993). Contudo, no foram encontradas pesquisas que busquem o perfil
de personalidade de pessoas com EAs, bem como que possam oferecer maiores
explicaes para o que leva uma pessoa a se tornar um Esquizotpico Positivo, ao
invs de desenvolver toda a gama de prejuzos sociais e cognitivos que marcam a
Esquizotipia.
Por tudo isso, o principal objetivo desse estudo foi investigar o papel da
personalidade no que tange ao diagnstico diferencial entre EAs e TMs. Mais
especificamente, buscou-se observar se algumas caractersticas de personalidade
mensuradas pelo ITC (CLONINGER; SVRAKIC; PRZYBECK, 1993) poderiam servir
como critrios diferenciais, apresentando menor correlao com presena de TMs e
maior correlao com qualidade de vida (QV). Outro objetivo foi compreender a
Esquizotipia Positiva e sua associao com presena de TMs e maior ou menor QV.
Para tanto, foram utilizados os instrumentos SCID I e WHOQOL, a fim de
investigar desfechos de doena e de sade mental (qualidade de vida). Tambm
inclumos entre as variveis independentes ou explicativas a Religiosidade e a
Esquizotipia. A Religiosidade foi avaliada porque, como as pessoas buscaram ajuda em
um contexto religioso/espiritual (R/E), era importante que soubssemos qual era o tipo
de relao do sujeito com sua religio. Estudos tm mostrado que o tipo de religiosidade
(Organizacional, No Organizacional e Intrnseca), muitas vezes est associado a
desfechos diferentes em relao a uma srie de marcadores positivos de sade
(MOREIRA-ALMEIDA; LOTUFO NETO; KOENIG, 2006; KOENIG; KING;
CARSON, 2012).
27
De acordo com uma ampla reviso do tema Religiosidade e Sade Mental, os
autores afirmam que, geralmente a religiosidade extrnseca ou organizacional est
associada a dogmatismo, preconceito, medo da morte e ansiedade. Ao contrrio, a
religiosidade intrnseca se correlaciona com estruturas de personalidade mais
organizadas e boa sade mental (MOREIRA-ALMEIDA; LOTUFO NETO; KOENIG,
2006; KOENIG; KING; CARSON, 2012).
Alm disso, a mensurao das dimenses de esquizotipia foi utilizada porque ela
est fortemente associada com propenso psicose (psychosis-proneness) (MAISON;
CLARIDGE, 2006). Nossa amostra foi composta por sujeitos que se encontravam nessa
regio limtrofe entre estar apresentando um primeiro episdio de psicose (PEP) ou uma
tendncia psicose ou ainda, estar apresentando uma EA no patolgica. Por isso, a
esquizotipia e sua relao com desfechos de transtornos mentais e qualidade de vida
serviu como um marcador adequado para o diagnstico diferencial entre EAs e TMs.
Outra importante razo para utilizarmos o O-Life (instrumento de mensurao
de Esquizotipia) na observao da Esquizotipa se deve ao fato de ser um instrumento
fundamentado na viso dimensional da tendncia psicose (CLARIDGE et. al., 1996;
MAISON e CLARIDGE, 2006; FISHER et al, 2004; RAWLINS et.al., 2008;
McCREERY; CLARIDGE, 2002), alm de no ser categrico (BEAUCHAINE;
LENZENWEGER; WALLER, 2008). Tal entendimento oferece a oportunidade de
compreender algumas experincias sem classific-las como patolgicas, priori.
No caso especfico da Esquizotipia Positiva, pode-se observar que, embora ela
preencha critrios positivos (presena de alucinaes e delrios), em determinados
contextos ela se mostra associada bem-estar e sade mental (GOULDLING, 2004;
SCHOEFIELD; CLARIDGE, 2007; McCREERY; CLARIDGE, 2002; WILLIAMS;
28
IRWIN, 1991; KENNEDY; KANTHAMANI, 1995; HERGOVIT et.al, 2008; YUNG
et.al., 2006; FARIAS; UNDERWOOD; CLARIDGE, 2012).
Desse modo, um indivduo que pontue alto apenas em Esquizotipia Positiva e
no em Desorganizao Cognitiva, Anedonia Introvertida e No-Conformidade
Impulsiva, embora apresente alucinaes e delrios, pode mostrar indicadores de bem-
estar e de sade mental (GOULDLING, 2004; SCHOEFIELD; CLARIDGE, 2007;
McCREERY; CLARIDGE, 2002; WILLIAMS; IRWIN, 1991). Sendo assim, o Happy
Schizotype (Esquizotpico Feliz), seria outro critrio para facilitar o diagnstico
diferencial entre EAs e TMs (KENNEDY; KANTHAMANI, 1995; HERGOVIT et.al,
2008; YUNG et.al., 2006; FARIAS; UNDERWOOD; CLARIDGE, 2012). Utilizamos a
esquizotipia como varivel preditiva para observar especificamente como ela se
relacionaria com os desfechos do SCID I e do WHOQOL-bref.
Para fazer parte do estudo, o sujeito precisava ser maior de idade e ser
identificado como portador de mediunidade (mediunidade em emergncia) pelos
mdiuns coordenadores do Centro Esprita no qual buscou ajuda. Contudo, foram
excludas da pesquisa as pessoas que j atuassem como mdiuns em qualquer instituio
religiosa. Tais critrios foram escolhidos com base nas pesquisas recentes apresentadas
acima (ALMEIDA, 2004; NEGRO JUNIOR, 1999). Embora os estudos de Almeida
(2004) e Negro jnior (1999) tenham apresentado resultados consistentes no que tange
baixa prevalncia de TMs nesta populao, possvel que a seleo de indivduos
capazes de se comprometer com a disciplina de uma instituio esprita por muitos anos
se constitusse como um vis de seleo daqueles que, naturalmente, possuam sade
mental (ALMEIDA, 2004).
29
Assim sendo, a populao escolhida para a presente pesquisa, de sujeitos recm-
chegados ao Centro Esprita, busca investigar a possibilidade de previso da evoluo
da experincia do sujeito enquanto um quadro de transtorno mental ou de uma EA
(supostamente de carter R/E). Tambm por esse motivo a populao estudada foi de
sujeitos que buscam atendimento em Centros Espritas, porque se considera que, no
contexto scio-cultural brasileiro, estes so locais onde encontramos tais experincias
com explicaes de cunho R/E. No foram investigados indivduos que buscam outras
instituies religiosas, de modo a no descaracterizar a populao estudada.
Por fim, esperamos que esse estudo possa contribuir para o avano da
compreenso cientfica desses fenmenos e que proporcione orientaes para o trabalho
dos profissionais de sade mental, especialmente quando em contato com EAs em sua
prtica clnica. Alm disso, o presente estudo poder oferecer diretrizes para as pessoas
que trabalham em instituies religiosas e que lidam com EAs em seu dia-a-dia.
30
2. REVISO DE LITERATURA
2.1. RELIGIO, RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE
2.1.1. Religio
Mysterium Tremendum et Fascinans
Rudolf Otto (1869-1937)
Cientistas da religio parecem concordar com a falta de consenso na definio
do conceito de religio, sendo o caminho mais satisfatrio a fuga dos reducionismos.
O termo religio, tipicamente latino, possui equivalentes lingusticos precrios em
outras tradies. Segundo Cavanaugh (2011), falar sobre religio se implicar com
uma imposio conceitual tipicamente ocidental. Civilizaes antigas como a dos
gregos, egpcios, astecas, indianos, chineses e japoneses no possuam o conceito de
religio, simplesmente porque no havia algo separado das outras reas da vida, como a
poltica, que pudesse ser assim denominado (SMITH, 1962). Modernamente, utilizamos
o conceito como chave heurstica para explicar uma srie de prticas, crenas,
sentimentos e formas de organizao social presentes em diferentes povos, de diferentes
pocas das mais remotas at os dias de hoje (FILORAMO; PRANDI, 2003; ELIADE,
1978).
Mircea Eliade (1989), importante historiador da religio, inicia seu livro
Origens: histria e sentido da religio, relatando que considera lamentvel que no se
tenha um termo melhor para descrever a experincia do Sagrado, do que religio. Para
ele, esse um termo culturalmente limitado, j que difcil aplic-lo
indiscriminadamente a distintos contextos culturais. J Cliford Geertz, em atitude
31
contrria a Eliade, acredita que possvel definirmos a religio em termos
antropolgico-culturais, evitando a dimenso experiencial, ou seja, evadindo daquilo
que singular do indivduo e caminhando para uma compreenso que privilegia a
cultura em detrimento do sujeito (GEERTZ, 1978).
Para compreender melhor essas dificuldades, pode-se investigar histrica e
filologicamente o caminho do conceito de religio em nossa cultura. Um dos
primeiros pensadores a definir religio no sentido que usualmente entendemos foi
Ccero, pensador romano do sc. II. Ccero sugeria a palavra religio como derivada do
verbo relegere (recolher, compreender, revisitar, reler), sendo que os religiosos
seriam aqueles que retomavam tudo a que se referia o culto dos deuses. Assim
procedendo, os religiosos re-significavam a existncia mais da coletividade, dos laos
sociais, do que do indivduo (FILORAMO; PRANDI, 2003). Em outros pensadores
deste perodo, como Clemente de Alexandria e Orgenes no possvel encontrarmos
uma definio coesa de religio, como temos em Ccero, mas apenas uma srie de
prticas e recomendaes dispersas que guardam relao com um sentido de
organizao interna do Ser e da coletividade. Enfim, uma compreenso de religio ainda
muito prxima da realidade grega antiga, imanente, diferente do transcendentalismo
cristo que viria a florescer sculos depois (ELIADE, 1989).
Para alm da compreenso de religio enquanto re-significao social (comum
aos gregos e povos mais antigos, como os indianos) temos a interpretao que se tornou
clssica em nossa cultura religio enquanto religare. A re-ligao do Homem a Deus.
Essa leitura foi possvel somente aps a consolidao do cristianismo e da Igreja
Catlica como elementos hegemnicos de nossa cultura. Figura central para a
consolidao dessa interpretao foi Agostinho de Hipona [354-430], um dos mais
importantes telogos catlicos. Em seu livro, A Cidade de Deus, finalizado no sc. V,
32
Santo Agostinho ressalta que religio no define unicamente um lao social, mas um
movimento que liga o ser humano a Deus, reestabelecendo o lao entre criatura e
criador (AGOSTINHO, 2002; FILORAMO; PRANDI, 2003).
De Agostinho ao perodo que antecede o Renascimento, as atribuies de
sentido ao termo religio ficam necessariamente superpostas aos dogmas e elementos
teolgicos cristos. As interpretaes no variam muito, terminando, quase
necessariamente, no Deus cristo do catolicismo. Os msticos cristos, desde So
Francisco at So Joo da Cruz instauram um novo problema, j que afirmavam a
possibilidade de uma forma religiosa de contato direto com o divino, enquanto a
teologia oficial defendia uma relao entre criatura e criador mediada pelo poder da
Igreja (TARNAS, 2003).
no perodo do Renascimento, com suas grandes mudanas de organizao
social e de poder, no apenas econmico, mas tambm intelectual, que novas
possibilidades de interpretao do termo religio ficam evidentes. Trabalhos como os de
Marsilio Ficino e Picco Della Mirandola, com fortes influncias de outras tradies, tais
como formas seculares de judasmo e islamismo, at orientalismo e, especialmente, o
emergente Humanismo, abriam espao para novas leituras da religio, mais
abrangentes, esotricas e sincrticas. O conceito se expandia para alm do catolicismo
cristo (WOORTMANN, 1997).
Com as revolues filosficas consequentes e a progressiva abertura poltica do
conhecimento, formas cada vez mais complexas de compreenso da religio emergem,
como podemos observar na alternncia de interpretaes dadas no embate entre
filsofos racionalistas e empiricistas ao longo dos scs. XVII e XVIII (TARNAS,
2003).
33
No sc XIX, duas possibilidades de compreenso e definio da religio
comeam a se delinear: o substantivismo e o funcionalismo. A primeira escola,
representada fundamentalmente pela Teologia e Fenomenologia, constri o conceito de
religio a partir do sujeito e seus processos internos de subjetivao; entre os
funcionalistas, representados pela Sociologia, a nfase recai nas relaes entre religio,
organizao social e empoderamento (FILORAMO; PRANDI, 2003).
A perspectiva funcionalista pensa e delimita a religio a partir da sociedade. O
pai da Sociologia, Emile Durkheim [1858-1917], reconhece na religio uma coisa
social. A religio definida a partir de suas funes sociais, vista como um sistema
unificado de crenas e de prticas relativas s coisas sagradas. So elas que unificam a
sociedade numa comunidade moral (igreja), um coletivo de crenas. Dessa forma, o
ritual pode ser considerado um mecanismo para reforar a integrao social. Durkheim
entende que a funo substancial da religio a criao, o reforo e a manuteno da
solidariedade social. Enquanto persistir a sociedade, persistir a religio (PIMENTA,
1980).
Entre os substantivistas, duas importantes figuras se destacam - Rudolph Otto e
Ludwig Feuerbach. Para o primeiro, a religio remete ao conceito do sagrado
(numinoso), que seria uma predisposio psquica peculiar da experincia humana.
Dessa forma, para alm do cristo, encontramos a experincia universal do homo
religiosus. H um esforo em caracterizar a religio enquanto uma experincia
primordialmente psicolgica, ou seja, mais do indivduo do que da coletividade, que se
desdobra, progressivamente, em formas cada vez mais maduras ao longo da histria (do
assombro ao mito, do mito racionalidade, etc) (FILORAMO; PRANDI, 2003). Em
sntese, em Otto, h uma aproximao positiva e universal da religio, com especial
34
interesse para o fato de como o sentimento religioso emerge e se estabelece no
indivduo, e no nas instituies religiosas (FILORAMO; PRANDI, 2003).
O pensamento do filsofo alemo Ludwig Feuerbach tambm prioriza os
elementos psicolgicos da relao entre o sujeito e a religio, moldando sua
compreenso do fenmeno. Feuerbach influenciou toda a filosofia e psicologia
contemporneas, especialmente a compreenso religiosa de Freud, afirmando que a
religio no revela quem Deus, mas sim quem o ser humano (BOBSIN, 2011).
Feuerbach (1988) aponta para a religio como a expresso da subjetividade do sujeito,
sendo esse, cindido internamente entre Deus (o que perfeito, eterno, santo,
plenipotente) e humano (aquilo que imperfeito, mortal, pecador e impotente).
Segundo Bobsin (2011), a partir de Feuerbach e Marx, a religio pode ser vista
enquanto um empreendimento humano, onde as divindades que teriam sido criadas
sua imagem e semelhana. H uma aproximao da religio enquanto crise, ou
melhor, uma espcie de iluso projetiva ou, at mesmo, protopatologia.
Assim, entre Otto e Feuerbach, temos duas novas possibilidades que se opem
na compreenso e interpretao da religio. Ambas apontam para uma religio
implicada mais no sujeito que na sociedade em Otto, uma perspectiva mais otimista e
salutognica; em Feuerbach, por sua vez, um olhar mais duvidoso e patognico.
Importa, sobretudo, compreender a histria e particularidades destes movimentos na
vivncia psicolgica do Ser (ALVES, 1975).
Paul Tillich (2005), considerado um dos maiores telogos do sculo 20, continua
essa linha de investigao que aproxima o sujeito da religio, afirmando que ser
religioso significa interrogar-se apaixonadamente sobre o sentido da nossa vida e estar
atento s respostas, mesmo que elas nos abalem em profundidade. Tillich (2005)
35
apresenta a religio como aquilo em que se deposita um interesse ltimo na vida,
onde tudo mais seria secundrio. Em uma viso kierkegaardiana, afirma que o que
ltimo traz tona o sentimento de paixo e um infinito interesse, sendo este a prpria
totalidade espiritual do sujeito (TILLICH, 2005).
Esse entendimento de uma religio mais pessoal, do indivduo, para alm do
social, est diretamente ligado ao moderno conceito de espiritualidade, como veremos
a seguir. O termo religio, de modo geral, nos dias de hoje, mais adequadamente
compreendido do modo como os cientistas sociais sempre advogaram, ou seja, em sua
dimenso mais institucional, coletiva (HUFFORD, 2012).
2.1.2. Espiritualidade
Nas ltimas dcadas tem se observado que muitas pessoas se identificam como
spiritual, but not religious (espiritual, mas no religioso). Essa frase ttulo do livro
de Robert C. Fuller (2001), o qual discute a religiosidade metafsica contempornea, e a
espiritualidade sem igreja (unchurched), ecltica e psicolgica. Segundo o dicionrio
etimolgico da lngua portuguesa, espiritualidade seria a qualidade do que
espiritual, ou seja, relativo ao esprito, ao incorpreo e ao mstico; e esprito
definido como princpio animador ou vital que d vida aos organismos fsicos; sopro
vital, alma..
Historicamente, no havia uma distino especfica entre espiritualidade e
religio. Segundo Zinnbauer et.al. (1997), essa separao comeou a surgir juntamente
com o avano do secularismo, quando houve uma desiluso popular em relao s
instituies religiosas, que pareciam impedir o sujeito de experimentar um contato
pessoal com o sagrado.
36
Assim sendo, embora a religio e a religiosidade inclussem tanto uma esfera
individual, quanto institucional, popularmente o termo espiritualidade emergiu como
um fenmeno individual, ligado transcendncia pessoal, sensitividade e busca de
sentido. Ao passo que, gradativamente, religiosidade tornou-se um conceito mais
restrito a uma estrutura formal, institucional, teologia e aos rituais (ZINNBAUER
et.al., 1997).
O estudo desenvolvido por Zinnbauer et.al. (1997) um dos poucos que
compararam empiricamente religio e espiritualidade a partir de auto-relatos. Os autores
investigaram uma amostra de 346 participantes, divididos em 11 grupos de diversos
contextos religiosos (igrejas rurais Presbiterianas e Luteranas, igreja catlica
conservadora, episcopais no-tradicionais; grupos New Age, profissionais da sade
mental, estudantes etc).
No estudo, os participantes foram perguntados sobre como eles definiam os
termos religiosidade e espiritualidade; em que grau eles definiriam a si mesmos como
religiosos ou espirituais; quais suas crenas em relao a Deus; qual sua viso sobre
a relao conceitual entre religiosidade e espiritualidade e quais conotaes positivas e
negativas eles atribuiriam a cada um dos termos (ZINNBAUER et.al., 1997). Em
seguida, os autores observaram o quanto os resultados estavam associados a variveis
demogrficas, de religiosidade e espiritualidade e psicossociais.
Os resultados do estudo mostraram que os termos religiosidade e espiritualidade
parecem constituir, em parte, diferentes conceitos. Como esperado, espiritualidade foi
descrita com mais frequncia em termos pessoais ou experienciais, como acreditar ou
ter um relacionamento com Deus ou com um Poder maior. Por outro lado, as
definies de religiosidade incluram tanto as crenas pessoais (Deus, Poder maior)
37
como tambm as crenas e prticas ligadas organizao ou instituio, como ser
membro de igreja ou estar comprometido com um sistema de crenas ligado a uma
religio organizada (ZINNBAUER et.al., 1997).
No entanto, o estudo tambm observou que, embora religiosidade e
espiritualidade paream descrever conceitos diferentes, eles no so completamente
independentes. Houve uma correlao modesta, mas significativa entre religiosidade e
espiritualidade, sendo que 74% dos participantes se consideraram ao mesmo tempo
religiosos e espirituais (ZINNBAUER et.al., 1997). Apenas 19% dos participantes
descreveram a si mesmos como espirituais, mas no religiosos. Entretanto, esse grupo
de indivduos se diferenciou dos demais de muitas maneiras, tais como:
Apresentar menor tendncia a avaliar a religiosidade de forma positiva;
Menor chance de se comprometer com formas tradicionais de adorao ou
devoo ou de apresentar crenas tradicionais e ortodoxas;
Mais propenso a se engajar em experincias grupais de desenvolvimento
espiritual;
Ser mais agnsticos;
Maior tendncia a ver religiosidade e espiritualidade como conceitos separados;
Maior chance de apresentar crenas no-tradicionais e New Age;
Mais propenso a ter experincias msticas.
Apesar do estudo no ter sido replicado no Brasil, o que pode apresentar um vis
cultural na compreenso dos termos, esses dados so importantes para entender as
caractersticas de um movimento que surge como uma forma de relacionar-se com o
sagrado e o transcendente sem estar necessariamente atrelado a uma organizao
religiosa. Porm, a pesquisa de Zinnbauer et.al. (1997) traz tona o ponto central da
38
dificuldade de conceituar religiosidade e espiritualidade: a correlao entre os conceitos
ou o fato de que, muitas vezes, esto presentes ao mesmo tempo nas crenas e nos
comportamentos das pessoas.
2.1.2.1. O conceito de espiritualidade na sade
Harold Koenig (2008) afirma que o termo espiritualidade tem sido cada vez
mais utilizado em estudos que examinam suas correlaes com sade mental e fsica.
Por esse motivo, a necessidade de especificar o termo e diferenci-lo de sade mental
ou de bem-estar premente. Nesse sentido, Hufford (2012), ao analisar o campo da
espiritualidade, religiosidade e sade, aponta para a enorme dificuldade em definir e
distinguir religio de espiritualidade. No entanto, sendo esses os termos centrais
dessa rea de pesquisa, quanto mais eles so utilizados de forma inapropriada e
inconsistente, maiores se tornam os problemas de validade e coerncia apresentados nos
estudos (HUFFORD, 2012). Segundo o autor, tais dificuldades so comuns quando um
campo da cincia se apropria de termos que so parte da linguagem popular.
Assim sendo, a indefinio ou as mltiplas definies de espiritualidade, acabam
comprometendo a construo de instrumentos e escalas confiveis para mensurar e
apontar correlaes com sade. Koenig (2008) demonstra o quanto algumas verses
altamente inclusivistas de espiritualidade acabam englobando religiosidade,
espiritualidade, sade mental (ou seja, bem-estar, paz interior, sentido de vida) e at
mesmo secularismo e agnosticismo. Em tais modelos, todos so espirituais, logo, no
resta ningum com quem comparar, tornando impossvel qualquer pesquisa ou estudo
das relaes entre espiritualidade e sade.
A exemplo disso, Koenig (2008) apresenta o nmero crescente de escalas
desenvolvidas para avaliar espiritualidade na sade, mas que incluem indicadores
39
psicolgicos positivos, como contentamento, capacidade de perdoar, conexo entre as
pessoas etc. No entanto, como se sabe, pessoas com pouca sade mental costumam
experienciar essas sensaes de bem-estar, bem menos do que pessoas com sade
mental. Logo, definir espiritualidade dessa forma acaba assegurando que indivduos
espirituais sero mentalmente saudveis, excluindo pessoas com menos sade mental
dessa categoria (KOENIG, 2008). Alm disso, os estudos acabam relacionando sade
mental com sade mental (ou seja, com ela mesma, e no com espiritualidade) e os
resultados s mostram que pessoas deprimidas, por exemplo, possuem menos bem-
estar, sentido de vida ou contentamento (o que altamente redundante) (KOENIG,
2008).
2.1.3. Religio e Espiritualidade na pesquisa em sade: operacionalizando os
conceitos
Na tentativa de esclarecer os termos e no recair nas dificuldades apresentadas
anteriormente sero utilizadas as definies de religiosidade e espiritualidade propostas
por Koenig, King e Carson, no Handbook of Religions and Health (2010):
Religio - A Religio um sistema organizado de crenas, prticas, rituais e
smbolos designados para: a) facilitar a proximidade com o sagrado ou o
transcendente (Deus, Poder Superior ou verdade ltima); b) alimentar uma
compreenso da relao e da responsabilidade de uma pessoa com as outras,
vivendo juntas em comunidade.
Espiritualidade Espiritualidade a busca pessoal por respostas para as questes
ltimas da vida, sobre sentido, sobre a relao com o sagrado e o transcendente.
Ela poder ou no levar ou vir do desenvolvimento de rituais religiosos e da
formao de comunidade.
40
2.1.3.1. Tipos de religiosidade e Envolvimento religioso
Segundo Koenig (2012), religiosidade diz respeito ao nvel de envolvimento
religioso e o reflexo desse envolvimento na vida da pessoa, o quanto isso influencia seu
cotidiano, seus hbitos e sua relao com o mundo. Nesse sentido, a perspectiva
psicolgica do terico da personalidade, Gordon W. Allport (ALLPORT, 1974),
apresenta a religiosidade a partir de dois referenciais de orientao: religiosidade
extrnseca e religiosidade intrnseca.
Religiosidade Extrnseca (RE): associada a comportamentos religiosos que
visam o utilitarismo e os benefcios sociais, de status, segurana e distrao que
a prtica religiosa pode oferecer. Em termos teolgicos, como refere Allport e
Ross (1967), a pessoa que desenvolve este tipo de religiosidade se volta ao
sagrado ou a Deus, mas sem desapegar-se do self.
Religiosidade Intrnseca (RI): associada a um sentimento de significado ltimo
da vida, onde a pessoa busca harmonizar suas necessidades e interesses s suas
crenas, esforando-se por internaliz-las e segui-las completamente.
De acordo com Allport e Ross (1967): os extrnsecos usam sua religio
enquanto os intrnsecos a vivenciam. Contudo, o autor ressalta que a maioria das
pessoas que professam uma religio acaba ficando entre estes dois plos de orientao,
o que facilita um entendimento mais abrangente do fenmeno religioso como um todo
apresentando, em geral, as duas formas de religiosidade em alternncia (ALLPORT;
ROSS, 1967).
Alm dessas, h muitas outras dimenses de envolvimento religioso, sendo trs
das mais utilizadas em pesquisa em sade:
41
Filiao Religiosa - Denominao religiosa a que o indivduo refere fazer
parte.
Religiosidade Organizacional (RO) - se refere frequncia aos servios e
encontros religiosos, sendo uma medida social da religio;
Religiosidade Privada (RP) o exerccio individual da religiosidade,
atravs da frequncia de orao, meditao, leituras religiosas e ritos
religiosos atravs do rdio ou da televiso (KOENIG; KING; CARSON,
2010).
42
2.2. A RELIGIO ESPRITA E O FENMENO DA MEDIUNIDADE
Como a presente pesquisa investigou indivduos em centros espritas, torna-se
necessrio apresentar alguns conceitos fundamentais do espiritismo para facilitar o
entendimento do contexto sociocultural onde o estudo foi realizado.
Talvez, com exceo apenas do Budismo e do Jainismo, todas as demais
religies possuem, em sua estrutura de R/E, a crena em um duplo que, aps a morte,
sobreviveria decomposio do corpo, passando a existir em outra realidade
(SANTANA, 2010). No Hindusmo, o atman; no Islamismo, Rh e no cristianismo
a alma ou esprito. Na histria do cristianismo, propriamente, a idia de alma e de
seu destino aps a morte, tomou diversos caminhos (SANTANA; INCONTRI, 2009).
De modo geral, o fenmeno de contactar a alma de um morto, to antigo quanto a
prpria histria da religio foi desencorajado no cristianismo inclusive em certas
passagens bblicas. A suposta comunicao com os mortos poderia ser um sinal
diablico portanto deveria ser desencorajada e tomada como pecado (ALMEIDA,
2007).
Contudo, em meados do sculo XIX, nos EUA e na Europa, diversos fenmenos
incomuns, como o deslocamento espontneo de objetos, audio de sons aleatrios e
comunicao com espritos, tomaram a ateno da mdia e da populao em geral. Um
dos casos mais populares foi o das Irms Fox, acontecido nos EUA (ALVARADO et al,
2007).
Os fenmenos logo se espalharam pelo continente europeu, que j havia se
instigado com a suposta paranormalidade de Emmanuel Swedenborg e Franz Mesmer
(DOYLE, 2002). A fim de compreender cientificamente os alegados fenmenos
43
paranormais, cientistas renomados da poca, tais como Edmund Gurney, Frederic
Myers, Henry Sidgwick e Edmund Dawson Rogers, fundaram, em 1882, a Society for
Psychical Research. Outros membros ilustres da sociedade foram Alfred Russel
Wallace, W. B. Yeats, Charles Richet, C. G. Jung e William James. Foram conduzidos
diversos experimentos com alegados mdiuns da poca, dentre os quais os mais
conhecidos foram Kate Fox, Florence Cook e Daniel Dunglas Home. De modo geral,
apesar de muitos casos de sucesso, os experimentos foram inconclusivos, sugerindo o
aperfeioamento da pesquisa (DOYLE, 2002; ALVARADO et al, 2007).
Um dos investigadores da poca foi o pedagogo francs Hippolyte Leon
Denizard Rivail que, curioso com os fenmenos das chamadas mesas girantes, que
ocorriam em diversos sales parisienses, se engajou na pesquisa paranormal. Rivail, que
posteriormente adotou o pseudnimo de Allan Kardec, buscou desenvolver um mtodo
de investigao cientfica da paranormalidade, assim como procedia a Society for
Psychical Research (ALMEIDA, 2004). Dos alegados fenmenos paranormais, aquele
mais pesquisado por Kardec foi a mediunidade, que envolvia a suposta sensibilidade de
um indivduo frente ao contato de um esprito. A pesquisa de Kardec, sempre
conduzida pelo rigor cientfico, gerou um conjunto de conhecimentos e prticas que ele
denominou, posteriormente, de Espiritismo (MOREIRA-ALMEIDA, 2008a).
Kardec (1861/1963) definiu o mdium como todo aquele que sente num grau
qualquer, a influncia dos espritos, embora mais adiante apresente uma definio mais
restrita, de que s se qualificam assim aqueles em quem a faculdade medinica se
mostra bem caracterizada e se traduz por efeitos patentes, de certa intensidade
(KARDEC, 1993, p.195). Segundo ele, a mediunidade pode se apresentar em dois
grandes grupos: a mediunidade de efeitos fsicos e a mediunidade de efeitos intelectuais.
44
A mediunidade de efeitos fsicos gera manifestaes observveis no ambiente,
tais como rudos e movimentos de objetos. Essas manifestaes podem ocorrer de modo
involuntrio ou voluntrio. A mediunidade de cura, atravs da qual o mdium pode
exercer uma influncia curadora sobre as pessoas, tambm se coloca nessa categoria. De
acordo com Kardec (1993), a mediunidade de efeitos intelectuais utiliza os recursos
mentais do mdium, e se apresenta de formas mais variadas. Assim haveria os mdiuns
sensveis, que percebem a aproximao e a natureza de um esprito, os ouvintes que os
escutam, os videntes que os vem, os escreventes que escrevem mensagens ditadas por
eles, chamados de psicgrafos, e os falantes, que veiculam a fala, chamados de
psicofnicos.
Kardec (1993) j tinha discutido a questo de se a mediunidade seria indcio de
um estado patolgico, tendo concludo que seria antes a expresso de um estado
anmalo da conscincia, mas no patolgico. Acrescentou, portanto, que a
mediunidade no produziria a loucura, a no ser que ela j exista em grmen, tendo
por isso recomendado que fossem afastados do exerccio da mediunidade todos que
apresentem sintomas, ainda que mnimos, de excentricidade nas idias, ou de
enfraquecimento das faculdades mentais, porquanto, nessas pessoas, h predisposio
evidente para a loucura, que pode se manifestar por efeito de qualquer sobreexcitao
(KARDEC, 1993, p. 258).
2.2.1. Atendimento Fraterno
Muitos Centros Espritas mantm um programa de orientao espiritual gratuito
chamado de atendimento fraterno, feito por membros experientes dos Centros e
voltados para qualquer pessoa que busque esclarecimento e orientao para seus
problemas pessoais e espirituais. Assim sendo, indivduos apresentando vivncias
45
psicticas e dissociativas frequentemente vo aos Centros Espritas em busca de
esclarecimento e orientao sobre como lidar com essas vivncias. Algumas vezes,
essas pessoas so consideradas pelos atendentes como indivduos apresentando
mediunidade. Entretanto, pode no estar claro, nessas situaes, o quanto esses
indivduos esto efetivamente apresentando experincias R/E no patolgicas e/ou
apresentando transtornos mentais, cuja sintomatologia em muito se assemelha ao que
denominam como afloramento medinico.
Por fim, importante ressaltar que o presente estudo no pretende entrar na
questo da realidade ontolgica da experincia medinica, embora esse seja outro tema
relevante para o desenvolvimento de pesquisas cientficas (MOREIRA-ALMEIDA,
2012).
46
2.3. - EXPERINCIAS ANMALAS DEFINIES E PESQUISA
A palavra, em portugus, anmalo e em ingls, anomalous derivada do
grego anomalos, cujo significado irregular, mpar ou desigual. Segundo Cardea,
Lynn e Krippner (2000), uma Experincia Anmala (EA) irregular porque difere de
experincias comuns, e mpar porque no pode ser igualada a experincias
corriqueiras e ordinrias. Alm disso, desigual por no chamar a mesma ateno do
meio acadmico, se comparadas s experincias regulares. A mediunidade, fenmeno
central do Espiritismo, pode ser caracterizada como um tipo de EA (CARDEA;
LYNN; KRIPPNER, 2000).
Alm disso, o termo anmalo, no possui, necessariamente, implicaes
psicopatolgicas, o que no ocorre com o termo anormal, o qual geralmente est
ligado a patologia. Outros exemplos de EAs so as alucinaes, experincias
interpretadas como telepatia, experincias de quase-morte, de sada do corpo, entre
outras, que so vivenciadas por uma ampla parcela da populao e so, geralmente,
aceitas como explicaes da realidade (CARDEA; LYNN; KRIPPNER, 2000).
Almeida e Lotufo Neto (2003), afirmam que, apesar das EAs, bem como os
chamados Estados Alterados de Conscincia (EAC) (TART, 1972), serem descritos em
todas as civilizaes, eles recebem pouca ateno da comunidade acadmica ou so
abordados de forma pouco rigorosa. Para os autores, possvel investigar tais
experincias sem que se compartilhe das crenas que as envolve, e desde que apresente
alguns cuidados metodolgicos, tais como (ALMEIDA; LOTUFO NETO, 2003):
Buscar embasamento em uma teoria norteadora;
Revisar exaustivamente a literatura existente;
Evitar patologizar o diferente de anmalo (humildade intelectual);
47
Utilizar diversos critrios de normalidade e patologia;
Investigar populaes clnicas e no clnicas;
Desenvolver instrumentos adequados para avaliar as crenas e as experincias;
Considerar o papel da cultura;
Desenvolver estudos longitudinais (suporte para as inferncias causais entre
risco e doena);
Levar em considerao a complexidade das relaes entre EA e psicopatologia
(investigao das diferentes possibilidades:
- EA igual psicopatologia;
- EA contribui para a psicopatologia;
- Psicopatologia contribui para EA;
- Particularidades da pessoa que contribuem tanto para EA, quanto pra
psicopatologia).
Levar todos esses aspectos em considerao fundamental, j que essa pesquisa
investiga exatamente indivduos que relatam EAs no contexto religioso do Espiritismo.
Tendo esclarecido este ponto, podemos caminhar na direo de como o
desenvolvimento da personalidade pode atuar como um moderador dos ndices de sade
mental nesses indivduos.
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2.4. PERSONALIDADE
2.4.1. Definies e histrico
No h consenso quanto definio da palavra "personalidade". Se aceita, de modo
geral, que sua origem recua ao latim persona, que significa mscara. Entre gregos e
romanos, a mscara no era usada como um disfarce, mas sim uma conveno utilizada
para representar ou caracterizar um personagem (HALL; LINDZEY; CAMPBELL,
2000).
Gordon Allport (1897-1967), um dos mais proeminentes estudiosos da rea, reuniu
mais de 50 definies diferentes para o termo personalidade. Para ele, cada indivduo
transmite uma impresso, uma marca que o caracteriza diante do meio social em
que est inserido e, ao mesmo tempo, possui qualidades relacionadas sua estrutura
biolgica, como a hereditariedade de algumas destas caractersticas pessoais
(ALLPORT, 1974). Assim sendo, Allport compreende a personalidade humana como a
inter-relao das caractersticas biossociais e das caractersticas biofsicas de um
indivduo. Em outras palavras, a personalidade pode ser definida enquanto o somatrio
dos traos de Carter (biossociais, adquiridos ao longo da vida) e dos aspectos
hereditrios, que constituem o Temperamento (biofsico) (ALLPORT, 1974).
Como j apontado no captulo anterior atravs dos estudos de Koenig (2012),
Gordon Allport foi um dos pioneiros no estudo cientfico da R/E, bem como da relao
destes elementos com os fatores de personalidade, contribuindo com diversas anlises e
enriquecimentos tericos, onde se destacam os construtos de RE (Religiosidade
Extrnseca) e RI (Religiosidade Intrnseca) (ALLPORT, 1974). Apesar disso, Allport
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no se interessou pelos fenmenos paranormais, como foram os casos de William
James, Freud e Jung.
Depois de Allport (1974), o conceito de personalidade em Psicologia continuou
evoluindo atravs de diversas frentes, apesar do mesmo no ter ocorrido,
frequentemente, com a apreciao dos elementos de R/E no desenvolvimento da
personalidade (ALMINHANA; MOREIRA-ALMEIDA, 2009).
Na rea das teorias psicodinmicas, por exemplo, os trabalhos de Adler, Fromm e
Jung representaram avanos. Jung, alm de um grande curioso pelo fenmeno da
Paranormalidade e das EAs (JUNG, 1902), foi um dos primeiros tericos a desenvolver
uma tipologia moderna da personalidade atravs da anlise dos traos de extroverso e
introverso. Atravs de sua teoria foi desenvolvido o indicador de Tipo Myers-Briggs,
um dos primeiros modelos de inspirao fatorial em psicologia (HALL; LINDZEY;
CAMPBELL, 2000). Infelizmente, apesar de predileo de Jung por questes relativas a
R/E, e da importncia que este atribua a estas questes no desenvolvimento da
personalidade, a pesquisa experimental pouco avanou (HALL; LINDZEY;
CAMPBELL, 2000).
Como sugere Wulff (1996), a complexidade terica, a enorme abstrao e a pouca
operacionalizao experimental do modelo Junguiano, impediu grandes avanos para a
pesquisa da R/E e sua correlao com o desenvolvimento da personalidade. A teoria de
Jung se desenvolveu como um campo paralelo tradio mais restrita da psicologia
cientfica, permanecendo um tanto quanto obscura e inoperante ao mtodo cientfico.
Mesmo assim, autores contemporneos citam Jung e suas pesquisas como algum q