Universidade de São Paulo Instituto de Psicologia
Andrea Menezes Masagão
A impressão da marca e a rasura do traço na escrita das margens
São Paulo
2007
Andrea Menezes Masagão
A impressão da marca e a rasura do traço na escrita das margens
Tese apresentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Psicologia
`Area de concentração: Psicologia Clínica
Orientador: Profa. Dra. Jussara Falek Brauer
São Paulo 2007
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Masagão, Andréa Carvalho Bezerra de Menezes. A impressão da marca e a rasura do traço na escrita das margens /
Andréa Carvalho Bezerra de Menezes Masagão; orientadora Jussara Falek Brauer. -- São Paulo, 2007.
195 p. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Clínica) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1. Psicanálise 2. Escrita 3. Psicose I. Título.
RC504
Andrea Menezes Masagão
A impressão da marca e a rasura do traço
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo para obtenção do título de
doutor
`Area de concentração: Psicologia Clínica
Aprovado em:
Banca examinadora
Prof.Dr. Ana Maria Medeiros da Costa
Instituição:Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ
Assinatura:______________________________________________
Prof. Dr. Nina Virginia de Araujo Leite
Instituição:Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP
Assinatura:______________________________________________
Prof. Dr. Philippe Wilemart
Instituição:Universidade de São Paulo-USP
Assinatura:______________________________________________
Prof. Dr.________________________________________________
Instituição:______________________________________________
Assinatura:______________________________________________
AGRADECIMENTOS
A minha orientadora Prof. Dra. Jussara Falek Brauer que através de sua escuta abriu espaço para a criação A Ana Costa que me acompanha a uma distância muito próxima Aos membros da banca de qualificação: Nina Virginia Leite e Philippe Willemart que acolheram meu trabalho e o fizeram caminhar Aos meus pais A Viviane Veras pelo trabalho cuidadoso de revisão A Capes pela bolsa que financiou a realização dessa pesquisa
RESUMO
Masagão, A. M. A impressão da marca e a rasura do traço na escrita das margens. São
Paulo. 2007, 195 p. Tese(doutorado). Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo.
Essa pesquisa visa investigar a escrita que circula pelo espaço público mas que não está
inscrita no campo dos discursos que estruturam os laços sociais a partir dos quais nos
representamos. Para realizá- la tomamos como objeto de investigação as escritas do
Condicionado e de Roberto. O Condicionado escreve pequenas ofertas aos passantes que
circulam pela movimentada avenida na qual ele está há mais de dez anos, sempre no
mesmo lugar. Roberto “despacha” no espaço público o que nomeia como “bombas de
efeito moral”. Suas bombas são feitas de imagens, letras e restos descartados no lixo
como rótulos e embalagens.
São escritas que fazem furo na representação, quebrando a unidade de sentido e
revelando a materialidade da letra. Escritas endereçadas aos passantes anônimos que
provocam curto circuito na função mensageira da linguagem e fazem borda nos
discursos. Roberto e o Condicionado procuram encontrar através da manipulação das
letras a produção de um registro que os singularize e represente. O condicionado visa
imprimir o traço original através da marca de tinta de sua caneta sobre o papel. Roberto
visa transformar a substância em essência buscando instaurar um intervalo entre a
linguagem e o corpo através da rasura e nesse sentido, promover uma distancia em
relação a origem, ao Outro primordial.
Para finalizar, essa pesquisa aponta para a existência de registros que não se fundam no
recalque. Registros que não se sustentam na descontinuidade simbólica do saber
inconsciente e sim no ato contínuo do corpo de seus criadores.
Palavras-chave: Psicanálise, Escrita, Psicose
ABSTRACT
Masagão, A. M.”Writing in the margins: the mark’s imprint and the erasure of the trace”
São Paulo. 2007, 195 p. Tese(doutorado). Instituto de Psicologia. Universidade de São
Paulo
The purpose of this study is to investigate a kind of writing that circulates in the public
space but is not inscribed in the discursive field that structure social ties based on which
people represent themselves. Under investigation are the writings produced by
Condicionado and Roberto. Condicionado (which in Portuguese also means conditioned)
writes short offers to passersby he meets in the crowded avenue he has frequented for
more than ten years, always at the same spot. Roberto “dispatches”, in the public space,
what he calls “moral atomic bombs”. His bombs are made of images, written characters
and discarded material he finds in trash bins — such as labels and packages.
This type of writing bores a hole in representation, breaking the unity of sense and
revealing the materiality of the letter. Addressed to anonymous passersby, these writings
short-circuit the message function of language and remain in the margins of discourses.
Through the manipulation of letters, Roberto and Condicionado try to registrate
something that — they hope — may singularize and represent them. Condicionado aims
at imprinting his original trace by marking the paper with the ink in his pen. Roberto aims
at transforming substance into essence, trying to establish an interval between language
and the body through an erasure, promoting thus a distance from the origin, from the
primordial Other.
This work therefore points to the existence of registers that are not founded in repression.
Such registers are not sustained in the symbolic discontinuity of unconscious knowledge,
but rather in a continuous act of the body of their creators.
Key-words: Psychoanalysis, writte, Psychoses
LISTA DE ILUSTRAÇÃO
Figuras páginas
Figura 1: Dicionário de nomes de Arthur Bispo do Rosário 8
Figura 2: Experimento do buquê invertido 39
Figura 3: Esquema óptico com dois espelhos 41
Figura 4: Esquema óptico com dois espelhos 44
Figura 5: esquema óptico do seminário “A angustia” 51
Figura 6: Oferta do Condicionado 95
Figura 7: O Condicionado enraizado na calçada 111
Figura 8: Corrigido pelo autor 113
Figura 9: Papeis de bala 122
Figura 10: Tubo de pasta de dente 123
Figura 11: Livro riscado 124
Figura 12: Insígnia 125
Figura 13: Bomba de efeito moral 126
Figura 14: Imagem de mulher trabalhada por Roberto 131
Figura 15: Imagem trabalhada por Roberto 132
Figura 16: A explosão do semblante da linguagem 146
Figura 17: Imagens e letras trabalhadas por Roberto 147
SUMÁRIO
1.Introdução 1
2. Parte I: Lugares e letras 8
2.1. Os discursos 9
2.2. O espelho, o traço e o nome 28
2.3. Bordas e fronteiras 74
3. Parte II: Escritas 93
3.1. A cadeira Vazia 94
3.2. Não ficará pedra sobre pedra 110
3.3. Bombas, mulheres e letras 118
3.4. O artífice da passagem e a explosão do semblante 133
4. Parte III: Considerações finais: Criação e origem 148
4.1. A coleção e o vaso 149
4.2. Literatura 161
4.3. A marca original e a rasura da origem 173
Referências 185
1. INTRODUÇÃO
Durante os anos de trabalho na clínica psicanalítica com pacientes psicóticos fui
acumulando escritos. Escritos que em algum momento passaram por mim, endereçados
ou não à analista que oferecia escuta a seus pacientes. Escritos que suscitaram
curiosidade por seu saber- fazer com a língua. Como diz Lacan diante de Marguerite,
trata-se de um saber que morde:
(…) Fui mordido por alguma coisa que me fez, docemente deslizar em direção a Freud (…) pode parecer surpreendente que seja a propósito da psicose que eu tenha deslizado em direção a essa questão. Foi preciso Freud para que eu a formulasse realmente para mim. A questão é: o que é o saber? (…) Fiquei preso ali, porque a paciente de minha tese, o caso Aimée, ela sabia (…) (LACAN, 1974 apud ALLOUCH, 1984, p.371)
Ao escrever o caso Aimée, Lacan posiciona-se diante do saber de Marguerite em
um laço semelhante ao do diretor espiritual em relação à mística. Geralmente a mística
tem um diretor espiritual que reconhece que ela sabe; um saber da experiência, um saber
que não consegue exprimir e que fica fora da representação. Segundo Pommier (1993), o
êxtase místico apóia-se sobre um nome que pretende escapar às leis que sustentam a
linguagem. As palavras definem-se sempre em relação a outras palavras, em relações de
oposição; no entanto, o nome da divindade faria exceção a essa lei do funcionamento da
linguagem e seria capaz de recobrir o buraco dos signos lingüísticos incapazes de
definirem-se a si mesmos. A mística, ao aceder à experiência do êxtase, coloca-se no
lugar vazio do nome ausente, do nome perfeito que diria o todo, que definiria a si mesmo:
A janela que esconde O velho sândalo de ouro desmaiado Da viola cintilante Outrora com flauta ou mandora Está a Santa pálida, mostrando O velho livro que se desdobra Do Magnificat jorrando Outrora Segundo vésperas, completas: A esta vidraça de ostensório Que a harpa do Anjo aflora Formada com seu vôo vespertino Para a delicada falange Do dedo que, sem o velho sândalo E o velho livro, ela balança Sobre a plumagem do instrumento
Musicista do silêncio. (MALLARMÉ, 1945 apud WILLEMART, 1999, p. 78-79)1
“Musicista do silêncio”, a mística reclama uma transcrição para esse saber que
resiste à transmissão. É precisamente aí que intervém o diretor espiritual ao se posicionar
como testemunha do êxtase místico. Essa testemunha ocupa o lugar do escrito, o lugar
daquilo que faz transmissível algo no mundo dos homens. O êxtase místico tem seu lugar
na cultura através de suas representações na pintura, na escultura e até na literatura. A
testemunha que presencia o êxtase garante essa representação:
Com efeito, a representação, em princípio escrita, ou transcrita, acompanha sempre o acontecimento extático. A testemunha é necessária à experiência. E a precede, porque é necessário que esteja ali, para que mais além dela, a abstração divina seja convocada. A relação com a testemunha, e mais além dela, com a sociedade dos homens, significa que o gozo supremo é dirigido, não ao homem, mas a Deus. Deus é convocado no lugar mesmo no qual a testemunha utiliza seu pincel, o martelo de escultor, trabalhando para alcançar o que atravessa a mística. (POMMIER, 1993, p. 77)
É do lugar de testemunha que pretendo sustentar a investigação dessas escritas e me
1 Oeuvres completes. Paris: Seuil, 1945, p. 53 (La Pléiade).
deixar morder por esse saber que resiste à transmissão. Aqueles de quem recebi os
escritos já se foram, mas os escritos permaneceram… Com o passar do tempo veio a
necessidade de desfazer-me deles, mas, para isso, não bastava jogá- los fora; era preciso
fazê-los circular, passar por mim e seguir para outro lugar. A escrita sobre os escritos
surgiu como possibilidade de separar-me dessas letras errantes que em determinado
momento encontraram um ponto de parada e talvez a possibilidade de transmissão de
uma experiência radicalmente singular.
O lugar do testemunho remete à possibilidade de um lugar terceiro, uma ponte entre
o que não tem lugar na representação e a sociedade dos homens sustentada em
representações compartilhadas. Na escrita de minha dissertação de mestrado2 trabalhei a
possibilidade do lugar terceiro através de algumas referências: O lugar ocupado pelo
público nas apresentações de doentes realizadas por Lacan no decorrer de seu ensino e a
função de secretário do alienado, destacada por Lacan no seminário sobre as psicoses
(1955-1956/1981). As apresentações de doentes constituem um lugar privilegiado para a
construção e a transmissão de um saber singular. Trata-se de um dispositivo onde o
público tem um lugar fundamental, na medida em que funciona como terceiro na relação
entre entrevistador e entrevistado. Segundo Porge (1985, p. 38), a função de terceiro,
desempenhada pelo público, colocaria um limite no “todo poderoso” que é aquele que
interroga. Nesse sentido, o público ocupa um lugar estrutural, e não apenas conjuntural,
no dispositivo das apresentações de doentes.
Da mesma maneira que o público tem efeitos sobre a relação entrevistador-
entrevistado, a escrita de um caso também tem efeitos sobre o processo de análise. É essa
2 MASAGÃO, A. Orifeu a mulher com pênis; a construção da significação sexual em um caso de psicose, 2000. 215 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
a hipótese de Jean Allouch ao abordar a função do secretário do alienado:
Curiosamente, enquanto a psicanálise teve o mérito de isolar o que designamos pelo nome de transferência, não parece que neste campo algum autor se tenha interessado por essa função de secretário, pela especificidade do laço que ela instaura, Assim, precisamos nos dirigir, seja aos testemunhos disponíveis da experiência mística, seja à experiência literária, para entrever um pouco até que ponto o psicanalista – ao menos na medida do que apresenta, ingenuamente, como caso – se faz o secretário do analisando; até que ponto, pois, tais relatos, longe de valer como um balanço de uma experiência terminada, fazem parte dessa própria experiência. (ALLOUCH, 1997, p. 420)
A partir da formulação de Allouch, estabeleci a hipótese de que a escrita do caso
Orifeu, como lugar terceiro entre analista e analisante, produziu efeitos no processo de
análise de Orlando:
O texto da dissertação tem uma função dentro do processo de análise? Como veremos na parte dedicada à articulação entre a escrita do caso Orifeu e a teoria psicanalítica que lhe serve de fundamento, a analista é colocada em determinado momento na posição de “secretário do alienado” ao se tornar a depositária privilegiada da escrita de Orifeu. Pensamentos escritos que contêm uma mensagem da qual ele é o porta -voz são entregues com freqüência à analista. Alguns desses pensamentos foram incorporados ao texto da dissertação, escritos assinados por quem os escreveu. Como já foi dito antes, ao pedir autorização para que seus escritos constassem da dissertação, a analista obteve uma resposta afirmativa, mas com a ressalva de que desses constasse o nome de seu autor. Mas não foi essa a única intenção de Orifeu ao colocar a condição à analista. Ao saber que seus escritos seriam “divulgados” em um trabalho universitário, ele fez de sua analista uma mensageira de sua mensagem, pois, além dele, sua analista também divulgaria seus escritos e esses teriam um lugar nas prateleiras da biblioteca de uma universidade. (MASAGÃO, 2000, p.14)
E ainda:
Nesse sentido, Orifeu teria acesso a um outro público, seu saber singular circularia em outros espaços, seu testemunho seria incluído em um outro universo e lido por outras pessoas. Eis então uma possibilidade de inclusão da construção de Orifeu em um discurso, um laço social no qual sua escrita pode ser compartilhada. Nesse sentido, o
texto da dissertação não é apenas a construção de um saber sobre a psicose, mas a possibilidade de transmissão de um saber do psicótico, e é precisamente aí que se coloca a hipótese da existência de uma função do texto da dissertação dentro do próprio processo de análise. A analista, ao ocupar esse lugar de “secretário”, torna -se porta-voz do saber de Orifeu, coloca-se como suporte para a possibilidade de transmissão desse saber tão peculiar, construindo uma ponte para que esse saber circule na cultura, nem que seja ao ocupar um lugar nas prateleiras de uma biblioteca universitária... (Ibid., p.15)
O lugar da testemunha como lugar terceiro tem efeitos sobre aquilo de que se
oferece o testemunho. É assim com o diretor espiritual, que faz do êxtase místico algo
transmissível no mundo dos homens; é assim com o público, que faz a função de limite
ao saber do entrevistador nas apresentações de doentes; é assim com o secretário do
alienado, que pode funcionar como mediador entre o psicótico e a cultura. Podemos
supor que foi desse lugar que Freud leu as Memórias do presidente Schreber.3 Schreber
encontrou em Freud um leitor interessado e esse interesse abriu caminho para um público
inesperado, os analistas. Se Lacan (1955-1956/1981) afirma que não encontramos um
sujeito na escrita de Schreber, apenas um testemunho objetivado, ele afirma também que
a leitura de Freud das memórias de Schreber introduziu ali o sujeito. Segundo Eric
Laurent:
Lacan destacou que a posição do psicanalista em relação a estes textos era a do gênio freudiano – termo que utilizou na ocasião para qualificar a intervenção de Freud que deu destaque ao texto de Schereber como um texto freudiano; no sentido de que esse texto valorizava a pertinência das categorias que Freud havia criado para outros objetos; entre eles, a neurose. (1995, p.185)
3 SCHREBER, D. P. Memórias de um doente dos nervos, 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.463 p. (Biblioteca de Psicanálise e Sociedade).
A genialidade de Freud ocorreu por ele ter se posto à vontade em relação ao saber
que morde do psicótico:
Freud colocou-se à vontade em relação ao texto de Schreber: introduziu nele o sujeito como tal. E ao introduzir o sujeito freudiano, o sujeito do inconsciente, ele fez uma intervenção nas Memórias do presidente Schreber. (Ibid, p.185)
A posição de Freud diante da escrita de Schreber é a posição do analista frente à
escrita do psicótico. A partir daí Lacan pôde dizer que o psicanalista devia tornar-se
secretário do alienado, uma vez que ocupar essa posição é fazer o mesmo que Freud:
introduzir o sujeito. Supor um sujeito ali onde está o testemunho objetivado, deixar-se
morder por esse saber, enfim, enlaçar o amor ao saber que morde; eis aí a possibilidade
de um lugar a partir do qual interrogar a psicose; lugar que Lacan ocupou ao nomear
Aimée sua paciente Marguerite. É a partir desse lugar que pretendo investigar as escritas
do Condicionado e de Roberto. Como as escolhi, ou melhor, como fui escolhida por elas?
Os escritos que fui acumulando durante alguns anos de escuta clínica acabaram
tendo um destino inesperado: deram origem a um documentário. Documentário que
ganhou nome a partir de um escrito de Orlando, “O zero não é vazio”. 4 Ele aborda o
lugar que o escrito tem para aquele que o escreve. Através de visitas aos locais onde
geralmente se realiza a escrita, os diretores entraram em contato com o que estava
guardado em armários e gavetas, como a escrita de Gregório ou de Arturo; ou ainda com
aquilo que estava exposto no espaço público, como a escrita de Márcia, colada em postes
de iluminação e árvores nas calçadas; ou a escrita do Condicionado, pequenas ofertas aos
4 O ZERO NÃO É VAZIO, direção: Andrea Menezes e Marcelo Masagão, São Paulo: Televisão Cultura e Agência Observatório, 2005, DVD (56 min.) NTSC, Son. Col.
passantes que circulam pela rua onde mora.
O gesto da escrita revela em cada um a singularidade. Assim, Gregório escreve
como se fala, nomeando as presenças do mundo no momento mesmo em que elas estão
sendo criadas. O Condicionado persegue a permanência de um traço original, pois, para
ele, tudo o que faz se desmancha. Tatiana busca alcançar, através da escrita de suas
máquinas, o ideal científico de um corpo sem falhas. Orlando corrige o defeito da língua
feminizando as palavras. São escritas singulares, excessivas, mas raramente lidas, visto
que não se conformam aos códigos já estabelecidos. Não se apóiam no sentido, não se
limitam a busca de comunicação. Subvertem as leis da linguagem, inventam palavras,
manipulam as letras, modelam o vazio, como diz Arturo, o tecelão da sombra.
Após a realização do documentário, resolvi circunscrever minha pesquisa às
escritas que circulam no espaço público, e para isso escolhi como objetos privilegiados de
investigação a escrita do Condicionado e a escrita de Roberto. Como já disse, o
Condicionado escreve pequenas ofertas aos passantes que circulam na avenida onde está
há mais de dez anos. Roberto escreve bombas de papel que têm como alvo carros
estacionados, lojas, edifícios, etc… A única regra é não repetir o alvo.
2. PARTE I:
LUGARES E LETRAS
2.1 OS DISCURSOS
Várias são as escritas que
marcam presença nos espaços
públicos, compondo uma iconografia
característica do corpo das grandes
metrópoles. Placas de trânsito
organizando e delimitando a
circulação, outdoors exibindo
possíveis objetos de consumo,
grafites e pixações marcando um
lugar de inscrição, homens placa
anunciando em seus corpos desde
ouro até a promessa de um emprego.
Escritas com os mais diferentes
suportes, origens e endereçamentos,
que têm em comum o pertencimento
a um discurso compartilhado e a
veiculação de uma significação
dentro desse campo discursivo.
Outras escritas circulam pelas
margens, endereçadas aos passantes
anônimos… escritas freqüentemente
excessivas, mas raramente lidas, que
provocam estranhamento pela
transgressão das leis que regem a
linguagem. O uso de neologismos, a
sintaxe própria, a pontuação
inusual, o conteúdo bizarro, o
trabalho com a materialidade da
letra, são características dessas
escritas que – na maioria das vezes –
têm no lixo seu destino comum.
Antes de apresentar as escritas que serão investigadas no decorrer deste trabalho,
vamos nos deter em uma primeira hipótese: são escritas que circulam no espaço público
sem, no entanto, pertencerem a uma realidade discursiva na qual sustentamos nossos
laços sociais e nos representamos. Partiremos de algumas definições a propósito do
discurso trabalhadas por Lacan especialmente nos seminários “De um Outro ao outro”
(1968-1969) e “O avesso da psicanálise” (1969-1970/1992), para sustentar tal hipótese.
Lacan vai propor uma definição de discurso como estrutura de linguagem regulada por
relações constantes que estruturam o mundo real, “e strutura que ultrapassa em muito a
palavra, sempre mais ou menos ocasional. O que prefiro, disse, e até proclamei um dia, é
um discurso sem palavras”. (LACAN, 1969-1970/1992, p.11)
A possibilidade de um discurso sem palavras implica que este não se reduz à fala;
além disso, aponta a função determinante do lugar de onde se fala, uma vez que o lugar,
como estrutura simbólica, possibilita uma interpretação que se faz do lugar a partir do
qual se fala e não exclusivamente a partir do que a fala comunica. Sabendo que o lugar
pré-interpreta a fala, Lacan fez de seus seminários o suporte de uma alteridade. A
exterioridade dos seminários em relação à Escola Francesa de Psicanálise opera uma
mutação no modo como transmite o seu ensino, marcando que essa transmissão não passa
toda pelas sociedades de psicanálise.2 Um exemplo interessante desse modo de ensino,
que leva em conta o lugar de onde se fala e o caráter incompleto da transmissão, é
justamente o seminário sobre o avesso da psicanálise, no qual Lacan desenvolve seus
esquemas de quatro patas. Quatro esquemas discursivos compostos de quatro elementos:
o sujeito barrado, a bateria de significantes ou saber, o significante mestre e o objeto a.
Estes se deslocam em rotações circulares por quatro lugares diferentes: agente, verdade,
2 Segundo Porge (1998), ao levar a psicanálise para o espaço público, Lacan pretende não se deixar enquadrar nos impasses de uma transmissão religiosa da psicanálise; impasses dos quais, para escapar, não basta sair da IPA. A mudança de público de seus seminários instaura um modo de transmissão da psicanálise homogêneo ao que Lacan quer transmitir.
outro e produto, e dão origem a quatro discursos: o discurso do mestre, o discurso
universitário, o discurso da histérica e o discurso do analista. Esse seminário tem lugar na
faculdade de direito:
(…) Trata-se esse ano de pegar a psicaná lise pelo avesso, e talvez, justamente, dar- lhe seu estatuto no sentido chamado jurídico do termo. Isso, em todo caso, sempre teve a ver, e no grau mais elevado, com a estrutura do discurso. Se o direito não é isso, se não é aí que percebemos que o discurso estrutura o mundo real, onde será então? (LACAN, 1969-1970/ 1992, p. 15)
O lugar como estrutura simbólica que encontra estatuto no jurídico não se define
como localidade geográfica, mas fundamentalmente segundo as leis que regulam o
funcionamento da linguagem. A estrutura discursiva implica uma posição do sujeito
falante em relação ao Outro, ao qual o sujeito endereça sua fala. O endereçamento coloca
em evidência a estrutura característica da fala desenvolvida por Lacan através do
esquema L. Embora Lacan se utilize freqüentemente de esquemas, não se trata aí de
localização, mas de relações de lugares, o que aponta para a referência à topologia desde
o início de seus seminários. No seminário sobre as psicoses (1955-1956/1985), utiliza o
esquema L para marcar a interrupção da palavra plena entre o sujeito e o Outro, traçando
seu desvio pelo eixo imaginário a-a’. A relação imaginária não é aí um simples obstáculo
para a realização simbólica entre o sujeito e o Outro, mas parte constituinte dessa relação.
Segundo o esquema L, a estrutura da fala é essencialmente uma estrutura de
reconhecimento, onde o sujeito recebe do Outro sua própria mensagem sob uma forma
invertida. A fala fundadora coloca em evidência a relação do sujeito ao Outro: ao dizer
“tu és minha mulher ou tu és meu mestre, o sujeito se reconhece como eu, ao responder:
eu sou seu homem, eu sou seu discípulo”. (LACAN, 1955-1956/1985, p. 63) Lacan
toma como referência o desejo como desejo de desejo, presente na “Fenomenologia do
espírito”3 :
O desejo de desejo, no sentido hegeliano, é, pois, desejo de um desejo que responde ao apelo do sujeito. É desejo de um desejante. Porque tem necessidade desse desejante que é o Outro? Qualquer que seja o ângulo sob o qual vocês o coloquem, porém de maneira mais articulada em Hegel, há necessidade dele para que o Outro o reconheça, para receber dele o reconhecimento. (1962-1963,p. 33)
Essa estrutura de reconhecimento do sujeito pelo Outro só acontece ao obedecer a
certas condições: o Outro deve em primeiro lugar ser reconhecido pelo sujeito como
capaz de reconhecê- lo4. A palavra funda a posição de ambos e implica reciprocidade.
Segundo Rabinovich (1986, p.15), “o Outro é caracterizado como um Outro irredutível e
absoluto, pois de sua existência depende o valor da palavra que reconhece o sujeito”. No
entanto, à diferença de Hegel, Lacan propõe que esse Outro é reconhecido, mas não
conhecido, o que o leva a definir o inconsciente como o discurso do Outro. O
desconhecimento do Outro aponta a alteridade do lugar ao qual endereçamos nossa fala,
pois a comunicação não é “simplesmente falar a outro, mas é fazer falar o Outro enquanto
tal” (1955-1956/1985 p. 48). Nesse sentido, quando endereçamos a fala a um outro
semelhante, existe sempre essa dimensão de alteridade, de desconhecimento que faz da
fala algo incompleto que parece se completar quando comunicamos algo a alguém. No
3 HEGEL, G. W. F., Fenomenologia do Espírito . 2 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1992. 4 Na dialética do senhor e do escravo Hegel coloca em evidência a dependência recíproca do senhor em relação ao escravo; para ser senhor, o senhor depende do escravo. Segundo a leitura de Corrêa, Hegel discute essa questão em termos de consciência de si: “A consciência autônoma de si como é que é? Eu nunca sei o que é uma consciência autônoma. Eu só posso saber o que é uma consciência autônoma quando encontro outra consciência autônoma. Mas, nesse momento, para que eu saiba que tenho essa consciência autônoma, que sou uma consciência independente, necessito ser reconhecido por outra consciência autônoma. Mas essa outra consciência autônoma, para me reconhecer como consciência autônoma, tem que ser reconhecida por mim, se não não tem nenhum valor o reconhecimento dela”. (CORRÊA, 1996, p. 135)
decorrer de seu ensino, Lacan se afasta dessa concepção de Outro absoluto para articular
o desejo, não mais em função do reconhecimento, mas como causa, o que implica a
incompletude do Outro: “O Outro não é aquele que me vê, mas aquele que interessa a
meu desejo, na medida do que lhe falta e que ele não sabe”.(LACAN, 1962-1963, p. 32)
No seminário “De um Outro ao Outro”(1968-1969), Lacan não vai se utilizar do
esquema L ao abordar o discurso; nesse momento de seu ensino, não se trata de
reconhecimento do sujeito pelo Outro, da fundação do sujeito através da palavra do Outro
absoluto que o reconhece sem, no entanto, ser conhecido. O que inscreve o sujeito no
campo do Outro, campo do discurso, é a relação de um significante com outro
significante, relação que implica a incompletude do campo do Outro, a não existência do
universo do discurso:
Em outros termos; para todo discurso que se coloca como fundado essencialmente sobre a relação de um significante com um outro significante, é impossível totalizá -lo como discurso, na medida em que isso é dito e se coloca como questão, que o universo do discurso – falo aqui não do significante, mas do que está articulado como discurso – estará sempre a ser extraído de qualquer campo que pretenda totalizado. (Id., 1968-1969, p. 55)
O sujeito é efeito suposto de uma relação entre significantes, que Lacan situa pela
primeira vez no seminário sobre a identificação (1961-1962) através da fórmula: “o
significante representa o sujeito para outro significante”, em oposição ao signo que é
definido como o que representa alguma coisa para alguém. No seminário “De um Outro
ao outro”(1968-1969), Lacan vai se utilizar da definição de par ordenado, proposta por
Cantor, para formalizar a articulação do sujeito ao Outro: S-A. Nesse seminário, Lacan
inicia o que irá desenvolver no seminário seguinte ao propor o campo do Outro como
saber. O que é um par ordenado? Segundo Corrêa (2001, p. 48), o par ordenado é um par
de elementos de um conjunto que obedecem a certa ordem: o primeiro elemento é o
primeiro elemento do par, e o segundo elemento é constituído pelo primeiro e pelo
segundo elemento do par; ou seja, o primeiro elemento está incluído no segundo
elemento do par e é menor que ele e por isso ocupa a primeira posição no par.
Ao aplicar a definição de par ordenado à fórmula “um significante representa o
sujeito para outro significante” (S1, S2), Lacan obtém ({S1} {S1, S2}); S2, o segundo
elemento do par através do qual Lacan representa o saber inconsciente, corresponde ao
primeiro elemento do par, S1, e ao segundo elemento do par, S2. Então, cada vez que
tenho S2 posso substituí- lo por {S1, S2}, e posso fazê- lo indefinidamente. O que é que
Lacan está propondo ao aplicar o par ordenado à fórmula “o significante é o que
representa o sujeito para outro significante”? Ele está demonstrando que o saber total, o
saber absoluto, não pode ser atingido; não importa quantas substituições sejam realizadas,
o campo do Outro, campo do saber inconsciente, nunca se completa.
A articulação do sujeito ao campo do Outro através da fórmula “um significante é
o que representa o sujeito para outro significante” implica que um significante não pode
representar a si mesmo, uma vez que é sempre necessário um outro significante a partir
do qual ele vai se situar. Situar-se, portanto, como pura diferença. O significante não é
idêntico a si mesmo, seu funcionamento contradiz o princípio de identidade segundo o
qual todo ser é igual a ele mesmo. Como diz Lacan:
Se declaro que não há tautologia possível, não é porque a primeiro e a segundo querem dizer coisas diferentes que digo que não há tautologia: é no próprio status de a que há inscrito que a não pode ser a, e foi aí que terminei meu discurso da última vez, designando-lhes em Saussure o ponto onde é dito que a como significante não pode de forma alguma se definir senão como não sendo o que são os outros significantes. (1961-1962, p. 8)
No seminário “De um Outro ao outro” (1968-1969), Lacan retoma essa
impossibilidade de o significante definir-se a si mesmo; impossibilidade encontrada
também na lógica, particularmente na teoria dos conjuntos. Alguns conjuntos parecem
incluir a si mesmos. É o caso, por exemplo , do conjunto que inclui todos os objetos que
não são laranjas, visto que ele mesmo é algo diferente de uma laranja. Já outros conjuntos
não incluem a si mesmos; por exemplo, um conjunto de casas, no caso em que ele mesmo
não é uma casa. Existe ainda uma terceira possibilidade: o conjunto de todos os conjuntos
que não incluem a si mesmos. Lacan vai então interrogar o lugar do Outro a partir dessa
última possibilidade. Ele conclui que o campo do Outro nunca se completa porque o A
deve ser representado no nível do paradoxo lógico de Russel, “do conjunto dito de todos
os conjuntos que não se contêm a si mesmos” (p. 303). Dessa formulação resulta que:
De duas coisas uma: ou ele vai se conter a si mesmo e é uma contradição, ou ele não se contém a si mesmo, não sendo então daqueles que não se contêm a si mesmos, ele se contém a si mesmo, e nos encontramos diante de uma segunda contradição. (p. 304)
Se o significante tem como propriedade lógica não poder designar a si mesmo,
S1 ou S2 não podem ser os representantes deles mesmos senão ao distinguir-se deles
mesmos. O saber absoluto seria então algo tão paradoxal quanto o conjunto de todos os
conjuntos que não se incluem a si mesmos, já que é composto de conjuntos de
significantes, ou seja, de elementos que não se definem a si mesmos. Essa alteridade do
significante com relação a ele mesmo é o que leva Lacan a propor uma espécie de
“exterioridade” na relação entre S1, o campo do sujeito, e S2, o campo do Outro. Se
escrevermos: A = S – A, ao aplicarmos a fórmula do par ordenado vamos obter S – A =
S – (S – A). Segundo Porge (1998, p. 98), “A designa ao mesmo tempo o conjunto dos
significantes e a relação de um significante com este conjunto (que é ao mesmo tempo
significante do Outro e Outro significante)”. A existência de um Outro significante
aponta que a inclusão do sujeito no campo do Outro ocorre a partir de um ponto exterior
ao Outro:
Isso quer dizer muito precisamente que o sujeito, no final das contas não pode ser universalizado. Que não há proposição que diga de forma alguma, mesmo sob a forma de que o significante não é elemento de si mesmo, que o que define isso seja uma definição abrangente em relação ao sujeito. E isso também demonstra não que o sujeito não esteja absolutamente incluído no campo do Outro, mas que o que pode ser o ponto onde ele se significa como sujeito, é um ponto digamos “exterior” ao Outro, exterior ao universo do discurso. ( LACAN, 1968-1969, p.71)
A utilização da teoria dos conjuntos, assim como o uso da topologia pela teoria
psicana lítica permite ultrapassar oposições que tradicionalmente organizam nossas
representações como a oposição entre o todo e a parte, o interior e o exterior, o continente
e o conteúdo, o simétrico e o dessimétrico. O sujeito, assim como o discurso, não pode
ser universalizado, o sujeito inclui-se no lugar do Outro, de fora, da mesma maneira que o
bebê se constitui como sujeito sustentando sua imagem no espelho a partir de um ponto
fora do espelho, fora da imagem.5 Essa espécie de exterioridade é correlativa da noção de
ex - sistência que segundo Corrêa (2001, p. 89) corresponde a estar existindo fora de, no
Outro, mas por uma exterioridade. Eis aí um paradoxo da teoria psicanalítica que
encontra sustentação na teoria dos conjuntos.
No seminário “O avesso da psicanálise”(1969-1970), Lacan vai retomar a fórmula
“o significante representa o sujeito para um outro significante” a partir da ex-sistência do
5 Veremos no item a seguir, intitulado “O espelho, o traço e o nome”, como a unidade imaginária é sustentada a partir de um traço fora da imagem, um “unário” que Lacan aborda como um ponto I que designa o signo do assentimento do Outro; como o lugar a partir do qual o sujeito se vê como amável pelo Outro e que remete ao traço distintivo do ideal de eu, o um distintivo exterior ao espelho.
S1 definido como significante mestre em relação a S2, definido agora como a bateria dos
significantes:
Essa forma, se vocês concordarem, vamos sem mais delongas escrevê- la este ano de uma nova maneira. Eu o tinha feito no ano passado a partir da exterioridade do significante S1, aquele de onde parte nossa definição do discurso tal como iremos acentuá -la, neste primeiro passo, com a sigla do A, ou seja, o campo do grande Outro. Mas, simplificando, consideramos S1 e, designado pelo signo S2, a bateria de significantes. (1969-1970/ 1992, p. 11)
E ainda:
Isso se estabelece primeiro nesse momento em que S1 vem representar alguma coisa por sua intervenção no campo definido, no ponto em que estamos, como o campo já estruturado de um saber. E o seu suposto é o sujeito, na medida em que representa esse traço específico, a ser distinguido do indivíduo vivo. Este é certamente o seu lugar, seu ponto de marca, mas não é da ordem daquilo que o sujeito faz entrar em virtude do estatuto do saber. (Ibid., p.12)
O sujeito não é o individuo, mas uma suposição que se inscreve a partir da relação
entre S1 e a bateria significante S2. O laço do sujeito ao Outro implica essa exterioridade
característica do processo de simbolização, na qual o sujeito se constitui a partir de
elementos que a princípio lhe são externos como imagens e símbolos. No entanto, Lacan
faz corresponder ao S1 ex-sistente ao campo do saber termos que se aproximam da
escrita como a marca ou o traço. A marca e o traço remetem no ensino de Lacan à
materialidade psíquica, acústica ou escrita, que ele herda da concepção saussuriana de
signo lingüístico. São essas marcas e traços que enlaçam no corpo o significante e a
pulsão, fazendo do corpo físico uma apresentação de leitura, assim como os sonhos.6
No seminário “De um Outro ao outro”(1968-1969), Lacan retoma o conceito de
traço unário, trabalhado por ele no seminário sobre a identificação a partir do Einziger
Zug freudiano como suporte da identificação. O traço é a pré-condição para que algo seja
representado; ou seja, o traço é a pré-condição do significante, e aproxima-se da letra
tomada como suporte do significante. A proximidade entre o traço e a letra aponta a
materialidade, o suporte material do significante. Materialidade que encontra seu lugar na
idéia de marca ou impressão:
O traço, isso quer dizer algo, o traço de uma mão, o traço de um pé, uma impressão. Observem bem aqui, nesse nível, que o traço se distingue do significante, diferente do que em nossas definições já distinguimos do signo. O signo, disse, é o que representa algo para alguém. Aqui, nenhuma necessidade de alguém, Um traço basta em si mesmo. (Id., 1968-1969, p. 305)
Embora Lacan apresente muitas vezes o traço e a marca como algo
indiferenciado, é possível estabelecer distinções e aproximações que serão apresentadas
no decorrer de todo este trabalho. Podemos adiantar uma possibilidade de
aproximação/distinção que nos interessa para continuar a desenvolver a discussão sobre a
inclusão do sujeito no campo do discurso. Nesse caso, o traço aponta para a articulação
entre o corpo e a linguagem ao remeter à idéia de marca como marca de gozo do objeto
6 O corpo pulsional não é o corpo biológico. O corpo é uma apre sentação de leitura, assim como os sonhos. Desde o princípio Freud interroga o inconsciente propondo a leitura de uma escrita, tal qual o rébus. Freud propõe que as imagens oníricas não sejam tomadas em seu valor de imagem e sim como letras, como em uma escrita hieroglífica. As cenas descritas nos sonhos são rébus, resultantes do trabalho do sonho. Elas visam a fazer reconhecer os desejos inconscientes e isso só é possível mediante o soletramento de figuras, de cenas portadoras de um discurso cifrado. As imagens não são destinadas a serem vistas como representações de coisas, mas estão ali para serem lidas como letras ou fonemas, ou ainda como rébus ou hieróglifos. Trata-se de uma letra híbrida que se situa na fronteira entre a letra e a imagem, como os hieróglifos e os ideogramas, que têm ao mesmo tempo função de letra e desenho. É nesse sentido que o sonho é uma realização de desejo e sua gramática aponta para uma letra híbrida, que diz dos orifícios do corpo, efeito do recalque.
da pulsão, marca que insiste na repetição da cadeia significante que constitui o saber
inconsciente: “(…) é no fato de que o gozo é visado num esforço de reencontro e que ele
não poderia sê-lo senão reconhecido pelo efeito de marca, que essa própria marca
introduz aí a ignomínia de onde resulta essa perda (…)”. (Ibid., p.113)
O traço na sua articulação à marca de gozo do objeto aponta para a perda; queda
do objeto como efeito residual da articulação do sujeito ao Outro, formalizada como “o
significante representa o sujeito para outro significante”. Lacan utiliza uma metáfora na
qual aproxima o discurso do corte de uma tesoura, para abordar o efeito da ação do
significante sobre o real:
Para empregar uma metáfora, que me aconteceu de empregar muitas vezes para fazer sentir o que entende por um discurso que valha, eu o comparei com um corte de tesoura nessa matéria de que falo, quando me refiro ao real do sujeito. Esse traço de tesoura, no que se chama de estrutura, é por aí, na maneira como isso cai, que ela se revela no que ela é. Se se passa o traço de tesoura em algum lugar, as relações mudam de uma tal forma que o que não se via antes se vê depois. (Ibid., p. 27)
O discurso é esse corte de tesoura efetuado pela inscrição do traço no real. Dessa
inscrição-corte resulta a queda do objeto. O corte é característico do funcionamento
significante que corta o real do corpo, erotizando-o. O traço que distingue o humano não
é o traço natural encontrado no reino animal. Segundo Lacan (1962-1963, p. 71), o
animal apaga seus traços e faz falsos traços, mas isso significa que ele faz significantes?
O que o animal não faz são falsos traços para fazer crer que são falsos. O comportamento
humano, essencialmente significante, distingue-se do animal justamente aí, uma vez que
o humano faz traços feitos para que se creiam falsos. É aí que se presentifica um sujeito,
quando um traço foi feito para ser tomado como um falso traço. Assim, o humano tem
sua identidade suportada em um traço feito para ser tomado como falso.
Bergman explora essa condição humana em “Persona” (1966). Nesse filme, a
personagem Elisabet Vogler, uma atriz de teatro, deixa subitamente de falar após
representar Antígona. Internada em uma clínica psiquiátrica, a médica faz com que
Elisabet ouça seu parecer sobre esse esconderijo silencioso em que se refugiou:
Entendo por que não fala. Inútil sonho de ser, não parecer, mas ser. Estar alerta em todos os momentos. A luta; o que você é com os outros e o que você realmente é. Um sentimento de vertigem e a constante fome de ser exposta, ser vista por dentro, cortada, até mesmo eliminada. Cada tom de voz, uma mentira. Cada gesto, falso. Cada sorriso, uma careta. Cometer suicídio? Nem pensar, você não faz coisas deste gênero. Mas pode se recusar a se mover e ficar em silêncio, então pelo menos não está mentindo. Então não tem que interpretar papéis, fazer caras, gestos falsos. Mas a realidade é diabólica. Seu esconderijo não é à prova d’água. Você é forçada a reagir. Ninguém pergunta se é real ou não, se é sincera ou mentirosa.7
Ao renunciar à palavra, Elisabet busca atingir a verdade do ser, mas seu
esconderijo mostra-se desde o início ineficaz, pois o que suporta a identidade é
justamente a ausência de um traço verdadeiro… A verdadeira passagem do sujeito
encontra-se nos traços apagados, traços para serem falsos. É ao produzir traços para
serem tomados como falsos que o sujeito posiciona-se no lugar do Outro, em uma cadeia
significante. O traço é posto em função significante ao ser tomado como um falso traço,
ao ser colocado em relação à cadeia de significantes que constitui o saber inconsciente:
Esse outro significante, nessa conexão radical; S1-S2, é precisamente o que representa o saber, o saber, pois, na primeira articulação disso que se refere à função do significante, na medida em que ela determina o sujeito, o saber é esse termo opaco onde vem, se posso dizer, perder-se o próprio sujeito, apagar-se ainda, se querem, e é isso que sempre
7 PERSONA, direção de Ingmar Bergman, Suécia: Svensk Filmindustri, 1966, DVD (83 min.) NTSC, Son. Preto e branco.
representa a noção que sublinhei do emprego do termo fading. Nessa relação, nessa gênese subjetiva, de início, o saber se apresenta como esse termo onde vem apagar-se o sujeito; esta aí o sentido do que Freud designa como a Uverdrangung. (LACAN, 1968-1969, p.50)
O apagamento remete ao recalque que funda o saber inconsciente em que o traço
remete a outro traço da mesma maneira que o significante representa o sujeito para outro
significante. O traço feito para ser tomado como falso remete a outra possibilidade de
aproximação/distinção entre o traço e a marca, pois se a inscrição do traço no real remete
à marca de gozo do objeto, ou seja, à articulação entre o traço e o objeto, ao laço entre a
linguagem e o corpo, o falso traço remete ao significante, ao traço tomado na sua relação
ao simbólico. É assim que Lacan encontra na gênese do traço o apagamento do objeto,
mas também algo do objeto que o traço retém:
O que é que há de mais destruído, de mais apagado de um objeto. Se é do objeto que o traço surge, é algo do objeto que o traço retém, justamente sua unicidade. O apagamento, a destruição absoluta de todas essas outras emergências, de todos esses outros prolongamentos, de todos esses outros apêndices, de tudo o que pode haver de ramificado, de palpitante, ora, essa relação do objeto com o nascimento de algo que se chama aqui signo, já que ele nos interessa no nascimento do significante, é exatamente em torno disso que estamos detidos (...) (Id., 1961-1962, p. 101)
O traço nega, apaga, destrói tudo o que o objeto tem de vivo para os nossos
sentidos, retendo dele apenas sua unicidade. Unicidade não quer dizer aqui sua
identidade, sua totalidade ou suas qualidades, mas aquilo que se refere a sua marca
distintiva, irredutível e indivisível.8 Voltando ao seminário “De um Outro ao
outro”(1968-1969), Lacan vai abordar o traço (S1) como marca do gozo do objeto ao
8 No capítulo seguinte abordamos a relação entre a marca distintiva, o traço unário e a letra, relação que Lacan estabelece a partir de seu estudo sobre o nome próprio e que privilegia justamente a idéia de marca, de traçado, presente nesses três elementos.
aproximar o objeto a do conceito marxista de mais-valia9, propondo o mais de gozar
como efeito do traço de tesoura do discurso. A mais-valia é o efeito do discurso
capitalista, enquanto o objeto a é o efeito do discurso analítico. Ambos remetem à
renúncia ao gozo como efeito da estrutura discursiva:
E é assim que se trata agora, de se reportar às fórmulas fundamentais, a saber, aquela que define o significante como o que representa o sujeito para outro significante. O que isso quer dizer? Que um significante não poderia se representar a si mesmo. Certamente isso não é novo porque no que articulei em torno da repetição, é exatamente disso que se trata. Ora o que isso quer dizer é que o significante sob qualquer forma que se produza, em sua presença de sujeito, não poderia atingir seu representante de significante sem que se produzisse essa perda na identidade que se chama, propriamente falando, objeto a. É o que designa a teoria de Freud no que concerne à repetição, mediante o que nada é identificável desse algo que é o recurso ao gozo, no qual pela virtude do signo, alguma outra coisa vem em seu lugar, quer dizer, o traço que o marca, nada pode se produzir ali sem que um objeto seja perdido. (Id., 1968-1969, p. 19)
Na busca da satisfação, o ser humano encontra palavras no lugar das coisas,
imagens alucinadas no lugar dos objetos da realidade. A repetição visa ao gozo, à
satisfação da pulsão, mas encontra sempre o traço no lugar do objeto; o gozo fracassa,
mas o traço que ex-siste insiste na repetição. O mais de gozar remete à marca de gozo do
objeto da pulsão inscrita no traço que insiste na cadeia do saber inconsciente e, nesse
sentido, implica tanto a perda quanto a tentativa de recuperação desse gozo que o traço de
tesoura do discurso esvaziou. Lacan aponta que a marca é também condutora de
9 Lacan define da seguinte maneira o conceito de mais valia tomado de empréstimo de Marx: “Foi, então, necessário isso que dificilmente pode ser separado do desenvolvimento de certos efeitos de linguagem, a saber a absolutização do mercado, no ponto em que engloba o próprio trabalho, para que a mais valia se definisse de maneira que, pagando, com dinheiro ou não, com dinheiro, pois, estamos no mercado, o trabalho, seu verdadeiro preço, tal como se define no mercado a função do valor de troca, há um valor não pago no que aparece como fruto do trabalho (…)esse trabalho não pago é a mais valia.”(1968-1969, p. 33)
voluptuosidade, e é aí que o mais de gozar aponta um bônus10, um gozo a recuperar que
encontra na fantasia uma tradução possível:
Falo da marca sobre a pele, onde se inspira, nessa fantasia, o que nada mais é que um sujeito que se identifica como sendo objeto de gozo. Na prática erótica que estou evocando, a flagelação, gozar assume a própria ambigüidade pela qual é no seu plano, e em nenhum outro, que se percebe a equivalência entre o gesto que marca e o corpo, objeto de gozo. (Id., 1969-1970/1992, p. 47)
Na estrutura da fantasia encontramos a possibilidade da equivalência entre o
gesto que marca e o corpo como objeto do gozo, quase uma cópula perfeita entre o corpo
e a língua que o fustiga. O sujeito aparece aí identificado ao objeto do gozo do Outro. No
entanto, é preciso renunciar a esse gozo, separar-se /diferenciar-se desse primeiro Outro.
A renúncia ao gozo, o apagamento da posição de objeto que fomos para o Outro,
determina a busca do gozo fora do corpo, nos objetos que exercem a função do mais de
gozar; bônus para quem renunciou à posição de objeto do gozo do Outro. A afinidade da
marca com o gozo do corpo aponta que é pelo viés do gozo, da satisfação da pulsão, que
o laço entre o sujeito e o Outro se dá.11
Os discursos propostos por Lacan no decorrer do seminário sobre o avesso da
psicanálise apontam para o saber inconsciente como meio de gozo e situam-se em relação
10 A partir da renúncia ao gozo efeito do corte de tesoura do discurso, Lacan propõe o gozo não mais como um excesso que resulta de uma transgressão, como o define no seminário da Ética da psicanálise (1959-1960/1991), mas como um bônus, um mais de gozar, um gozo a recuperar: “(…) o buraco aberto em alguma coisa, que não se sabe se é a representação da falta em gozar, que se situa a partir do processo do saber na medida em que ganha ali um acento totalmente diverso, por ser desde então saber escandido pelo significante (…). É também por essa razão que articulo como mais de gozar o que aqui aparece, e não o articulo como um forçamento ou uma transgressão (…) é precisamente isto, não se transgride nada. Entrar de fininho não é transgredir. Ver uma porta entreaberta não é transpô-la. Não se trata aqui de transgressão, mas antes de irrupção, queda no campo de algo que é da ordem do gozo – um bônus.” (LACAN, 1969-1970/ 1992, p. 17) 11 Veremos, no capítulo “Bordas e fronteiras”, como a estrutura de borda que determina o trajeto da pulsão que contorna o objeto perdido enlaça a linguagem e o corpo, a sexualidade e o sujeito.
à realidade das nossas fantasias. Situando o discurso em relação à realidade das fantasias
inconscientes, pode-se pensar que o discurso nas suas variações sociais procura dar conta,
através do simbólico e do imaginário, do real do gozo que é o que nos causa e determina.
Diferentes maneiras de lidar com a falta-a-ser que institui o sujeito na sua articulação
com o Outro e com o resto inassimilável pela linguagem; resto que transborda e que pode
assumir, no discurso, o lugar do mais de gozar.
O discurso permite situar, contabilizar, enumerar e calcular o que a princípio fica
fora de qualquer medida e é assim que o gozo pode ser situado dentro de certa
modalidade discursiva como aquilo que excede a medida. As diferentes estruturas
discursivas possibilitam que o humano circule em uma realidade simbólica marcada pela
descontinuidade característica do funcionamento da linguagem e pela impossibilidade de
reencontrar o objeto da satisfação, sem, no entanto, abdicar dessa busca; busca que o leva
a procurar fora do corpo – na cultura, na religião, no consumo – objetos substitutos que
propiciem ao menos um gozo a recuperar, um mais de gozar. É assim que Lacan encontra
no discurso da política a idéia da totalidade do saber representada imaginariamente pela
esfera que traduz a boa forma da satisfação; ou o discurso universitário, que encontra na
burocracia o ideal do tudo saber; ou mesmo no discurso da ciência, o ideal de tudo dizer
através da criação de uma linguagem sem falhas, garantia de uma comunicação que se
funda em uma experiência a respeito da qual todos podem estar de acordo.
A partir do duplo corte que instaura o discurso em função da ex-sistência de um
significante que insiste na repetição, e da queda do objeto como resíduo do laço do
sujeito ao Outro, Lacan propõe uma realidade discursiva que não se restringe à realidade
imaginária; às relações simétricas entre o eu e o outro semelhante nas quais se produz o
conhecimento:
O que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise é justamente da ordem do saber, e não do conhecimento ou da representação. Trata-se precisamente de algo que liga, em uma relação de razão, um significante S1 a um outro significante S2. (Id., 1969-1970/1992, p. 28)
O saber inconsciente constituído pela cadeia de significantes remete o sujeito
sempre a outro significante, pois, diferente do signo que representa alguma coisa para
alguém, o significante representa o sujeito para outro significante. Nesse sentido, a
relação com a coisa representada fica apagada e faz do sujeito do significante algo
distinto do sujeito do conhecimento. Como já apontamos, o saber inconsciente visa o
gozo, mas o que se repete é justamente a perda de gozo, pois o que se encontra é sempre
a marca de gozo do objeto, marca que se inscreve a partir da ausência do objeto. Nesse
sentido a repetição aponta para a simbolização do objeto pelo significante e constitui a
marca de gozo desse objeto enquanto resto inassimilável/não simbolizável pela
linguagem. Marca que através da repetição do mesmo inscreve a diferença.12
É isso que leva Lacan a propor o saber inconsciente submetido à ló gica da
repetição como meio de gozo. Ao associar gozo e repetição, o saber inconsciente se
revela como uma espécie de memória do gozo que afeta o sujeito. Como já anunciamos,
essa marca de gozo do objeto remete à incidência do significante no corpo e encontra
uma tradução possível na fantasia. É nesse sentido que podemos aproximar a estrutura
dos discursos da estrutura da fantasia, pois encontramos em ambas a tentativa de
tamponar a falta estrutural do campo do Outro. Nessa tentativa trata-se sempre de um
gozo a recuperar; gozo ao qual fomos obrigados a renunciar ao habitar o campo do 12 No capítulo “O espelho, o traço e o nome” vamos abordar a relação entre a inscrição do traço unário e a repetição que determina a lógica do saber inconsciente.
discurso. Miller aponta que o seminário sobre o avesso da psicanálise marca no ensino de
Lacan o caráter primário do gozo e acaba reduzindo o significante e a estrutura discursiva
a uma função de semblante:
Ao mesmo tempo em que o saber, ou seja, S1, S2, $, a, a estrutura do discurso encontra-se reduzida ao semblante, a lição que traz o seminário 17 é a de que o próprio saber teórico da psicanálise desaba. E Lacan vai reafirmar isso no seminário 20, tratando em um único movimento todas as categorias significantes que ele laboriosamente produziu, todas as categorias que são feitas para tamponar o gozo. E ele as mostrará, no final, como embutidas, pertencentes ao simbólico, que não passa de semblante em relação ao real. (MILLER, 2005, p. 125)
Será que podemos fazer do simbólico um semblante13 diante do real? É claro que
o discurso pode funcionar no registro do semblante, nomeando falta, o que era furo
inominável, como a criança que, diante do real do corpo feminino, pode, a partir da
lógica fálica instaurada pela castração, se utilizar do falo enquanto significante para
significar a diferença sexual. O discurso possibilita que o sexo seja referido a uma
posição simbólica e não à anatomia do corpo e situa o gozo enquanto masculino:
submetido à lógica fálica instaurada pela castração e feminino: não todo submetido à
lógica fálica instaurada pela castração: “Um homem procura uma mulher a título do que
se situa pelo discurso, pois, se o que aqui coloco é verdadeiro, isto é, que a mulher não é
13 O termo semblante remete no ensino de Lacan à aparência de verdade que a linguagem pode assumir ao escamotear o vazio resultante da ação do significante sobre o real, ou seja, ao resíduo que resulta do processo de simbolização; resto inassimilável pela linguagem. O semblante pode então ser comparado às nuvens que apontam tanto para a aparência esvaziada de qualquer materialidade como para o gozo que transborda quando a chuva cai; quando o semblante da linguagem se rompe: “(…) é justamente nas nuvens que Aristófanes me conclama a descobrir o que acontece com o significante: ou seja, o semblante por excelência, se é de sua ruptura que chove, efeito em que isso se precipita, o que era matéria em suspensão (…) O que se evoca de gozo ao se romper um semblante, é isso que no real se apresenta como ravinamento das águas.” (LACAN, 1971/2003, p.22)
toda, há sempre alguma coisa nela que escapa ao discurso.” (LACAN, 1972-1973/1982,
p. 46)
O gozo feminino revela que nem todo gozo pode ser assimilado pelo discurso.
Deparamos-nos com gozos Outros como o gozo feminino, o gozo místico e o gozo na
psicose; gozos que escapam ao semblante oferecido pelo discurso e ao semblante que
constitui o falo como simulacro de uma verdade. No entanto, no seminário “Ou pior”
(1971-1972), Lacan localiza no discurso analítico um discurso que não seria semblante.
Abre-se aí outra possibilidade para se pensar o discurso; possibilidade que não se utiliza
da aparência de verdade que o discurso pode assumir, mas deixa a céu aberto o lugar
vazio do qual todos descendemos. Talvez existam outros como, por exemplo, a arte. No
seminário “A ética da psicanálise” (1959-1960/1991) Lacan vai pensar a arte enquanto
um discurso que se organiza ao redor do vazio, diferente da ciência, que não acredita no
vazio ou da religião, que se organiza a partir de diferentes modos de evitar o vazio. Na
parte III, que finaliza este texto, pretendemos abordar a criação a partir do discurso da
arte, que se organiza ao redor do vazio, e propor articulações entre as escritas aqui
investigadas e a criação, que pode ou não se incluir em um discurso.
2.2. O ESPELHO, O TRAÇO E O NOME
Freud, assim como Lacan, trabalhou de muitas maneiras a articulação entre o
sujeito, o corpo e a linguagem. Em Freud tal articulação se mostra particularmente
fecunda nos momentos em que ele elabora uma concepção do aparelho psíquico. Na carta
N. 52 de sua correspondência com Fliess1, Freud retoma algumas idéias desenvolvidas no
“Projeto”(1895/1981) e propõe a tese de que a memória se constitui a partir de diferentes
poss ibilidades de registro que não ocorrem de uma só vez:
Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha se formado por um processo de estratificação: o material presente sob a forma de traços mnêmicos fica sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo, de acordo com as novas circunstâncias – a uma retranscrição. Assim, o que há de novo em minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, e sim ao longo de diversas vezes, e que é registrada em vários tipos de indicações. (FREUD, 1896/1986, p. 208)
Dentro dessa concepção, o aparelho psíquico estaria constituído da seguinte
maneira: O sistema W (percepções) – Neurônios a partir dos quais se originam as
percepções que se ligam à consciência, mas que em si mesmas não retêm nenhum traço
do que ocorreu. Consciência e memória são mutuamente exclusivas. O sistema Wz
(indicação da percepção) – Constitui o primeiro registro das percepções, organiza-se a
partir de associações de simultaneidade e é totalmente inacessível à consciência. O
sistema Ub (inconsciência) – Segunda possibilidade de registro de traços de lembranças
que talvez sejam conceituais e são dispostos segundo relações que talvez sejam causais. É
igualmente inacessível à consciência. O sistema Vb (pré-consciência) – É a terceira
possibilidade de registro ligada à representação de palavra e corresponde ao eu. As
catexias provenientes de Vb tornam-se conscientes de acordo com certas regras; e essa 1 FREUD, SIGMUND [Carta] 6 de dezembro de 1896, Viena [para] FLIESS, WILHELM, Viena, 8f In A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904), Rio de Janeiro: Imago, 1986.
consciência secundária do pensamento é posterior no tempo e, provavelmente, está ligada
à ativação alucinatória das representações de palavra.
As dúvidas expressas por Freud na explicação do funcionamento do aparelho
psíquico manifestam-se no uso das palavras “talvez” e “provavelmente”; elas concernem,
segundo Willemart (1997), sobretudo, aos traços e ao inconsciente, e sugerem que
enquanto os primeiros registros ocorrem de maneira simultânea, determinados por um
critério de tempo cronológico, as segundas possibilidades de registro associam-se
seguindo uma lógica de causalidade. A passagem de um funcionamento cronológico para
um funcionamento lógico marca o inconsciente. Nesse sentido, Freud anuncia aí um
inconsciente lógico.
Ainda segundo Willemart, o “talvez”, que relaciona os traços inconscientes a
lembranças conceituais, aponta que não são as lembranças que constituem o inconsciente,
mas os traços deixados por essas lembranças:
O terceiro matiz de dúvida “provavelmente” prende-se a essa consciência cogitativa secundária, cuja característica seria a reativação alucinatória de representações verbais (…). Por que reativação alucinatória? As representações verbais não teriam objetos? Seriam como sonhos? Sem dúvida. Em outras palavras, a fala se move em um plano diferente daquele da realidade. (WILLEMART, 1997, p. 34)
Após a exposição de seu modelo para o funcionamento do aparelho psíquico,
Freud nos diz que os registros sucessivos que determinam o funcionamento do aparelho
correspondem a conquistas psíquicas ocorridas em fases sucessivas da vida, e que na
fronteira entre essas fases ocorreria uma tradução do material psíquico. Nesse processo
de tradução do material psíquico de uma fase a outra ocorreriam falhas, e é precisamente
na falha de tradução que Freud reconhece o recalque:
Uma falha de tradução – eis o que se conhece clinicamente como recalcamento. O motivo disso é sempre a liberação do desprazer, que seria gerado pela sua tradução; é como se esse desprazer provocasse um distúrbio do pensamento que não permitisse o trabalho de tradução. (FREUD, 1896/1986, p. 209)
A metáfora do recalque como falha na tradução aponta que na passagem de um
sistema a outro sobra sempre um resto; lacunas que remetem a um não traduzível, a um
resto inassimilável pela linguagem. Em seu texto “O bloco mágico” (1924-1925/1981),
Freud propõe uma interessante analogia entre o funcionamento do aparelho psíquico e a
lousa de brinquedo2. Nesta, a escrita é apagada toda vez que o contato entre a folha
transparente de duas camadas (consciente e pré-consciente) e a lâmina de cera
(inconsciente) é interrompido. No entanto, o traço permanente do que foi escrito fica
gravado na lâmina de cera. Nesse sentido a camada que recebe os estímulos, ou seja, o
sistema pré-consciente, não forma traços permanentes, pois os fundamentos da memória
ocorrem em outros sistemas contíguos. Segundo Willemart (1995), o tempo do sistema
consciente, pré-consciente é descontínuo, uma vez que depende das excitações e do
2 O bloco mágico é uma lâmina de cera com uma borda de papel; sobre a lâmina uma folha fina e transparente presa a lâmina na extremidade superior. A folha é constituída por duas camadas que podem ser separadas uma da outra salvo em suas extremidades. A camada superior é feita de celulóide transparente e a inferior é feita de papel transparente encerado. A camada de celulóide funciona como proteção para a segunda camada de papel encerado, uma vez que ela se romperia no contato com o estilete usado como instrumento de escrita no bloco mágico. A camada de celulóide assemelha-se, então, à primeira camada do sistema perceptivo, reduzindo a intensidade dos estímulos e protegendo a segunda camada, que recebe os estímulos. As duas camadas da folha correspondem ao pré-consciente.
contato entre as camadas psíquicas, enquanto o tempo da escrita inconsciente é contínuo ,
pois não depende das excitações externas: “É o tempo negativo da cena ou fora do tempo,
porque não há marcação do tempo do relógio; a cena aparece na sua dimensão de
profundidade e desaparece” (p. 139).
Interessa-nos apontar que Freud recorre freqüentemente a elementos da escrita:
retranscrição, tradução, registro, etc., nas várias abordagens da constituição do aparelho
psíquico, buscando encontrar um registro que seria específico do humano. O registro
implica uma temporalidade marcada pela passagem do contínuo ao descontínuo, uma
inscrição marcada pela conservação e pelo apagamento, e uma perda inerente ao próprio
processo de inscrição do registro que Freud localiza como falha de tradução na passagem
de um sistema a outro. Na busca pela especificidade de um registro humano marcado
pelas características citadas acima, o campo da memória se liga ao campo da
identificação e registrar equivale a identificar, ou seja, dizer “é isso”. (COSTA, 2001, p.
26).
Como já apontamos, tal especificidade é retomada quando Lacan propõe que no
humano o que se registra é da ordem do traço. O traço feito para ser tomado como falso e
que inaugura a memória inconsciente, um registro que se inscreve no corpo a partir do
laço do sujeito ao Outro, ao mesmo tempo em que possibilita uma contagem, permitindo
ao sujeito identificar-se como um entre outros e poder se dizer Eu. O traço vai ser
pensado por Lacan a partir do final do seminário “A Transferência” (1960-1961/1992),
no qual aborda as três possibilidades de identificação elaboradas por Freud no texto
“Psicologia das massas e análise do eu”3 (1920-1921/1981).
3 Nesse texto, Freud propõe uma primeira identificação cuja existência é deduzida apenas da experiência. Trata-se da identificação primária com o pai da pré -história do complexo de Édipo, na qual é assimilado
Lacan vai deter-se na segunda possibilidade de identificação, que decorre dos
processos neuróticos e segue uma via regressiva: “a identificação apareceu no lugar da
escolha do objeto e a escolha de objeto regrediu para a identificação”. (FREUD, 1920-
1921/1981, p. 2586) Nesse caso o eu assume as características do objeto. Trata-se de
uma identificação limitada e parcial:
Essas identificações são a apropriação de qualida des, e até de sintomas, do objeto da rivalidade ou do amor. Elas se dão por meio de uma regressão dos investimentos de objeto, para garantir o recalcamento desses últimos. Essas identificações (histéricas) são extremamente limitadas e recebem do objeto um só traço. (Ibid., p. 2586)
Lacan privilegia essa possibilidade, visto que ela permite abordar a identificação
do ponto de vista da linguagem. Abordar a identificação tomando como suporte o traço
unário como traço distintivo permite a Lacan retomar tanto a lingüística de Saussure, na
qual a linguagem é uma estrutura puramente diferencial, quanto a teoria dos conjuntos da
qual Lacan empresta o termo unário, que designa um conjunto formado por um único
elemento. Além disso, permite uma diferenciação entre o que se registra como unidade e
remete ao campo do imaginário e o que se registra enquanto “um distintivo” e remete ao
campo simbólico. O traço unário refere-se a uma primeira identificação do sujeito, que
Lacan vai abordar, a partir do narcisismo primário, através do estágio do espelho.
através da incorporação/introjeção oral. Trata-se aí de “ser como o pai” que é tomado como ideal. A terceira possibilidade de identificação pode ocorrer sem que exista um investimento de objeto que ligue o sujeito à pessoa copiada. Freud dá como exemplo o caso do internato onde uma moça recebe a carta de um namorado de quem está enciumada e desencadeia-se uma crise histérica; as amigas, que também gostariam de ter um namorado, “pegam a crise por uma espécie de infecção mental” (FREUD, 1920-1921/1981, p. 2586). Nessa terceira possibilidade de identificação, tudo se passa como se a percepção de um ponto em comum inconsciente (um desejo sexual recalcado) desencadeasse, sob a influência do sentimento de culpa que transforma a identificação de desejo em sofrimento, uma expressão distorcida desse desejo (crise histérica).
Lacan empresta da óptica o esquema do buquê invertido criado por Bouasse para
propor uma leitura do narcisismo em Freud. No entanto, é na construção teórica
elaborada por Henri Wallon que Lacan encontra muitos dos elementos que lhe servem de
sustentação no princípio de suas formulações sobre o Estádio do espelho.4 Filósofo,
médico e psicólogo, Wallon vive entre 1879 e 1962, sendo contemporâneo tanto de Freud
como de Lacan. Ele interroga o comportamento humano a partir da observação de
crianças pequenas buscando descobrir como se desenvolve na criança a noção de corpo
próprio.
Segundo Le Gaufey (1997), a formação da imagem do corpo na criança se faz,
para Wallon, de forma progressiva, através de uma série de integrações sucessivas que
ocorrem no decorrer dos primeiros três anos do desenvolvimento infantil, implicando
uma ligação complexa entre a evolução psicológica e a evolução biológica. Tal
formulação contrasta com a formulação de Lacan que propõe o Estádio do espelho como
um momento de quase fratura na evolução da criança; momento que marca “um antes e
um depois violentamente diferenciados” (1997, p. 28). Nesse sentido a proposta do
Estádio do espelho de Lacan não visa a uma correspondência entre o que ocorre no
campo ps íquico e o que ocorre no campo biológico.
Uma leitura atenta da obra de Wallon sugere que o momento de reconhecimento
da imagem no espelho por parte da criança é o momento de surgimento da representação.
4 Segundo Guy Le Gaufey (1997), embora seja comum na França considerar Wallon como o precursor das idéias que sustentam a formulação do Estádio do espelho por parte de Lacan, podemos nos perguntar o que sabemos realmente da leitura de Lacan, já que Lacan faz uso do nome de Wallon apenas duas vezes em seus Escritos. Esse fato – bem como a confrontação da escrita de Lacan sobre o Estádio do espelho com os textos de Wallon sobre o reconhecimento da imagem no espelho por parte da criança – leva Le Gaufey a sugerir que, em vez de tomarmos como certo que Wallon explica Lacan, seria mais propício dizer que ele o coloca em perspectiva.
Trata-se de uma imagem mental do eu da criança que se constrói fora dela. Eis aí o que
funda a possibilidade da representação, a exterioridade:
Entre a experiência imediata e a representação das coisas, é necessário que intervenha uma dissociação, que destaque as qualidades e a existência própria ao objeto das impressões e das ações onde ele é inicialmente implicado aos atribuir-lhe entre outras características essenciais, o caráter da exterioridade. Só existe representação mental possível através desse recurso. Na medida em que funciona, a do próprio corpo deve responder a esta condição. Só pode se formar, exteriorizando-se. (WALLON, apud LE GAUFEY, 1997, p. 36)5
Como não reconhecer aí o ponto decisivo que Lacan irá retirar das teses de
Wallon e acentuar nas suas formulações a propósito do Estádio do espelho? A imagem do
corpo no espelho é a primeira etapa no processo que vai permitir à criança singularizar-se
e, conseqüentemente, delimitar a fronteira entre ela e o exterior, “não no sentido de uma
pele que fará envelope a um eu, mas, ao contrário, ao instalar-se como uma exterioridade,
como um corpo entre outros corpos, escreve Wallon, um ser entre outros seres”.(Ibid., p.
37). É assim que Lacan retoma em 1949, durante a apresentação de seu trabalho
intitulado “Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle qu’elle nous
est révélée dans l’expérience psychanalytique”, as teses sobre “the looking glass fase”
apresentadas em 1936 no congresso de Marienbad.
No texto de 1949, Lacan acentua o caráter de imediatez da imagem na qual a
criança já reconhece sua imagem no espelho; nesse sentido, como já apontamos,
distancia-se de Wallon, que propõe o reconhecimento por parte da criança de sua imagem
no espelho como resultado de um movimento de integração entre percepções exógenas e
percepções endógenas. A criança move uma parte de seu corpo, a imagem no espelho
5 WALLON, H. Les origines du caractère chez l’enfant, p. 227-228.
move-se no mesmo momento e essa espécie de equivalência entre a percepção sinestésica
endógena e a percepção visual exógena é o que permite à criança identificar a imagem no
espelho a seu corpo.
Segundo Le Gaufey (1997), o que é essencial para Lacan nesse momento é a
“assunção jubilatória” da criança, que se reconhece na imagem do espelho e que se
apresenta como signo de uma identificação, ou seja, “a transformação produzida no
sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN, 1949/1998, p. 97). Esse
acontecimento pontual, que dá lugar a uma identificação, aponta que nem a imagem
refletida no espelho, nem o corpo em frente ao espelho podem ser tomados como
elementos idênticos a si mesmos; além disso, não existe entre a imagem do corpo e o
corpo em frente ao espelho uma correspondência direta. Podemos nos perguntar como a
criança reconhece como sua a imagem do corpo no espelho, já que esse reconhecimento
não se faz somente por meio de uma conjunção entre percepções endógenas e exógenas,
como o supõe Wallon.
Nas elaborações de Lacan a propósito do estádio do espelho, podemos adiantar
que o reconhecimento da imagem como própria depende do que se localiza fora do
espelho; isso que está fora da imagem e diz respeito ao “signo do assentimento, da
escolha de amor do outro” a que Lacan se refere no seminário da “Transferência”, e ao
gesto realizado pela criança que se reconhece na imagem do espelho; gesto em direção ao
adulto que a segura, descrito pela primeira vez por Lacan no texto dos escritos
“Observações sobre o relatório de Daniel Lagache”:
Gesto pelo qual a criança diante do espelho, voltando-se para aquele que a segura, apela com o olhar para o testemunho que decanta, por
confirmá-lo, o reconhecimento da imagem, da assunção jubilatória em que por certo ela já estava. (LACAN, 1961/1998, p. 685)
Gesto que é retomado por Lacan no seminário da transferência a partir do olhar da
criança que vai ao encontro do olhar do adulto que a segura; e desse breve encontro entre
olhares surge o einziger Zug, cuja inscrição se faz acompanhar de um assentimento que
tem como característica ser um um indivisível “que pode variar em intensidade, mas que
ninguém pode reduzi-lo a ‘um sim, mas…’ sem que ele perca, precisamente, sua
natureza de assentimento”. (LE GAUFEY, 1997, p. 238) Veremos a partir do
desenvolvimento dado ao Estádio do espelho por Lacan, principalmente através da
utilização do esquema óptico, como a identificação no humano, a construção de um
registro próprio ao humano é o que permite estabelecer um lugar de pertencimento e um
lugar de diferenciação. Ela não está restrita ao reconhecimento da unidade corporal a
partir da imagem no espelho; imagem externa tomada como própria, uma vez que a
consistência da imagem e o seu reconhecimento como própria dependem da inscrição de
um indivisível fora da imagem, que Lacan vai abordar a partir do termo unário, e de um
parcial sem unidade alguma, sem imagem alguma, que Lacan aborda a partir do termo
ágalma. É no seminário sobre a transferência que o termo ágalma surge pela primeira
vez e posteriormente vai dar lugar à conceitualização do objeto a como objeto parcial,
pulsional e não narcísico, já que não possui imagem especular.
No texto de 1949, Lacan utiliza a palavra Gestalt para designar essa espécie de
propriedade unitária dada pela forma total do corpo que surge a partir de uma
exterioridade, em um relevo de estatura que a fixa e em uma simetria que a inverte:
Pois a forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação de sua potência só lhe é dada como Gestalt, isto é, numa exterioridade em que de certo essa forma é mais constituinte do que constituída, mas em que, acima de tudo, ela lhe aparece num relevo de estatura que a congela e numa simetria que a inverte, em oposição à turbulência com que ele experimenta animá-la. Assim, essa Gestalt simboliza a permanência mental do eu, ao mesmo tempo em que prefigura sua destinação alienante (…) (LACAN, 1949/1998, p. 98)
São dois aspectos de uma mesma imagem: a estatura, “estátua em que o homem
se projeta” (Ibid., p. 99), e a simetria, que a inverte; ambos se opõem às turbulências de
movimentos com que o sujeito experimenta animá- la. Lacan, ao contrário de Wallon,
não explica como as sensações sinestésicas de movimento (turbulência de movimentos)
são sentidas como próprias, como animando essa imagem, já que não basta para isso a
equivalência temporal entre o movimento do corpo e o movimento da imagem no
espelho. Lacan apenas observa que a permanência da Gestalt oferece uma espécie de
circuito constante a uma pluralidade sinestésica. Para Lacan, a Gestalt tem efeitos
formadores sobre o corpo, já que através dela a criança imatura do ponto de vista
neurofisiológico antecipa-se em uma unidade corporal, efeito do reflexo da imagem no
corpo:
Esse acontecimento pode produzir-se a partir da idade de seis meses, e sua repetição muitas vezes deteve nossa meditação ante o espetáculo cativante de um bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por algum suporte humano ou artificial, supera, numa azáfama jubilatória, os entraves desse apoio, para sustentar sua postura numa posição mais ou menos inclinada e resgatar, para fixá-lo, num aspecto instantâneo da imagem. (Ibid., p. 97)
Lacan procura responder aos efeitos formadores que essa Gestalt tem sobre o
corpo humano recorrendo a fenômenos de mimetismo encontrados no reino animal. No
entanto, podemos adiantar que a diferença entre os humano s e os animais não é a maneira
como o corpo é afetado pela imagem, mas o lugar de onde vem a imagem. Para os
animais, não existe diferença entre o objeto e a imagem, tanto é que determinadas
espécies de pássaro reagem sexualmente tanto à imagem de um pássaro como a sua
presença. Para o humano, o registro da imagem se constitui a partir da ausência do
objeto; da descontinuidade entre a imagem e o objeto representado, enquanto para o
animal não existe esse intervalo, não existe ausência do objeto, já que a imagem e o
objeto estão colocados em uma relação de continuidade/indiferenciação. É nesse sentido
que Lacan pode dizer no seminário “A Identificação” (1961-1962) que para sua cadela
Justine, ele, Lacan é sempre o mesmo, idêntico a si mesmo.
No contexto das elaborações iniciais do estágio do espelho Lacan trabalha com
uma definição narcísica do objeto segundo a qual o objeto e o outro são formalmente
equivalentes. Como observa Le Gaufey (1997, p. 78), o sujeito se reconhece no outro, no
objeto, que é tomado à sua imagem. Tal equivalência fundamenta as teses de Lacan sobre
a agressividade: “Toda identificação erótica, toda apreensão do outro pela imagem numa
relação de cativação erótica se faz pela via da relação narcísica e é também a base da
tensão agressiva” (LACAN, 1955-1956/1985, p.110). O Estádio do espelho coloca em
evidência a tensão erótica e agressiva na qual o sujeito se opõe em uma luta mortal à
imagem alienante do espelho; luta que se manifesta no plano imaginário como uma
relação de exclusão: é ele ou eu. No entanto, ao formalizar o conceito de objeto a, Lacan
rompe com a idéia do objeto narcísico, mas o estatuto do que será o objeto a ainda não
está claro nesse momento.
Será a partir do seminário sobre a transferência com a noção de ágalma e no
seminário sobre a identificação com a introdução da topologia e especialmente de oito
interior, que o objeto a vai assumir suas características de objeto parcial, pulsional e não
especular. Veremos a seguir como o objeto perde sua especularidade, acompanhando Le
Gaufey em sua leitura dos usos que Lacan faz do esquema óptico na abordagem do
estágio do espelho. Lacan vai utilizar o esquema óptico proposto por Bouasse pela
primeira vez em seu seminário “Os escritos técnicos de Freud” (1953-1954/1986). O
esquema do buquê invertido é utilizado por Lacan como metáfora do processo de
formação da unidade do Eu:
Figura 2: Experimento do buquê invertido
Logo ele promove uma modificação no esquema original, colocando o vaso
abaixo do aparato e, portanto, inacessível ao olhar, e as flores em cima. O vaso serve a
Lacan como metáfora do corpo que forma, através do espelho côncavo, uma imagem
real6 na qual aparecem como unidade o vaso e as flores, que designam aí os “instintos e
os objetos de desejo”. A formação da imagem real composta pelo vaso + flores ocorre
6 A imagem real refere -se à imagem tridimensional em oposição à imagem plana. Real aqui não tem nada a ver com o que Lacan designa como registro do Real.
entre o sujeito e o espelho, e só é acessível ao sujeito se o olho estiver posicionado dentro
de certo campo de visão. Lacan se pergunta sobre esse olho cuja posição determina o
acesso à imagem real unificada. Para ele, trata-se inicialmente do olho como símbolo do
sujeito:
No meio disso, o olho de vocês não passeia, está fixado lá, como um pequeno apêndice que tilita o córtex. Então, porque é que eu lhes conto que ele passeia, e que, segundo a sua posição, ora dá certo, ora não dá? O olho está aqui, como muito freqüentemente, o símbolo do sujeito. (LACAN, 1953-1954/1986, p. 97)
Segundo Le Gaufey (1997, p. 84), o sujeito não aparece nessa articulação inicial
do esquema óptico como sujeito suposto – caso do sujeito como suposição da relação
entre dois significantes anunciada na fórmula “o significante representa o sujeito para
outro significante”, mas como representado, mesmo que de maneira metafórica. Essa
distinção será revista, mas seu uso, nesse momento, permite a Lacan usar a tríade
simbólico, imaginário e real, recentemente anunciada:
Quer dizer que, na relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal como ela resulta disso, tudo depende da situação do sujeito. E a situação do sujeito é essencia lmente caracterizada pelo seu lugar no mundo simbólico, ou, em outros termos, no mundo da palavra. (Ibid., p. 97)
O corpo metaforizado pelo vaso é real, é inacessível ao olhar. O sujeito,
determinado pela ordem simbólica só tem acesso a uma apreensão imaginária de seu
corpo. No decorrer do seminário, Lacan introduz mais uma modificação no esquema
óptico. Trata-se de um espelho plano:
Figura 3: Esquema óptico com dois espelhos
Com essa modificação, o olho que simboliza o sujeito vai ter sua posição fixada
entre o espelho côncavo e as flores:
O olho agora, esse olho hipotético de que lhes falei, coloquemo-lo em algum lugar entre o espelho côncavo e o objeto. Para que esse olho tenha exatamente a ilusão do vaso invertido, isto é, para que ele veja nas condições ótimas, tão boas como se estivesse no fundo da sala, é necessária e suficiente uma única coisa – que haja mais ou menos no meio da sala um espelho plano. (Ibid., p. 147)
A introdução do espelho plano permite a Lacan diferenciar o eu ideal e o ideal de
eu, e abordar o narcisismo primário e o narcisismo secundário. No entanto, Le Gaufey
aponta que ler a aula de 24 de março de 1954, em que Lacan introduz o espelho plano,
permite acreditar que ele o faz para diferenciar os dois narcisismos, mas isso não explica
a diferença entre a imagem real do vaso e a imagem virtual dessa imagem real. Para Le
Gaufey, o que deve nos chamar atenção na introdução do espelho plano por Lacan é
justamente a posição do olho que simboliza o sujeito. O sujeito está situado na borda do
espelho côncavo, em um ponto próximo à imagem real que se forma entre o espelho
côncavo e as flores, e é desse ponto que ele pode ver a imagem real, no estado de imagem
virtual no espelho plano. Mas ele vê mais, ele vê a imagem do olho situada em um ponto
virtual no espelho plano nomeado por Lacan (Ibid., p. 164) sujeito virtual, SV: “O que
resulta disso? Uma simetria muito particular. Com efeito, o sujeito virtual, reflexo do
olho mítico, quer dizer o outro que somos, está lá aonde vimos inicialmente nosso ego -
fora de nós, na forma humana”.
Entretanto, a imagem do sujeito no espelho não tem nenhum interesse metafórico,
pois “o espelho não está lá para refletir a imagem desse olho, mas para enviá- lo a um
ponto relativamente preciso do espaço virtual criado por esse mesmo espelho” (LE
GAUFEY, 1997, p. 87) A que responderia uma imagem do sujeito? É por isso que Lacan,
no decorrer de suas reflexões sobre o Estádio do espelho, vai passar a supor o sujeito a
partir de uma ordem simbólica, e assim ele será excluído da imagem virtual. Lacan vai
propor que a acomodação do imaginário no homem, metaforizada pelas inclinações do
espelho plano que permitem uma maior ou menor visão da imagem, é comandada pela
ordem simbólica que não existe no nível do estádio do espelho:
Podemos supor agora que a inclinação do espelho plano é comandada pela voz do Outro. Isso não existe ao nível do estádio do espelho, mas é em seguida realizado pela nossa relação com outrem no seu conjunto – a relação simbólica. ( Ibid., p.164)
O simbólico determina o lugar de S e também de SV, através do jogo de
inclinações do espelho que possibilitam o maior ou menor grau de aproximação,
definição ou completude do imaginário. É a relação simbólica que define a posição do
sujeito como aquele que vê, e é aí que Lacan situa a função do ideal de eu: “O ideal do eu
comanda o jogo de relações de que depende toda a relação a outrem. E dessa relação
depende o caráter mais ou menos satisfatório da estruturação imaginária”. (LACAN,
1953-1954/1983, p. 165) Segundo Le Gaufey, o Estádio do espelho vai integrar
simbólico, imaginário e real e fabricar uma distinção entre eu ideal e ideal de eu que não
existe na obra de Freud:
(…) o ideal de eu pertence somente à dimensão simbólica e o eu ideal está inteiramente tomado na dimensão imaginária, já que ele é metaforicamente representado pela conjunção na imagem virtual, das flores (instintos e desejos) e da imagem real do vaso (corpo). O eu ideal é uma imagem, o Ideal do eu não o é. (LE GAUFEY, 1997, p. 88)
No texto “Observações sobre o relatório de Daniel Lagache” (LACAN,
1960/1998), escrito após seis anos de intervalo em relação ao seminário “Os escritos
técnicos de Freud”, podemos notar que o olho-sujeito é colocado ora “entre as flores” ora
na borda do espelho côncavo – mas, de todo modo, fora do alcance de percepção da
imagem real –, e que “este observador procura realizar sua ilusão na imagem virtual que
um espelho plano, situado em A, pode dar da imagem real”. O sujeito não é mais
designado pela letra S, mas por $, o sujeito barrado. O espelho plano é designado pela
letra A, o vaso designado pela letra C, inicial de corpo. As flores são nomeadas pela letra
a. A imagem virtual i’(a) remete ao eu ideal e, enfim, o lugar do sujeito virtual que era
escrito SV durante o seminário será designado por S, sujeito não barrado e, sobretudo, I,
que designa aqui o ideal do eu.
Figura 4: Esquema óptico com dois espelhos
O essencial das primeiras formulações do estádio do espelho se mantém: a
imagem do corpo é a imagem do outro, dessa alteridade que se apresenta no espelho
plano e, assim como em 1949, a unidade é dada a partir de uma exterioridade. No
entanto, Lacan já não utiliza o olho como representação metafórica do sujeito, pois o que
importa agora é o estatuto simbólico do sujeito que é determinado por um ponto I que
está fora da imagem. Podemos observar também que algo na concepção do objeto
começa a mudar. Embora as flores (instintos e objetos do desejo) designadas pela letra a
sejam refletidas no espe lho em a’, o que implica ainda a especularidade do objeto, Le
Gaufey (1997, p. 91) aponta que o objeto não é mais somente o objeto narcísico da
concorrência vital que passeia pelo mundo – concepção que sustenta a tese sobre a
agressividade como essencial na criação do objeto comum, objeto socializado que surge
da concorrência narcísica pela posse do objeto do desejo do outro – mas essencialmente
pedaço do corpo, objeto parcial:
O a, objeto do desejo, no ponto de partida em que o situa nosso modelo, é, tão logo funciona nele…, o objeto do desejo. Isso quer dizer que, como objeto parcial, ele não é apenas parte ou peça destacada do dispositivo que aqui imagina o corpo, mas elemento de estrutura desde a origem e, por assim dizer, da distribuição das cartas da partida que se joga. Na medida em que é selecionado nos apêndices do corpo como indícios do desejo, ele já é o expoente de uma função (…) (LACAN, 1960-1961/1998, p. 689)
No seminário “A transferência” (1960-1961/1992), Lacan vai trabalhar, através
de um objeto especial, a noção de objeto parcial. Trata-se da noção de ágalma, que se
destaca da noção de objeto da concorrência narcísica para apontar um objeto sem
equivalência com outros objetos:
Se não sabemos apontar, numa topologia estrita, a função do que significa este objeto, ao mesmo tempo tão limitado e tão fugaz em sua figura, que se chama o objeto parcial, se não vêem o interesse do que introduzo sob o nome de ágalma, e que é o ponto principal da experiência analítica, pois bem, é uma pena. (Ibid., p. 150)
Não vamos nos deter aqui nos desenvolvimentos elaborados por Lacan com a
introdução do termo ágalma no decorrer do seminário “A transferência”, mas apenas para
apontar que é a partir de sua introdução ele pode abordar e conceitualizar o objeto a como
objeto parcial; objeto que se diferencia do objeto comum introduzido pela rivalidade
narcísica. Será no seminário seguinte, “A identificação”, que Lacan, através da topologia,
vai aproximar a noção de objeto parcial da não especularidade do objeto:
(...) a partir do seminário A identificação, esse objeto – estranho e rebelde ao um – vai adquirir uma positividade mínima com a introdução de elementos topológicos como as superfícies ditas “não orientáveis”; superfícies cuja imagem no espelho não é diferenciável delas mesmas, à diferença dos objetos habituais que têm sua simetria invertida. A Banda de Moebius, a garrafa de Klein e o cross-cap vão assim fazer sua entrada, ao menos em um primeiro tempo, para oferecer um suporte à
idéia estranha segundo a qua l certo objeto “não teriam imagem no espelho”. (LE GAUFEY, 1997, p. 95)
Trata-se aí de uma maneira geométrica de afirmar a parcialidade do objeto, já que
a unidade é oferecida no espelho a partir da reflexibilidade do objeto que tem sua
simetria invertida. Através da topologia, Lacan propõe a existência de objetos que não
têm reflexibilidade; objetos que não têm sua simetria invertida na imagem do espelho
pela simples razão de que eles não possuem simetria, não possuem direito ou avesso,
esquerda ou direita, interior ou exterior. Assim, por meio da introdução do termo ágalma,
realiza-se uma primeira ligação entre objeto parcial e objeto a que vai desembocar na não
especularidade do objeto.
Próximo ao final do seminário “A transferência”(1960-1961/1992), Lacan vai
retomar o Estádio do espelho através do esquema óptico para colocar em relevo o lugar
do Outro nesse esquema. Assim como no esquema apresentado no texto “Observações
sobre o relatório de Daniel Lagache” (1961/1998), o Outro é designado pelo espelho
plano; a imagem real do vaso é designada por i(a) e as flores por a: “É isso que exprime
o esquema. É na medida em que o terceiro, o grande Outro, intervém na relação do eu
com o pequeno outro, que algo pode funcionar, algo que acarreta a fecundidade da
própria relação narcísica.”(LACAN, 1960-1961/1992, p. 342)
É nesse momento que Lacan recorre ao gesto da criança que se vira na direção do
adulto que a carrega, esperando dele algo da ordem do acordo ou do testemunho, para
exemplificar a função do Outro no funcionamento de seu esquema:
Vamos exemplificá-lo num gesto da criança diante do espelho, gesto que é bem conhecido e que não é difícil de se observar. A criança que está nos braços do adulto é confrontada com sua imagem. O adulto quer o compreenda ou não, se diverte com isso. É preciso dar então, toda a
sua importância a este gesto da cabeça da criança que, mesmo depois de ter sido cativada pelos primeiros esboços que faz diante de sua própria imagem, volta-se para o adulto que a carrega, sem que se possa dizer sem dúvida o que espera disso, se é da ordem de um acordo ou de um testemunho, mas a referência ao Outro vem desempenhar aí uma função essencial. Não é forçar essa função articulá -la dessa maneira, e situar assim, aquilo que se ligará, respectivamente, ao eu ideal e ao ideal do eu na continuação do desenvolvimento do sujeito. (Ibid., p. 342)
Embora Lacan seja um pouco reticente em relação ao que a criança espera do
Outro para o qual se volta; acordo, testemunho… ele é a seguir bastante afirmativo:
Desse Outro, na medida em que a criança diante do espelho volta-se para ele, o que pode advir? Nós dizemos que só pode vir o signo imagem de a, essa imagem especular, desejável e destruidora ao mesmo tempo, efetivamente desejada ou não. É isso que vem daquele para o qual o sujeito se volta, no próprio lugar onde ele se identifica nesse momento, na medida em que sustenta sua identificação com a imagem especular. (Ibid., p. 342)
O adulto situado fora do espelho sustenta a identificação da criança em frente ao
espelho à imagem de seu corpo refletida no espelho. É o adulto que situa para a criança
onde está a imagem e onde está o que não é imagem. A seguir Lacan se debruça sobre as
três possibilidades de identificação elaboradas por Freud para fazer surgir o einziger Zug:
Ai está o que dá resposta à questão, o olhar do Outro, que entre os dois irmãos gêmeos inimigos do eu e da imagem do pequeno outro especular, pode fazer a todo instante bascular a preferência, como é que o sujeito o interioriza? Este olhar do Outro, devemos concebê-lo como sendo interiorizado por um signo. Isso basta Ein Einziger Zug . Não há necessidade de todo um campo de organização e de uma intojeção maciça. Esse ponto, grande I, do traço único, este signo do assentimento do Outro, da escolha de amor sobre a qual o sujeito pode operar, está ali em algum lugar e se regula na continuação do jogo do espelho. Basta que o sujeito vá coincidir ali em sua relação com o Outro para que este pequeno signo, este Einziger Zug, esteja à sua disposição. (Ibid., p. 344)
Le Gaufey aponta que o sujeito não se reflete no espelho do Outro, mas se
inscreve no Outro sob a forma de um einziger Zug. Trata-se de uma identificação a um
traço e não a uma imagem, e implica que esse traço seja procurado fora da imagem.
Podemos nos perguntar por que a criança que já se reconhece na imagem refletida no
espelho precisa recorrer ao adulto, situado fora do espelho, para sustentar essa imagem. O
que a criança vai procurar nesse olhar? Segundo Le Gaufey (1997, p. 104), o que ela
encontra como um signo de um assentimento é certamente “um dizer que sim, mas um
dizer mudo, um dizer eminentemente simples, inarticulado a ponto de não dar lugar a
nenhum questionamento” e que encontra no olhar seu meio privilegiado de expressão.
Nesse encontro entre olhares, a criança é tocada por outra coisa que não a imagem
especular. Quando esvaziado de sua referência emocional, esse signo resume-se a sua
face significante, este I que designa o ideal de eu e que Lacan inscreve fora do espelho. É
assim que Lacan situa o eu ideal inteiramente do lado do imaginário, enquanto o ideal de
eu é um puro traço fora do espelho a partir do qual o sujeito vê a imagem de seu corpo
como amável pelo Outro:
O traço unário, no que o sujeito a ele se agarra, está no campo do desejo, o qual só poderia constituir-se no reino do significante, no nível em que há relação do sujeito ao Outro. É o campo do Outro que determina a função do traço unário, no que com ele se inaugura um tempo maior da identificação na tópica então desenvolvida por Freud – a saber, a idealização, o ideal do eu (…) descrevi em outro lugar a visada em espelho do ideal de eu, desse ser que ele viu primeiro aparecer na forma de um dos pais que, diante do espelho, o segura. Ao se agarrar à referência daquele que o olha num espelho, o sujeito vê aparecer, não seu ideal de eu, mas seu eu ideal, esse ponto em que ele deseja comprazer-se em si mesmo. (Id.,1964/1988 p. 242)
A identificação ao traço aponta para o desejo do Outro, uma vez que é apenas na
relação a esse desejo que o sujeito pode ter acesso à imagem ideal, imagem desejada pelo
Outro. Nesse sentido a identificação a esse traço primeiro enlaça amor e transferência, já
que o endereçamento ao Outro é o que permite uma leitura do traço; uma leitura que
passa necessariamente pelo desejo do Outro, pela alienação a esse desejo. Existe na
identificação ao traço significante tomado como o ponto ideal através do qual o sujeito
tem acesso a uma imagem amável pelo Outro, uma dimensão de tapeação, uma miragem
que é própria ao amor. Trata-se justamente da tapeação instaurada por esse ponto I a
partir do qual o sujeito tem a ilusão de que é visto pelo Outro de uma forma que lhe
agrada ser visto. No entanto, existe outra natureza da identificação que escapa às
tapeações do amor, pois remete ao objeto a e implica não a alienação ao desejo do Outro,
mas a separação:
Mas há uma outra função, que institui uma identificação de natureza singularmente diferente, e que é introduzida pelo processo de separação. Trata-se desse objeto privilegiado, desse objeto cuja realidade mesma é puramente topológica, desse objeto do qual a pulsão faz o contorno – o objeto a. (Ibid., p. 242)
O objeto a escapa à função idealizante do amor, já que remete justamente ao que
resiste a todo e qualquer apelo unitário. Para abordar o que escapa ao apelo unitário
vamos nos deter em algumas formulações a respeito do objeto parcial, que Lacan retoma
a partir de um artigo de Abraham intitulado “Essai sur l’histoire du developpement de la
libido”, publicado em 1924. No texto, Abraham oferece uma série de exemplos clínicos;
entre eles um caso de histeria em que a mulher sonha com o pai nu sem os pelos
pubianos. Segundo Abraham, essa falta na imagem do pai é o resultado de uma
incompletude no investimento narcísico do objeto; incompletude característica da
neurose. Lacan não vai tomar essa observação no mesmo sentido que Abraham, ou seja,
no sentido de um desenvolvimento da libido até um objeto total designado pelo
investimento narcísico dos genitais. Lacan vai deter-se nessa observação para acentuar o
que não passa pelo investimento da imagem, um branco, um furo na imagem, uma falta
indicada por essa ausência de pelos pubianos.
As flores que designam no esquema óptico o objeto a não vão mais aparecer na
imagem virtual, mas, ao contrário, vão designar aí uma falta. É nesse sentido que na
retomada do Estádio do espelho no seminário “A angústia” (1962-1963) Lacan coloca um
X no espelho plano, no que antes designava o reflexo da imagem virtual das flores. O X
não designa mais a imagem virtual dos objetos e instintos, mas aponta para esse furo na
imagem, efeito da não especularidade do objeto a.
Figura 5: esquema óptico do seminário “A angústia”
Podemos voltar agora a nossa pergunta sobre o motivo de a criança se voltar para
o adulto que a carrega diante do espelho. A volta da criança, como ilustração do valor do
grande Outro conferido por Lacan ao espelho plano, mescla uma situação triádica: um
investimento libidinal que não passa todo para a imagem, e assim se volta para procurar
no Outro o que a imagem sozinha não poderá lhe dar, pois ela é apenas um dos elementos
que constituem essa operação complexa. O Outro é o espelho plano, mas também é o
lugar do qual virá, fora do espelho, o signo do assentimento I. O I, traço unário, ideal de
eu, ponto fora da imagem, é o ponto a partir do qual a criança tem acesso à imagem do eu
ideal; lugar onde se vê como amável pelo Outro. No entanto, se o traço marca o lugar
simbólico a partir do qual o sujeito se vê sendo visto pelo Outro como amável, o sujeito
nunca tem acesso ao lugar a partir do qual ele é olhado: “ali onde o sujeito se vê, isto é,
onde se forja essa imagem real e invertida de seu próprio corpo que é dado no esquema
do eu, não é lá de onde ele se olha” (LACAN, 1964/1988, p. 137). Essa disjunção entre o
ponto onde o sujeito se vê e o ponto onde o sujeito se olha, marca precisamente a
diferença entre o ideal de eu (traço distintivo) e o objeto da pulsão (objeto parcial que não
é especularizável). O poema de Aragon citado por Lacan no seminário 11 fala-nos dessa
impossibilidade de se ver do lugar de onde somos olhados:
É em vão que tua imagem chega ao meu encontro E não me entra onde estou, que mostra-a apenas Voltando-te para mim só poderias achar Na parede do meu olhar tua sombra sonhada.
Eu sou esse infeliz comparável aos espelhos Que podem refletir mas que não podem ver Como eles meu olho é vazio e como eles habitado Pela ausência de ti que faz sua cegueira (ARAGON apud LACAN, 1964/1998, p.23)
O I designa a função do traço como elemento simbólico e indivisível a partir do
qual o sujeito pode sustentar sua unidade imaginária, seu eu ideal. O objeto a designa o
que faz furo na imagem, o investimento libidinal que não passa todo pela imagem, não é
especularizável, não é traduzível e permanece como parcial, pulsional e resistente a todo
apelo unitário, o olho vazio do poema. O sujeito sustenta sua unidade imaginária a partir
de um ponto fora do espelho, a partir do qual se faz amável para o Outro; contudo, o
lugar a partir do qual é olhado permanece como furo na imagem que o espelho lhe
devolve, sombra sonhada.7 É assim que diante da impossibilidade de se ver no ponto de
onde é olhado, o sujeito encontra no lugar vazio, furo na imagem especular, a
possibilidade de sustentar seu desejo. Podemos então encontrar no Estádio do espelho,
através das indicações i (a), a e I respectivamente, os registros do imaginário, real e
simbólico:
Primeiro i (a), o um especular, o um que agrupa muitos elementos, de um lado, I, o um eminentemente simples, sem nenhuma parte ou partição possível. Do outro lado, ao contrário, a, o murmúrio do que escapa a toda imposição unitária (…) (LE GAUFEY, 1997, p.113)
O registro humano implica essas três dimensões que Lacan designou como real,
simbólico, e imaginário. O gesto da criança que se volta para o adulto que a segura diante
do espelho nos oferece uma espécie de matriz observável do sujeito assim como o gesto
observado por Freud no qual seu neto joga com o carretel. Jogo infantil que ficou
conhecido entre os analistas como fort -da, no qual também encontramos uma espécie de
matriz do sujeito a partir da produção em ato de uma memória, um registro que se produz
a partir de uma perda, uma separação:
Quando Freud percebe a repetição no brinquedo de seu neto, no fort-da reiterado, pode muito bem sublinhar que a criança obstrui o efeito de
7 Podemos pensar aqui no nosso próprio olho. É através dele que nos vemos, mas é impossível ver o olho que nos olha. Como escreve Merleau-Ponty: “Sei que jamais verei meus olhos diretamente e que mesmo em um espelho não posso captar seus movimentos e sua expressão viva. Minhas retinas são para mim um absoluto desconhecido” (Merleau-Ponty apud.Frayze -Pereira, 2006, p.104)
desaparecimento de sua mãe, fazendo-se agente dele – este fenômeno é secundário. Wallon sublinha, não é de saída que a criança vigia a porta por onde sua mãe saiu, indicando que esperava revê-la ali, mas, anteriormente, é o ponto mesmo em que ela o deixou, o ponto que ela abandonou perto dele, que ele vigia. A hiância introduzida pela ausência desenhada, sempre aberta, permanece causa de um traço centrífugo no qual o que falha não é o outro enquanto figura em que o sujeito se projeta, mas aquele carretel ligado a ele próprio por um fio que ele segura – onde se exprime o que, dele, se destaca nessa prova, a automutilação a partir da qual a ordem da significância vai se por em perspectiva. (LACAN, 1964/1988, p. 63)
O jogo, repetido compulsivamente, visa ao que não está representado; ele cria em
ato o objeto que se perde, que se destaca do corpo, mas que é parte do corpo, o objeto a,
objeto parcial da pulsão. É nesse sentido que a repetição da saída da mãe não representa a
mãe a partir de sua ausência, mas causa a divisão do sujeito; aponta tanto para a criação
como para a perda, pois, a cada vez que a criança cria o carretel-objeto, ela o perde:
Esse carretel não é a mãe reduzida a uma bolinha – é alguma coisa do sujeito que se destaca embora ainda sendo bem dele, que ele ainda segura (…) Se é verdade que o significante é a primeira marca do sujeito, como não reconhecer aqui que o obje to ao qual essa oposição se aplica em ato, o carretel, é ali que devemos designar o sujeito. A este objeto daremos ulteriormente seu nome na álgebra lacaniana – o a minúsculo. (Ibid., p.63)
O carretel não simboliza a mãe ausente, mas é uma parte do corpo da criança, é o
próprio objeto pulsional do qual a criança se separa com seu ato inúmeras vezes repetido.
No entanto, não é suficiente apenas o ato, a separação, para que o registro do sujeito
possa ter lugar. É necessário que nesse lugar da queda do objeto pulsional inscreva-se um
traço do sujeito aonde o significante vem se alojar. É necessário que além do ato exista a
suposição de um sujeito, o laço do sujeito ao Outro, laço que permite que o traço que se
inscreve no lugar da queda do objeto possa ser lido por um Outro. É o endereçamento do
sujeito ao Outro o que possibilita uma leitura do traço que se repete. É nesse sentido que
no seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”(1964/1998) Lacan
separa transferência e repetição, pois a repetição não precisa da transferência para
acontecer, como nos mostra o jogo do carretel, mas a leitura do traço que se repete
precisa da transferência, do endereçamento a um Outro; esse Outro é suposto saber ler o
traço inconsciente, como nos mostra o gesto da criança diante do espelho que se volta em
busca do olhar do adulto na esperança de obter uma resposta sobre o seu lugar no desejo
do Outro.
Assim, esses dois momentos observados no comportamento infantil – o gesto que
marca o encontro entre olhares e faz apelo ao amor do Outro, ou o jogo muitas vezes
repetido que coloca em ato a possibilidade de uma memória que se constrói a partir da
perda do objeto – apontam a complexidade do registro humano e enlaçam memória,
repetição e identificação. A identificação que nos permite dizer “é isso” faz apelo ao um;
mas o um imaginário não se confunde com o um distintivo simbólico, assim como o I que
designa o traço não se confunde com o a, que designa o objeto e que resiste a qualquer
apelo unitário. Essa distância entre o ponto I no qual o sujeito se faz objeto amável para o
Outro e o a que designa o ponto em que o sujeito se vê causado como falta aponta toda a
problemática em jogo na dialética das identificações.
Vamos nos deter agora em algumas formulações a respeito do traço trabalhadas
por Lacan no seminário “A identificação”(1961-1962). Nesse seminário, Lacan vai dar
pleno desenvolvimento à função do traço como registro específico do humano, utilizando
pela primeira vez de forma sistematizada o recurso à topologia. Inicialmente ele vai se
preocupar em distinguir a especificidade do registro no humano, diferenciando-o do que
podemos encontrar no reino animal. Sua cadela Boxer nomeada Justine em homenagem a
Sade é usada como exemplo. Justine não toma Lacan como Outro; ela o reconhece como
idêntico a si mesmo. O privilégio da dimensão imaginária no comportamento animal, que
já vinha sendo abordado em diversos exemplos no decorrer de seus seminários, mostra
que, embora os animais domésticos estejam imersos na linguagem, eles não têm acesso à
alteridade, ao funcionamento descontínuo da cadeia significante:
O sujeito puro falante como tal é levado, pelo fato de permanecer puro falante, a tomá-los sempre por um outro. Se há algum elemento de progresso nas vias pelas quais tento levá-los, é fazê-los perceber que ao tomá-los por um outro, o sujeito os coloca ao nível do Outro, com A maiúsculo. É justamente o que falta na minha cadela, só há para ela o pequeno outro. Não parece que sua relação com a linguagem lhe dê acesso ao Outro. (LACAN, 1961-1962, p. 42)
A alteridade simbólica aponta para um registro especificamente humano que não
é encontrado nos animais. Como já observamos, a diferença entre os humanos e os
animais não é a maneira como o corpo é afetado pela imagem, pois em ambos a imagem
tem efeitos formadores sobre o organismo. Efeitos observados tanto nos fenômenos de
mimetismo encontrados no reino animal, como nos efeitos de antecipação da unidade
corporal a partir do reconhecimento da imagem no espelho pelo bebê. O que diferencia o
registro da imagem no humano em relação aos animais é o lugar de onde vem a imagem,
já que no humano esta se constitui a partir da ausência do objeto.
A unidade imaginária, conjunto de elementos heterogêneos, é sustentada no traço
como um distintivo, elemento indivisível. O traço unário herdeiro do Einziger Zug
freudiano é no ensino de Lacan aquele que marca o sujeito como 1. É a estrutura
elementar que estaria na base do significante, um simples 1, no entanto, um 1 distintivo
que se diferencia do um da filosofia como um unificante, unidade imaginária:
Saibam que não os estou dirigindo, nem para o Um de Parmênides, nem para o Um de Plotino, nem para o Um de nenhuma totalidade no nosso campo de trabalho, do qual fazemos desde há algum tempo tanta questão. Trata-se mais do 1 que chamei há pouco de professor; do 1 do aluno X, você me fará cem linhas de 1, isto é, bastões, aluno Y, você tirou 1 em francês! O professor, em sua caderneta, traça o einziger Zug , o traço único do signo para sempre suficiente da notação mínima. É disso que se trata; da relação disso com aquilo que está em jogo na identificação. (Ibid., p. 37)
Na lição 4 do seminário sobre a identificação, Lacan nos apresenta os elementos
que serão trabalhados durante todo o seminário. “La trace d’un pas” é o jogo de palavras
de que parte para abordar os diversos apagamentos através dos quais o significante vem à
luz. Quando Robson Crusoé se depara com a pegada de um passo marcada na areia, sabe
que não está sozinho na ilha. O pas da expressão francesa aponta tanto o passo da pegada
quanto a partícula da negação. Lacan mostra que o passo que é dado pela inscrição do
traço como condição do significante é justamente o passo da negação, do apagamento, “o
passo da coisa apagada” (Ibid., p. 64). O apagamento da relação entre o traço e o objeto-
coisa que ele representa. O passo da pegada na areia é uma marca que aponta para uma
presença a partir de uma ausência, da mesma maneira que a impressão das marcas das
digitais do dedo pode funcionar como o registro de uma presença que se faz sobre o
fundo de uma ausência.
No entanto, para que o traço funcione como significante é necessário que a
relação entre o traço e a presença que ele representa seja apagada. Nos dois exemplos
anteriores – o passo da pegada e a impressão da marca digital do dedo – ainda existe uma
relação de proximidade entre a marca-traço e o objeto-corpo. É nesse sentido que o
significante se diferencia do signo, pois o signo representa alguma coisa para alguém
enquanto o significante representa o sujeito para um outro significante. O significante
implica que a relação do signo com a coisa seja apagada, já que o significante não
significa nada; é pura diferença.
O traço aponta com sua insistência para a inauguração da cadeia significante, por meio
da repetição, para uma memória inconsciente. A questão da repetição da diferença através
do mesmo é abordada por Lacan a partir de exemplos bastante interessantes. O primeiro
refere-se às inscrições encontradas na costela de um animal morto exposta no museu de
Saint Germain, uma série de pequenos bastões feitos provavelmente por um caçador para
marcar os animais abatidos:
Como dizer-lhes dessa emoção que me tomou quando, inclinado por sobre uma dessas vitrines vejo, sobre uma costela fina, evidentemente a costela de um mamífero, uma série de pequenos bastões, dois primeiramente, logo um pequeno intervalo, depois cinco, e depois recomeçando (…) Cada um desses traços não é, em absoluto, idêntico àquele de seu vizinho, mas não é porque são diferentes que funcionam como diferentes, mas em razão de que a diferença significante é distinta de tudo o que se refere à diferença qualitativa. A diferença qualitativa pode, inclusive, sublinhar a mesmidade significante. Essa mesmidade é constituída assim justamente porque o significante como tal serve para conotar a diferença em estado puro. (Ibid., p. 61)
Na identificação significante o que se repete no mesmo é a diferença. Trata-se do
registro de uma unidade simbólica que não se funda sobre a semelhança, como é o caso
da unidade imaginária que surge da comparação entre o registro e seu modelo, entre a
criança em frente ao espelho e a sua imagem no espelho. A unidade simbólica surge do
registro da diferença, uma vez que o traço que se repete é sempre outro traço, diferente do
anterior e também do posterior. O traço é o um contável, o um distinto de outro um.
Trata-se aí de uma unidade distintiva que não é aquela das diferenças qualitativas. O
entalhe do traço no osso do animal inscreve no real uma diferença; a inscrição de um
intervalo no que era pura continuidade e permite uma contagem, o registro de uma
memória inconsciente. Era assim que Sade marcava na cabeceira de sua cama, com
pequenos traços, as mulheres por ele abatidas, da mesma maneira que o caçador marcava
no osso da costela os animais abatidos. Contar os golpes, o traço que conta, o que é isso?
O traço colocado em relação a outros traços é o que dá origem ao saber inconsciente e aí
se distingue do signo para aceder ao significante:
Isso não quer dizer que esse traço único seja, no entanto, dado como significante. De modo algum. É muito provável, se partirmos da dialética que tento esboçar diante de vocês, que seja possivelmente um signo. Para se dizer que isso seria um significante seria preciso mais. É necessário que ele seja ulteriormente utilizado em, ou que esteja em relação com uma bateria de significantes. (Id., 1960-1961/1991, p. 344)
Seria necessária então uma série de traços, na qual cada um encontraria sua
função na referência aos demais, e um sistema de traços se estabeleceria. O traço que
inaugura uma série, uma cadeia em que a relação ocorre entre os traços e não entre o traço
e a coisa que ele representa. A relação com o objeto representado fica definitivamente
apagada. O traço inserido em uma série funciona então como significante e inaugura uma
cadeia de significantes que remetem sempre uns aos outros, em relações de oposição e
cuja efetividade se encontra em Outro campo que não o do real:
É que o significante não é um signo. Um signo é representar alguma coisa para alguém, o alguém está lá como suporte do signo. A primeira definição que podemos dar de um alguém, é alguém que está acessível a um signo. É a forma, a mais elementar, se podemos nos exprimir assim, da subjetividade. Não há objeto algum aqui ainda, há outra coisa, o signo, que representa esta alguma coisa para alguém. Um significante se distingue de um signo, primeiramente por aquilo que tentei fazer vocês sentirem, é que os significantes não manifestam senão a presença, em primeiro lugar da diferença e nada mais. A primeira coisa que ele implica é que a relação do signo com a coisa está apagada. (Id., 1961-1962, p. 63)
O ato realizado pelo caçador de marcar um a um os animais mortos implica
também um registro temporal, inaugura uma possibilidade de contagem ao introduzir
uma diferença no campo do real. É a partir dessa inscrição do significante no real que o
sujeito pode se contar no tempo já que ele não está mais submerso em um presente
infinito. O significante introduz uma descontinuidade em um campo que era a princípio
continuidade. A partir dessa descontinuidade é possível a contagem; um antes e um
depois. Essa primeira inscrição significante de uma diferença permite que o sujeito se
reconheça em diferentes momentos como sendo ele mesmo, como sendo ainda ele. Existe
aí algo que permanece e que se constitui como unidade que se mantém constante na
passagem do tempo. No entanto, a unidade não é garantida apenas por uma relação entre
o modelo e seu registro; por uma suposta identidade entre a percepção e o objeto, pois,
como já observamos, a referência imaginária é insuficiente para garantir uma contagem,
embora ela seja necessária quando o sujeito pode se contar como um entre outros, como
um entre outros semelhantes.
A unidade imaginária do eu, continua Lacan no seminário 11, necessita do apoio
do significante, pois é ele que possibilita a contagem a partir da descontinuidade. É nesse
sentido que a inscrição do traço, a semelhança da memória posta em ato pelo jogo do
Fort-da, pode ser tomada como pré-condição para que a representação possa ter lugar. É
a partir dessa inscrição que o sujeito pode se contar como um entre outros, pura diferença
entre iguais, unidade imaginária sustentada na descontinuidade do traço significante. O
traço unário é o fundamento do cálculo do sujeito; no entanto, esse cálculo já funciona
antes que o sujeito saiba contar:
O importante, para nós, é que vemos aqui o nível em que, antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que se situa aí, isso conta, é contado, e no contado já está o contador. Só depois é que o sujeito tem que se reconhecer ali como contador. Lembremos a topada ingênua em que o medidor de nível mental se esbalda com sacar o homenzinho que enuncia: ‘tenho três irmãos, Paulo, Ernesto e eu.’ Mas é muito natural, primeiro são contados os três irmãos, Paulo, Ernesto e eu, e depois há o eu no nível em que se diz que eu tenho que refletir o primeiro eu, quer dizer, o eu que conta.(Id., 1964/1988, p. 26)
O eu se conta a partir do que foi contado, do lugar em que foi contado como um
traço entre outros, um objeto entre outros. No entanto, “a singularidade vai dizer respeito
a um traço que pode capturar o olhar do Outro” (Costa, 2003, p.19). É a partir desse
primeiro registro, dessa primeira inscrição inconsciente, que diz respeito ao desejo do
Outro, ao lugar a partir do qual o sujeito sustenta sua imagem como imagem ideal,
desejada pelo Outro, que o sujeito pode se reconhecer como eu. Para se contar é preciso
também contar o Outro, como a criança que se volta para aquele que a segura diante do
espelho em busca do seu olhar, do signo do assentimento, da escolha de amor do Outro;
ou do jogo do carretel, que situa a criança como representante de algo que falta à mãe8.
Como já apontamos, a referência ao desejo do Outro que permite a leitura do
traço inconsciente implica tanto a alienação como a separação e é nesse sentido que a
conta deve levar em conta o que não se pode contar. Em “De um Outro ao outro” Lacan
afirma que:
8 Segundo Costa, o jogo do carretel só torna possível a construção de uma memória porque a mãe, mesmo na sua ausência, produz uma presença como representação. No entanto, para que isso ocorra foi preciso que antes, na presença da mãe houvesse a experiência de uma ausência partilhada. A mãe tomou seu filho como sendo o representante de algo que a satisfaria. “Logo, esse filho, sendo um representante, seria ao mesmo tempo presença e ausência; sua presença ao mesmo tempo lembra o que falta à mãe, mas lembra o que não é. No entanto é preciso que a mãe reconheça que ele possa ser um representante, logo, autorize sua presença.” (2001, p. 37)
Para que o fato da falta apareça é necessário que se diga não há a conta. Para que alguma coisa falte é preciso que haja o contado. A partir do momento em que há o contado há também efeitos do contado sobre a ordem da imagem. Esses são os primeiros passos da episteme, da ciência, de um certo número de harmonias, musicais, por exemplo; elas nos dão o modelo disso. É lá que se podem constatar faltas, que não têm nada a ver com o que na harmonia se coloca simplesmente como intervalo. Há lugares em que não se conta. Toda a ciência que chamaremos de antiga consiste em apostar que esses lugares em que não há conta se reduzirão, um dia, aos olhos do sábio, a intervalos constitutivos de uma harmonia musical. Trata -se de instaurar uma ordem do Outro graças à qual o real toma estatuto de mundo, cosmo, implicando essa harmonia. (Id., 1968-1969, p.290)
Bonita metáfora utilizada por Lacan para abordar o real como aquilo que não se
conta, e que o sonho dos antigos busca contar, transformando o incontável em intervalos
significantes de uma harmonia perfeita, que cantaria a totalidade do cosmo. Sonho
semelhante encontramos nos rituais obsessivos, apontados por Lacan no seminário “A
identificação”, através dos quais o neurótico visa encontrar o que há de real na origem,
buscando transformar o significante naquilo de que ele é o signo:
O neurótico não sabe, e não sem razão, que é o significante enquanto o significante é o apagador principal da coisa; que é ele, o sujeito que, ao apagar todos os traços da coisa, faz o significante. O neurótico quer apagar esse apagamento, quer fazer com que isso não tenha acontecido. Esse é o sentido mais profundo do comportamento sumário, exemplar, do obsessivo. (1961-1962, p. 194)
Sonho inútil de ser, e não apenas parecer, como a busca impossível da
personagem Elisabet do filme de Bergman, que se refugia no mutismo. Essa busca pelo
impossível da origem marca a relação já abordada anteriormente entre o traço unário e a
repetição que funda a lógica do saber inconsciente e aponta para a equivalência entre o
registro significante e o apagamento. Nesse sentido, na memória inconsciente, registrar
equivale a apagar/conservar, e o que se repete, se conserva é a marca de gozo do objeto
apagado. O traço unário designa algo radical na experiência originária, algo que remete à
unicidade do objeto que o traço retém e que se repete. Na neurose, a busca pelo unário
confunde-se com a busca pela origem de uma satisfação primeira, na qual o significante
ficaria reduzido a um signo do objeto da satis fação. Contudo, a cada tentativa de anular o
apagamento que o registro significante realizou, é novamente o apagamento que surge na
repetição:
Penso ter marcado suficientemente para vocês, que a noção da função da repetição no inconsciente se distingue absolutamente de todo ciclo natural, no sentido de que o que é acentuado não é seu retorno, é que o que é procurado pelo sujeito, é sua unicidade significante e enquanto uma das voltas da repetição se podemos dizer, marcou o sujeito que se põe a repetir o que ele não poderia evidentemente repetir, pois isso nunca será mais que uma repetição, mas com o objetivo, com o desígnio de fazer ressurgir o unário primitivo de uma de suas voltas. Com o que acabo de lhes dizer, não me é necessário acentuar isso, é que isso já funciona antes que o sujeito saiba contar. (Id., p. 177)
Se o traço unário retém do objeto sua unicidade, sua marca de gozo, ele também
remete ao que existe da letra no significante. Isso nos leva a abordar o que Lacan articula
a propósito do nome próprio. Lacan vai aproximar o traço unário do nome próprio, na
medida em que os dois guardam relação com a marca. Embora o traço unário não se
confunda com o objeto da pulsão – o primeiro, um distintivo que inaugura a possibilidade
de contagem; o segundo, parcial, resistente a qualquer tentativa de abordagem unitária ou
possibilidade de contagem – podemos estabelecer entre eles aproximações. Já
anunciamos a relação existente entre o traço unário e a marca de gozo do objeto da
pulsão, relação que joga seu jogo na repetição do saber inconsciente. Todavia, como
apontamos, para funcionar como significante, é necessário que o traço que vem se
inscrever no lugar da queda do objeto que se destaca do corpo seja inserido em uma série
na qual um traço remete a outro traço e não mais ao objeto-coisa por ele representado;
além disso, essa série só existe se o Outro for incluído na conta, se houver a possibilidade
de endereçamento ao Outro suposto poder ler o traço que se repete. Veremos agora que a
articulação entre o nome próprio e a marca remete Lacan à função da escrita.
Ainda no seminário “A identificação”, debatendo com Russell, para quem o
nome próprio é um demonstrativo, e com Gardiner, que acentua no nome próprio a
função do material sonoro, Lacan anuncia que o que caracteriza o nome próprio é o seu
laço com a escrita, mais especificamente com o traço unário:
Digo que não pode haver definição do nome próprio senão na medida em que nós nos apercebemos da relação da emissão nomeadora com algo que em sua natureza radical é da ordem da letra. Sem dúvida alguma podemos admitir que o homem, desde que é homem, tem uma emissão vocal como falante. Por outro lado, há algo que é da ordem daqueles traços de que lhes contei a emoção admirativa que eu tive ao encontrá-los marcados num certo alinhamento sobre algumas costelas de antílope. Há no material pré-histórico uma infinidade de manifestações de traçados que não têm outro caráter senão serem como este traço dos significantes e nada mais. (Ibid., p.90)
O que aproxima o nome próprio do traço unário é justamente que ambos
funcionam como distintivos; ambos podem desempenhar o papel de marca, de traçado. O
que caracteriza o nome próprio é o que o liga não ao som, mas à escrita como marca:
De uma língua para outra a estrutura do nome próprio se conserva, sua estrutura sonora provavelmente, mas essa estrutura sonora se distingue pelo fato, justamente, de que a esta, em meio a todas as outras, nós devemos respeitar, e isso em razão da afinidade do nome próprio com a marca, com a designação direta do significante como objeto. (Ibid., p. 94)
A afinidade do nome próprio com a marca e não com o som fica evidente com a
impossibilidade de tradução do nome próprio. Sua amarra literal permite que o nome
passeie de uma língua a outra, sempre inalterado. O nome próprio é então a impressão
primária de uma marca distintiva do sujeito que aponta a relação do significante com o
objeto. Por que Lacan relaciona essa marca à letra? É interessante apontar que a origem
da letra no ocidente remete ao comércio, e era aquilo que “permitia aos homens se
entenderem rapidamente e facilitava suas relações”(MATUCK apud WILLEMART,
1999, p. 81). No Oriente, ainda segundo Willemart, a pele, a pedra, a cera e a folha
serviram de suporte à escrita até a descoberta do papel pelos chineses. Diferentes suportes
que afirmam a relação entre a marca e a letra, que, por outro lado, no Ocidente, relaciona -
se à possibilidade de troca regulada pelas leis do comércio. Temos aí então dois aspectos
da letra: um primeiro, que remete a sua materialidade, a seu traçado, e um segundo, que
remete às leis e a seu estatuto simbólico como objeto de troca.
Podemos nos perguntar então o que permite que determinada grafia seja
considerada uma letra? Freud nos oferece pistas, ao abordar o funcionamento
inconsciente tal qual o funcionamento de uma escrita que tem o valor imaginário de suas
figuras apagado para que a possibilidade de leitura possa ter lugar. Freud compara o
sonho a uma escrita hieroglífica:
O conteúdo manifesto nos é dado como um hieróglifo, que para solucionar precisamos traduzir cada um de seus signos para a linguagem das idéias latentes. Erraríamos se quiséssemos ler tais signos dando a eles o valor de imagens pictóricas e não o de caracteres de uma escrita. (FREUD, 1898-1900/1981, p.520)
Para Freud, as imagens do sonho não têm sentido como imagens e, sim, como
letras, silabas de uma escrita a ser traduzida. As cenas descritas nos sonhos são rébus,
resultantes do trabalho do sonho. Elas visam a fazer reconhecer os desejos inconscientes
e isso só é possível mediante o soletramento de figuras, de cenas portadoras de um
discurso cifrado. A letra do sonho é uma letra híbrida, um misto de desenho e escrita que
aponta para o exercício pulsional, e é essa a dimensão que Lacan privilegia na sua
conjectura a propósito da origem da escrita. Lacan se afasta da suposição evolutiva de
alguns historiadores sobre essa origem; historiadores que tomam a grafia como tendo sido
primeiro uma figura imitativa do objeto, que daria lugar, através de uma abstração
progressiva, a um puro signo do objeto, como é o caso do ideograma; finalmente,
chegaria ao estatuto da letra como suporte fonético, como é o caso da escrita alfabética.
Para Lacan, a escrita remete ao laço da linguagem com o real, no qual o
funcionamento da linguagem remete “àquela coisa que no real leva a sua marca”
(LACAN, 1961-1962, p. 98). É esse laço que fundamenta a conjectura de Lacan a
propósito da origem da escrita como decorrente não de um processo evolutivo, mas de
uma leitura dos signos que antecede a escrita:
É, portanto, enquanto sujeito, a propósito de algo que é marca, que é signo, já lê antes de se tratar dos sinais da escrita, que ele percebe que sinais podem trazer pedaços diversamente reduzidos, recortados de sua modulação falante e que, invertendo sua função, pode ser admitido a ser em seguida o suporte fonético. (Ibid., p. 98)
A leitura do signo que antecede a escrita implica a existência de dois cortes
realizados por Lacan em relação às hipóteses históricas a propósito da origem da escrita.
Um primeiro corte refere-se à existência material da letra que independe de sua função de
notação fonemática. Existe um material literal anterior à escrita e esta não é a estilização
de um desenho, abstração de uma figura concreta em sua origem. Essa literalidade está
ligada àquilo que no real carrega uma marca, como, por exemplo, a pegada do passo na
areia. Esse primeiro corte aponta para um primeiro tempo na produção das marcas-signos
em que o real é traçado a partir da proximidade entre os símbolos e as coisas.
Um segundo corte implica o apagamento do objeto resultante da inscrição do
traço-corte e da sua referência a outros traços, como, por exemplo, a inscrição da série de
traços na costela do animal morto pelo caçador. Esse segundo corte aponta para um
segundo tempo da produção das marcas, que coloca o traço em relação a outros traços9. O
traço que inaugura a memória inconsciente não é a lembrança da figura do objeto, mas o
apagamento do objeto através do um que marca a unicidade do objeto:
Um significante é uma marca, um rastro, uma escrita, mas não se pode lê-lo só. Dois significantes é um qüiproquó, juntar alhos com bugalhos. Três significantes é o retorno daquilo de que se trata, isto é, do primeiro. É quando o passo marcado no rastro é transformado no vocalize de quem o lê, em pas (não), que esse passo, na condição de que se esqueça que ele quer dizer o passo pode servir inicialmente, no que se chama de fonetismo da escrita, para representar pas e, ao mesmo tempo, para transformar o rastro do passo (la trace de pas) eventualmente em nenhum rastro (pas de trace). (Ibid., p. 137)
A leitura do rastro (signo-marca) permite que o rastro do passo seja transformado
em nenhum rastro (significante-vocalização). Existe aí uma contemporaneidade entre o
surgimento da linguagem e o surgimento da escrita, e uma antecedência da leitura em
relação à escrita. É a leitura do signo que funda o escrito. Assim, o que precede a escrita,
9 Segundo Costa, a divisão em dois tempos é arbitrária, pois é somente a partir do segundo que se pode supor o primeiro tempo, e nesse sentido “para que o humano produza um traço, precisa estar em relação a que ele mesmo tenha sido produzido como traço” (2003, p. 53).
marca, rastro, signo é lido com a linguagem e aí transformado em escrita. A leitura do
signo é ao mesmo tempo anterior ao escrito e também constituinte do escrito, e é ela que
estabelece a distância entre o signo e o objeto:
A leitura do signo, que se faz com elementos da linguagem, instaura assim uma relação entre marcas, vestígios, figuras, traços ou tudo o que se quiser acrescentar, sendo o conjunto subsumido aqui sob o termo signo, e esses elementos linguajeiros que chegam, na leitura, e devido à leitura, a nomear esses signos. Essa leitura do signo já fa z virar a relação ao objeto, já que o mesmo nome vale ali para o objeto e para esse traço que o representa, esse traço que, fora de toda a figurabilidade, será no só depois dessa leitura, identificável como um signo do objeto. A leitura do signo já faz objeção à idéia de um isomorfismo entre o signo e o objeto. (ALLOUCH, 1995, p.143)
Veremos, no capítulo intitulado “Escritas”, o lugar fundamental dado por Lacan à
leitura; leitura que remete ao laço do sujeito ao Outro e à possibilidade de fazer com que
o traço, que ao mesmo tempo singulariza e identifica o lugar do sujeito, possa circular por
diferentes lugares como os laços de trabalho ou de casamento, e não apenas ficar
circunscrito ao lugar/leitura que lhe foi dado pelas relações primárias. O sujeito lê um
traço distintivo e lhe dá um nome antes que saiba servir-se da língua falada. O nome
próprio é o elemento ligado a esse traçado que aponta para a relação entre o real e a
linguagem; traçado que antecede a fonetização e que remete à literalidade da letra como
marca distintiva que pode funcionar como elemento simbólico quando apagada. A
assinatura do nome é esse traço distintivo que carrega elementos heterogêneos, a
materialidade da letra como marca distintiva que remete a relação entre simbólico e real e
à representação simbólica do traço significante:
O sujeito, no limite e para fazer sentir a dimensão original do que se trata, o chamarei aquele que substitui seus traços por sua assinatura. E vocês sabem que uma assinatura, não é pedir muito para constituir alguém em sujeito, um analfabeto na prefeitura que não saiba escrever, é suficiente que ele faça uma cruz, símbolo da barra, do traço apagado, a forma mais clara disso que se trata. Quando inicialmente, se deixa um signo e, depois, quando alguma coisa o anula, isso é suficiente como assinatura. (Id., 1968-1969, p. 306)
O nome próprio se aproxima do traço unário através da relação de ambos com a
materialidade da letra. Assim, o nome próprio remete ao laço no corpo entre o
significante e a pulsão, e aponta o desejo do Outro, o traço que captura o olhar do Outro e
singulariza o sujeito. No filme “O livro de cabeceira”, de Peter Greenaway, o diretor
aborda tal relação de uma maneira extremamente clara, da qual Costa (2001, p. 142) nos
oferece um precioso relato. O filme começa com um ritual no qual o pai escreve no rosto
da filha a história da criação e, qual um Deus, coloca sua assinatura nas costas dela. Na
cena seguinte, o pai escritor recebe seu editor e, através de uma fresta, a menina observa
esse encontro no qual o pai é sodomizado em troca da publicação de seus livros. Ao
mesmo tempo, alheia ao que ocorre na sala ao lado, sua tia lhe apresenta o livro das
mulheres, a escrita milenar dos diários, o livro de cabeceira em que as mulheres escrevem
seu cotidiano. São dois mundos incomunicáveis, mas que possuem um elemento comum:
a escrita. Quando adulta, ela vai buscar amantes escribas de seu corpo, repetindo o ritual
da infância. Um dia, depara-se com um estrangeiro, tradutor de muitas línguas. Este não
se mostra um bom escriba e, então, convida-a a mudar de posição e oferece seu corpo
para que agora seja ela quem o escreva.
Ela passa, assim, do lado da autoria e reconhecimento dos diários privados (0
livro de cabeceira) para a circulação pública. O filme propõe a metáfora do corpo como
um livro. Com o amante tradutor, a personagem encontra a satisfação tão buscada no
encontro entre corpo e letra: “Ele me escrevia em tantos idiomas que eu parecia um
sinalizador… tive sapatos em alemão, meias em francês, luvas em hebraico… ele só me
deixou nua onde eu costumava usar roupas”. (GREENAWEY apud COSTA, 2001, p.
140-141) A relação entre o nome próprio e a letra aponta para essa letra híbrida
encontrada nos sonhos por onde se realiza o exercício pulsional; letra que se aproxima do
objeto da pulsão, letra inscrita no corpo no qual produz prazer, erotiza, ao mesmo tempo
em que contorna.
A relação entre o nome próprio e o ideal de eu também aponta para essa letra
híbrida por onde se realiza o exercício pulsional e o laço do sujeito ao Outro. Trata-se do
traço, da inscrição que aponta para o olhar do Outro, para o desejo do Outro. No filme
fica clara a relação entre o nome, o corpo e o reconhecimento instaurado pelo traço-letra.
O traço-letra é ao mesmo tempo o que erotiza o corpo e o que permite o reconhecimento
do sujeito através de uma inscrição simbólica:
Uma das formas mais antigas de encarnar, no corpo, esse órgão irreal, é a tatuagem, a escarificação. O entalhe tem muito bem a função de ser para o Outro, de situar o sujeito, marcando seu lugar no campo das relações do grupo, entre cada um e todos os outros. E, ao mesmo tempo, ela tem, de maneira evidente, uma função erótica, de que todos aqueles que abordaram sua realidade se aperceberam. (LACAN, 1964/1988, p.195)
Nesse exemplo Lacan compara a pulsão à tatuagem. A tatuagem remete à marca
que enlaça no corpo o significante e a pulsão, a essa espécie de órgão irreal que Lacan
compara a uma lâmina. A marca erotiza o corpo, produz prazer, ao mesmo tempo em que
remete a um lugar simbólico de pertencimento a determinado grupo. O mesmo podemos
dizer sobre o nome próprio, que erotiza o corpo e aponta para o lugar do sujeito no desejo
do Outro. No entanto, é interessante observar que o nome próprio também pode
funcionar como uma espécie de sutura que encobre o lugar vazio do objeto da pulsão,
colocando no seu lugar o ideal10. Essa sutura decorre da ligação entre o nome próprio e o
traço distintivo do ideal de eu, dos engodos que o laço amoroso entre o sujeito e o Outro
promove, mas as formações do inconsciente podem fazer fracassar o nome próprio em
sua função de sutura. Veremos a seguir como isso ocorre, por meio de alguns exemplos
trabalhados por Philippe Julien.11
O primeiro exemplo refere-se ao esquecimento do nome que, no lugar de
confortar o ideal de eu, introduz aí uma falha, um equívoco. Freud12 viaja com um jurista
berlinense e lhe fala a respeito dos afrescos de Orvieto sobre o juízo final, e é nesse ponto
de sua conversa que o nome do pintor Signorelli lhe escapa. Contudo, como observa
Julien (1983, p. 66), não se trata aí de um simples esquecimento do nome, mas sim da
formação de substitutos como Botticelli e Boltraffio, que vêm rodear e especificar um
lugar vazio. Esses nomes substitutos não encobrem o lugar vazio deixado pelo
esquecimento do nome Signorelli. O nome próprio faz limite à função de substituição
engendrada pela metáfora, uma vez que o nome próprio ligado ao traço distintivo do ideal
de eu não pode ser metaforizado, não pode ser substituído, traduzido de uma língua para
10 Para Lacan, o amor pode funcionar como uma miragem especular, um engodo a partir do qual o sujeito se faz amável para o Outro. Esse lugar ideal é ponto onde o sujeito é visto pelo Outro de uma maneira que lhe agrada: “Eu lhes expliquei seu mecanismo ao referi-lo à relação narcísica pela qual o sujeito se faz objeto amável. Por sua referência àquele que deve amá-lo, ele tenta induzir o Outro a uma relação de miragem na qual o convence de ser amável.” (LACAN, 1964/1998, p. 253). Nessa miragem, o ponto I que designa o ideal de eu aparece no lugar de a; o objeto da pulsão. Em um processo de análise o sujeito se faz amável para o analista no lugar do Outro. Mas uma análise não pode se deter aí e deixar-se levar pelos engodos do amor transferencial. Como diz Lacan, “não basta que o analista suporte a função de Tirésias, é preciso, como diz Apollinaire, que ele tenha mamas” (1964/1998, p. 255). Com isso Lacan aponta que a transferência deve fazer surgir o objeto a para além da relação amorosa e conduzir o sujeito ao ponto em que ele se vê causado como falta: “Eu me dou a ti, diz ainda o paciente, mas esse dom de minha pessoa se transforma inexplicavelmente em presença de uma merda.”(LACAN, 1964/1998, p. 254) 11 JULIEN, P. Le nom propre et la lettre. Litoral, Paris n. 7/8, p. 57-75, fevrier 1983. 12 FREUD, S.(1900-1901) Psicopatologia de la vida cotidiana , 4 ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Sigmund Freud Obras Completas, Tomo I).
outra. O nome próprio se transfere de uma língua a outra inalterado em sua materialidade,
em sua literalidade.
Escrevendo a posteriori sobre esse episódio do esquecimento, Freud reconstrói o
caminho da associação de suas idéias. Ele está na cidade de Herzegovina, e esse nome
lembra-lhe um costume de seus habitantes, que é o de confiarem em seus médicos. Nesse
sentido, o parente de um paciente que tem uma doença incurável pode dizer a seu
médico: “Herr (senhor) não há nada o que dizer. Sei que se pudesse salvá-lo o senhor o
teria salvo”. ( FREUD apud JULIEN, 1985, p. 67) A associação de idéias de Freud leva-o
a outra história, ouvida do mesmo colega e referente aos habitantes dessa cidade. A
história refere-se aos hábitos sexuais: “Sabe senhor (Herr), quando isso já não funcionar,
a vida perderá todo o valor”(ibidem). Nesse ponto, Freud se cala e a história se enlaça a
uma notícia recebida por ele em Trafoi: um paciente com quem ele se importava bastante
havia se matado em função de uma perturbação sexual incurável. Segundo a leitura de
Julien, as associações de Freud a propósito do esquecimento do nome levam-no a uma
falta que diz respeito a sua imagem de médico diante da doença, do sexo e da morte. Ao
perder sua assinatura, Freud não pode falar, não pode sustentar-se a partir do traço no
qual se vê sendo visto como amado pelo Outro e depara-se com o vazio que o nome
próprio não pode mais suturar:
Este ato falho é um ato bem sucedido, pois nesse ponto de perda de sua identidade, de não referência, de escotoma do olho de onde Freud se vê no Outro como Herr e Amo da vida, se encontra o lugar vazio de seu desejo. Ali está o verdadeiro de sua identificação, em esse ponto onde no exterior, no Outro, não há nada; o nome está perdido. Desse modo o esquecimento de Signorelli leva Freud a seu desejo, por tropeço no limite do narcisismo, do amor. (Ibid., p. 69)
A formação inconsciente aponta para uma fragmentação do nome que Julien
interpreta de uma maneira diferente da leitura de Freud. Freud privilegia a série Herr/
signor/Signorelli que pressupõe uma tradução do alemão para o italiano. Já Julien
privilegia a série sig/mund sig/norelli, destacada por Lacan no seminário “Problemas
cruciais para a psicanálise” (1965). Em um primeiro momento, o nome Sigmund, que não
aparece, enlaça-se em um segundo tempo da cadeia significante a Signorelli e o faz cair.
As letras S I G, do nome próprio de Freud, são subtraídas e permanecem à espera. O
inconsciente abriu uma via. Agora resta a Freud “fazer cair de outro modo o SIG de seu
nome no lixo (poubelle), publicando (poubliant) seu livro Psicopatologia da vida
cotidiana” (Ibid., p. 69). Nesse exemplo fica evidente a função determinante da
materialidade da letra através do laço Sigmund/Signorelli; laço que não se constrói a
partir do sentido ou da delimitação acústica das sílabas, mas em função do traçado da
letra.
O outro exemplo dado por Julien refere-se ao sonho de um homem que descobriu,
através do discurso familiar, que o patronímico que constitui a sua linhagem paterna
havia perdido uma letra (a letra H) com o passar do tempo. Um sonho vem responder a
esse lugar vazio deixado pela queda da letra. Ele sonha com sua mãe que tem uma fratura
em H no braço esquerdo. No sonho ele se aproxima da mãe para curá-la, ocupando o
lugar do médico ausente. Assim, a fratura no nome próprio surge no sonho sobre a
imagem do corpo da mãe: “o sonho desenha uma borda em forma de H no Outro, borda
de uma falta onde o filho encontra seu lugar, o de pai ausente” (Ibid., p.71).
Julien privilegia nesse sonho a função da leitura, na qual o traçado da fratura é
lido através da denominação da letra perdida do nome, a letra H. Esse sonho é
interessante, pois a letra H não é fonetizável; é uma letra muda e, nesse sentido, o sonho
exibe com clareza que a letra não é pura transcrição de um fonema, como aponta Lacan
em sua conjectura sobre o nascimento da escrita. A leitura é o trabalho do inconsciente
que nesse sonho faz da letra perdida “uma falta em forma de H sobre a imagem do corpo
do Outro” (Ibid., p. 72). Na leitura, o signo se separa do objeto; o nome próprio separa-se
do traço distintivo do ideal de eu – através do qual o sujeito sustentava o eu ideal: sua
imagem de objeto amado pelo Outro – para deixar cair o objeto- letra que aponta para o
lugar vazio do desejo do Outro. É nesse sentido que a análise não pode restringir-se ao
valor ideal do nome próprio, aos engodos do amor de transferência onde amar equivale a
ser amado, mas apontar a distância entre o I e o a, o ponto de falta que causa o sujeito.
Veremos a seguir como os traçados do traço e da letra determinam fronteiras e bordas
que organizam o corpo e a circulação do sujeito dentro de uma realidade discursiva.
2.3. BORDAS E FRONTEIRAS
A realidade discursiva é permanentemente atravessada pelo saber inconsciente,
visto que o inconsciente é o discurso do Outro e não pode ser pensado apenas como algo
que diz respeito à subjetividade de um indivíduo, e sim como “transindividual” (LACAN,
1953/1998, p. 260). É nesse sentido que podemos tomar como vestígios do inconsciente
os monumentos, documentos de arquivo, tradições e lendas que fazem parte da realidade
discursiva que estrutura nossos laços sociais:
O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser resgatada; na maioria das vezes, já está escrita em outro lugar. Qual
seja: -nos monumentos: e esse é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda grave; -nos documentos de arquivo: e esses são as lembranças de minha infância, tão impenetráveis quanto eles, quando não lhes conheço a procedência; -na evolução semântica: e isso corresponde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de minha vida e a meu caráter; -nas tradições também: nas lendas que sob forma heroicizada veiculam minha história; -nos vestíg ios, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e cujo sentido minha exegese restabelecerá. (LACAN, 1953/ 1998, p. 260-261)
O saber inconsciente não se revela diretamente nos discursos que estruturam os
laços sociais; ele está sujeito a deformações que se produzem a partir de metáforas e
metonímias, efeitos do recalque. O recalque produz um apagamento, um esquecimento ao
qual Lacan, em “Os quatro conceitos…”, associa a função da censura, a censura material
realizada pelo censor que recorta algumas palavras, apaga outras e o texto acaba ficando
ininteligível:
Obliviun é o que apaga- o quê? - o significante como tal. Aí está onde reencontramos a estrutura basal que torna possível, de modo operatório, que alguma coisa tome a função de barrar, de riscar uma outra coisa (…) Muito bem, este elemento operatório do apagamento, é isto que Freud designa, desde a origem, na função da censura. (Id., 1964/1988, p. 31)
Lacan vai situar o recalque recorrendo a diferentes termos no decorrer de seu
ensino: a barra, o apagamento, o esquecimento, a negação, o corte, etc... Mas sempre
levando em consideração a negatividade que o significante institui; negatividade que
encontra nessa espécie de aforismo lacaniano: “a palavra é a morte da coisa”, uma
tradução precisa. Como já mencionamos Lacan trabalha a função do traço como condição
do significante. O passo que é dado pela inscrição do traço nessa condição é justamente o
passo da negação, do apagamento da relação entre o traço e o objeto-coisa que ele
representa. O apagamento que em “A identificação” faz de “la trace de pas” um “pas de
trace” (1961-1962).
O recalque funda a realidade discursiva e determina as condições que sustentam o
lugar do humano, que se distingue do animal por sustentar-se a partir de traços feitos para
serem falsos. Falsos traços que recortam bordas e fronteiras antes inexistentes; interior e
exterior, contínuo e descontínuo, presença e ausência, masculino e feminino: “Tudo surge
da estrutura do significante. Essa estrutura se funda no que primeiro chamei a função do
corte, e que se articula agora, no desenvolvimento de meu discurso, como função
topológica da borda.” (Id., 1964/1998, p. 196)
A função do corte é associada à função do significante, ao traço-tesoura que
recorta o corpo e determina suas bordas. Para compreendermos como o recalque produz
as fronteiras que organizam a circulação do humano dentro de uma realidade discursiva
marcada pela descontinuidade e determina as bordas corporais nas quais a pulsão faz seu
trajeto, podemos partir da proposta freudiana. Freud propõe uma divisão original da
experiência de realidade especialmente trabalhada no texto sobre a denegação. (FREUD,
1925/1981)
A denegação é uma Aufhebung (negar, suprimir, conservar, suspender) do
recalque, através da qual o sujeito apresenta-se à maneira do não ser: “vou lhe dizer o que
não sou, atenção é precisamente isso que sou” (HYPPOLITE apud LACAN, 1998, p.
895). Trata-se de um momento mítico, uma operação lógica que funda o sujeito do
inconsciente em uma espécie de continuidade moebiana entre simbólico e real. Em um
primeiro momento, interior-exterior, subjetivo–objetivo estariam indiferenciados. A
diferença vai ser introduzida justamente através da operação exercida pela denegação,
que se constitui a partir de uma afirmação primordial, Bejahung e de uma negação-
expulsão, Ausstossung. Da afirmação primordial surge um juízo de atribuição que fornece
às coisas suas qualidades:
A qualidade pode ser originalmente boa ou má, útil ou nociva. Dito em linguagem dos impulsos orais mais primitivos: “isto o comerei” ou “isto o cuspirei”. E em uma transposição mais ampla: “Isto introduzirei em mim” (introjezieren) e “isto o excluirei de mim” (verwerfung). Ou seja: “deve estar dentro de mim” ou “fora de mim”. O eu primitivo regido pelo princípio do prazer quer introjetar todo o bom e expulsar de si todo o mau. O mau, estranho ao eu e o exterior são em princípio idênticos. (FREUD, 1925/ 1981, p. 2885).
Através da afirmação (Bejahung), constitui-se o que pode fazer parte do eu; o que
será introjetado pelo eu e o que pode não fazer parte do eu e será excluído. Trata-se aí de
um eu arcaico, para o qual não havia ainda nada estranho a ele; um eu corporal regulado
pelas experiências de prazer-desprazer, nossos organizadores pulsionais. O eu corporal
pode introjetar como próprias coisas que a princípio não fazem parte do corpo biológico,
e rejeitar partes do corpo biológico como estranhas ao eu corporal. Quero dizer com isso
que essas primeiras fronteiras que traçam os limites do eu-corporal não traçam
necessariamente um corpo conforme os signos dados pela anatomia, uma vez que se trata
aí de um corpo representado. A afirmação (Bejahung) constitui então o campo do eu
prazer e também o campo do não eu desprazer, campo do objeto como resto, como
estranho. Através da negação (Ausstossung) constitui-se um juízo de existência que
fornece orientação na construção da realidade, a partir da relação entre a representação e
a percepção, cuja prova de realidade é baseada na possibilidade de reencontrar o objeto:
A outra decisão da função do juízo, a referente à existência real de um objeto imaginado, é um interesse do eu real definitivo, que se desenvolve partindo do eu inicial regido pelo princípio de prazer. Não se trata mais de se algo percebido (um objeto) vai ser ou não acolhido no eu, mas de se algo existente no eu como imagem pode ser também reencontrado na percepção (realidade). Como podem ver, é de novo uma questão do interior e do exterior. (Ibid., p. 2885)
Podemos supor, ao acompanhar a leitura de Didier-Weill (1997), que na origem o
sujeito que ainda não está lá, mas está por vir, diz sim a alguma coisa que ainda não sabe
o que é, mas que Lacan aproxima da pulsão invocante do Outro, que faz apelo ao sujeito
incipiente. Ao responder “sim” ao apelo do Outro do qual ainda não é separado, o sujeito
tem acesso a uma primeira simbolização que nomeia o real. O real que o sujeito rejeita
(Verwerfung) para um primeiro exterior, ou seja, um real foracluído do simbólico. A essa
primeira nomeação Lacan faz corresponder o traço unário, a inscrição no real de um traço
que não remete a nada a não ser a ele mesmo. Não se trata ainda de um significante, pois
para que ele funcione como tal e represente o sujeito para outro traço significante é
necessária uma segunda operação, que vai dar origem ao saber inconsciente, colocando o
traço em relação a outros traços.
Essa segunda operação vai ressignificar a Bejahung original e possibilitar outra
relação entre simbólico e real que não essa primeira de exclusão radical. Trata-se
justamente do recalque originário introduzido a partir da negação (Ausstossung ) do traço
unário. A Bejahung é um sim do sujeito à palavra do Outro que o marca. Em seguida, ele
diz não ao Outro (Ausstossung), esquecendo que a palavra vem do Outro e, desse modo,
torna-se proprietário dessa palavra. O recalcamento permite ao sujeito falar sem ser
afetado pelo lugar de onde vem a palavra. Segundo Didier-Weill:
A diferença fundamental entre o ato do par Introjezieren-Verwerfung e do par Bejahung-Ausstossung advém de que o primeiro tem por efeito por em perspectiva um limite entre o simbólico introjetado e o real rejeitado, enquanto que o segundo tem por efeito produzir um simbólico posto em continuidade moebiana com o real. (1997, p. 297)
No seminário “A ética da psicanálise”, Lacan vai abordar essa relação entre
interior e exterior através da articulação entre o sujeito e o Outro; propõe, então, uma
topologia, ainda incipiente, que será desenvolvida por meio da utilização de figuras como
o toro, a fita de Moebius e o cross cap, a partir do seminário sobre a identificação. Ele
cria um neologismo, a palavra ex-timo, para nomear o interior excluído resultante da
operação designada pela denegação. Trata-se de algo que do interior do sujeito é levado
para um primeiro exterior. Exterior que não se confunde com a realidade na qual o sujeito
terá que discernir a qualidade dos objetos buscando a melhor direção no caminho para a
satisfação. Exterior que surge antes de qualquer interiorização, antes de qualquer
diferença entre o eu e o não eu. Um primeiro exterior em torno do qual se orientam todas
as coordenadas de prazer que o sujeito vai percorrer em busca da satisfação. Esse ponto
central ao mesmo tempo interior e exterior é o ponto onde Lacan localiza das Ding:
O mundo Freudiano, comporta que é esse objeto, das Ding, que se trata de reencontrar. (…) Não é ele que reencontramos, mas suas coordenadas de prazer, é nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que será buscada, em nome do principio do prazer, a tensão óptima abaixo da qual não há mais nem percepção nem esforço.(1959-1960/1991, p.69)
Das Ding vai ter sua localização topológica presentificada por esse primeiro
exterior antes de qualquer interiorização, furo real no interior do psiquismo, que em um
primeiro momento Lacan nomeia como vacúolo. O vacúolo é o buraco próprio ao gozo,
assim como na pulsão intervém o que se chama, em topologia, de estrutura de borda, que
é alguma coisa caracterizada por orifícios. A operação do recalque original resulta na
constituição de um sujeito a partir desse vacúolo, um espaço ex-timo que não se confunde
com a realidade exterior. Nesse encontro entre o mais íntimo e o mais exterior, o sujeito
se constitui em uma continuidade moebiana entre íntimo e exterior e não por uma
descontinuidade dentro fora1. Em um primeiro momento, anterior ao recalcamento
originário, das Ding está no lugar do Outro primordial, lugar ocupado pela mãe, cujo
desejo ainda não é regulado pelo interdito da lei simbólica. Didier-Weill (1997) propõe
uma analogia interessante entre esse tempo mítico da gênese do sujeito e o tempo da
linguagem musical. Segundo ele, a nota que surge na música da voz da mãe, no ritmo
dessa voz que embala e sustenta o sujeito a advir, ainda não o representa, mas nomeia o
que nele existe de real.
Na linguagem musical, o sujeito está em uma relação direta com o Outro, uma
relação imediata, uma vez que o infans não precisa entender a música para que seu corpo
responda movendo-se de acordo com o ritmo que o embala. Não é à toa que a criança
pode dançar muito antes de aprender a andar. No entanto, a música introduz o sujeito em
uma primeira simbolização onde o Outro se faz presente ou ausente de acordo com as
escansões temporais produzidas pelo ritmo musical; nesse caso, o sujeito só precisa
emitir um apelo para que o Outro, subitamente ausente no intervalo silencioso entre uma
nota e outra, retorne na nota seguinte. A música da voz da mãe possibilita, assim, uma
1 Segundo Didier-Weill (1997), a diferença entre a rejeição ligada à Verwerfung e a da Ausstossung deve-se ao fato de esta última ser um não associado a um sim, ao passo que a Verwerfung é um não absoluto. Enquanto pelo não-sim da Ausstossung-Bejahung , uma parte do sujeito desaparece com o consentimento inconsciente do sujeito, de tal forma que essa desaparição se traduz pela aparição de um espaço ex-timo, pelo não absoluto do ato de Verwerfung o significante do nome -do-pai, banido do simbólico, não desaparece, mas reaparece em um lugar que se pode definir como exterior ao sujeito.
primeira possibilidade de esvaziamento da presença excessiva de das Ding; uma
possibilidade de representação/diferenciação do real do corpo materno. Podemos situar
esse primeiro tempo na primeira das três possibilidades da falta de objeto designadas por
Lacan (1956-1957/1995). A frustração instaura a falta imaginária (lesão imaginária) de
um objeto real, no caso a voz, na mãe simbólica: sucessivamente ausente e presente nas
escansões do ritmo.
A música é uma linguagem diferente da palavra, pois a simbolização que ela
produz é sustentada no par em que os termos ausência-presença alternam-se em uma
sucessão temporal. Já a palavra é o resultado de uma simbolização que se funda em uma
ausência sincrônica à presença; simbolização decorrente da descoberta pelo infans de que
ao Outro falta alguma coisa, de que o Outro é furado, já que a mãe é privada do falo. Até
então, o sujeito já havia simbolizado a ausência do Outro, mas uma ausência inscrita em
uma sucessão temporal em que o Outro confirmava ritmicamente sua fidelidade, voltando
a ser presente depois de ter se feito ausente. Nesse momento, o Outro materno é para o
infans a garantia da plenitude. Com a descoberta da privação materna, o Outro deixa de
estar alternativamente presente e ausente para estar simultaneamente presente e ausente, e
a plenitude desaparece para dar lugar à inconsistência do Outro.
Nesse segundo momento, a criança se depara com o reconhecimento de que a
presença do corpo materno e a ausência no corpo materno se transmitem
simultaneamente. Trata-se de um momento traumático, que Lacan designa com a palavra
“troumatique”, neologismo criado por ele a partir da associação entre trou (furo) e
traumatique (traumático). A descoberta do furo no Outro substitui a alternância do par
presença e ausência pela simultaneidade sincrônica, e o sujeito, ao perder o suporte do
ritmo do Outro, deve agora ser capaz de criar seu próprio ritmo como suporte no qual irá
se apoiar. Podemos situar esse segundo tempo em relação à privação, que tem como
efeito o furo real, inominável, de um objeto simbólico: simultaneamente presente e
ausente, e como agente o pai imaginário, o pai enquanto encarnação da lei.
Através do recalque originário, o que antes era furo inominável vai ser agora
nomeado falta no Outro. Por meio dessa substituição do furo pela falta, o sujeito,
orientado pela permanência do objeto que falta, vai ser levado a esquecer o ritmo da
aparição e desaparição do Outro. A castração instaura a falta simbólica (divida simbólica)
de um objeto imaginário e tem como agente o pai real, o pai do gozo. É o pai real que
realiza o interdito simbólico que faz operar o recalque e a possibilidade de
separação/diferenciação do corpo materno. A princípio, em um momento anterior ao
recalque, não existe nada que seja estranho; alheio ao sujeito. A mãe como Outro pré-
histórico é o lugar de das Ding onde a lei vai intervir fazendo surgir do real o simbólico.
A lei simbólica faz desse primeiro Outro não mais um “tu”, como ocorria quando a
criança respondia diretamente com seu corpo ao ritmo da voz materna, mas um “ele”, um
Outro com quem o sujeito, ainda incipiente não tem mais uma relação imediata, mas uma
relação mediada pela palavra. Nessa simbolização, o sujeito separa-se de uma parte de si
e passa a carregar o estranho, o alheio, dentro de si, o que constitui esse interior excluído
do qual nos fala Lacan2:
Esse das Ding está justamente no centro, no sentido de estar excluído. Quer dizer que, na realidade, ele deve ser estabelecido como exterior,
2 No seminário da Ética, Lacan expõe os diferentes destinos que o sujeito pode dar ao fato de estar fundamentado pela Coisa; o objeto perdido da satisfação que o sujeito visa reencontrar. A Coisa pode ser esse próximo que faz da máxima amarás teu próximo como a ti mesmo um impossível. A possibilidade do desejo surge quando o sujeito se torna, ele mesmo, na relação com seu desejo, seu próprio próximo.
esse das Ding, esse Outro pré-histórico impossível de esquecer, do qual Freud afirma a necessidade da posição primeira sob a forma de alguma coisa que é alheia a mim, embora esteja no âmago desse eu, alguma coisa que no nível inconsciente, só uma representação representa. (Ibid., p. 91)
O interdito simbólico se transmite através da palavra do pai real que, através de
um ato de nomeação, faz com que o real passe a existir no simbólico. Segundo Didier-
Weill (1997), trata-se de um dizer que é sempre um semidizer; o que resulta em um semi-
interdito, pois não pode dar conta da simbolização de todo o real. O interdito simbólico
estabelece então uma fronteira porosa entre o simbólico e o real, nomeando falta o que
antes era furo inominável. Fronteira sempre passível de ser ultrapassada, colocando o
humano em contato com essa parte mal-dita, parte rejeitada do simbólico, informe,
intocável, inumana. Em sua leitura do texto freudiano sobre a denegação, Didier-Weill
(1997) mostra-nos que o eu e o sujeito têm concepções diferentes, pois o eu arcaico,
regido pelo princípio do prazer, responde a uma concepção dualista em que o mal é
inteiramente rejeitado (Verwerfung) e o bem inteiramente introjetado (introjezieren);
como são mutuamente excludentes, disso resulta uma clivagem radical entre o bom e o
mau. Já o sujeito responde ao mais além do princípio do prazer e é regido pelo pacto
oriundo do recalque originário, em que o par Bejahung-Ausstossung transmite ao sujeito
que não existem dois Outros, um bom e um mau, mas apenas um Outro dividido. Assim,
a contradição suscitada pelo dualismo do Outro é ressignificada pelo pacto do recalque
originário no qual o sujeito diz sim à palavra do Outro e, ao mesmo tempo, diz não a uma
parte de si mesmo. Desse modo, o sujeito nasce da simultaneidade entre sim e não,
entrando no mundo simbólico ao perder uma parte de si.
O que é rejeitado como não eu é algo inassimilável pelo prazer e constitui o
campo do real como aquilo que padece do significante ou como aquilo que permanece
irredutível ao prazer. O campo do prazer visa a uma equivalência entre o objeto do prazer
e o eu, pois o objeto visado é mirado no eu. Como já apontamos, estamos aí no campo da
rivalidade narcísica pela posse do objeto; objeto comum que circula no campo da
realidade como essencialmente imaginária. O objeto da pulsão não é o objeto narcísico, o
objeto especular. Podemos aproximá-lo do que Lacan aponta como das Ding, cujo lugar
topológico remete a esse interior excluído, esse vacúolo, furo real no interior do
psiquismo.
Segundo Costa (informação verbal) 3, podemos apontar que existem pelo menos
duas abordagens do objeto na lógica do ensino de Lacan. Uma delas situa o falo como
objeto privilegiado e toma como referência a estrutura edípica e a castração como a falta
estruturante. É essa concepção que está presente no seminário sobre as relações de objeto.
O falo imaginário é aquele que faz a função de velamento da falta instaurada pela
castração. A outra vertente do objeto é aquela que vai tomar o objeto da pulsão como
privilegiado: seios, fezes, voz e olhar. O objeto não aponta mais para um velamento e,
sim, para o vazio que sustenta a estrutura, entendida como estrutura topológica que
designa uma superfície em torno do vazio. Segundo Corrêa (2001), o buraco entendido a
partir da topologia não é aquele que se cria ao tirarmos um pedaço de uma superfície, o
que resulta que ali está faltando alguma coisa. O buraco se cria a partir de uma borda. A
descontinuidade cria uma borda e a borda cria o ser separado, um buraco, um vazio. No
seminário da Ética, Lacan vai utilizar a metáfora de Heidegger, na qual o vaso se cria em
torno do vazio para propor o vaso como o primeiro significante modelado pelas mãos do
3 Informação obtida durante as reuniões do grupo que constituiu um cartel para trabalhar o seminário de Lacan: “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” durante o ano de 2005. Ana Maria Medeiros da Costa desempenhava a função de “mais um” no funcionamento do cartel.
homem:
Esse nada de particular que o caracteriza em sua função significante é justamente, em sua forma encarnada, aquilo que caracteriza o vaso como tal. É justamente o vazio que ele cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo. O vazio e o pleno são introduzidos pelo vaso em um mundo que por si mesmo, não conhece semelhante. É a partir desse significante modelado que é o vaso, que o vazio e o pleno entram como tais neste mundo, nem mais, nem menos, e com o mesmo sentido. (LACAN, 1959-1960/1991. p. 152)
A essa modelagem do significante corresponde a inscrição de uma borda que faz
furo; introduz a descontinuidade no que antes era pura continuidade:
O vaso encarna em sua materialidade a função do significante, justamente o vazio que ela introduz. O vaso é um objeto criado para representar o vazio é por isso que o oleiro cria o vaso em torno desse vazio com sua mão, o cria assim como o criador mítico, ex-nihilo, a partir do furo. (Ibid., p.153)
É assim que o significante na sua função de corte cria uma borda; um vacúolo que
caracteriza esse espaço ex–timo, lugar topológico de das Ding. A estrutura de borda
remete no ensino de Lacan ao exercício pulsional. No seminário “Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise” (1964/1998), Lacan trabalha o que Freud distingue como os
quatro termos da pulsão: o impulso (Drang ), a fonte (Quelle), o alvo (Ziel) e o objeto.
Lacan retoma esses quatro termos propondo a pulsão como uma montagem na qual se
articulam a sexualidade, o sujeito e a linguagem; articulação que aponta para o laço do
sujeito ao Outro e para a perda que todo o ser humano sofre como ser sexuado, ser de
linguagem.
A pulsão é um impulso constante e, nesse sentido, ela não pode ser assimilada a
uma função biológica, que é sempre determinada por um ritmo ditado pelo organismo. As
zonas erógenas, fonte da pulsão, têm estrutura de borda. A satisfação da pulsão é sempre
paradoxal, pois remete ao real como aquilo que faz obstáculo ao prazer, aquilo que não
pode ser assimilado pelo princípio do prazer. Por fim, o objeto da pulsão não é o objeto
da necessidade; ao contrário, nenhum objeto da necessidade pode satisfazer a pulsão.
Como diz Lacan: “essa boca que se abre no registro da pulsão, não é pelo alimento que
ela se satisfaz, é como se diz, pelo prazer da boca” (Ibid., p. 159). A montagem da pulsão
implica um impulso constante que faz um circuito cuja estrutura é uma borda que
contorna o objeto. Como já apontamos, a pulsão é parcial, pois não existe o objeto genital
que promova a unificação da pulsão no ato da reprodução. O alvo da pulsão parcial não é
a reprodução biológica, mas o próprio circuito:
Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma totalização biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão esse retorno em circuito. (Ibid., p.170)
O objeto perdido da satisfação é esse objeto que o impulso constante da pulsão
contorna em seu trajeto circular estruturado em forma de borda, presença de um vazio,
furo real no interior do psiquismo. Vazio ocupável por qualquer objeto na forma de uma
lacuna que a pulsão contorna visando reencontrá-lo: “O sujeito é um aparelho. Esse
aparelho é algo de lacunar, e é na lacuna que o sujeito instaura a função de certo objeto,
enquanto objeto perdido. É o estatuto do objeto a enquanto presente na pulsão” (Ibid., p.
175).
É através do circuito pulsional que o sujeito se enlaça ao Outro. A polaridade
passividade-atividade da pulsão manifesta o movimento de retorno reflexivo, o vaivém
do circuito pulsional que faz o laço do sujeito ao Outro: ver e se fazer ver faz apelo ao
olhar do Outro; ouvir e se fazer ouvir faz apelo à voz do Outro. O vaivém da pulsão é
uma resposta do sujeito ao Outro, é um apelo que enlaça o sujeito ao Outro através da
estrutura de borda que constitui as zonas erógenas. O apelo ao Outro se faz justamente
pela via do objeto a que pode representar tudo o que o ser vivo perde “por ter que passar,
para sua reprodução, pelo ciclo sexual” (Ibid., p. 188). O acesso à sexualidade surge
dessa conjunção no campo da pulsão com o sujeito tal como ele se evoca no campo do
Outro. A pulsão é para Lacan o representante no psiquismo das conseqüências da
sexualidade; no entanto, a sexualidade se representa no psiquismo por uma relação do
sujeito que se deduz de outra coisa que não da sexualidade mesma. A sexualidade se
instaura no campo do sujeito pela via da falta. Aí se recobrem duas faltas: a primeira,
decorrente do fato de que o sujeito depende do significante e, como já apontamos, o
sujeito se inclui no Outro a partir dessa exterioridade do significante ex-sistente ao campo
do Outro. Essa falta recobre outra, anterior, que é a falta real. A falta real é o que o ser
vivo perde, de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada, e nesse sentido a
pulsão parcial representa fundamentalmente a parte da morte no vivo sexuado.
O corpo cortado pelo traço-tesoura sustenta suas bordas nos orifícios corporais,
efeito do recalque, espaço ex-timo no qual a pulsão realiza seu trajeto, seu vaivém que
contorna o objeto perdido. Assim, se o corpo é definido em termos de forma, como nos
propõe o estádio do espelho, é também definido em termos de orifícios. “O corpo não é
somente uma forma global, mas o saco furado de orifícios sob os quais os objetos vêm
jogar seu jogo. É um corpo que tem consistência corporal pelo viés do objeto a.”
(SOLER, 2001, p. 67) O corpo não tem apoio apenas na forma, no eu ideal, mas
fundamentalmente o corpo se apóia nas bordas, e é precisamente isso que o torna
coletivizável. O que sustenta o corpo são os orifícios pulsionais, as bordas das zonas
erógenas nas quais a pulsão realiza seu trajeto contornando o objeto. Os objetos da pulsão
apontam para o vazio que a borda contorna e se diferenciam do objeto narcísico, do
objeto de amor:
Neste campo, há duas espécie s de objeto, os que podem ser compartilhados e os que não podem. Os que não podem, quando os vejo correr no domínio da partilha com os outros objetos cujo estatuto repousa inteiramente sobre a concorrência, nossa concorrência ambígua que ao mesmo tempo é rivalidade, mas também acordo, são objetos cotáveis, são objetos de intercâmbio. Mas existem outros, e se coloquei antes o falo, é seguramente porque ele é o mais ilustre no que concerne à castração; mas existem outros vocês sabem, outros que vocês conhecem, os equivalentes mais conhecidos deste falo, que o precedem; o cíbalo, o mamilo.” (Id., 1962-1963, p. 97)
Os objetos parciais da pulsão se caracterizam por serem ao mesmo tempo internos
e externos; objetos destacáveis como o objeto que a criança cria e perde no jogo com o
carretel; objeto do qual ela se separa, mas que ainda permanece ligado a ela por um fio. A
passagem da pulsão oral à pulsão anal se produz através da intervenção da demanda do
Outro: “em relação às fezes o orifício se recorta pulsionalmente no momento em que se
instaura o controle esfincteriano onde o cocô torna-se objeto da demanda materna”
(COSTA, 2001, p. 39). Nesse sentido, o circuito da pulsão não é determinado por
nenhum processo de maturação biológica, mas por essa estrutura de borda que enlaça
demanda e pulsão, e que Lacan escreve $ punção de D4. Trata-se de um pequeno losango
que indica justamente a estrutura de borda presente nas duas operações: alienação e
separação, propostas por Lacan a partir da teoria dos conjuntos.
O corpo pulsional funciona a partir da inscrição dessas bordas pela ação do traço-
tesoura no corpo, e os objetos da pulsão são objetos híbridos, que apontam para esse
espaço ex-timo que “contém ao mesmo tempo um traço do próprio corpo e um traço do
corpo do Outro”(COSTA, 2001, p.39). As bordas corporais desenham os contornos do
corpo pulsional; desenho que não está dado para sempre e que precisa ser constantemente
refeito:
Este corpo que se trata, trata-se de entendermos que ele não nos é dado de modo puro e simples no nosso espelho, que, mesmo nesta experiência do espelho, pode chegar um momento onde esta imagem, esta imagem especular que cremos ter se modifica; o que temos a nossa frente, que é nossa estatura, que é nosso rosto, que é nosso par de olhos, deixa surgir a dimensão do nosso próprio olhar, a imagem começa então a mudar, sobretudo se há um momento onde este olhar que aparece no espelho começa a não mais olhar para nós mesmos, aurora de um sentimento de estranheza que é a porta aberta sobre a angustia.”(LACAN, 1962-1963, p. 94).
As crises demonstram que as fronteiras que situam o sujeito na realidade
discursiva marcada pela descontinuidade e as bordas corporais nas quais a pulsão realiza
4 No seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise” (1964/1998), Lacan trabalha a estrutura de borda a partir da teoria dos conjuntos. Em um primeiro momento, a borda remete ao que na teoria dos conjuntos é chamado reunião. Na reunião temos dois conjuntos com cinco elementos cada um; no entanto, nesses dois conjuntos existem dois elementos que pertencem a ambos. Ao reuni-los teremos então oito elementos. A reunião implica um “nem um, nem outro”, o que significa que se escolhemos uma das partes a outra desaparece. No segundo momento, a borda refere-se ao que na teoria dos conjuntos é conhecido como intersecção: a intersecção de dois conjuntos é constituída pelos elementos que pertencem aos dois conjuntos. A intersecção surge do recobrimento de duas faltas. A primeira situa-se no Outro, nos intervalos do discurso do Outro a partir dos quais a criança interroga o desejo do adulto: “Ele me diz isso, mas o que ele quer dizer?” (LACAN, 1964/1998, p. 203). Como resposta a esse enigma do desejo do Outro, o sujeito responde com a falta que antecede o seu próprio desaparecimento e situa-se, desse modo, no ponto da falta percebida no Outro. É assim que a criança propõe ao desejo parental, cujo objeto lhe é desconhecido, a sua própria perda: “Pode ele me perder?”. É nesse ponto de falta que surge o desejo do sujeito.
seu trajeto circular, enlaçando corpo e linguagem, não são feitas de pedra, são feitas de
uma matéria muito mais efêmera, muito mais imprecisa, como as paredes da casa
construída por Gabriel. Durante uma noite, do ano de 1923, a imagem de um enfeite que
embelezava sua casa aparece- lhe em um sonho. Foi assim que começou a transformar
uma casinha de pau-a-pique localizada no mesmo terreno em que morava seu pai. A casa
foi materializando as imagens oníricas, tomando forma a partir de cacos de cerâmica, de
louça, de vidro, de ladrilhos e de restos; lâmpadas queimadas, faróis de automóveis,
tampas de metal. Assim foi surgindo a casa da flor, feita de cacos, fragmentos de sonhos,
pensamentos registrados em um caderno de anotações e de resíduos jogados fora. Como
diz Gabriel: “Minha casa é feita de nada” (1978).
Por serem fe itas de nada, embora muitas vezes pareçam de pedra, as fronteiras
simbólicas e imaginárias e as bordas corporais não estão dadas para todo o sempre; é
necessário reconstituí- las de tempos em tempos, fazendo o traço – que ao mesmo tempo
diferencia e singulariza o sujeito – circular por diferentes lugares e submeter-se a
diferentes leituras. É isso que possibilita que o sujeito reafirme o traço que o marcou nas
relações primárias, em outras relações: relações discursivas, suporte dos laços sociais.
Como apontamos, existem momentos em que os suportes identificatórios se rompem,
como em uma crise de angústia, ou uma crise de despersonalização. “Digamos que,
fenomenologicamente, a despersonalização começa com o não reconhecimento da
imagem especular (…) é porque o que é visto no espelho é angustiante que isso não é
apresentável ao reconhecimento do Outro”.(LACAN, 1962-1963/ 2002, p.128) Nesses
momentos, os elementos heterogêneos nos quais se apóia o funcionamento do nosso
corpo podem aparecer como vindos de fora, na sua estranheza, e o suporte corporal se
esvai: “Sem os elos identificatórios, as palavras se perdem pelas frases sem final nem
sentido, e o corpo vai com seus dejetos” (COSTA, 2003, p. 66).
As escritas que pretendo investigar a seguir põem em evidência a fragilidade das
fronteiras e bordas corporais que ao mesmo tempo sustentam a descontinuidade entre o
ser humano e a realidade que o cerca; entre o sujeito e o Outro; entre o eu e o semelhante;
entre o corpo e a satisfação, e incluem o sujeito na realidade discursiva sustentada na ex-
sistência do traço unário e o corpo esvaziado de gozo sustentado na ex-timidade do
objeto. Embora o recalque determine as fronteiras e as bordas que situam o humano em
uma realidade discursiva, não se trata aí da mesma coisa. Em “Lituraterra” (1971/2003),
Lacan aponta uma possibilidade de diferenciação entre as fronteiras e as bordas.
Embora ambas sejam efeitos do traço tesoura significante, a fronteira remete ao
simbólico e ao imaginário, e é o que distingue territórios homogêneos, mas descontínuos:
“A fronteira, com certeza, ao separar dois territórios, simboliza que eles não são iguais
para quem os transpõe, que há entre eles um denominador comum” (LACAN, 1971/2003,
p.18). Já a borda separa/conjuga elementos heterogêneos, como o litoral que separa a
terra do mar. É aí que Lacan aponta a função da letra- litoral que faz furo no saber. A letra
aponta para a ausência de uma medida comum entre Simbólico, Imaginário e Real, e em
sua função de litoral ela pode circular por esses registros heterogêneos, o que não ocorre
com o significante, que tem uma função eminentemente simbólica. As fronteiras dizem
respeito à descontinuidade significante e à unidade imaginária, enquanto as bordas dizem
respeito ao furo; furo bordeado pelo significante.
3. Parte II:
Escritas
Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo Eu era ar, espaço vazio, tempo E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó Eu não tinha formação Não tinha formatura Não tinha onde fazer cabeça Fazer braço, fazer corpo Fazer orelha, fazer nariz Fazer céu da boca, fazer falatório Fazer músculo, fazer dente Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio Não tinha onde tirar nada disso Eu era espaço vazio puro.
Stela do Patrocínio
3.1. A cadeira vazia
Sentado diante de uma cadeira vazia na ilha central de uma grande avenida da
cidade de São Paulo, ele passa o dia trabalhando na escrita cuidadosa do que nomeia
“ofertas”. É conhecido por diversos apelidos: filósofo, profeta, poeta, mas assina seus
escritos como o Condicionado. Régua, caneta, tesoura e uma moldura são as ferramentas
de seu trabalho, pequenas ofertas escritas e oferecidas aos que circulam na avenida onde
está há mais de dez anos, sempre no mesmo lugar. Um dia ouviu uma voz citando o
profeta Malaquias: “Não ficará pedra sobre pedra”. Tudo o que faz desde então se
desmancha, não permanece, é falsificado. Mesmo o seu nome não pode ser usado, pois se
assim o fizer corre o risco de perdê-lo. Segundo o Condicionado, a única coisa original, a
única coisa que não é falsificada, é a marca da tinta de sua caneta sobre o papel.
Assim, ele vai perseguir em vão, na tentativa diariamente repetida, a impressão
de um traço original que permaneça. O tempo também já não é mais o mesmo, pois foi
definitivamente alterado desde que o Condicionado saiu do calendário. Ele diz que está
desligado do mundo desde 1976, quando deixou de ler jornal, de acompanhar o mundo
através do jornal. Em represália, não o deixaram saber mais nada. Desde então o relógio
está sempre atrasado e cabe a ele a exaustiva tarefa de corrigir o tempo. E assim ele o faz
através da invenção de um sistema de cálculo presente em cada um de seus escritos.
Depois de assinar, coloca o local, o dia e o mês, mas o ano é sempre o mesmo: 1999. Para
se localizar ele acrescenta o que falta.
Figura 6: Oferta do Condicionado: “Constituição política ou carta magna, é um curso que ensina ao homem viver entre os homens. A bíblia sagrada é um curso que prepara o homem na terra para viver no céu”. Ass. O “Condicionado” SP. 16 – 3 – 1999 + 4 ©
Seu nome não pode ser usado para nomeá-lo; o calendário, medida comum do
tempo, o exclui; do mundo, não tem mais notícias; habita uma ilha rodeada de carros em
permanente movimento e tem como interlocutor privilegiado apenas uma cadeira vazia
que permanece a sua frente na calçada. No entanto, ele escreve, e é sempre possível que a
cadeira vazia possa ser ocupada por outro a quem o Condicionado possa ofertar seus
escritos. Sem as referências que situam o humano em uma realidade discursiva marcada
pela descontinuidade simbólica e pela continuidade moebiana entre simbólico e real,
como o Condicionado pode se posicionar? Estabeleço como hipótese que é justamente o
ato de fazer uma escrita no espaço público que permite a ele certa localização/registro. É
através de sua escrita que ele consegue manter-se durante tanto tempo em um mesmo
lugar, quase enraizado na calçada. A escrita parece permitir que ele “crie raízes”, que ele
garanta uma espécie de permanência em um mundo onde tudo é evanescente,
fragmentado.
A permanência no espaço público é sustentada por seu corpo que permanece
imóvel no mesmo lugar e pela circulação de suas pequenas letras-ofertas. A permanência
através da fixidez do corpo será abordada posterio rmente, levando em conta a
imaterialidade do corpo sustentado na descontinuidade simbólica, e o peso do corpo
sustentado na fixidez do real. No momento, vamos nos ater à circulação das letras. A
princípio podemos supor que, ao circularem, elas vão criando uma rede, um público que
se movimenta ao redor do Condicionado, pessoas que recebem seus escritos e
reconhecem sua autoria e seu lugar ali no meio da calçada. As pessoas não passam
somente, elas sentam na cadeira, conversam com ele, recebem seus escritos. A circulação
das letras parece sustentar um lugar no corpo do espaço público justamente pela
possibilidade de endereçamento. Resta saber qual o estatuto desse lugar e desse
endereçamento.
Se a princípio trabalhamos com a hipótese de que um dos possíveis efeitos da
letra na escrita do Condicionado seja a inscrição de um lugar sustentado a partir da
criação de uma rede de letras, pergunto-me, então, se a letra deve ser tomada aí como
elemento simbólico, efeito de discurso. No seminário sobre a “Carta Roubada”, Lacan
(1956/1998) trabalha um conto de Edgar Allan Poe e destaca a heterogeneidade de
registros que incidem sobre a letra.
A letra letter/carta porta uma mensagem que se desloca, ora revelando-se, ora
ocultando-se, entre diferentes personagens do conto e aponta para a incidência da
repetição da cadeia significante. O deslocamento é determinado pelo lugar que vem a
ocupar entre os personagens esse significante puro que é a carta roubada. A letra
litter/lixo designa outro registro, que difere da letra tomada como significante cuja função
aponta para a transmissão de uma mensagem. A litter aponta a materialidade da letra:
E, com efeito, voltando a nossos policiais, como poderiam eles apoderar-se da carta, eles que a apanharam no lugar onde estava escondida? Naquilo que reviravam entre os dedos, que outra coisa seguravam eles senão o que não correspondia à descrição que tinham dela? A letter, a litter, uma carta, uma letra, um lixo. Fizeram-se trocadilhos, no cenáculo de Joyce, com a homofonia dessas duas palavras em inglês. A espécie de objeto que os policiais manipulam nesse momento, tampouco lhes revela sua outra natureza por estar apenas meio rasgada. (LACAN, 1956/ 1998, p. 28)
Lacan aponta essa outra natureza da carta/letra chamando atenção sobre aquilo que
ultrapassa sua aparente função de transportar e transmitir uma mensagem. Segundo
Mandil (2003), Dupin, o detetive chamado para encontrar a carta roubada, só consegue
recuperá- la porque, diferente dos policiais que a procuram em vão, ele consegue perceber
essa dupla natureza da carta/letra. O fato de uma carta não estar inteiramente do lado da
mensagem, possuindo também uma materialidade, e sendo, portanto, manuseável, passível
de ser esquecida, rasgada, guardada, adulterada ou tratada como detrito. Não é a mesma
coisa buscar uma carta/letra levando em consideração a sua dimensão da mensagem, ou
seja, a letra como elemento de um sistema significante, ou buscá- la tomando a sua
materialidade, a sua relação ao objeto: “pedaço de papel rabiscado, timbrado, selado ou
virado pelo avesso.”(MANDIL, 2003, p. 27)
Voltando ao Condicionado, a letra que ele faz circular pelo espaço público pode
ser tomada como elemento significante ou trata-se aí justamente da letra na sua
materialidade, na sua relação ao objeto? Pergunto-me o que inscreveria uma diferença
entre a letra tomada na sua função de significante e a letra tomada na sua relação ao
objeto, letra que traça o real? Já apontamos que uma diferença é introduzida através da
possibilidade de endereçamento/leitura da letra/carta. Em sua conjectura a propósito do
surgimento da escrita, Lacan aponta que a leitura do rastro (signo-marca) permite que o
rastro do passo seja transformado em nenhum rastro (significante-vocalização). É a
leitura do signo que funda o escrito. Assim, o que precede a escrita – marca, rastro, signo
– é lido com a linguagem, e então transformado em escrita. A leitura do signo é ao
mesmo tempo anterior ao escrito e também constituinte do escrito, e é ela que estabelece
a distância entre o signo e o objeto/referente. No texto “A subversão do sujeito e a
dialética do desejo no inconsciente freudiano” (1960/1998), Lacan aborda a articulação
entre o significante e a pulsão por meio de uma metáfora fundada em um costume antigo,
segundo o qual o escravo tinha seu destino, sua condenação à morte, tatuada no couro
cabeludo:
Mas outra coisa é aquilo de que se trata em Freud, que é efetivamente um saber, mas um saber que não comporta o menor conhecimento, já que está inscrito num discurso do qual a semelhança do grilhão de antigo uso, o sujeito que traz sob sua cabeleira o codicilo que o condena à morte não sabe nem o sentido nem o texto, nem em que língua ele está escrito, nem tampouco que foi tatuado em sua cabeça raspada enquanto ele dormia. (Id., 1960/1998, p. 818)
Através dessa metáfora podemos compreender como o nosso corpo é marcado por
traços que não podemos ver nem compreender e que nos fazem endereçar ao Outro um
pedido de leitura. Ao demandar uma leitura, o sujeito se endereça ao Outro que é suposto
poder ler, decifrar uma mensagem que diz respeito ao sujeito, mas da qual ele nada sabe.
O sujeito articula uma demanda, uma pergunta sobre o traço-letra que ele porta e que o
faz amável pelo Outro: Qual o meu lugar no desejo do Outro? Perguntas endereçadas ao
Outro a partir das brechas, dos buracos de seu discurso. A leitura passa necessariamente
pelo desejo do Outro, e sem ela o sujeito ficaria colado a esses signos que permaneceriam
exteriores a ele. A leitura que separa o signo do objeto permite ao sujeito tomar como
própria a palavra que lhe vem do Outro e fazer circular esse traço que o identifica e
singulariza, inscrevendo-o em outro lugar que não aquele que lhe foi dado
exclusivamente pelas relações primárias.
Ao retomar uma frase de Goethe citada por Freud: “Aquilo que herdaste de teus
pais, conquista-o para fazê- lo teu”, Brauer (2003, p. 97) aborda justamente a leitura como
possibilidade de o sujeito reinscrever-se em outro lugar e não somente nas relações
familiares. Nesse sentido, não basta portar um traço para singularizar-se. É preciso poder
lê-lo para que ele circule e seja reafirmado em diferentes lugares discursivos: nas relações
sociais, de trabalho, de casamento, etc… Como diz Lacan: “Um ser que pode ler seu
traço, isso é suficiente para que ele possa se re- inscrever em outro lugar que não aquele
de onde ele o traz. Essa re- inscrição, é aí o lugar que o faz desde então, dependente de um
Outro cuja estrutura não depende dele”. (1968/1969, p. 306)
Como já apontamos, para que o sujeito possa articular uma pergunta sobre o seu
lugar no desejo do Outro é necessário que ao Outro falte alguma coisa, e é nesse lugar da
falta no Outro que o sujeito responde com a sua própria falta, com aquilo que o causa
como falta. É aí que incide a castração; que o sujeito faz da sua castração o que falta ao
Outro. Dessa operação pela qual o sujeito aliena-se no Outro e separa-se de uma parte de
si resulta a inscrição de uma dupla falta: a ex-sistência de um significante e a ex-timidade
do objeto. Será que a letra errante do Condicionado supõe um endereçamento? Será que a
cadeira vazia ao seu lado é um convite à leitura? Perguntas que podem ser mais bem
formuladas se levarmos em consideração uma diferença de lugares: O lugar do
público/leitor e o lugar da produção/escritor. Do lugar do público/leitor podemos nos
perguntar se a escrita do Condicionado oferece apoio à leitura ou permanece pura
exterioridade; letra-objeto rejeitada pela realidade discursiva, cujo único destino é a lata
do lixo – não esquecendo que a exterioridade aqui não é aquela proposta por Lacan
enquanto ex-timidade.
Vamos retomar a leitura de Didier-Weill a partir da qual ele estabelece uma
diferença entre a rejeição ligada à Verwerfung e à Ausstossung, propondo que esta última
é um “não” associado a um “sim”, enquanto a Verwerfung é um não absoluto. Através do
par Ausstossung-Bejahung, que corresponde à operação do recalque, uma parte do sujeito
desaparece com o consentimento inconsciente do sujeito, e essa desaparição se traduz
pela aparição de um espaço ex-timo. Já em relação ao “não” absoluto do ato de
Verwerfung, o que é rejeitado do simbólico não desaparece, mas reaparece em um lugar
que se pode definir como exterior ao sujeito.1
Do lugar do público/leitor – supondo-o incluído no campo discursivo marcado
pela ex-sistência de um significante que insiste na repetição e pelo espaço ex-timo a partir
do qual o sujeito situa-se em uma continuidade moebiana entre simbólico e real... será
que podemos partir da hipótese de que a letra-oferta do Condicionado é um vestígio do
inconsciente, supondo que o vestígio designa o retorno do recalcado? Em caso
afirmativo, o ato do Condicionado traduziria uma espécie de retorno, no qual o que é
resto-encoberto na realidade discursiva que estrutura nossos laços sociais aparece através
de um ato individual. O objeto-resto recebe uma moldura e retorna como escrita-oferenda
a quem ousar sentar na cadeira vazia. Nesse caso, a função da moldura estaria próxima
da função exercida pela barra na fórmula que Lacan nos oferece da metáfora. Um
exemplo interessante da função metafórica pode ser encontrado na análise da fobia do
pequeno Hans, realizada por Allouch (1995), quando este destaca a diferença entre a
fobia do cavalo real e a fobia do desenho de um cavalo.
A resposta fóbica é ela mesma uma metáfora, pois faz do objeto fóbico um objeto
posto em função significante. A resposta fóbica barra o objeto como referente com a
instauração de uma cifra que representa não mais o objeto e sim sua representação. Nesse
sentido, a metáfora barra o objeto simbolizando-o, da mesma maneira que o apagamento
1 A diferença entre o “não” associado a um “sim” que corresponde ao recalque e o “não” absoluto que corresponde ao que Lacan nomeou forclusão é que o “não” do recalque implica uma rejeição decorrente da relação do sujeito à linguagem, pois nesta o real fica forcluído, rejeitado do simbólico. Já o “não” da forclusão é associado por Lacan à estrutura da psicose: “O que cai sob o golpe do recalque retorna, pois o recalque e o retorno do recalcado são apenas o direito e o avesso de uma mesma coisa. O recalcado está sempre aí, e ele se exprime de maneira perfeitamente articulada nos sintomas e numa multidão de outros fenômenos. Em compensação, o que cai sob o golpe da Verwerfung tem uma sorte completamente diferente (…) tudo o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real.” (LACAN, 1955-1956, p. 21)
do traço faz dele um significante que remete a outros significantes e não mais ao signo
que aponta para uma maior proximidade com o objeto-referente. No entanto, a moldura
não parece funcionar assim, uma vez que ela não apaga, não coloca o objeto em função
significante, ela emoldura. Por enquanto, podemos apontar que ela delimita um campo,
um enquadramento, o que a aproxima da função da borda como aquilo que contorna e
marca a ausência de uma medida comum entre campos heterogêneos.
Ainda do lugar do público/leitor, o que o Condicionado faz circular no espaço
público não oferece nenhuma possibilidade de reconhecimento, de assimilação; ao
contrário, faz furo na maneira como cada um se representa a partir dos laços discursivos.
A escrita posta em circulação pelo Condicionado pode suscitar tanto a curiosidade de
uma pergunta, quanto o horror e a repulsa. Na circulação no espaço público, a letra-oferta
do Condicionado permite certa presentificação justamente da ausência de uma medida
comum entre os diferentes registros que a determinam, e daí sua relação ao furo,
apontada por Lacan:
A borda do furo no saber, não seria o que ela desenha? E como a psicanálise poderia negar esse furo – uma vez que a letra diz ao pé da letra através de sua boca, ela não deveria desconhecê- lo -, como poderia ela negar esse furo, se para preenchê- lo ela recorre aí à invocação do gozo. (1971/2003, p. 18)
Nesse sentido, a escrita do Condicionado parece não oferecer apoio à leitura por
parte do público leitor, mas sim fazer furo no saber inconsciente que sustenta os
discursos. Voltando ao lugar da produção/escritor podemos arriscar uma hipótese sobre
a moldura que não apaga, mas delimita um espaço ao aproximá- la da letra como litoral:
Em lituraterra, Lacan se detém sobre a metáfora do litoral, definindo-o
como algo distinto, por exemplo, da fronteira. Se esta é uma marca simbólica entre dois territórios de natureza homogênea, no litoral o que está em jogo é o encontro entre dois mundos heterogêneos, constituindo-se em um domínio inteiramente fronteiriço a um outro, naquilo que tem de estrangeiros, a ponto de não serem recíprocos. (MANDIL, 2003, p.48)
Como litoral, a letra ao mesmo tempo conjuga e distingue campos heterogêneos
como a água e a terra, e revela a descontinuidade existente entre eles. Trata-se aí de uma
propriedade da letra que circula entre registros heterogêneos; ela liga, une, promove
encontros… “O significante deriva apenas da instância S; mas a letra vincula RSI que
são mutuamente heterogêneos” (MILNER, 1996, p.105). A partir dessa hipótese em que
tomo a escrita-oferta do Condicionado como referida à letra na sua função litoral, a
escrita surge como possibilidade de conjugar/distinguir o que estava radicalmente
separado/misturado pela Verwerfung: os registros do simbólico e do real. 2
Voltando à hipótese inicial, em que o lugar ocupado pelo Condicionado no espaço
público é sustentado pela criação de uma rede formada pelos escritos que oferece aos
passantes, talvez possamos situar a escrita do Condicionado justamente como uma
tentativa de conjugar, no ato da escrita, a circulação em uma rede simbólica; a circulação
de uma rede discursiva, dos resíduos que remetem aos produtos do corpo infantil na
relação com o Outro materno. Assim, a letra que remete à materialidade dos objetos da
pulsão é também à letra litoral, que circula entre o simbólico e o real. É nesse sentido que
as ofertas que o Condicionado faz circular no espaço público não podem ser pensadas
como vestígios do inconsciente, retorno do recalcado; elas remetem diretamente ao que
não é assimilado pela linguagem, ao que faz furo na função mensageira da linguagem. 2 Trata-se de uma possibilidade interessante para se pensar a função da escrita, não apenas como representação ou transmissão de uma mensagem, mas como possibilidade de circulação, de conexão, de amarragem entre os registros heterogêneos.
Não se trata aí de uma escrita que visa à transmissão de um sentido velado, mas de uma
escrita que revela a céu aberto o lugar vazio do objeto. Será mais apropriado, então,
chamar de traçado da letra, e não de rede de letras, o trajeto que a escrita do
Condicionado imprime no espaço público?
Nesse caso, as ofertas do Condicionado cir culam no espaço público traçando o
real, imprimindo marca-traço no que antes era continuidade indiferenciada. Letra litoral
que delimita campos heterogêneos, simbólico e real, ultrapassando os limites impostos3
pelo princípio do prazer e revelando o vazio ao apontar um lugar sem borda em que se
supõe que o gozo pode vir habitar, sem se deixar limitar. A letra- litoral certamente não é
a letra- fetiche encarnada nas cartas que Gide endereçava a sua amada Madeleine, embora
a letra- fetiche se aproxime da letra-litter, já que ambas remetem à letra tomada na sua
relação ao objeto4. A letra-litoral não tapa o vazio, o furo real do qual descendemos e,
3 Ao que ultrapassa esse limite Lacan faz corresponder ao gozo, ao mais além do princípio do prazer. No seminário da ética, como veremos na parte III deste trabalho, a dama, objeto enlouquecedor posto para circular no discurso da arte pela da poesia trovadoresca, aponta certas condições; despersonalização, subtração, esvaziamento, para que tal objeto seja criado dentro de um discurso. 4 Segundo a leitura de Mandil, no artigo de Lacan “Juventude de Gide ou a letra e o desejo”, tanto quanto no conto de Poe, a letra se situa em um nível distinto da função mensageira. Lacan busca demonstrar que, tomada na dimensão de sua materialidade, a lettre cumpre também uma função sexual nas relações entre Gide e sua esposa, mais especificamente a função de fetiche. Lacan toma o ato de Madeleine de queimar as cartas de Gide como uma verdadeira separação em relação ao lugar que ela vinha ocupando na trama amorosa do escritor: “Até que ponto ela veio a se transformar naquilo que Gide a fez ser permanece impenetrável, mas o único ato em que ela nos mostra claramente distinguir-se disso é o de uma mulher, de uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher. Esse ato foi o de queimar as cartas - que eram o que Madeleine possuía de mais precioso”(LACAN, 1958/1998, p. 772). A íntima relação entre as cartas endereçadas a Madaleine e o lugar ocupado pela esposa na vida de Gide vem à tona com esse verdadeiro trabalho de luto desenvolvido pelo escritor após tomar conhecimento da destruição da correspondência. Segundo Mandil (2003), pode-se dizer que, para Gide, é impensável relacionar-se com Madeleine sem as cartas a ela endereçadas, a ponto de após a destruição da correspondência, Madeleine se tornar, na visão de Gide, uma pessoa mutilada: “E agora você aparecerá mutilada, falsificada, como alguém que você não é.” Curioso lugar para uma correspondência: Gide dá a ela um estatuto corporal, como algo que completa o corpo da mulher e, pelo mesmo ato, fornece-lhe o que o escritor considera a sua verdade. A dor desmesurada de Gide indica que o que foi consumido pelo fogo não tinha apenas valor estético: “Isso quer dizer que não visamos aqui à perda sofrida na correspondência de Gide pela humanidade, mas à troca fatídica pela qual a carta-letra assume o próprio lugar de onde o desejo se retirou” (LACAN, 1958/1998, p. 773). Ainda segundo Mandil: “O ato de uma verdadeira mulher não seria propriamente o ato de Medéia, mas é o que tem a estrutura do ato de Medéia, isto é, o sacrifício daquilo que tem de mais precioso para abrir, no homem, um furo que não pode ser tampado.” (MILLER apud MANDIL, 2003, p. 56)
nesse sentido, ela se diferencia do significante na sua função de semblante ou do objeto
na sua função de fetiche.
Do lugar do público/leitor, não podemos esquecer que o Condicionado nomeia
seus escritos ofertas. Palavra que remete tanto à ação de oferecer como à doação feita
pelos fiéis em certos atos litúrgicos. Nesse sentido, é uma palavra que implica uma
conotação religiosa. Esta também está presente nos apelidos que o Condicionado recebe,
como, por exemplo, profeta. Talvez encontremos aí mais pistas do lugar atribuído pelo
público/ leitor à escrita do Condicionado. O Condicionado não é um morador de rua
como estamos acostumados a representá-los, um mendigo que pede esmolas, que
demanda para sobreviver. Ao contrário, é ele quem oferece seus escritos. Ele não
demanda, não pede, mas oferece.
A relação demanda/endereçamento se inverte, pois é o público que endereça ao
Condicionado uma pergunta, supondo que ali existe um saber sobre o qual não se sabe. É
nesse sentido que para o público/leitor o Condicionado ocupa um lugar emblemático;
lugar que remete tanto ao sagrado, ao sublime, quanto ao degradado, resto descartado
pela cultura. Conjugando dois absolutos (sublime-degradado), ele ocupa um lugar sem
falta, lugar que nunca é totalmente assimilado pelos discursos, nem totalmente
descartado. Será aí um lugar à margem, um lugar ex-timo que produz borda nos discursos
socioculturais? Gostaria de retomar aqui a discussão a propósito do caso abordado por
mim em minha dissertação de mestrado (2000). Trata-se de Orlando, a quem chamei
Orifeu. Assim como o Condicionado, ele também faz seus escritos circularem através do
espaço púb lico. Ele banca o carteiro de uma correspondência divina, distribuindo sua
escrita pelas caixas de correio do bairro onde mora. Seus escritos, nomeados por ele
pensamentos, são feitos de pedaços do papel de cigarro retirados dos maços que fuma
diariamente. Nessas cartas/dejetos, textos da escritura sagrada misturam-se a seus
pensamentos escritos.
Segundo a leitura de Costa , com quem discuti o caso de Orlando em supervisão,
o ato de Orlando “conjuga os absolutos que produzem as margens civilizatórias: o texto
sublime, sem falhas, e o resto/dejeto anônimo” (COSTA, 2001, p. 150). No entanto, se
ele parte de absolutos, o “ato ao escrever, ao recortar o texto absoluto nos restos/pedaços,
produz uma falta nesse absoluto” (Ibid., 2001, p. 150). Da mesma maneira, o ato da
entrega de seus pensamentos aos passantes anônimos demanda uma leitura: “demanda
um representante de sujeito, mesmo que, pela problemática colocada em ato, esse sujeito
esteja nas margens (…) é o ato que produz enigma, lá onde existia absoluto, sem
separação” (Ibid., 2001, p. 151).
Podemos voltar agora ao lugar da produção/escritor compartilhando a hipótese
de Costa, na qual o ato de escrita ao mesmo tempo em que parte de absolutos é também
uma tentativa de produção de falta/separação que recorta o absoluto. Assim como
Orlando, o Condicionado endereça suas ofertas aos passantes anônimos, ou seja, a todos e
a ninguém. Certamente existe aí um pedido de leitura/endereçamento, assim como a
tentativa de produção de borda/separação. Cabe lembrar aqui que um de seus
instrumentos de trabalho é justamente uma tesoura. Ele recorta suas ofertas, assim como
Orlando recorta o texto absoluto nos restos, nos pedaços de papel retirados dos maços de
cigarro. A tesoura, assim como a moldura, aponta essa tentativa de produção de borda e
remete novamente a função da letra como litoral.
Propusemos a hipótese da existência de uma inversão da demanda na qual é o
público que endereça ao Condicionado um pedido de leitura supondo que ali existe um
saber sobre o qual não se sabe. Existe aí uma analogia possível entre o lugar que o
público/leitor atribui ao Condicionado e o lugar atribuído ao oráculo como aquele que
detém um saber enigmático, um saber que faz furo na representação. No entanto, estamos
propondo também que essa inversão da demanda que instala o Condicionado em um
lugar emblemático – lugar nem totalmente assimilado, nem totalmente rejeitado pelo
campo dos discursos que estruturam nossos laços – não exclui a possibilidade de um
pedido de leitura/endereçamento por parte do Condicionado; e não exclui porque ele
endereça sua escrita aos que passam por ele. No entanto, não é a mesma coisa endereçar-
se a alguém e endereçar-se a um público anônimo.
Lembro aqui da fala de Estamira, personagem de um documentário dirigido por
Marcos Prado que leva seu nome no título: “Sou esta mira, estou aqui e ali, estou em todo
lugar, estou na borda” ( 2006). Estamira/esta mira ocupa o lugar do olho que tudo vê;
lugar absoluto que remete ao que faz borda no discurso da civilização. Podemos dizer que
da mesma maneira que o Condicionado se dirige a todos e conseqüentemente a ninguém,
Estamira está em todo lugar e também em lugar nenhum. Eis aí uma bela maneira de
abordar a borda, a margem que delimita um furo no campo discursivo… Podemos supor
então que, nesse encontro entre o Condicionado e o público anônimo/indiferenciado, o
endereçamento está colocado nos dois lados; contudo, o que retorna desse pedido de
leitura não parece ser uma leitura no sentido do deciframento.
É interessante voltar novamente a Orlando, pois a sua entrada em análise produziu
uma curiosa passagem. Ele passou do público anônimo, ao qual endereçava sua escrita,
para a analista, tomada por ele por depositária privilegiada de sua escrita. Essa passagem
tem efeitos sobre sua produção escrita:
Orlando toma para si a difícil missão de transmitir em palavras o inefável. Assim ele o faz divulgando sua mensagem divina ao bancar o carteiro pelas ruas da cidade. Sua escrita tende a se dissipar no mundo assim como o corpo de seu criador. No entanto o que era dispersão vai aos poucos encontrando um endereço. Orlando inicia um processo de análise no qual a analista vai sendo tomada enquanto depositária privilegiada desta escrita que agora não está mais destinada somente a pessoas anônimas. Ao encontrar na analista um rosto conhecido, um corpo que permanece e não se desvanece na dispersão dos corpos anônimos, Orlando encontra um endereçamento possível. A posição em que a analista é colocada tem efeitos sobre a sua produção escrita. Em um momento anterior a análise Orlando encontrava -se submetido a uma série de imperativos aos quais se via compelido a obedecer. Foi assim que se manteve durante alguns anos em abstinência sexual seguindo a risca a letra do apóstolo Paulo. Foi assim também que distribuiu durante anos a sua escrita-pensamento, vagando compulsivamente pela cidade e deixando atrás de si um rastro de tinta e papel de cigarro. Escrita desgarrada que não encontrava ponto de parada (…) O segundo momento coincide com a entrada em um processo de análise onde toda a sua produção escrita passa pela análise e adquire um caráter diferente do caráter da compulsão...Trata-se de uma escrita que faz suporte para o registro do corpo. (MASAGÃO, 2005, p. 41)
Na escrita do processo de análise de Orlando trabalhei com uma hipótese; a
hipótese de que a possibilidade de endereçamento de Orlando em relação à analista
apontava a passagem de uma escrita submetida à compulsão – uma escrita que não
encontrava ponto de parada – para uma escrita suportada na tentativa de produção de um
registro/ separação. Podemos supor então que o que retorna para o público de seu
endereçamento ao Condicionado não é, como diz Lacan, o reconhecimento do Outro,
reconhecido, mas desconhecido. O que retorna para o público é o lugar vazio do objeto, o
furo no saber. É assim que o público instala-o nesse lugar paradoxal que conjuga os
absolutos que fazem borda nos discursos: lugar nem totalmente assimilado, nem
totalmente rejeitado; lugar que faz de seus escritos algo que resiste à leitura e à
assimilação pelo campo da representação simbólica.
O que retorna para o Condicionado de seu endereçamento ao público anônimo
também não parece ser uma leitura que dá lugar a uma imagem unificada de seu corpo,
eu ideal sustentado no traço distintivo, como ocorre com a criança que se endereça ao
adulto que a suporta em frente ao espelho, e desse encontro entre olhares que enlaça amor
e transferência pode se ver como amável para o Outro. Podemos supor que do encontro
entre o Condicionado e o público anônimo resulta a inscrição de um traçado do real;
todavia, esse traçado não separa signo e objeto, não instala um traço que captura o olhar
amoroso do Outro no lugar da queda do objeto. Esse traçado produz marca/diferenciação,
mas não produz reconhecimento/assimilação, não remete a um registro que possa ser
compartilhado em um discurso comum que sustenta os laços sociais; um discurso a partir
do qual cada um se representa na sua relação ao Outro e também na relação ao
semelhante.
3.2. Não ficará pedra sobre pedra…
Partimos da hipótese de que a letra-oferta do Condicionado era o que permitia a
ele a possibilidade de uma localização sustentada no traçado de seus escritos que
circulam no espaço público. Chegamos, então, à formulação de que isso é possível devido
ao endereçamento que o público faz a ele, localizando-o nesse lugar paradoxal, nem
totalmente descartado, nem totalmente assimilado, que é o lugar do absoluto/vazio.1 No
entanto, se a letra se movimenta, existe algo que não se desloca, está fixo em seu lugar.
Trata-se do corpo do Condicionado, que permanece enraizado na calçada há mais de dez
anos, sempre no mesmo lugar, tal qual uma estátua de pedra. Temos então a produção de
um registro marcado ao mesmo tempo pela presença do corpo enraizado na calçada e pela
livre circulação das letras no espaço público. Para Lacan, a letra tomada como aquilo que
se desloca, aquilo que pode faltar em seu lugar remete ao simbólico, enquanto o que
permanece sempre em seu lugar remete ao real:
1 Tal lugar pode ser pensado através da analogia com o lugar ocupado pelos místicos no campo da cultura: (…)Mas, porque está no lugar mesmo do vazio, do Nome prefeito que falta para que os homens formem um todo, porque ela recobre esse buraco, se aproxima do nada. Assim a plenitude e o vazio, o todo e o nada, não formam um par de opostos mas expressam um único e só irrepresentável “(POMMIER, 1993, p. 69).No entanto, Pommier aborda uma particularidade do êxtase místico que marca uma diferença entre a experiência sofrida pela mística e pelo místico, estabelecendo assim uma distinção segundo o sexo. Ocorre que geralmente as místicas femininas sofrem a experiência do êxtase na presença de uma testemunha do sexo masculino. Essa testemunha ocupa o lugar do escrito, da palavra, o lugar daquilo que faz transmissível algo no mundo dos homens, na ordem fálica. Sendo assim, a mulher mística passa pelo masculino, pelo homem, para que seja possível a transmissão de sua experiência. A fascinação que implica seu gozo infinito reclama uma transcrição. A mística não inventa nenhum sistema delirante para explicar sua comunhão com Deus pois sua experiência é dirigida à sociedade dos homens, a sua Igreja da qual é parte constituinte. A testemunha que presencia o êxtase garante uma representação: escreve, transcreve, pinta, es culpe o êxtase, coloca um limite fálico ao gozo da mística e marca seu laço indissolúvel com a cultura, sua possibilidade de transmissão na ordem fálica. Já o psicótico não tem acesso a esse limite, não tem a possibilidade de transmissão de seu gozo ilimitado.
Figura 7: O Condicionado enraizado na calçada
(…) o que está escondido nunca é outra coisa senão aquilo que falta em seu lugar, como é expresso na ficha de arquivo de um volume quando ele esta perdido na biblioteca. E, este, de fato, estando na prateleira ou na estante ao lado estaria escondido por mais visível que parecesse. É que só se pode dizer que algo falta em seu lugar, a letra, daquilo que pode mudar de lugar, isto é do simbólico. Pois quanto ao real, não importa que perturbação se possa introduzir nele, ele está sempre em seu lugar. (LACAN, 1956/1998, p. 28)
Do lugar da produção/escritor, o ato de escrever e “criar raízes” no espaço
público aponta a tentativa de inscrição de um registro suportado na descontinuidade (a
letra que traça o real ao circular no espaço público) e na fixidez (o corpo fixo em seu
lugar). Diante da palavra sem corpo do profeta Malaquias: “Não ficará pedra sobre
pedra!” – palavra imposta, palavra parasita, pura exterioridade que faz tudo desmanchar,
como é possível sustentar um corpo, um nome, uma palavra? Palavra que não passa pela
mediação do semelhante, vem direto do Outro, restando ao sujeito apenas a possibilidade
do testemunho do que o Outro o faz saber. Trata-se aí de uma palavra que invade o corpo,
como nas alucinações, em que a voz não produz borda no ouvido. “Não ficará pedra
sobre pedra” revela toda a dimensão de parasita, de exterioridade da palavra, que Lacan
aborda no seminário sobre Joyce (1975-1976) e que já havia abordado em outras
ocasiões, como no seminário sobre as psicoses (1955-1956).
Na fala do psicótico, algumas palavras se destacam, adquirem contornos especiais
como, por exemplo, os neologismos. São palavras plenas de sentido que remetem à
própria significação, e é por isso que são também palavras enigmáticas; já que não
remetem a nenhuma outra palavra, têm um peso em si mesmas, ficando fora do discurso e
fora do sentido.2 São palavras que não produzem laços, assim como as alucinações
auditivas. No fenômeno da alucinação auditiva o sujeito se depara com uma voz sem
corpo, presença maciça de um código absoluto que não passa pela mediação do
semelhante. A voz que vem diretamente do Outro: “não ficará pedra sobre pedra” faz
tudo desmanchar, nada permanece como sendo o mesmo. É preciso então recomeçar:
2 Joyce recolhe o que lhe vem do Outro como palavra imposta e o decompõe através da escrita. Assim ele faz com a história da “vacamuuu”, que lhe foi contada pelo pai e que ele conta em seus livros até chegar em Finnegans wake, onde ela sofre uma decomposição implacável. Na leitura que Sergio Laia nos oferece do seminário sobre Joyce de Lacan ele aponta que a relação de Joyce com a palavra lhe é cada vez mais imposta, a ponto de ele quebrar, dissolver a própria linguagem, decompô-la até acabar com a identidade fonatória. Existe nessa decomposição joyceana da linguagem e das histórias familiares certa ambigüidade: “Será que se trata de se libertar do parasita, do parasita falador, ou se deixar invadir pela polifonia das palavras?” (LACAN, 1975 apud LAIA, 2001, p. 125)
fazer do corpo pedra, fazer marca original com a caneta da tinta sobre o papel, corrigir o
tempo partindo sempre da imobilidade.
Figura 8: Corrigido pelo autor, em 18-4-1999 + 6 ©
Fazer um corpo de pedra seria uma maneira de subjetivar, assimilar o quem vem
de fora, ou uma maneira de permanecer fixado, colado a um signo do Outro como pura
exterioridade? Nos momentos de “crise”, o sujeito fica exilado de sua subjetividade, não
se reconhece mais como si mesmo, pois não consegue distinguir nem interior, nem
exterior. A voz que vem do Outro não faz borda no corpo, não recorta um orifício, não
estabelece uma fronteira entre o que é próprio e o que não é; ela retorna como vindo de
fora. Nesses momentos, o sujeito pode assimilar o que vem de fora, subjetivando-o ou
não. No caso do Condicionado, fazer do corpo pedra pode ser uma resposta à violência da
palavra intrusiva do Outro; no entanto, ela não parece subjetivar, mas, ao contrário,
parece desumanizar o corpo, apagar a distância entre o signo e o corpo, fazendo corpo da
palavra que se fixa em um único significado: pedra. Com esse ato o corpo perde a
mobilidade, a tal ponto que as pernas do Condicionado atrofiaram devido à falta de uso:
Esta petrificação mortal é a operação traumática que se produz cada vez que a parte mal dita do homem, cessando de estar ligada ao significante inconsciente, se solta para cair no real: nessa queda, a leveza que meu corpo recebia do significante pelo qual estava levantado desapareceu, de tal modo que esse corpo, que eu tinha esquecido que era pesado, põe-se de repente a pesar como se não obedecesse senão a uma lei, esta lei do real que é a lei da gravidade. (DIDIER-WEILL, 1997, p. 274)
Corpo que não se sustenta na descontinuidade simbólica, mas que se submete ao
peso da lei no real. É assim que o Condicionado sustenta seu corpo escavado na fixidez
do real. Do lugar do público/leitor, a presença ininterrupta do corpo petrificado na
calçada faz furo no saber, produz estranhamento na paisagem urbana, coloca o espanto no
lugar do reconhecimento; corpo que ao perder a invisibilidade revela justamente o que
fica elidido da visão.3 Didier-Weill aponta no uso da língua vestígios da relação entre o
olho e o furo: “Victor Hugo no seu livro “Os miseráveis” resume assim esta afinidade
entre furo e olhar: ‘o que se chamava passagem estreita, chama-se galeria; o que se
3 Segundo Alain Didier-Weill em seu livro Os três tempos da lei (1997), o que não se vê revela o que está subtraído das relações especulares, quando a simetria especular desaparece para fazer aparecer o que em nós é da ordem do fixo: o real que encarna o que retorna sempre ao mesmo lugar e que nos lembra a fixidez do cadáver.
chamava furo, chama-se olho’ ”( 1997, p.274). O olho é aí um furo bordeado; e a borda é
o efeito da lei simbólica, do traço-tesoura significante que separa e delimita o furo,
simbolizando-o. É assim que o sujeito apaga o traço transformando-o em olhar; fenda
entre percebida. É a inscrição do traço-tesoura que produz o corte no visto, remetendo o
olhar para além do que é visto, produzindo o “entre visto”. Como já apontamos, o corpo
erótico é um corpo recortado pelo traço-tesoura, inscrição do significante no real do
corpo. É o recalque que recorta as bordas corporais nas quais a pulsão realiza seu vaivém
ao redor do lugar vazio dos objetos; objetos parciais como o são o olhar, a voz, os seios,
as fezes:
E essas formas de objeto, não ficaríamos surpresos se elas nos aparecessem sob a forma que se chama parcial, sob a forma secionada, sob a qual somos levados a fazer intervir um objeto, por exemplo, correlativo dessa pulsão oral, este mamilo materno, do qual não é preciso, apesar de tudo, admitir a primeira fenomenologia que é aquela de uma peneira, seio cortado, isto é de alguma coisa que se apresenta com um caráter artificial. É alias isso que permite que se o substitua por não importa que mamadeira, que funciona exatamente do mesmo modo na economia da pulsão oral. (LACAN, 1962-1963, p. 75)
Podemos supor que, do lugar do público/leitor, o corpo do Condicionado
enraizado na calçada remete ao que fica subtraído das relações especulares; ao furo do
olho que fica elidido pelo corte-apagamento efetuado pelo recalque que faz do olho um
entrevisto. Encarnando esse furo, ele se aproxima do olho que tudo vê, encarnado pela
mira de Estamira. Do lugar da produção/escritor, o corpo enraizado na calçada remete
ao que Didier-Weill chama de mal visto, ou ainda mau-olhado:
O olhar que surge de um tal furo não é nada comparável ao olhar poético de uma lucarna: é um olhar maléfico que o gênio grego isolou como olhar de Medusa. Este mito nos diz que, sob este olhar, o corpo perde seu estatuto de vivo, caracterizado por sua mobilidade, para ser
transformado em estátua de pedra. (1997, p. 274)
Até o momento estamos trabalhando com a hipótese de que o Condicionado
sustenta seu corpo em um traçado constituído por suas letras endereçadas ao público
anônimo, lembrando que o traçado remete à articulação entre o simbólico e o real, pois é
efeito da inscrição de um traço-marca no real. O público que recebe suas letras demanda
dele um saber sobre o qual não se sabe, instalando-o em um lugar que remete ao
absoluto; lugar paradoxal que não é totalmente assimilado, nem totalmente rejeitado
pelos discursos que sustentam os laços sociais. Por outro lado, o Condicionado sustenta
seu corpo na fixidez do real, lugar que remete ao mau-olhado, abismo sem borda no qual
o gozo desmedido pode vir habitar.
Podemos supor que o registro que se produz aí se sustenta a partir dos registros do
simbólico e do real no encontro singular entre o Condicionado e o público. No entanto, o
traço que surge desse encontro não sustenta uma identificação suportada na ex-sistência a
partir da qual o sujeito inclui- se no Outro de fora. O traço que remete ao ideal de eu não
surge então como o ponto fora do espelho a partir do qual o sujeito se vê como amável
pelo Outro. O traço ao qual o Condicionado está submetido remete a essa exterioridade
absoluta que petrifica e mortifica o sujeito, e exclui a possibilidade de reconhecimento
que a leitura do desejo do Outro possibilita. Não existe aí a separação entre o signo e o
objeto que a leitura amorosa do Outro realiza. Não existe aí o recalque que constitui o
sujeito em uma continuidade moebiana entre íntimo e exterior, instalando o objeto em
uma permanência no espaço ex-timo que determina o gozo fora do corpo. Nesse sentido,
será que podemos dizer que a letra-oferta do Condicionado faz signo para o Outro, mas
não representa um sujeito suposto na cadeia de significantes onde um significante remete
a outro significante?
Resta ao Condicionado imprimir o traçado de suas letras-ofertas no espaço
público na tentativa de que algum dia esses signos sejam lidos/decifrados. Veremos que
isso se mantém a partir do lugar privilegiado que a impressão da marca assume na escrita
do Condicionado. Nesse sentido, a circulação de suas letras-ofertas no espaço público
inscreve uma marca, um traçado que aponta para a relação entre o simbólico e o real. A
letra que circula sempre inalterada produz marca/diferença, mas não metáfora. Letra
litoral que faz furo, mas não acede ao significante, não produz borda nos orifícios
corporais, erotizando/simbolizando o corpo.
O recalque inaugura a possibilidade de uma localização na realidade discursiva
suportada na descontinuidade significante que remete ao saber inconsciente regulado pela
lógica da repetição. O saber inconsciente é, portanto, uma memória do gozo que afeta o
sujeito, mas, paradoxalmente, essa memória funda-se sobre o esquecimento, já que é
preciso esquecer que a palavra vem do Outro para tomá-la como própria. Podemos dizer
que o Condicionado não esquece, e é nesse sentido que é afetado pelo lugar de onde vem
a palavra, a tal ponto que ela o petrifica e ele não pode tomá- la como própria, apenas
submeter-se a ela. No entanto, estamos trabalhando com a hipótese de que existem outras
possibilidades de localização, outras possibilidades de registro que não implicam
necessariamente a articulação entre memória, repetição e identificação. A impressão da
marca pode se constituir como possibilidade de apagamento, ou seja, de registro, já que
ela também implica falta/perda, como nos mostra o exemplo da pegada do passo na areia.
Será essa a tentativa posta em prática pelo Condicionado na sua busca de uma
representação, inscrição de um registro? Veremos como isso se dá no capítulo “A marca
original e a rasura da origem” que finaliza este texto.
3.3. Bombas, mulheres e letras1
Roberto aparenta ser um homem comum, de meia idade, magro e bem vestido.
Ele mora sozinho em um apartamento conjugado no centro da cidade de São Paulo. As
janelas estão inteiramente forradas com folhas de papelão impedindo que olhares intrusos
invadam sua privacidade. Ele levanta cedo todas as manhãs e faz longas caminhadas
pelas ruas do bairro. No entanto, nem sempre se trata de um passeio tranqüilo, pois ele é
permanentemente convocado a tocar os símbolos que encontra pelo caminho muitas
vezes percorrido. Assim, ao passar por um carro estacionado na calçada, toca com a
ponta do dedo indicador um adesivo pregado no vidro com os dizeres; “todas as
mulheres são lindas”. Toca da mesma maneira um homem vestido com uma camiseta na
qual está escrito “No stress” e também o crucifixo de madeira pendurado no pescoço de
uma freira que passa por ele. O que o convoca nos símbolos e por que toca em alguns,
enquanto outros passam despercebidos?
Lembro-me aqui do fenômeno elementar que pode aparecer ao sujeito na forma
de uma intuição delirante. No exemplo de Lacan, o sujeito encontra na rua um carro
1 Esse texto foi escrito tendo como base entrevistas filmadas com Roberto durante a pesquisa para a realização do filme longa metragem “Otávio e as letras”. Filme de ficção baseado na vida e obra de Roberto. O roteiro do filme foi escrito por Andrea Menezes Masagão e Marcelo Masagão em 2004, e contou com a acessoria em psicanálise de Ana Maria Medeiros da Costa. O filme foi filmado em 2006 e dirigido pelo cineasta Marcelo Masagão. Ainda não foi exibido nem em festivais nem no circuito comercial.
vermelho, “Não é por acaso, dirá ele, que o carro passou naquele exato momento”(1955-
1956/1988, p. 18). O vermelho do carro adquire para o sujeito uma significação plena,
mas que não é possível precisar: “será ela favorável? Será ameaçadora?” (Ibid, p. 18). O
vermelho que captura o sujeito remete ao simbólico “tal como é compreendida em um
jogo de cartas a cor vermelha, isto é, enquanto oposta ao preto” (Id., p. 18). No entanto, o
fenômeno elementar aponta para uma relação à linguagem, aos símbolos, que se distingue
do uso das palavras na linguagem comum. Como já apontamos, os neologismos, assim
como a intuição delirante, quebram a rede do discurso e remetem à própria significação.
Assim, “o vermelho” não é mais tomado em um sistema de oposições em que um
significante se define em oposição a outro. O “vermelho” não remete a mais nada, a não
ser a ele mesmo.
O caminhar de Roberto é sinuoso, marcado pelo encontro com os símbolos que
habitam os espaços da cidade e invadem seu corpo convocando o toque. Já o encontro
com o corpo dos que passam e cruzam seu caminho nas calçadas deve ser evitado. Nesse
jogo que se estabelece entre o toque dos símbolos e o desvio do toque dos corpos
anônimos, Roberto certamente não passa despercebido pelas ruas por onde caminha. Ele
promove uma espécie de inversão, fazendo do símbolo algo que pode ser tocado
enquanto o corpo permanece intocável. Posteriormente abordarei essa espécie de
encenação corporal através da referência ao tabu como última barreira ao real quando o
interdito simbólico falha. Mas já podemos apontar que o par materialidade
/imaterialidade atravessa todo o trabalho de Roberto e não apenas o jogo entre corpo e
símbolo que coloca em causa o par tocável/intocável.
Suponho que o tocar/ser tocado aponta uma possibilidade de defesa contra a
contaminação, a indiferenciação entre símbolo e corpo quando Roberto é capturado pelos
símbolos. Nesses momentos ele fica na posição de objeto, sofrendo passivamente os
caprichos do Outro sem falta. Como já foi apontado, o corpo pulsional é um corpo de
orifícios recortados pelo Outro. O olhar e a voz do Outro possibilitam a unidade do corpo
e o reconhecimento da criança nessa imagem: o olhar – signo do assentimento da escolha
de Amor do Outro, traço distintivo – é o que sustenta na descontinuidade simbólica a
unidade imaginária do eu; a voz autoriza o reconhecimento da imagem como própria –
“Você é esse que está aí no espelho”. A junção do olhar e da voz é o que regula a
dialética entre o corpo despedaçado e o corpo unificado.
Essa dialética implica a alienação em que palavra e imagem permanecem coladas,
e é preciso, então, separar a palavra da imagem, o corpo do gozo, o significante da
significação. Na separação, o objeto da pulsão está entre o corpo do bebê e o corpo do
Outro, nesse espaço ex-timo que tem estrutura de borda. É a pulsão que faz o laço entre o
sujeito e o Outro. No entanto, se o sujeito é visto como amável pelo Outro a partir do
traço fora do espelho, ele não tem acesso ao lugar a partir do qual é olhado ou falado,
lugar que remete ao registro da passividade: fazer-se olhar, fazer-se ouvir como objeto. É
como diz Bavcar (1992), o fotógrafo cego: a única coisa de que sente falta é daquilo que
todos sentem; a impossibilidade de se ver. Existe apenas o reflexo do espelho, o registro
do corpo no Outro…
Como já foi dito, a separação/diferenciação do Outro implica que o sujeito apague
os traços de seu ser objeto para o Outro, que ele possa circular do registro da passividade
para o registro da atividade. É o que Freud observa nas brincadeiras infantis em que a
criança realiza de forma ativa, com seus brinquedos, o que sofreu passivamente nas
primeiras relações com o Outro. Nessas relações primeiras, o corpo do bebê é o lugar de
uma série de cuidados por parte do Outro, e é nesses cuidados que Freud encontra a raiz
das fantasias de sedução; o Outro goza do corpo infantil. Na circulação passividade-
atividade o sujeito pode passar da posição de objeto para a posição de sujeito, ou mesmo
sustentar ativamente a posição passiva de objeto causa do desejo do Outro. O par
atividade-passividade remete ao vaivém da pulsão, ao circuito pulsional que enlaça
sujeito e Outro, corpo e linguagem.
É assim que Roberto defende-se da posição de objeto, ao se colocar em uma
posição ativa, ou seja, tocando; ao mesmo tempo, protege o corpo do toque invasivo do
Outro sem falta, ao fazer do seu corpo algo que não pode ser tocado. O par
tocável/intocável coloca em causa o par passivo/ativo e remete ao gozo do Outro. No
entanto, o toque não é a única estratégia adotada por ele diante da captura simbólica, pois,
como veremos, a letra é também uma estratégia. Durante suas caminhadas diárias
Roberto coleta os mais diferentes símbolos; um papel de bala amarelo forte deixado em
cima do balcão de uma padaria, um ticket de metro jogado na calçada, a carteira de
estudante encontrada entre sacos de lixo. Ele recolhe os restos descartados no espaço
público para utilizá- los na manufatura de suas bombas de papel. Além dos restos alheios
encontrados nos mais diversos locais, ele utiliza também os restos que sobram de seu
quotidiano: o tubo de uma pasta de dentes, o bilhete de aposta da loteria, o ticket da roupa
que foi para a lavanderia. Livros e revistas – a maioria comprada em sebos no centro da
cidade – também são utilizados para a fabricação das bombas.
Figura 10: Tubo de pasta de dente
É durante a noite que Roberto realiza seu trabalho, utilizando os materiais
coletados durante suas caminhadas diurnas. Sentado sempre no mesmo lugar no sofá da
sala, diante de sua mesa de caixas de papelão, ele inicia um curioso processo de
transformação. As letras impressas no papel são riscadas com movimentos circulares e
ininterruptos até desaparecerem completamente, submersas sob a tinta azul de sua caneta
Bic.
Figura 11: Livro riscado
As imagens estampadas nas folhas de revista são todas assinaladas com três traços
paralelos que simbolizam a Santíssima Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Os
restos (papéis de bala, o ticket do metro, o bilhete de loteria, etc…) também são
assinalados com os três traços. Para finalizar, Roberto marca o papel com o que ele
nomeia sua insígnia: um misto de letra e desenho que simboliza o vôo de um pássaro.
Figura 12: Insígnia
A seguir, ele coloca tudo – letras submersas, imagens assinaladas e restos
encontrados no espaço público – em uma folha de jornal com suas letras e imagens
devidamente trabalhadas. A folha é cuidadosamente enrolada na forma de um canudo,
que é amarrado com um pedaço de barbante para posteriormente ser despachado no
espaço público. Roberto diz que se trata de uma bomba de efeito moral, como aquelas
jogadas contra os manifestantes em tempos de ditadura. Ele se diz um guerrilheiro urbano
que procura no espaço público um alvo para jogar sua bomba. São alvos aleatórios: a
janela aberta de um carro parado no trânsito, uma loja de ferragens, um carro do exército,
um caminhão de lixo, a portaria de um prédio chamado D. Pedro I, a embaixada da Itália.
A única regra é não repetir o alvo…
Figura 13: Bomba de efeito moral
Roberto inicia seu trabalho com as letras aos 17 anos, o que coincide com o
encontro com uma prostituta. Do encontro com a mulher de todos os homens, mulher
pública, Roberto inicia uma série. Nomeia essa primeira mulher namorada mitológica.
A partir desse encontro começa a desfolhar livros e revistas e a rasgar as letras e as
imagens com o objetivo de transformar a substância em essência; a matéria, em espírito;
o material, em imaterial. Quando Roberto faz 23 anos é aposentado por invalidez e
localiza aí o momento de ruptura em que saiu da sociedade. Momento em que o exterior
se fecha e ele se volta para o interior, para o que chama de uma dimensão espiritual da
existência. O trabalho com as letras é realizado como um misticismo, uma forma de
aprimorar seu espírito.
O encontro com uma segunda mulher, a quem nomeia noiva teológica, ocorre
nessa mesma época e fornece- lhe uma prova da efetividade de seu trabalho: Roberto
encontra na revista play-boy a imagem de Bruna Lombardi saindo da piscina. Deseja para
si um tipo físico como aquele para se relacionar. Começa a rezar e recebe um
mandamento que lhe vem sob a forma de uma revelação; é dito que ele deve escrever em
cima da imagem da mulher as seguintes palavras que evocam a Santíssima Trindade: Pai-
vida, Filho-amor, Espírito Santo-razão. Em seguida ele rasga a imagem para transformar
a matéria em essência e apropriar-se da essência de Bruna Lombardi. Uma semana depois
se depara com uma mulher idêntica à da foto; um xerox, cuja única diferença era não ter
os olhos verdes da Bruna. Convida-a para sair e mantém com ela uma correspondência
através de cartas poéticas nas quais produz rimas que recolhe de livros. Ele tira xerox das
cartas e envia para ela as cópias, guardando os originais. Depois utiliza os originais em
seu trabalho, rasgando-os2
Um ano depois conhece uma terceira mulher; esta é também uma prostituta.
Nomeia-a esposa mística. Resolve simular uma identidade e diz a ela que trabalha como
topógrafo. No entanto, não consegue sustentar-se durante muito tempo nesse disfarce
diante da mulher e confessa a ela seu verdadeiro trabalho, o trabalho místico que realiza
com as letras e imagens. Diante de tal confissão acaba perdendo a mulher e mergulha em
um momento de terror. Para conservá- la de alguma maneira, realiza um casamento
simbólico. Escreve seu nome junto ao dela em uma fotografia e coloca fogo. O
2 É interessante apontar aqui o que a prof. Dra. Nina Leite observou durante a realização do exame de qualificação. A posição do Condicionado em relação ao original/origem, expressa na tentativa diariamente repetida de marcar o papel com a tinta de sua caneta para fazer traço original, difere da posição de Roberto, que rasga os originais de suas cartas. Nesse sentido, podemos levantar a hipótese de que o Condicionado visa, através de sua escrita, imprimir o original, enquanto Roberto, através de seu trabalho de rasura da letra, tem em vista apagar o original. Essa hipótese será desenvolvida na parte final deste trabalho.
casamento simbólico permite a ele manter a mulher em outro lugar; um lugar onde nada
pode ser tocado, mas onde tudo pode ser conservado:
Eu não encontrava uma saída. Aí tive que renunciar àquela mulher. Esse foi um momento de terror. Eu a perdi. Então queria conservá-la e fiz um casamento simbólico; peguei sua fotografia e escrevi o meu nome e o dela e coloquei fogo. Foi uma maneira de dominar aquele sentimento de perda, dominar o próprio desejo. O desejo que as pessoas têm quando se apaixonam, pois a vida deixa de existir sem a outra pessoa. Essa tempestade pela qual eu passei consegui dominar através do fogo. Mas mesmo assim eu fiquei me depurando muito tempo, eu estava condicionado fisicamente a ela. Eu ainda fiquei sonhando que ela ia voltar, durante um ano ou dois. Até aquele amor morrer…
Retomando a diferença de lugares estabelecida entre público/leitor e
produção/escritor, podemos supor que do lugar da produção/escritor o trabalho com a
letra surge para Roberto como efeito do encontro com o sexo feminino. Será que a
contagem que ele inaugura ao fazer série das mulheres-prostitutas permite a possibilidade
do estabelecimento de um intervalo, uma distância, uma medida em relação ao Outro
primordial? O corpo da mãe no lugar de das Ding, corpo não interditado pe la lei
simbólica do incesto?
O que encontramos na lei do incesto situa-se como tal no nível da relação inconsciente com das Ding, a Coisa. O desejo pela mãe não poderia ser satisfeito, pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda, que é o que estrutura mais profundamente o inconsciente no homem. É na própria medida em que a função do princípio do prazer é fazer com que o homem busque sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir, que nesse ponto reside o essencial, esse móvel, essa relação que se chama a lei da interdição do incesto. (LACAN, 1959-1960/1991, p. 87)
Suponho que a mulher apresenta-se na economia pulsional que organiza a
subjetividade de Roberto como um resto metonímico do corpo materno e não como efeito
de um processo metafórico em que o corpo materno interditado seria substituído por
outro corpo, uma Outra mulher. É nesse sentido que Roberto não consegue estabelecer
relações com mulheres comuns, pois estas o remetem diretamente ao corpo materno não
interditado pela lei simbólica. A mulher pública encarnada pela prostituta, ao colocar uma
distância construída pela série de mulheres, apresenta-se então como possibilidade de
encontro com o sexo feminino que não remete ao Outro primordial.
Como já apontamos, o ato realizado pelo caçador – marcar um a um os animais
mortos – implica também um registro temporal, inaugura uma possibilidade de contagem
ao introduzir uma diferença no campo do real. É a partir dessa inscrição do significante
no real que o sujeito pode se contar no tempo, já que ele não está mais submerso em um
presente infinito. O significante introduz uma descontinuidade em um campo que era a
princípio continuidade. A partir dessa descontinuidade é possível a contagem; um antes e
um depois. Essa primeira inscrição significante de uma diferença permite que o sujeito se
reconheça em diferentes momentos como sendo ele mesmo, como sendo ainda ele. No
entanto, podemos pensar em outra hipótese que tem efeitos completamente distintos
dessa primeira hipótese sobre a prostituta como possibilidade de estabelecimento de uma
série. A série remete à contagem e aponta para o funcionamento significante da cadeia do
saber inconsciente, como nos mostra Lacan a partir da série de traços inscritos na costela
do animal pré-histórico. A série aponta para o funcionamento significante do traço
tomado aí como traço unário; traço distintivo que remete a outros traços e cuja relação se
dá entre os traços e aponta para o funcionamento simbólico que se diferencia/separa do
campo do real; campo que permanece como algo que não se pode contar.
No caso de Roberto, a namorada mitológica, a noiva teológica e a esposa
mística não separam/diferenciam o campo do prazer sexual do campo do gozo; campo do
Outro primordial. A prostituta encarna em um só corpo todas essas mulheres e nesse
sentido a série fracassa na tentativa de produzir um traço distintivo, pois remete sempre
ao mesmo, ao original/originário. Suponho que a mulher prostituta funcione então como
pura exterioridade, elemento inassimilável que remete ao signo do Outro, namorada
mitológica, noiva teológica, esposa mística ; figuras originárias que conjugam origem e
morte no encontro letal entre a palavra e a coisa, entre o corpo e o gozo. 3
3 Nesse sentido a contagem das mulheres surge como possibilidade de produção do um distintivo e, embora fracasse, aponta para a tentativa de apagar a origem presente também no trabalho de rasura da letra realizado por Roberto.
3.4. O artífice da passagem e a explosão do semblante
Curiosa escolha a de Roberto, quando resolve simular um eu, apresentando-se à
mulher como topógrafo. Esconderijo especular que enraíza o lugar na dissimulação
oferecida pela unidade da imagem e não na descontinuidade simbólica. Imagem que se
desfaz no encontro com o sexo feminino. No seminário sobre as psicoses (1957/1998),
Lacan utiliza a metáfora de um banquinho de três pés para referir-se à fragilidade desse
modo de situar-se na realidade. Trata-se do que ele chamou de bengalas imaginárias,
identificações com personagens que oferecem modelos de comportamento: como se
comportar como homem ou como mulher. Por meio da imitação da imagem do
semelhante, do par que lhe serve de muletas, o sujeito sustenta-se em um jogo de faz-de-
conta, vivendo em conformidade com os modelos que lhe são propostos pelo social até
que um terceiro, um ímpar, vem desfazer seu arranjo. Não se trata aí da constituição do
eu especular sustentado no traço distintivo, mas de uma imitação da imagem do outro.
Corrêa (2001) trabalha o estádio do espelho de uma maneira interessante ao
tomar como referência a teoria dos conjuntos. Ele propõe que o estádio do espelho faz
um conjunto homogêneo, a unidade da imagem corporal, a partir de heterogêneos, o
corpo fragmentado. Nesse sentido, a imagem tem a função de eliminar o conjunto vazio.
Essa função, contudo, não se completa, pois algo da imagem não é especularizável.
Trata-se justamente aí do objeto a que exerce a função do conjunto vazio. Porém, se a
imagem exerce a função de escamotear o vazio ao propor a unidade, a totalidade; no
estádio do espelho, a estrutura do espelho funda uma topologia, a existência de um
espaço virtual simbólico no qual se formam a imagem de um corpo ideal e o que fica
excluído da imagem: o objeto parcial que não é especularizável. Desse modo, a
introdução do espelho plano inaugura uma diferença: a existência de espaços
heterogêneos, já “que o real aparece como real, porque existe o virtual” (CORRÊA, 2001,
p. 69)
Na proposta de Lacan para situar o pré-psicótico a partir de uma identificação
puramente adesiva à imagem do semelhante, a unidade da imagem do eu não se sustenta
na instauração de espaços heterogêneos, como ocorre no estádio do espelho. Não é uma
imagem sustentada na descontinuidade simbólica, mas na semelhança/imitação. Podemos
pensar aqui em uma analogia entre essa identificação puramente adesiva à imagem do
outro e os fenômenos de mimetismo encontrados no reino animal. Como já apontamos,
para o animal não existe a alteridade simbólica, apenas a continuidade entre a imagem e o
objeto. Nesse caso, as bengalas imaginárias que sustentam o psicótico na realidade são
precárias e não garantem a permanência do registro do eu na ausência da imagem do
outro na qual se sustenta.
É interessante lembrar aqui de uma passagem do filme “Spider”1, comentada por
Costa (2003, p. 67): a coordenadora da casa abrigo na qual Spider encontra-se alojado
pergunta a ele se é necessário vestir quatro camisas de uma vez, uma por cima da outra.
A resposta vem do companheiro de Spider, também um morador da casa abrigo: “o
hábito faz o homem, quanto menos homem, mais hábito precisa”. Lembro também que
Orlando, a quem chamei Orifeu no texto de minha dissertação, vestia várias camadas de
1 SPIDER, direção de David Cronemberg, Canada: Artists Independent Network, 2002, DVD (98 min.) NTSC, Son. Cor.
roupa que eram completadas por um cachecol que literalmente segurava seu pescoço. No
filme de Cronemberg, além das várias camisas, o personagem também amarrava seu
corpo com uma corda encontrada em suas andanças pelo espaço público. Esses exemplos
são interessantes para ilustrar o uso do hábito/vestimenta como algo que dá forma e ao
mesmo tempo contém/amarra o corpo. A vestimenta parece funcionar aí da mesma
maneira que a imagem do semelhante que serve de suporte/modelo para o corpo.
Lacan (1975-1976) vai pinçar no romance “Retrato de um artista quando jovem”
de James Joyce um acontecimento narrado por Stephen Dedalus que remete à perda do
suporte identificatório do corpo e, conseqüentemente, a uma desrealização do corpo.
Trata-se da surra que Stephen recebe de alguns colegas por não compartilhar das mesmas
preferências literárias que eles:
Perguntava-se porque não guardava qualquer rancor daqueles que o tinham atormentado. Não esquecera um único detalhe da sua maldade e covardia, mas recordar isso não lhe causava nenhuma raiva. Todas as descrições de amor e ódios ferozes, que encontrava nos livros, pareciam- lhe por isso mesmo desprovidas de realidade. Mesmo nessa noite enquanto regressava cambaleando pela rua Stephen sentira que uma certa força o despojava daquela súbita onda de raiva, tão facilmente quanto um fruto é despojado de sua casca mole e madura. (JOYCE, p. 87)
Lacan conclui que essa maneira de deixar cair o que concerne à imagem do corpo
próprio é que é suspeita para um analista. Stephen não perde apenas o suporte da imagem
corporal, mas também o suporte oferecido pela leitura, uma vez que as referências
literárias não lhe servem mais. No entanto, a surra não resulta em uma crise de
despersonalização em que o suporte corporal se esvai aos pedaços. Talvez porque essa
queda do que concerne ao corpo próprio incida não só sobre o corpo de Joyce, mas
principalmente sobre o corpo da língua, sobre o texto que Joyce vai compondo e que é
cada vez mais esvaziado de personagens e de consistência imaginária. Essa espécie de
dissolução imaginária que afeta o corpo já havia sido apontada por Lacan no seminário
sobre as psicoses:
À foraclusão segue-se um processo cuja primeira etapa chamamos um cataclismo imaginário, ou seja, que nada mais pode ser arrendado da relação mortal que é em si mesma a relação com o outro imaginário. Depois, desdobramento separado e investido por todo o aparelho significante; dissociação, despedaçamento, mobilização do significante enquanto palavra jaculatória, insignificante ou demasiado significante, decomposição do discurso interior, que marca toda a estrutura da psicose. (1955-1956/1981, p. 360)
Em Joyce, encontramos os distúrbios de linguagem descritos por Lacan em uma
crise psicótica e que apontam o caráter parasitário da linguagem, já que o psicótico fala
de alguma coisa que lhe falou. No entanto, em Joyce não se fala de crise ou de distúrbio,
e sim de literatura. Joyce faz incidir sobre o corpo da língua a dissolução imaginária que
na crise psicótica incide sobre o corpo. A escrita de Joyce transforma a própria
linguagem manipulando as letras em um jogo que vai do esvaziamento ao excesso de
sentido, o que leva a um rompimento da tradição da escrita enquanto representação.
O personagem do escrito “Stephen Hero”, uma espécie de rascunho do romance
“Retrato de um artista quando jovem”, explora a linguagem através de um jogo que
lembra brincadeira de criança. Ele recolhe as palavras do mundo, tanto as eruditas
colhidas do seio da tradição literária, como as vulgares, colhidas do blablablá cotidiano e
repete-as até a exaustão, até que percam totalmente a sua utilidade e, esvaziadas de todo
sentido, revelem uma sonoridade inédita: “ele ficava repetindo para si mesmo até elas
perderem todo o sentido instantâneo que tinham para ele e se tornarem maravilhosos
vocábulos”(LAIA, 2001, p. 59).
Joyce, principalmente a partir de “Ulisses”, vai trabalhar as palavras uma a uma.
Elas são decompostas, cortadas, grudadas, rasuradas, revelando o jogo entre a letra e o
lixo. Ao trabalhar sobre a materialidade das palavras, tomando a letra como se fosse
coisa, Joyce introduz na mensagem/carta um furo, um enigma. A mensagem é cifrada
justamente através da rasura que promove esse deslocamento da letra ao lixo. Desse
trabalho sobre as palavras extrai-se um excesso que fura a representação. Uma única
palavra se desdobra e remete a uma multiplicidade de sentidos:
Ela relampejou por entre seus ávidos olhos pudorcerrados, miando chorosa e longamente, mostrando-lhe os dentes lactibrancos. Ele observava as escuras olhifendas estreitando-se cúpidas até que seus olhos se tornassem pedras verdes.” (JOYCE, 1996, p. 45)
Joyce utiliza as palavras como se fossem restos, palavras criadas a partir de
pedaços, dejetos de outras palavras; palavras que se acumulam umas sobre as outras;
palavras que copulam, ignorando as diferenças de uma língua a outra; palavras que
remetem ao corpo, aos dejetos que se destacam do corpo como, por exemplo, as palavras
“marissêmem” ou “olhifendas”. Estratégia interessante cujos ecos encontramos na escrita
de Roberto. Veremos como do lugar da produção/escritor, a escrita de Roberto promove
uma espécie de desrealização do corpo e seu trabalho de rasura da letra visa exatamente a
esse deslocamento da letra ao lixo que fura a representação ao apagar a função
mensageira da letra tomada como significante. No entanto, o trabalho de Roberto não
parece fazer da litura/rasura literatura…
Encontramos em outro escritor uma analogia que permite pensar a posição do
topógrafo adotada por Roberto diante da mulher desejada. Trata-se justamente do Sr. K, o
topógrafo da obra de Kafka intitulada “O castelo” (2006). O topógrafo é chamado para
um trabalho no castelo, mas não consegue entrar e acaba ficando entre a aldeia e o
castelo, sem conseguir pertencer a nenhum lugar. Entre dois lugares, o Sr. K circula no
espaço do fora, no espaço do exílio; “lugar onde não só não está em sua casa mas está
fora de si, no lado de fora que é uma região totalmente privada de intimidade (…)”
(BLANCHOT, 1987, p. 72 ). Assim como Roberto, o Sr. K persegue a unidade da
imagem, mas só encontra a dispersão e o exílio. Enquanto topógrafo, Roberto também
fracassa, pois não consegue sustentar o lugar imaginário do eu na “bengala” que a
imagem do topógrafo lhe oferece.
Do lugar da produção/escritor podemos supor que Roberto não se localiza a
partir de um espaço topográfico sustentado apenas nas referências especulares; espaço
imaginário onde a gestalt do corpo do semelhante é tomada como o modelo do
conhecimento dos objetos da realidade; espaço de formas planas em conformidade com a
geometria euclidiana. Por meio de seu trabalho com a letra, Roberto cria um espaço
topológico sustentado justamente na subtração da imagem2. Vejamos do que se trata. Em
determinado momento Roberto diz que o exterior fechou-se para ele, não havia nenhuma 2 Topografia e topologia referem-se a relações de lugares. No entanto, estamos supondo que a topografia sustenta lugares a partir da lógica dual inaugurada pelo estádio do espelho onde o sujeito projeta sua imagem no exterior, no outro, e tem acesso a uma primeira representação do eu. A imagem do eu torna-se a medida de todos os objetos que compõem a realidade do sujeito, uma realidade homogênea ao eu, em que o outro e o objeto são equivalentes. Já apontamos que dentro dessa concepção o objeto refere-se ao objeto do conhecimento; objeto que se funda em uma concepção narcísica do objeto e se diferencia do objeto a; objeto parcial e não narcísico. A realidade na qual circulam os objetos do conhecimento sustenta-se nas referências imaginárias; alto/baixo, esquerda/direita, simétrico/dessimétrico etc… Já a topologia é efeito do traço-tesoura e sustenta lugares na descontinuidade simbólica e na continuidade moebiana entre íntimo e exterior que constitui o espaço ex-timo; a borda em torno do vazio a partir da qual o sujeito constrói suas fronteiras simbólicas e imaginárias: eu/outro, sujeito/Outro dentro/fora, contínuo/descontínuo, dia/noite, masculino/feminino, etc… A topologia sustenta lugares heterogêneos como o são real, simbólico e imaginário.
possibilidade de lugar no campo social – seja no que se refere ao trabalho, às relações
familiares ou relações afetivas. Não havia nenhuma possibilidade de se fazer representar
a partir dos laços sociais e então ele se volta para o interior. É nesse espaço chamado
interior, ou ainda espiritual, que Roberto tenta inscrever um lugar.
Na verdade, não se trata nem de interior, nem de exterior, mas do espaço
presentificado pelo canudo, superfície que contém o vazio. Assim, abandona a imagem
do topógrafo que não se sustenta no encontro amoroso e revela outra posição; posição
que se aproxima daquela ocupada por Creonte, o barqueiro que fazia a passagem do reino
dos vivos ao reino dos mortos. Roberto é aquele que realiza o ato de passagem da
substância à essência, da matéria ao espírito, do material ao imaterial, através das rasuras
feitas com sua caneta Bic. Através desse ato ele faz surgir outro espaço chamado por ele
de dimensão espiritual; espaço no qual ele é o senhor absoluto. Nesse outro espaço tudo o
que existe lhe pertence, tudo pode ser conservado e, no entanto, nada pode ser tocado.
Ao submergirem, as letras desaparecem para aparecerem em outro lugar e, dessa
forma, Roberto apropria-se do que elas simbolizam. O mesmo acontece com as imagens
que assinala e com os restos que recolhe. Tudo o que é esvaziado de sua “substância”
passa a pertencer-lhe. Ele conserva a mulher amada a partir do desaparecimento de sua
imagem. Existe aí uma espécie de subtração da imagem do corpo. O mesmo pode ser
pensado em relação ao desaparecimento das letras que, em um primeiro tempo do
trabalho de Roberto, eram rasgadas, e que atualmente são completamente riscadas, ou
seja, têm seu corpo tipográfico rasurado e sua possibilidade de leitura literalmente
apagada.
Podemos supor, do lugar da produção/escritor, que um dos efeitos da letra no
trabalho de Roberto é justamente a subtração do corpo por meio de um trabalho de rasura
da letra, uma espécie de encobrimento da letra. Essa hipótese será trabalhada
posteriormente a partir das relações entre a rasura, o traço e a letra e suas incidências na
origem do sujeito. No entanto, podemos nos perguntar se a imagem do corpo subtraída,
que desaparece para aparecer em outro lugar, remete ao saber inconsciente suportado na
ex-sistência do traço unário. O par materialidade- imaterialidade colocado em causa na
passagem da substância à essência só é possível a partir do interdito simbólico, da lei
simbólica da interdição do incesto; interdição que arranca o corpo de sua materialidade
real na qual o corpo é idêntico a si mesmo, puro objeto despojado de alteridade,
submetido a todo o peso da lei da gravidade, para inscrevê- lo em Outro lugar onde reina a
lei simbólica, a descontinuidade própria ao funcionamento da linguagem, corpo habitado
por uma alteridade:
Que o real do corpo possa existir para a palavra que o habita significa que ele pode ser habitado por uma alteridade que, o arrancando do fato de não ser só o que ele é, o assujeita a um alhures capaz de erguê-lo até um ser outro que o dele próprio. Não será jogando com a dimensão desse alhures que o corpo pode dançar e transmitir esse para além da gravidade e do visível pelo qual a existência do que pode haver de imaterial e invisível nos é outorgada? (DIDIER-WEILL, 1997, p. 45)
Podemos então retornar ao toque que coloca em cena o corpo de Roberto. Do
lugar da produção/escritor, a escrita de Roberto coloca em causa a utilização da letra na
sua função de rasura, promovendo uma espécie de subtração do corpo que desaparece
para aparecer em outro lugar; lugar onde tudo pode ser conservado, mas nada pode ser
tocado. Todavia, caminhando pelas ruas da cidade, Roberto é permanentemente
convocado a tocar os símbolos que invadem seu corpo e é capturado pelo código
simbólico: um adesivo colado no vidro de um carro parado na calçada, os dizeres escritos
na camiseta de um homem que passa por ele, o nome de um edifício, uma placa de
trânsito. As letras do código convocam Roberto a intervir com seu corpo e ele se vê
obrigado a tocá- las, pois através do toque elas passam a lhe pertencer em outra dimensão.
Nesse sentido, o toque parece ter a mesma função que a tinta da caneta: transformar a
substância em essência, a matéria em espírito.
No entanto, se a letra utilizada na sua função de rasura promove uma subtração do
corpo, o toque vai justamente colocar em causa uma espécie de encenação do corpo.
Roberto toca o que, em princípio, não pode ser tocado – os símbolos; e o que pode ser
tocado – seu corpo – é interditado. Podemos supor, então, que, se a rasura tivesse o efeito
desejado – a inscrição de um traço simbólico a partir do qual Roberto pudesse se
representar e se singularizar, sustentando as bordas corporais na descontinuidade
simbólica, na cadeia do saber inconsciente e na existência do espaço ex-timo, lugar vazio
do objeto –, a encenação do corpo, colocada em causa no ato de tocar e impedir o toque
do outro, seria desnecessária. Diante do fracasso da inscrição do traço enquanto traço
simbólico, traço que remete a outros traços, resta a Roberto a barreira do tabu. Como já
apontamos, o tabu apresenta-se como possibilidade de uma barreira ao real que emerge
no ponto onde o interdito simbólico falha.
A proibição do contato com o impuro, com o sagrado, com o belo são montagens
culturais que colocam em causa essa última barreira. Costa (2003) analisa a sacralização
como suporte corporal e aponta o sagrado justamente como aquilo que não pode ser
tocado. O toque assume diversas representações que vão do toque no jogo do pegador,
em que aquele que é tocado se transforma no pegador-perseguidor; ao toque da mulher
menstruada, que em determinadas sociedades transforma o que é tocado em algo impuro;
até o ritual ascético, esvaziado de afeto do ato de cumprimentar com um aperto de mãos,
comum nas sociedades modernas ocidentais. Segundo a autora, o toque como tabu coloca
em causa a proximidade real (corporal) e a indiferenciação simbólica. A proibição do
toque “visa manter uma espécie de defesa em relação a algo que pode confundir, logo não
se diferenciar, ou não se separar. É nesse sentido que as proibições vão evitar as
contaminações”. (COSTA, 2003, p. 40)
Segundo Didier-Weill (1997), a proibição do toque visa proteger o humano do
real que emerge através da barreira porosa do interdito simbólico e que não se confunde
com o retorno do recalcado submetido às leis da descontinuidade simbólica. O que ocorre
na emergência do real é a substituição dessa descontinuidade, instaurada pela lei
simbólica, por uma continuidade entre real e simbólico, em que o real vem contaminar o
simbólico promovendo indiferenciação entre o informe e a forma, o ilimitado e o
limitado, o inumano e o humano. O contato com o real rejeitado do simbólico macula o
corpo, que é silenciosamente invadido por uma continuidade que desmancha as bordas
corporais sustentadas na descontinuidade simbólica. Ocorre aí uma mistura entre o real e
o simbólico, entre o contínuo e o descontínuo. Podemos supor, então, que o tocar/ser
tocado coloca em causa uma possibilidade de defesa contra a contaminação, a
indiferenciação entre símbolo e corpo, quando Roberto é invadido pelos símbolos que o
cercam.
Ainda do lugar da produção/escritor, será que podemos aproximar a função do
canudo, posto para circular por Roberto no espaço público, da função exercida pela
moldura na escrita do Condicionado? Ambos delimitam um espaço, mas, no caso do
canudo de Roberto, trata-se de um espaço furado, superfície topológica; espaço
tridimensional. Para situar essa questão, vamos novamente recorrer ao par
endereçamento/leitura utilizado anteriormente para estabelecer uma diferença entre a
letra na sua relação ao simbólico e a letra na sua relação ao objeto. Do lado da
produção/escritor, o canudo, objeto inventado, posto para circular no espaço público, é
nomeado por Roberto bomba de efeito moral. Bomba que só é lançada em alvos
aleatórios. No entanto, já destacamos que os alvos/público não são tão aleatórios assim,
visto que seguem a regra de nunca se repetirem.
Podemos supor, então, que a partir dessa regra Roberto tenta estabelecer certa
ordenação/diferenciação no espaço; o estabelecimento de uma fronteira simbólica. É
assim que o alvo/endereçamento surge como possibilidade de introduzir uma
diferença/descontinuidade no real. Nesse sentido o canudo teria aí uma função
significante? Vamos nos remeter novamente à fobia de Hans, pois ela nos oferece
elementos para pensar essa questão. Segundo Corrêa (2001) o pavor cria fronteiras e a
angústia é um sinal que marca no espaço zonas que não podem ser ultrapassadas. O medo
de Hans do cavalo substitui o medo que não surge da palavra do pai e, assim, os cavalos
de angústia balizam o espaço de sinais que suprem o inter-dito simbólico:
O complexo do cavalo, diz Freud – representa o elemento substituível, permutável, separável. É em virtude desse papel estruturante do sintoma, deste laço entre imaginário, simbólico e real, que Freud ajudou a fobia a se expandir através da única intervenção direta que fez a Hans, anunciando- lhe seu mito, o mito de Édipo. (CORRÊA, 2001, p. 71)
Na formação do sintoma fóbico, o objeto pai é substituído pelo objeto animal e,
como já apontamos, a resposta fóbica é ela mesma uma metáfora, uma vez que faz do
objeto fóbico um objeto posto em função significante. Com a instauração de uma cifra
que representa não mais o objeto e sim sua representação, a resposta fóbica barra o objeto
como referente. Nesse sentido, a metáfora barra o objeto, simbolizando-o. No caso de
Roberto, o canudo que circula no espaço público não remete à formação de um substituto,
um objeto posto em função significante que se desloca no espaço inscrevendo fronteiras e
remetendo o sujeito para a existência de um espaço Outro, como é o caso do cavalo para
Hans. O canudo, superfície que contém o vazio, remete à letra na sua função litoral e
assim se aproxima da função da moldura utilizada pelo Condicionado. Canudo e moldura
remetem ao lugar vazio do objeto; furo que não produz borda no saber.
No entanto, à diferença das ofertas do Condicionado, que traçam o real – signos a
espera de uma leitura/decifração –, a regra/interdição de não repetir o alvo, colocada por
Roberto remete novamente a função do tabu como defesa contra a indiferenciação entre o
símbolo e o corpo; funda assim um espaço sustentado em proibições que visam
estabelecer barreiras contra o real que ameaça invadir o corpo. Nesse sentido, as barreiras
que introduzem diferenç a no espaço não suprem, como no caso da fobia, a ausência do
inter-dito simbólico. As barreiras são sustentadas pelo ato continuo de Roberto; ato que
implica o movimento incessante do corpo e a fixidez dos alvos. O ato através do qual
Roberto endereça-se ao público/alvo introduzindo aí uma diferença visa à
descontinuidade entre o corpo e o símbolo, entre o sujeito e o Outro; contudo, essa
descontinuidade só se produz a cada vez que o ato é realizado, e, nesse sentido, não se
sustenta na descontinuidade da cadeia significante e no espaço ex-timo, furo bordeado
pelo significante.
Do lugar do público/leitor podemos supor que o canudo de Roberto é a própria
encarnação da letra na sua relação ao furo. Furo que incide no semblante oferecido pelo
significante, pela linguagem. Como já disse, o significante acaba assumindo no percurso
de Lacan uma função de semblante, e o que se destaca na ruptura desse semblante, seu
resíduo, é justamente o gozo: “Nada é mais distinto do vazio escavado pela escrita que o
semblante. A primeira é receptáculo sempre pronto a acolher o gozo, ou ao menos a
invocá-lo em artifício” (LACAN, 1971/2003, p. 24). Do lugar do público/leitor, o
objeto-canudo posto para circular no espaço público por Roberto assemelha-se à escrita-
oferenda do Condic ionado, já que ambos não fixam um sentido, mas provocam uma
espécie de curto-circuito na função mensageira da linguagem. Trata-se de uma escrita que
rompe as referências que organizam a nossa percepção espaço-temporal e a nossa
representação, fazendo emergir um objeto, uma presença que faz furo no saber. Não se
trata apenas de uma suspensão do saber, ou de um não saber, mas do aparecimento de um
furo no saber; furo que organiza o saber, mas que freqüentemente não se presentifica, não
é especularizável, e assemelha-se ao umbigo dos sonhos, ponto em que o conhecido se
enlaça ao desconhecido.
A presentificação desse furo encarnado pelo objeto que Roberto faz circular no
espaço público provoca no público/leitor uma súbita desorganização das referências,
fazendo emergir o espanto no lugar do já conhecido; e assim permanece como objeto que
não é totalmente assimilado pelo campo discursivo, mas que também não é totalmente
rejeitado por esse campo, já que provoca efeitos na realidade discursiva. Objeto que, tal
qual a letra- litoral, aponta a ausência de uma medida comum entre os campos
heterogêneos que constituem o humano.
Considerações finais: Criação e origem
O verbo se fez carne em Cristo A carne se fará verbo em mim
Gregório Delgado
4.1. A coleção e o vaso
As escritas do Cond icionado e de Roberto revelam um uso da letra extremamente
singular que escapa ao universo das convenções e sentidos estabelecidos. Escritas que
circulam em um espaço paradoxal, espaço ao mesmo tempo interior e exterior, fazendo
borda no discurso da civilização. Escritas que provocam ruptura no semblante oferecido
pela linguagem, revelando os limites do simbólico e o vazio constituinte da palavra.
Escritas que fazem uso dos deslocamentos da letra entre o significante; a carta/letter e o
objeto; a carta/lixo. Como abordar essa escrita que fica entre a arte e a loucura, entre a
literatura e o literal, entre o sublime e o lixo?
Se o Condicionado está permanentemente exposto ao olhar dos que transitam pela
avenida onde ele escavou seu lugar, Roberto utiliza as folhas de papelão para se proteger
dos olhares intrusos. Se o Condicionado encontra seu lugar graças à fixidez do corpo ao
redor do qual o público se movimenta, Roberto se movimenta sem cessar, procurando
pela cidade um alvo/público fixo em seu lugar. Se o Condicionado utiliza a moldura para
delimitar um espaço, Roberto utiliza o canudo... São muitas as possibilidades de
aproximação/ diferença exploradas até o momento. Porém restam ainda possibilidades
inexploradas… Esta terceira parte, que pretende finalizar a pesquisa, aborda as escritas
do Condicionado e de Roberto a partir do campo da criação no qual a arte é tomada como
possibilidade de existência de um discurso que não seria semblante. Na criação do
Condicionado, o que se destaca é a função da marca que visa imprimir a origem. Na
criação de Roberto o que se destaca é a função da rasura que visa apagar a origem…
Lacan vai se perguntar sobre os limites do simbólico especialmente no seminário
“A ética da psicanálise”. A partir da leitura do Entwurf (FREUD, 1895-1950/1981),
Lacan estabelece as relações entre o significante, que se inscreve na dialética do princípio
do prazer e o gozo, que excede os limites do princípio de prazer1. Ele não vai se deter na
ênfase freudiana dada aos processos neurofisiológicos na constituição do aparelho
psíquico visando incluir a psicanálise no campo das ciências naturais. Ao contrário, é
para a desnaturalização da psicanálise que Lacan aponta ao enfatizar a função da
linguagem no processo de constituição do aparelho psíquico. Desde o início ele marca o
caráter conflituoso que está na origem desse aparelho. A concepção de um organismo que
se funda a partir de tendências opostas: o processo primário e processo secundário, os
dois princípios do funcionamento psíquico, descritos por Freud no Entwurf: o princípio
de prazer e o princípio de realidade.
O princípio de prazer é marcado por uma inércia que se traduz na tendência à
descarga da quantidade cujo objetivo é reduzir a zero a tensão entre o estímulo e a
descarga. Freud se vê obrigado a rever a tendência da redução da tensão a zero quando se
depara com o que nomeia as urgências da vida, ou seja, estímulos provocados no interior
1 Na lógica de seu ensino, Lacan foi levado a abordar o termo gozo por diferentes caminhos. Segundo Miller (2005), em um primeiro momento ele vai abordar a libido freudiana a partir do registro imaginário; gozo narcísico e auto-erótico que se inscreve como inércia em relação à dinâmica simbólica, como se gozássemos sempre no mesmo lugar, ao passo que o significante se desloca ao sabor de uma dialética que pode ser reduzida à metonímia. Em segundo lugar, Lacan tentou integrar a libido à ordem simbólica e traduziu-a em termos de desejo. O gozo aparece ligado ao desejo, como Lacan aponta na Instância da letra (1957/1998), e estaria ligado à pulsão como função substitutiva; um gozo substitutivo que, longe de ser caracterizado por sua inércia, caracteriza-se por seus deslizamentos. A pulsão inibida pode encontrar sua satisfação pelo viés de outra, e mesmo através de uma substituição de objeto, o que valoriza a plasticidade de sua satisfação. O falo na sua função significante adquire nesse momento toda a sua importância, ao lado do conceito de desejo e, no registro simbólico, o desejo indica a anulação do objeto pelo significante. Em terceiro lugar, há o que podemos chamar de gozo da transgressão, que é destacado no seminário sobre a ética quando o gozo aparece ligado essencialmente ao excesso, ao além do princípio de prazer. Miller situa assim três formas do gozo como satisfação da pulsão até o momento do ensino de Lacan que coincide com o seminário sobre a ética: inércia; gozo imaginário, deslizamento; gozo substitutivo e excesso; gozo da transgressão. O gozo ligado à transgressão ainda não é a ultima palavra de Lacan a respeito da articulação entre o significante e o gozo; no entanto, o seminário sobre a ética da psicanálise introduz um corte e uma recolocação da questão no seu ensino; as dificuldades derivadas da tradução simbólica da libido levam Lacan a situar o gozo na origem e fazer derivar dele o sujeito, situando assim o gozo não mais no imaginário, ou anulado pela transcrição simbólica da libido, mas como real.
do próprio organismo e que obrigam o sujeito a uma ação específica na realidade visando
a sua descarga. Já não é mais possível reduzir essa tensão a zero, uma vez que não existe
ação específica realizada pelo homem capaz de fazer cessar completamente o estímulo
interno (percepção interna). Freud propõe então que a tendência primeira do princípio de
prazer é manter a tensão no menor nível possível, restabelecendo assim uma espécie de
equilíbrio homeostático em que o nível de tensão entre a descarga e a quantidade seria
mantido constante.
O princípio de prazer visa estabelecer uma identidade de percepção entre a
necessidade e o objeto da satisfação; no entanto, pouco importa aí que o objeto seja real
ou alucinado, importa apenas que a identidade se restabeleça. Trata-se, de fato, de um
funcionamento precário, destinado ao erro e ao engodo. Freud faz intervir então outro
princípio que funcionaria como uma espécie de chamado à ordem, um princípio de
correção que faria oposição ao primeiro. Trata-se do princípio de realidade que se exerce
no sentido de uma identidade de pensamento; no entanto, todo o pensamento está
submetido ao funcionamento inconsciente e nós só temos acesso a ele através de sinais
que chegam à consciência. Sinais que nos chegam unicamente na forma de palavras:
O objeto enquanto hostil só é sinalizado no nível da consciência na medida em que a dor faz o sujeito soltar um grito. Ele permaneceria obscuro e inconsciente se o grito não lhe viesse conferir, no que diz respeito à consciência, o sinal que lhe confere seu valor, sua presença, sua estrutura. No final das contas, só apreendemos o inconsciente no que dele é articulado em palavras. (LACAN, 1959-1960/1991, p. 45)
É nesse sentido que Lacan propõe, nesse seminário, o inconsciente estruturado
como uma linguagem, visto que são as leis do significante que estruturam os
pensamentos inconscientes: “O que é conhecido não pode ser conhecido senão em
palavras, e o que é desconhecido apresenta-se como tendo uma estrutura de linguagem”
(Ibid., p. 52). Para Lacan, a radicalidade de Freud ao propor o par princípio de prazer-
princípio de realidade como organizador da vida psíquica está no fato de que ele não
identifica a adequação à realidade a um bem qualquer:
Qual é a figura nova que nos é fornecida por Freud na oposição princípio de realidade-princípio de prazer? É seguramente uma figura problemática. Freud não pensa nem um instante em identificar a adequação a realidade a um bem qualquer. No mal estar na civilização, diz-nos, seguramente a civilização, a cultura pede demais ao sujeito. Se há algo que se chama seu bem e sua felicidade, não há nada para isso ser esperado nem do microcosmo, isto é dele mesmo, nem do macrocosmo. (Ibid., p. 47)
O que existe é uma profunda inadequação. Inadequação entre o homem e a
natureza, mas também inadequação entre o homem e a cultura. Inadequação entre as
palavras e as coisas, mas também entre os objetos e a experiência de satisfação. Na busca
da satisfação o ser humano encontra palavras no lugar das coisas, imagens alucinadas no
lugar dos objetos da realidade. Nesse encontro sempre faltoso as palavras o afastam das
coisas, a linguagem o isola do real e, no entanto, sem a linguagem, o sujeito estaria
excluído da realidade. Afinal, de que realidade se trata? É preciso aí estabelecer uma
diferença entre a realidade e o que Lacan nomeia registro do real. Já abordamos como
essa diferença é instituída pela operação do recalque original através do par Bejahung-
Ausstossung. O pacto resultante do recalque original tem como efeito a ex-sistência do
traço unário e a ex-timidade do objeto. Nesse encontro entre o mais íntimo e o mais
exterior, o sujeito se constitui em uma continuidade moebiana entre íntimo e exterior e
não por uma descontinuidade dentro fora. Das Ding tem sua localização topológica
presentificada pela criação desse espaço ex-timo: interior excluído, efeito do corte do
traço-tesoura.
Lacan vai abordar, por meio de um exemplo tirado da psicologia da coleção, uma
relação particular entre o objeto e a Coisa que aponta para a ex-timidade de das Ding, e
que teria lugar privilegiado, porém não exclusivo, na criação artística. Trata-se de uma
coleção de caixas de fósforos vazias:
Vi uma vez uma coleção de caixas de fósforo na casa de um amigo. As caixas de fósforo se apresentavam da seguinte maneira: Todas eram as mesmas e dispostas de uma maneira extremamente graciosa, formando uma fita coerente que corria sobre a borda da lareira. Não creio que a satisfação do ponto de vista ornamental fosse a principal substância do que esse colecionismo tinha de surpreendente, e a satisfação que daí poderia obter aquele que era responsável por isso. Creio que o choque, a novidade, do efeito realizado por esse ajuntamento de caixas de fósforo vazias era de fazer aparecer isto, é que uma caixa de fósforos não é de modo algum, simplesmente um objeto, mas pode sob uma forma em que estava proposta em sua multiplicidade verdadeiramente imponente, ser uma Coisa. (Ibid.,p.143)
O objeto da coleção revela um além do objeto visando à coisa que subsiste na
caixa de fósforos: “Esse pequeno apólogo da revelação da Coisa para além do objeto
mostra-lhes uma das formas, a mais inocente, da sublimação” (Ibid., p. 144). Lacan
retoma o conceito freudiano de sublimação apontando problemas na sua elaboração por
parte de Freud. Nos três ensaios sobre a sexualidade2, Freud acaba propondo a
sublimação como possibilidade de uma satisfação pulsional direta que não se dá por 2 FREUD, S.(1909) Tres ensayos para una teoria sexual, 4 ed. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Sigmund Freud Obras Completas, Tomo II)
intermédio do retorno do recalcado, ou através de uma formação sintomática. O problema
está no fato de que os objetos que possibilitam essa satisfação direta são aqueles
socialmente valorizados, objetos reconhecidos e aprovados pelo grupo, objetos de
utilidade pública. Haveria aí uma espécie de equivalência entre a satisfação individual e
a satisfação coletiva no encontro de um objeto ideal. Tal formulação vai em direção
oposta à plasticidade das pulsões e à inadequação entre o princípio que governa nosso
caminho em direção ao prazer e o princípio que regula o campo sociocultural onde não
existe nada que possa equivaler à felicidade do indivíduo ou, como diz Lacan, ao seu
bem:
(…) O que nos governa no caminho de nosso prazer não é nenhum bem supremo, e que para além de um certo limite de nosso prazer, estamos, no que diz respeito ao que das Ding recepta, numa posição inteiramente enigmática, pois não há regra ética que faça mediação entre nosso prazer e sua regra geral. (Ibid., p. 21)
Na leitura lacaniana, não é o valor ideal atribuído ao objeto que torna possível a
sublimação; ao contrário, a sublimação entendida como “a elevação do objeto à
dignidade da Coisa” não se funda na relação narcís ica, imaginária com o objeto:
Para guiar-nos temos a teoria Freudiana dos fundamentos narcísicos do objeto, de sua inserção no registro imaginário. O objeto – uma vez que especifica as direções, os pontos de atrativo do homem em sua embocadura, em seu mundo, uma vez que o objeto lhe interessa por ser mais ou menos sua imagem, seu reflexo – esse objeto, precisamente, não é a Coisa, na medida em que ela está no âmago da economia libidinal. E a fórmula mais geral que lhes dou da sublimação é essa – ela eleva um objeto à dignidade da Coisa. (Ibid., p. 141)
Na criação artística ocorreria uma espécie de redução do objeto à Coisa, que não é
o objeto comum partilhado nas relações de troca e rivalidade com o outro semelhante. O
objeto adquire seu estatuto de Coisa justamente através de uma espécie de subtração de
seu valor comum, valor de uso, de utilidade; subtração de seu valor ideal como idéia
abstrata fundada em uma representação compartilhada. A revelação da Coisa para além
do objeto comum aponta uma possibilidade de o homem atravessar sua busca regulada
pelo princípio de prazer; busca que o leva a reencontrar sempre significantes no lugar das
coisas, e a se deparar com um objeto que representa a Coisa. Tal possibilidade existe no
ato da criação: “Um objeto pode preencher essa função que lhe permite não evitar a Coisa
como significante, mas representá-la na medida em que esse objeto é criado" (Ibid., p.
151).
Nessa criação, o objeto “caixa de fósforos” é subtraído ao registro especular, é
literalmente arrancado das referências que o determinam enquanto objeto de troca:
simetria/dessimetria, alto/baixo, frente/verso, dentro/fora, para transformar-se em um
objeto que não é especularizável; um objeto que ganha subitamente um estatuto de
invisibilidade ao ser colocado nesse lugar estranho, fora de todas as referências comuns,
fazendo surgir um furo no saber construído a partir das representações compartilhadas,
furo que remete ao objeto perdido, o objeto a. Para Lacan, o homem cria seus suportes,
ele é o artífice de seus suportes e modela o significante à imagem da Coisa, Coisa que, no
entanto, não tem imagem. A Coisa revela justamente o que escapa à representação; o
vazio que a ação do significante sobre o real psíquico introduz. No entanto, a “elevação
do objeto à dignidade da Coisa” permite dar figura ao que a princípio não tem figura;
fazer surgir uma presença que até então estava ausente.
Costa (2003) vai abordar o colecionador como uma alegoria da ausência que se
produz a partir de uma espécie de subtração, e parte de um exemplo bastante interessante
de coleção, que não pertence propriamente ao campo da criação artística, mas nos
interessa, pois se aproxima das escritas que estamos investigando. Costa apresenta um
colecionador que se situa à margem das relações sócio-culturais: são os “mendigos
tesoureiros”, pessoas bastante idosas que viviam em condições miseráveis, passando
fome e dependendo da caridade alheia para sobreviver:
A surpresa desses casos acontece depois de sua morte: nas providências de fechamento do lugar que habitavam (freqüentemente sozinhos) eram descobertas somas de dinheiro consideráveis – algo que teria lhes permitido viver bem durante anos – guardadas zelosamente, como se guarda uma coleção de coisas. (COSTA, 2003. p. 134)
A autora sublinha uma peculiaridade dessa coleção, frente à qual é possível
entender claramente o que Lacan nomeia Coisa: “Como o dinheiro é o significante que
melhor representa aquilo que costumamos situar como valor, a redução do objeto ao
estatuto da Coisa, ou seja, a uma matéria sem significado ou valor, diz bem como se
coloca essa questão” (Ibid., p. 134). Os mendigos tesoureiros encontram uma
possibilidade de registro de seu lugar no campo sociocultural a partir de uma condição de
subtração; subtração do dinheiro ao circuito de circulação ao qual ele pertence. O
interessante é que a subtração acaba incidindo tanto sobre o objeto dinheiro quanto sobre
as pessoas que se subtraem do convívio social ao se colocarem como mendigos.
Encontramos uma condição semelhante no Condicionado, não tanto no fato de ele
ocupar um lugar à margem das relações sociais – uma calçada no meio de uma
movimentada avenida da cidade de São Paulo –, mas no fato de seu corpo petrificado ter
sua função de locomoção subtraída. Ao fazer corpo da palavra pedra, o Condicionado
acaba produzindo estranhamento na paisagem urbana e pondo a descoberto o furo que
revela a presença que está além da imagem, além da representação compartilhada do que
seja uma paisagem urbana. É nesse sentido que o corpo que tem sua função de locomoção
subtraída acaba presentificando justamente o que faz furo no saber compartilhado: a
Coisa, o objeto perdido, o objeto que fica sempre fora da paisagem, que não se encontra
no quadro, ou no reflexo da imagem no espelho. No entanto, pergunto-me se os objetos-
emoldurados que o Condicionado põe para circular no espaço público fazem coleção.
Parece-me que não. Seus escritos, além de não ficarem guardados, armazenados, não
possuem outra característica essencial presente na coleção apontada por Lacan: é da
repetição dos objetos, da repetição do mesmo, que se cria o heterogêneo, a diferença.
Nesse sentido, é na série de caixas de fósforos que o estatuto de Coisa se destaca do
objeto. Assim, a coleção revela um duplo estatuto do objeto:
Se por um lado parece haver a busca de um esvaziamento, pela insistência de uma série e fixidez de seu lugar; por outro, é também a relação ao objeto como traço, que faz necessária a série como o estabelecimento de um diferencial. No final das contas, uma coleção também pode ser deduzida da série de traços nos ossos de caça dos primitivos. (Ibid., p. 133)
A coleção permite dar figura a dois estatutos do objeto na sua relação à Coisa: o
objeto que aponta para o lugar ex-timo e que remete ao real – definido nesse momento
por Lacan como aquilo que padece do significante; e o objeto como traço, que aponta
para a lógica que regula o funcionamento simbólico na sua relação ao traço unário que
ex-siste à cadeia significante. Gostaria ainda de apontar outra questão levantada por
Costa (Ibid., p.134); o objeto como resto não faz coleção, não faz série, não permite uma
contagem, uma representação, uma circulação, como ocorre na criação artística, ou uma
subtração, como no caso do dinheiro colecionado pelos mendigos tesoureiros. Nesse
sentido, como poderíamos pensar os escritos postos em circulação no espaço público pelo
Condicionado e por Roberto? Será que eles se aproximam mais do resto, do dejeto, do
que do objeto elevado à dignidade da Coisa?
Trata-se aí de uma questão que talvez possa estabelecer uma diferença entre a
criação assimilada pela realidade discursiva como criação artística e a criação que
permanece no lugar paradoxal ocupado pelas escritas do Condicionado e de Roberto;
escritas que não são totalmente assimiladas pela realidade discursiva, nem totalmente
rejeitadas por ela. A criação artística revela essa dupla natureza do objeto presente
também no objeto da coleção. O objeto “elevado à dignidade da Coisa” aponta tanto para
a circulação de um objeto sustentado na descontinuidade simbólica inaugurada pela série
de traços, como para o espaço ex-timo; lugar vazio do objeto. Já a criação do
Condicionado, bem como a de Roberto, sustenta a circulação do objeto no ato de seus
criadores e, nesse sentido, não estabelece uma cadeia regulada pela lógica da repetição
inconsciente, mas uma sucessão de atos que colocam em cena o corpo.
Como veremos no capítulo a seguir, a escrita de Joyce, assim como a escrita de
Roberto, revela uma subtração do corpo, uma escrita incorporal, livre do imaginário.
Ambos trabalham com os deslocamentos da letra entre o simbólico e o real e com a
exclusão do imaginário. No caso de Joyce, existe um privilégio do som em relação ao
sentido. Seus livros devem ser lidos em voz alta para que as palavras se transformem em
“maravilhosos vocábulos”. No caso de Roberto, as letras submersas impedem a leitura, a
vocalização das letras, e, nesse sentido, sua escrita se diferencia da escrita de Joyce.
Joyce promove uma verdadeira explosão de sons jogando com a polifonia das palavras;
Roberto silencia as palavras no desaparecimento das letras. Podemos nos perguntar,
então, o que na escrita de Joyce produz laço, o que faz com que do jogo da letra entre a
letter e a litter surja a literatura. Podemos supor que o que produz laço é o fato de Joyce
publicar sua escrita. É pela publicação que essa escrita entra em relação com um
público/leitor que pode funcionar como S2, de tal modo que entre a escrita de Joyce e seu
público se estabeleça um equivalente da cadeia significante.
Nesse sentido, uma vez publicada, a escrita de Joyce sustenta-se na
descontinuidade simbólica que sustenta os laços discursivos e difere das escritas de
Roberto e do Condicionado, que precisam do ato, da encenação corporal de seus
criadores, para circularem no espaço público. No entanto, não deixa de ser surpreendente
o fato de que Joyce tenha conseguido criar um efeito de comunicação, de intercâmbio
com uma escrita em princípio fechada em si mesma, resistente à significação…
Voltando ao percurso de Lacan, no seminário “A ética da psicanálise” ele vai
utilizar um exemplo de Heidegger para abordar o que já estava sendo sublinhado pela
coleção de caixas de fósforos. Segundo Lacan, Heidegger, o último que meditou sobre o
problema da criação, desenvolve sua meditação em torno do vaso. O vaso não é um
elemento estranho a Lacan, já que ele o utiliza em vários momentos de seu ensino,
principalmente no que se refere às elaborações do estádio do espelho, no qual o vaso está
presente no esquema do buquê invertido. Como já abordamos anteriormente, no
seminário “A Ética da psicanálise” o vaso não vai ser utilizado por Lacan enquanto
metáfora do corpo, mas como o primeiro significante modelado pelas mãos do homem. O
vaso enquanto significante primeiro permite-nos visualizar como o vazio é criado a partir
do simbólico.
Qual é a matéria prima do trabalho do oleiro? O barro ou o vazio? O que vai dar
forma ao barro é justamente o vazio ao redor do qual se constrói o vaso, o barro é a
borda, a fronteira que vai delimitar o vazio. A obra de arte vai se construir ao redor do
vazio, ao redor da Coisa, possibilitando uma borda, uma delimitação para aquilo que fica
fora da representação. Não se trata na obra de arte de um contato direto com a Coisa, mas
é possíve l cingir a Coisa ou representá- la através de outra coisa:
A Coisa (…) será sempre representada por um vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por outra coisa – ou, mais exatamente, de ela não poder ser representada senão por outra coisa. Mas, em toda forma de sublimação o vazio será determinante. (LACAN, 1959-1960/ 1991, p. 162)
A Coisa será representada pelo vazio, o que remete ao real, ou a Coisa será
representada por outra coisa, o que nos remete à lógica do funcionamento simbólico:
No primeiro caso, está-se bastante próximo das variações filosóficas ou teológicas como, por exemplo, o conjunto vazio ou a criação ex-nihilo. Do ponto de vista da cadeia significante, será o significante faltante que porá a cadeia em movimento, o zero da série dos números. Do ponto de vista da topologia, será o furo etc. (REGNAULT, 2001, p. 18)
Assim como o oleiro cria o vaso ex nihilo, o homem cria os significantes e vai
modelando o real, criando o pleno e o vazio, o dentro e o fora, o dia e a no ite. A arte, a
arquitetura, a escultura, a literatura são passíveis de encarnar, modelar, manipular,
apresentar esse vazio que resulta da ação simbolizadora das palavras sobre as coisas, da
ação do significante sobre o real.
4.2. Literatura
Ainda no seminário “A ética da psicanálise” Lacan propõe de uma forma um
tanto esquemática definições da arte, da religião e da ciência a partir do vazio: a arte se
organiza em torno do vazio, a religião evita ou respeita o vazio e a ciência não acredita no
vazio. Podemos nos perguntar, então, se a arte seria um discurso que não fica reduzido a
um semblante. Para pensar essa questão, podemos partir de um movimento literário
apontado por Lacan, cujo efeito na realidade discursiva é fazer circular um objeto
bastante perturbador. Trata-se da figura da Dama, introduzida pela poesia do amor cortês,
que tem lugar no início do século XIX. A Dama é um objeto singular, criado a partir de
certas condições. No amor cortês, cria-se uma série de artifícios, rodeios e obstáculos,
que impedem o acesso à Dama: “Não há possibilidade de cantar a Dama, em sua posição
poética, sem o pressuposto de uma barreira que a cerque e isole” (Ibid., p. 184). À
inacessibilidade do objeto acrescenta-se a despersonalização do objeto:
Por outro lado, esse objeto, a Domnei como é chamada, é freqüentemente invocada por um termo masculino – Mi Dom, isto é, meu senhor – essa Dama é apresentada com caracteres despersonalizados, de tal forma que autores puderam notar que todos parecem dirigir-se a mesma pessoa. (Ibid., p. 185)
Objeto esvaziado de qualquer materialidade, uma vez que toda Dama é cantada
como tendo os atributos corporais que eram idealizados na época:
O fato de que, num dado momento, seu corpo seja descrito como g’ra
delgat e gen, isto é, que exteriormente as rechonchudas faziam parte do sex appeal da época, não deve enganar vocês, pois, chamam-na sempre assim. Nesse campo poético, o objeto feminino é esvaziado de toda substância real (Ibid., p. 187)
As características atribuídas a esse objeto simbolizado pela Dama no centro da
poesia trovadoresca são: inacessibilidade, despersonalização e esvaziamento, que
apontam para a existência de um vacúolo – como Lacan se refere à Coisa em
determinado momento – no interior do sistema de significantes. É nesse sentido que a
Dama coloca em função simbólica o vazio. O vazio exerce uma função topológica, mas
também uma função simbólica: “Está então provado que o vazio não tem somente uma
função espacial, mas também simbólica. Ele é da ordem do real, e a arte utiliza o
imaginário para organizar simbolicamente esse real” (REGNAULT, 2001, p. 30). Se a
Dama é um objeto que se caracteriza por uma ascese e por uma subtração, ela também
coloca em jogo uma espécie de crueldade que revela sua face de transgressão do desejo
ao colocar a descoberto, como explicita Lacan, a presença perturbadora da Coisa:
O que a criação da poesia cortês tende a fazer deve ser situado no lugar da Coisa, e nessa época aí, cujas coordenadas históricas nos mostram uma certa discordância entre as condições particularmente severas da realidade e certas exigências do fundo, um certo mal-estar na cultura. A criação da poesia consiste em colocar, segundo o modo da sublimação própria à arte, um objeto que eu chamaria de enlouquecedor, um parce iro desumano. (1959-1960/1991, loc. cit. )
Esse objeto enlouquecedor – construído a partir de obstáculos, subtrações,
esvaziamentos – e certa ascese de disciplina do prazer – que consiste na retenção, na
suspensão do ato do amor – assinala o limiar do princípio de prazer; aponta o que está
além dele, conjugando amor e morte e fazendo surgir para o sujeito uma substância
vivenciada. Ao que ultrapassa, transgride o limite do principio de prazer, a essa
substância que é experimentada no corpo, Lacan faz corresponder o gozo. A figura
encarnada pela Dama na poesia do amor cortês acaba revelando um paradoxo da criação
artística: ela é ao mesmo tempo objeto que remete ao sublime e objeto que remete à
escatologia:
Ocorre que a mulher idealizada, a Dama, que está na posição do Outro e do objeto, coloca brutalmente, no lugar sabiamente construído por significantes requintados, em sua crueza, o vazio de uma coisa que se revela ser a Coisa, a sua, aquela que se encontra no âmago de si mesma em seu vazio cruel. Essa Coisa, da qual alguns de vocês pressentiram a função em sua relação com a sublimação, é de alguma maneira desvelada com uma potência insistente e cruel. (Ibid., p. 200)
Criação que se aproxima da Coisa justamente através de uma construção de
linguagem extremamente sofisticada, repleta de rodeios, subtrações e estratégias de
esvaziamento que subitamente fazem surgir o vacúolo no interior do sistema de
significantes... É assim que a criação artística vai fazer circular no campo comum das
trocas simbólicas um objeto que geralmente não circula nesse campo. A arte é capaz de
criar um objeto paradoxal que ao mesmo tempo remete ao objeto socializado, que pode
ser comunicado, e ao objeto da pulsão, incomunicável. Feliz paradoxo que por alguns
instantes permite-nos entrar em contato com os produtos esquecidos do corpo da infância;
dejetos corporais que se desprendem do corpo e que Freud situou como o nosso maior
bem, pois se referem aos valores de nosso Outro primordial. A elevação do objeto à
dignidade da Coisa permite-nos lembrar esses objetos esquecidos, colocando o espanto
no lugar da angústia:
O que nos mostra um quadro? Que a presença do invisível, interdito de permanência no mundo quotidiano, cessa de ser interdita, ao trilhar um caminho até nossos olhos que, neste encontro espantoso, depõem as armas (…) O que nos faz ouvir a música senão a presença do inaudível, até então banido da mesmice tagarela do quotidiano? (DIDIER-WEILL, 1995, p. 24)
A Dama permite-nos pensar a arte como um discurso que não se reduz ao
semblante, pois ela evoca ao mesmo tempo o lugar vazio do objeto e o gozo – substância
vivenciada no corpo que pode habitar o vazio. Como nos lembra Didier-Weill, a arte nos
põe novamente em contato com a Coisa que habita o espaço do exílio que cada um
carrega dentro de si, sem, no entanto, libertá-la de seu exílio:
O artista é o embaixador desse infinito: tornando transmissíveis o inaudito e o invisível, sua tarefa é lembrar ao homem a Coisa que nele vive em exílio; ele não liberta essa Coisa de seu exílio , mas permite que ela seja vista e ouvida enquanto definitivamente exilada. (Ibid., p. 302)
Alguns autores como Foucault e Blanchot registram que durante o século XIX
uma experiência nova se introduz no discurso a partir da literatura. Trata-se de uma
experiência que se produz a partir da transgressão aos interditos da linguagem. Parece-
nos que podemos aproximar o que Foucault aponta na literatura de alguns escritores do
século XIX como “a dobra da palavra que escava a linguagem do interior e a remete ao
infinito” do vacúolo encarnado pela Dama na poesia trovadoresca; já que as estratégias
de linguagem que utilizam artifícios como a despersonalização, a subtração e o
esvaziamento produzem efeitos semelhantes à transgressão apontada por Foucault:
(…) ela consiste em submeter uma palavra, aparentemente conforme o código reconhecido, a um outro código cuja chave é dada nesta palavra mesma; de tal forma que esta é desdobrada no interior de si: ela diz o
que ela diz, mas ela acrescenta um excedente mudo que enuncia silenciosamente o que ela o diz e o código segundo o qual ela diz. Não se trata aqui de uma linguagem cifrada, mas de uma linguagem estruturalmente esotérica. Quer dizer: ela não comunica, ao escondê-la, uma comunicação interdita; ela se instala, em uma dobra essencial da palavra. Dobra que a escava do interior e, talvez, até o infinito. Pouco importam, então, o que se diz em uma semelhante linguagem e as significações que aí são liberadas. É essa liberação obscura e central da palavra no coração dela própria, sua fuga incontrolável para uma moradia sempre sem luz, que nenhuma cultura pode aceitar imediatamente. Não é em seu sentido, não é em sua matéria verbal, mas em seu jogo que uma tal palavra é transgressiva. (FOUCAULT, 1964/2002, p. 214-215)
O precursor desse movimento seria Flaubert, que, segundo Foucault, ao escrever
“A tentação de Santo Antonio”, abre espaço para a existência de uma literatura que só
existe na rede do já escrito; uma literatura que se desfaz de um elemento ordenador
exterior a ela e toma o próprio escrito como matéria prima; uma literatura que escreve
sobre o escrever. Flaubert inaugura uma série: Mallarmé, Kafka, Bataille, Borges,
Joyce… Escritores que introduzem na literatura elementos que, a princípio, não fazem
parte da linguagem comum, como números e referências espaciais, trabalhando na escrita
o desvio, a distância, o intermediário, a dispersão, a fratura. Elementos que Valery
nomeou o físico da linguagem: sons, ritmos, número, ou seja, tudo aquilo que ficava fora
do uso comum da linguagem é agora utilizado por esses escritores. Esses escritores
privilegiam o ser da linguagem e não é o uso da linguagem enquanto comunicação de um
sentido. Trata-se de uma palavra transgressiva que irrompe fora de si mesma remetendo o
escrito para o fora, que não se confunde com a realidade, mas que remete à Outra noite
descrita por Blanchot:
O que aparece na noite é a noite que aparece, e a estranheza não provém somente de algo invisível que se faria ver ao abrigo e a pedido das trevas: o invisível é então o que não se pode deixar de ver, o incessante
que se faz ver. O fantasma está lá para desviar e apaziguar o fantasma da noite. Os que crêem ver fantasmas são aqueles que não querem ver a noite, que a preenchem pelo pavor de pequenas imagens, a ocupam e a distraem fixando-a, detendo a oscilação do recomeço eterno. Isso está vazio, isso não existe, mas veste -se isso como se fosse uma espécie de ser, encerra -se-o, se possível, em um nome, em uma história, em uma semelhança (…) (BLANCHOT, 1987, p. 164)
Ainda segundo Blanchot, ao vazio da Outra noite o sono empresta um refúgio, um
sentido, um limite, um antes e um depois, a noite como afirmação do dia. Se o sono faz
com que o dia sobreviva na noite, quando chega o sonho fica-se mais perto dessa Outra
noite onde tudo é incessante, ininterrupto, e da qual o tempo está ausente. A Outra noite
remete a esse lado de fora onde habita “o vazio e o vago do anterior” (Ibid., p. 269). No
sonho que se abre para o lado de fora, o sonhador não se reconhece mais em si, nem em
outro, ele é arrancado do registro do eu e dos laços com o outro. Não é o eu do sonhador
que sonha, é um sonho que se sonha, da mesma maneira que o escrito que se aproxima da
região sombria do lado de fora não é escrito pelo eu do escritor, mas é um escrito que se
escreve. Ao dobrar-se sobre si mesmo sem se deixar completar, o ato de escrever afasta-se
da função representativa e aproxima-se desse espaço ex-timo, espaço do exílio que cada
um carrega no interior de si:
Afinal essa dobra do escrever sobre o escrever é um reviramento, um virado de dentro para fora. Essa torção transposta para o que vai se destacar no corpo de vários escritos evidencia um furo que lança tais escritos para fora deles mesmos, mas esse fora é um exterior que lhes é ao mesmo tempo central. Ao dobrar-se sobre si mesmo o escrito acaba adquirindo uma forma próxima a essa superfície topológica chamada toro que se parece com uma câmera de ar. (LAIA, 2001, p. 21)
Assim, nessa dobra, o escrever abandona os propósitos utilitários com os quais se
revestiu durante muito tempo e se aproxima de experiências limites como a experiência
do êxtase ou da loucura:
Na verdade, o olho revirado, em Bataille, nada significa em sua linguagem, pela única razão de que ele lhe marca o limite. Indica o momento em que a linguagem chegada aos seus confins irrompe fora de si mesma, explode e se contesta radicalmente no rir, nas lágrimas, nos olhos perturbados do êxtase, no horror mudo e exorbitado do sacrifício, e permanece assim no limite deste vazio, falada de si mesma em uma linguagem segunda em que a ausência de um sujeito soberano determina seu vazio essencial e fratura sem descanso a unidade do discurso. (FOUCAULT, 1963/2001, p. 43)
E ainda:
Daí também essa estranha vizinhança da literatura com a loucura. Descoberta como uma linguagem, calando-se na superposição a si própria, a loucura não o manifesta nem relata o nascimento de uma obra (ou de alguma coisa que, com a genialidade ou com a chance, teria podido tornar-se uma obra); ela designa a forma vazia de onde vem essa obra, quer dizer o lugar de onde ela não cessa de estar ausente, no qual jamais a encontramos porque jamais ela ai se encontrou. (Id., 1964/2002, p. 217)
Mallarmé torna-se um dos nomes mais incisivos do abandono na literatura da
função propriamente representativa. Escrever se impõe como um exercício que pretende
exaurir a linguagem sem dela abrir mão, e revela uma situação extrema a que o escritor se
expõe: “Ao sondar o verso a esse ponto, encontrei lamentavelmente dois abismos que me
desesperaram. Um é o nada… O outro vazio que encontrei é o do meu peito”
(MALLARMÉ apud. BLANCHOT, 1987, p. 105 ). Outro escritor que leva o abandono
da função representativa da linguagem a seu limite é Joyce. Como já apontamos, as
epifanias de Joyce revelam um uso da letra que faz furo na representação. Vamos retomá-
las. Joyce recolhe palavras do dicionário e de conversas escutadas no espaço público. São
“retalhos, pedaços de discurso extraídos” (SOLER, 1998, p. 32). Ao extrair as palavras de
seu contexto e transformá-las em maravilhosos vocábulos, Joyce apaga a significação
imediata associada à palavra:
Ele encontrava palavras para seu tesouro. Ele as recolhia também ao acaso nas butiques, nos cartazes, nos lábios da multidão que se arrastava. Ele as repetia para si tanto e tanto que, no final, elas perdiam para ele sua significação imediata e se transformavam em falas admiráveis. Ele resolvera interditar para si, com toda a energia de sua alma e de seu corpo, até mesmo a menor adesão ao que ele agora considerava como o inferno dos infernos, em outros termos, a região em que qualquer coisa aparece como evidente. (JOYCE apud SOLER, 1998, p. 23)
Nessa luta contra a evidência, Joyce vai do uso das epifanias à escrita de
Finnegans Wake, subtraindo a letra da cadeia de sentido, destruindo o um da significação.
O um da significação apóia-se no laço entre o imaginário e o simbólico e diz respeito à
relação entre o um da unidade imaginária do corpo próprio e o um distintivo do traço
simbólico; relação que supõe o desejo do Outro, pois, como já apontamos, é o desejo do
Outro que permite a leitura do traço enquanto traço distintivo; signo da escolha de amor
do Outro. O um da significação diz respeito à possibilidade de fazer o traço distintivo
circular por diferentes lugares e submeter-se a diferentes leituras. A leitura separa o signo
do objeto e possibilita a transmissão de um sentido, de uma representação no campo
comum das representações compartilhadas: o campo dos discursos sustentado pela lógica
do par ordenado S1(S1-S2).
As epifanias de Joyce manifestam um uso da letra que rompe o encadeamento da
cadeia significante para fazer existir o S1 isolado: o traço unário que não remete a nada a
não ser a ele mesmo. Mas Joyce não se detém aí, pois ele volta a colocar suas epifanias
em outro contexto, o que provoca não um efeito de sentido, mas uma interrogação; um
curto circuito na função representativa da linguagem. Em Finnegans Wake Joyce vai
mais longe e ataca o um do significante; o um distintivo do traço unário: “Ele atenta
contra os elementos da língua, aqueles que o dicionário recenseia. Ele os desfaz,
combina-os, injeta línguas estrangeiras” (SOLER, 1998, p. 25). Assim, ele vai do
equívoco à ininteligibilidade, o que Soler aponta como uma foraclusão (rejeição) do
sentido.
Joyce trabalha com a materialidade da letra e, assim como na experiência do
êxtase ou da loucura, o escrito é remetido para fora de si mesmo; rompe, então, os limites
da linguagem e aproxima-se dessa região sombria em que origem e morte se conjugam e
o corpo é invadido por essa espécie de substância vivenciada que provoca riso e lagrimas.
O gozo fora do sentido revelado pela escrita de Joyce é o gozo da letra, que Lacan
aproxima do gozo da caligrafia. A caligrafia aponta um gozar de traçar o traço único de
uma só vez, sem rasura. Trata-se da arte da rasura excluída que indica o gozo fora de
sentido; uma escrita que não é literária, uma localização do gozo que desvaloriza o
campo do simbólico e que, dessa maneira, deixa o imaginário fora do jogo. Como não
aproximar a escrita do Condicionado, que traça o real, desse gozo da letra que a arte da
caligrafia aponta? Veremos como isso se apresenta no próximo capítulo: “A marca
original e a rasura da origem”.
Podemos supor então que a literatura que amarra imaginário, simbólico e real diz
respeito a um gozo da letra que se enlaça ao gozo do sentido. A literatura pode romper
com a função representativa da linguagem e apontar o lugar vazio do objeto, mas ela
implica a amarração entre simbólico e imaginário que a leitura introduz. A poesia, a
literatura supõe um endereçamento, e este implica o leitor, convoca-o a pôr no que é lido
uma parte de si. Segundo Lacan, toda vez que somos introduzidos em um mundo
diferente do nosso, mundo que nos oferece a presença de um ser, de certa relação
fundamental, faz com que ela se torne nossa também: “A poesia é a criação de um sujeito
assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo” (LACAN, 1955-
1956/1981, p. 94).
Se para Foucault os escritos fora de si aproximam a literatura do êxtase ou da
loucura, para Lacan os escritos de Schreber não podem ser tomados como poesia e nem
mesmo comparados aos relatos em que os místicos nos comunicam sua experiência
singular:
De que se trata nesses testemunhos delirantes? Não digamos que o louco é alguém que vive sem o reconhecimento do outro. Se Schreber escreve essa obra enorme é justamente para que ninguém ignore o que ele sofreu, e mesmo para que, nessa circunstância, os especialistas venham verificar em seu corpo a presença dos nervos femininos pelos quais foi progressivamente penetrado, a fim de objetivar a ligação singular que foi a sua com a realidade divina. (Ibid, p. 94)
Se podemos dizer que Schreber é um escritor, não podemos dizer que ele é um
poeta, pois sua escrita não nos introduz em uma dimensão nova da experiência:
A poesia faz com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de San Juan de La Cruz, nem da de Proust ou da de Gerard de Nerval. A poesia é a criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo. Não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber (Ibid., p. 94)
Schreber é “a sede de todo um viveiro de fenômenos” (ibid., p. 95) e é
precisamente a comunicação dessa experiência que lhe vem de fora que lhe serve de
inspiração para a escrita de seu livro. Ele escreve sobre o que o Outro lhe faz saber e
nessa escrita o mundo inteiro está tomado em uma significação a ponto de quase não
existir nada que não esteja referido a ele. Mas, em compensação, “tudo o que ele faz
existir nessas significações é de alguma maneira vazio dele próprio” (Ibid., p. 95). A
escrita de Schreber é um testemunho objetivado e não a comunicação de uma experiência
do sujeito que convoca o leitor a colocar na leitura uma par te de si.
A escrita de Joyce é diferente, pois ela não visa à comunicação de uma
significação seja ela delirante ou não, mas funciona como uma suplência à falta de seu
ego. Essa falta de ego, como já apontamos, é localizada por Lacan na surra que o escrito r
leva de seus colegas e que tem como efeito o abandono do corpo próprio. No entanto,
essa perda dos suportes corporais não acarreta uma crise psicótica seguida de uma
construção delirante; incide sobre o corpo da escrita provocando um abandono das
referências imaginárias; o sentido; a narrativa; o uso de personagens. Segundo Soler
(1998), o ilegível da escrita de Joyce tem relação com o fato de que, para ele, o sentido
não está enganchado nos símbolos e sua arte opera entre simbólico e real: “O incorporal
de sua literatura ocorre porque entre real e simbólico trata-se de um gozo que não é gozo
do corpo, mas gozo da letra. Ter um corpo é fazer algo com ele, utilizá- lo. Na literatura
de Joyce fica claro que ele não usa seu corpo” (1998, p. 100).
A escrita de Schreber testemunha o que ocorre em seu corpo, como ele é violado,
manipulado, transformado, tagarelado. Joyce promove uma literatura incorporal, livre do
imaginário, uma literatura feita de letra pura, sem corpo. Ele trabalha com a materialidade
da letra, aquilo que produz marca e aponta para a relação entre a letra e o objeto. A
proposta de Soler não é que a escrita de Joyce realiza essa função de suplência, pois para
ela a escrita de Joyce é homogênea aos fenômenos elementares encontrados na psicose
como, por exemplo, a língua fundamental de Schreber. Para Soler, o que produz
suplência é o fato de Joyce publicar sua escrita, já que é a publicação que permite que
essa escrita entre em relação com outros, que podem funcionar como S2, de tal modo que
entre a escrita de Joyce e seu público se estabeleça um equivalente da cadeia significante1
O mesmo não ocorre com a escrita de Schreber, que permanece como resto
inassimilável pelo campo dos discursos. No entanto, como já sublinhamos, o interesse do
leitor Freud abriu caminho para um público inesperado, os analistas. Se Lacan afirma que
não encontramos um sujeito na escrita de Schreber, apenas um testemunho objetivado,
ele afirma também que a leitura freudiana das memórias de Schreber introduz ali o
sujeito. A leitura/endereçamento de Freud em relação à escrita de Schreber possibilita
que o que era dejeto inassimilável pelo campo discursivo, pura exterioridade, encontre
uma possibilidade de circulação em um campo comum: o público de analistas.
4.3. A marca orig inal e a rasura da origem
Para finalizar, gostaria de retomar algumas hipóteses trabalhadas no decorrer
deste texto a propósito das escritas do Condicionado e de Roberto, com o intuito de
refletir sobre o privilégio dado à impressão da marca na escrita do primeiro e à rasura do
traço na escrita do segundo. Partimos da hipótese de que é o ato de fazer uma escrita no
espaço público que permite a eles a produção de um registro. Registro que visa à 1 Joyce consegue promover esse intercâmbio graças a sua escrita ao produzir um registro; ao fazer Um. Ele faz Um ao se pôr belo através da letra. Segundo a leitura de Soler do seminário “O sinthoma”, Joyce faz Um através do LOM (l’homme). Lacan agrega ao LOM a palavra escabeau (escabelo), que na escrita de Joyce surge como l’hessecabeau(na qual encontramos o h de homme=homem, beau = belo, esse =ser, hausser=elevar). O escabeau é “algo para subir e ganhar estatura; é o que faz de um qualquer alguém, isto porque se vê belo” (Soler, 1998, p. 103). Assim, através do jogo com a letra, Joyce se vê belo ao publicar sua obra e, por meio da publicação enlaça real, simbólico e imaginário na produção de um registro; LOM.
representação, mas que não se apóia no laço entre identificação, memória e repetição.
Como já apontamos, a escrita que circula no espaço público parece não promover a
“elevação do objeto à dignidade da Coisa”, como ocorre na criação artística e, mais
especificamente, na criação literária. As escritas de Roberto e do Condicionado não
enlaçam no ato da circulação no espaço público o gozo da letra e o gozo do sentido, como
é o caso do ato da publicação na escrita de Joyce. Podemos supor que a publicação da
obra de Joyce, ao promover a instalação de uma cadeia ligando S1 a S2, instaura no lugar
da queda do objeto, um traço que captura o olhar do Outro. Já as escritas do
Condicionado e de Roberto permanecem excluídas do campo do sentido que constitui o
discurso comum no qual compartilhamos nossas significações, permanecendo como
dejeto incomunicável, exterioridade nem totalmente rejeitada, nem totalmente assimilada,
fazendo transbordar o gozo que não encontra limite na borda do saber inconsciente.
No caso do Condicionado, é através de sua escrita que ele consegue manter-se
durante tanto tempo em um mesmo lugar. Escrita que implica endereçamento: O
endereçamento do Condicionado ao público anônimo e o endereçamento do público ao
Condicionado. Temos então a produção de um registro marcado ao mesmo tempo pela
presença do corpo enraizado na calçada e pela livre circulação das letras no espaço
público. Do encontro entre o Condicionado e o público anônimo resulta a inscrição de um
traçado do real, mas esse traçado não separa signo e objeto, não inscreve um traço que
captura o olhar amoroso do Outro no lugar da queda do objeto; esse traçado produz
marca/diferenciação, mas não produz reconhecimento, não remete a um registro que
possa ser compartilhado em um discurso comum que sustenta os laços sociais a partir do
qual cada um se representa na sua relação ao Outro e também na relação ao próximo.
Assim, esse traçado de letras difere da cadeia do saber inconsciente constituída pelo laço
entre S1 e S2 a que Joyce tem acesso através da publicação de seus livros. Os livros de
Joyce circulam no campo dos discursos; já os escritos do Condicionado, permanecem
resistentes à leitura, à assimilação a esse campo, e sua circulação precisa do ato contínuo
de seu criador para existir.
Até o momento trabalhamos com a hipótese de que a escrita do Condicionado não
está referida ao funcionamento significante que transporta uma mensagem, mas à função
da letra enquanto litoral; letra que conjuga/separa o que a princípio estava radicalmente
separado/misturado pela Verwerfung: o real e o simbólico. Nesse sentido, a escrita visa
produzir borda, descontinuidade entre o sujeito e o Outro, a linguagem e o corpo. No
entanto, ela produz marca-traço, e o traço ao qual o Condicionado está submetido remete
a essa exterioridade absoluta, que petrifica e mortifica o sujeito e exclui a possibilidade
de reconhecimento que a leitura do desejo do Outro possibilita. Não existe aí o recalque
que constitui o sujeito em uma continuidade moebiana entre íntimo e exterior, instalando
o objeto em uma permanência no espaço ex-timo que determina a lógica da repetição do
saber inconsciente. Elaboramos, então, a hipótese de que a letra-oferta do Condicionado
faz signo para o Outro, mas não representa um significante para outro significante. Ela
traça o real através da circulação das letras no espaço público, mas não promove a
constituição de uma cadeia de significantes, o laço entre S1 e S2 que sustenta o saber
inconsciente a partir da exterioridade do traço unário.
A tentativa diariamente repetida de marcar o papel com a tinta de sua caneta na
busca de um traço original que permaneça revela toda a complexidade posta em jogo pela
escrita do Condicionado. Essa tentativa pode ser abordada pela função que o processo de
impressão adquire na escrita, bem como através da antiga arte da caligrafia. Tanto a
impressão da letra no papel, como a caligrafia remetem ao primeiro tempo do nascimento
da escrita descrito por Lacan em sua conjectura sobre a origem da escrita. Vamos
relembrá- lo. Um primeiro tempo refere-se à existência material da letra que independe de
sua função de notação fonemática. Existe um material literal anterior à escrita e esta não é
a estilização de um desenho nem a abstração de uma figura concreta em sua origem; essa
literalidade está ligada àquilo que no real carrega uma marca como, por exemplo, a
pegada do passo na areia. Esse primeiro tempo revela a produção das marcas-signos onde
o real é traçado a partir da proximidade entre os símbolos e as coisas. Um segundo tempo
implica o apagamento do objeto resultante da inscrição do traço-tesoura e da sua
referência a outros traços como, por exemplo, a inscrição da série de traços na costela do
animal morto pelo caçador. Esse segundo tempo revela a produção das marcas que coloca
o traço em relação a outros traços. O traço que inaugura a memória inconsciente não é a
lembrança da figura do objeto, mas o apagamento do objeto por meio do um que marca a
unicidade do objeto.
O processo de impressão das marcas está presente tanto na história coletiva do
homem, como na história individual de cada um. Quem um dia não brincou de deixar
marcas do corpo impressas sob uma folha de papel ou na argila? Marcel Duchamp, artista
que fazia uso da impressão no processo de criação artística, compôs, para ele e suas
irmãs, uma pequena canção intitulada “Faire un Empreinte”. Ele a compôs de forma
aleatória, construindo a melodia a partir das notas musicais tiradas ao acaso de dentro de
um chapéu, e a letra a partir da definição da palavra “imprimir” encontrada no dicionário,
da qual suprimiu a pontuação: “Faire une empreinte marquer de traits une figure sur une
surface imprimer un sceau sur cire”1. Esse pequeno gesto celebrado pelo artista guarda
uma série de paradoxos; o passado e o contemporâneo, o imediato e o duradouro, o
original e a cópia, o rudimentar e o elaborado... Gesto paradoxal que faz emergir um
objeto que pertence a tempos heterogêneos e que remete tanto à origem como à perda da
origem:
O processo de impressão é contato com a origem ou perda da origem? Manifesta a autenticidade da presença (como processo de contato) ou, ao contrário, a perda da unicidade que acarreta sua possibilidade de reprodução? Produz o único ou o disperso? O aurático ou o serial? O semelhante ou o dessemelhante? A identidade ou o inidentificável? O desejo ou o luto? A forma ou o informe? O mesmo ou a alterado? O familiar ou o estrangeiro? O contato ou a separação? Eu diria que a impressão é a imagem dialética, a conflagração de tudo isso: alguma coisa que nos revela tanto o contato (o pé que afunda na areia), como a perda (a ausência do pé em sua impressão)2.
O gesto aparentemente tão simples da impressão revela o contato de uma
ausência, presença do estrangeiro que nos é tão íntimo. Complexidade que não escapa a
Lacan quando aborda a inscrição do traço unário. A impressão do pé na areia, que resulta
em um rastro, signo de uma presença ausente; assim como a impressão das digitais, que
resulta em uma marca, signo de um sujeito, são processos que já revelam a negatividade
1 Canção de Duchamp à qual Didi-Huberman faz referência no catálogo de uma exposição sobre a impressão, realizada em 1997 no Centre Georges Pompidou em Paris. “fazer uma impressão marcar com traços [gravar?] uma figura sobre uma superfície imprimir um sinal sobre cera” 2 Tradução livre do trecho escrito por Didi-Huberman no catálogo da exposição realizada em 1997 no Centro Georges Pompidou em Paris: “Le processus d’empreinte est-il contact de l’origine ou bien perte de l’origine? Manifeste-t-il ‘authenticité de la présence (comme processus de contact) ou bien, au contraire, la perte d’unicité qu’entraîne sa possibilité de reproduction? Produit-il l’unique ou le disseminé? L’auratique ou le sériel? Le ressemblant ou bien le dissemblable? L’identité ou bien l’inidentifiable? La décision ou le hasard? Le désir ou bien le deuil? La forme ou bien l’informe? Le même ou l’altéré? Le familier ou bien l’étrange? Le contact ou bien l’ecart? …Je dirai que l’empreite est l’image dialectique, la conflagration de tout cela: quelque chose qui nous dit aussi bien le contact (le pied qui s’enfonce dans la sable) que la perte (la absence du pied dans son empreinte) (…)”(DIDI-HUBERMAN, 1997, p. 19)
inerente ao significante, embora seja necessário um passo a mais para que se estabeleça
uma diferença entre o signo e o significante:
Um rastro é uma marca, não é um significante, mas percebe-se bem, entretanto, que existe uma relação entre eles e que, de fato, o que chamamos de material significante participa sempre um pouco do caráter evanescente do rastro. Isso parece ser uma das condições de existência desse material significante. Entretanto, não temos aí um significante. Até mesmo o pé de Sexta Feira que Robson descobre no curso de seu passeio na ilha, não é um significante, mas por outro lado, supondo que ele, Robson, por uma razão qualquer, apagasse esse rastro, aí sim introduziríamos nitidamente a dimensão do significante.” (LACAN, p. 75)
O rastro deve ter sua relação com o real apagada para que possa ser alçado à
categoria do significante. Podemos supor então que a tentativa sempre renovada de
produzir uma marca original com a tinta de sua caneta seja, do lugar da
produção/escritor, uma tentativa do Condicionado de inscrição de um traço simbólico
que o singularize e o represente; um traço que permaneça na ausência e não desapareça
na impressão evanescente da marca ou se petrifique na fixidez da palavra transformada
em signo diante da palavra imperativa do Outro sem falta: “não ficará pedra sobre pedra”.
A escrita do Condicionado é um ato que se realiza na tentativa de produção de um traço
simbólico, mas que resulta em marca que não acede ao significante. A letra/oferta do
Condicionado faz signo para o Outro, mas não representa o sujeito para outro
significante. Nesse sentido, a marca não se sustenta na descontinuidade simbólica, mas
visa à proximidade com a coisa representada e, assim, remete ao signo que representa
alguma coisa para alguém. A marca não faz série, não inaugura uma contagem como
ocorre com o traço inconsciente que dá origem a uma memória e abre a possibilidade de
o sujeito se contar como um significante entre outros e a partir daí poder se dizer eu. Essa
marca permanece evanescente como o passo da pegada na areia que desaparece submerso
pelas ondas do mar; marca que precisa ser permanentemente impressa na busca de um
original impossível de ser alcançado.
Como já assinalamos, traçar o real revela um gozo da letra que difere do gozo do
sentido e aproxima-se do que Lacan elabora a propósito da caligrafia, em que se trata de
gozar de traçar o traço único de uma só vez, sem rasura. Em “Lituraterra”, Lacan, à
maneira de Joyce, joga com as assonâncias entre literatura e litura.3 Da janela do avião
que sobrevoa a planície siberiana, Lacan distingue, por entre as nuvens, o escoamento das
águas na planície desértica. O escoamento das águas na planície revela a conjunção do
traço primário com aquilo que o apaga, mas aí se marcam dois tempos: “O escoamento é
o remate do traço primário e daquilo que o apaga. Eu o disse: é pela conjunção deles que
ele se faz sujeito, mas por aí se marcam dois tempos. É preciso, pois, que se distinga
nisso a rasura.” (LACAN, 1971, p. 21)
Lacan aproxima o primeiro tempo da “rasura de traço algum que seja anterior” à
arte da caligrafia, que realiza o casamento da letra com a pintura, enquanto litura pura:
Rasura de traço algum que seja anterior, é isso que do litoral faz terra. Litura pura é o litoral. Produzi-la é reproduzir essa metade ímpar com que o sujeito subsiste. Esta é a façanha da caligrafia. Experimentem fazer essa barra horizontal que é traçada da esquerda para a direita, para figurar com um traço o um unário como caractere, e vocês levarão muito tempo para descobrir com que apoio ela se empreende, com que suspensão ela se detém. A bem da verdade, é sem chances para um ocidentado. (Ibid., p. 21)
Segundo a leitura de Mandil, a rasura dá origem a uma terra de lituras onde o que
3 Segundo Bittencourt (2002), no Dicionário Latim-Português, litura significa esboço, revestimento, ou ainda rasura, correção, risco, cancelamento.
é visado é a existência de um traço fundador ao qual o sujeito estaria plenamente
identificado, tal qual a existência de uma palavra que designasse exatamente aquilo que
se quer dizer:
Uma sucessão de traços que se recobrem, cada um deles buscando em seu gesto, como tentativa de aproximação, a palavra apropriada para designar aquilo que se quer dizer. Mas ao indicar que a letra é rasura de nenhum traço que seja anterior, Lacan conjuga a tentativa de encontrar a palavra que mais se aproxime daquilo que busca se expressar-a palavra que mais se aproxima da coisa-com a ausência der um traço fundador, primeiro, por meio do qual o sujeito sentir-se-ia plenamente identificado ou designado. (MANDIL, 2003, p. 50)
Podemos supor então que essa terra de lituras (esboços, riscos, mas também
cancelamento) corresponde ao que Lacan designa o primeiro tempo de sua conjectura
sobre a origem da escrita; o tempo em que o real é traçado e o gozo que é visado aí é o
gozo da letra, o mesmo gozo visado na caligrafia; gozo que se alcança no traçado sem
rasura. A rasura- litura designa aí uma função paradoxal: aponta ao mesmo tempo o gozo
que se revela na possibilidade de traçar de uma só vez esse traço primeiro de
identificação plena e a impossibilidade de traçá-lo. Acontece que a rasura e a caligrafia já
remetem a uma perda, um apagamento, pois a pegada do passo na areia é marca do rastro
do objeto e não o objeto mesmo; a Coisa que está irremediavelmente perdida. É nesse
sentido que o ato do Condicionado – imprimir a marca de tinta de sua caneta sobre o
papel na busca de um traço original – revela o paradoxo desse tempo primeiro: ao mesmo
tempo origem e perda da origem, rasura e exclusão da rasura.
O segundo tempo é aquele do apagamento que coloca o traço em relação a outros
traços, apagando a relação entre a marca e o objeto/referente; tempo que implica a leitura
que dá nome aos signos que traçam o real. A leitura ao mesmo tempo precede e funda o
escrito e faz do traço-marca um traço significante. É aí que Lacan faz intervirem as
nuvens como função de semblante do significante:
O que se revela por minha visão do escoamento, no que nele a rasura predomina, é que, ao se produzir por entre as nuvens, ela se conjuga com sua fonte, pois que é justamente nas nuvens que Aristófanes me conclama a descobrir o que acontece com o significante: ou seja, o semblante por excelência, se é de sua ruptura que chove, efeito em que isso se precipita, o que era matéria em suspensão. (LACAN, p. 22)
A rasura que se conjuga com sua fonte: o significante que revela então sua função
prevalente, a de ser semblante que ao se dissolver aponta para o informe, o imundo do
gozo, e que Lacan nomeia ravinamento das águas; as marcas, os sulcos no real. Ainda
segundo Lacan: “A escrita não decalca o significante, mas seus efeitos de língua, o que
deles se forja por quem fala. Ela só remonta a isso se disso receber um nome, como
sucede com os efeitos entre as coisas que a bateria significante denomina, por havê- las
enumerado.” (Ibid., p. 22)
É a linguagem que lê as marcas no real e, nomeando-as, enumerandoa-as
conectando-as a outros significantes faz surgir a bateria significante. Assim, o que
precede a escrita: marca, rastro, signo é lido com a linguagem e aí transformado em
escrita. A letra serve então de suporte ao significante, e o discurso enlaça-a na rede do
semblante. O discurso possibilita que o sujeito esteja “apoiado em um céu constelado e
não apenas no traço unário” (Ibid., p. 24). No entanto, podemos dizer que a escrita do
Condicionado ao visar a impressão da origem, a exclusão da rasura, parece tentar fazer
existir um registro que dispensa o apoio do céu constelado…
Se a escrita do Condicionado remete a esse tempo primeiro da marcas que traçam
o real visando a inscrição de um original pleno que exclui a rasura, a escrita de Roberto
parece aproximar-se do segundo tempo pois coloca em evidência o gozo que se destaca
da ruptura do semblante, já que suas bombas de efeito moral atingem justamente a função
de semblante do significante enlaçado na rede dos discursos. Contudo, à diferença da
escrita do Condicionado, que visa à impressão de um traço original e que nesse sentido se
aproxima da caligrafia, do gozo da letra que exclui o gozo do sentido, a escrita de
Roberto visa à rasura do traço original.
O trabalho com a letra surge para Roberto como efeito do encontro com o sexo
feminino, mas esse não remete ao Outro sexo, à alteridade simbólica que a diferença
sexual introduz. O sexo feminino remete ao corpo materno, o corpo da mãe no lugar de
das Ding, corpo não interditado pela lei simbólica do incesto. Como já apontamos, a
tentativa de Roberto de fazer série das mulheres remete à contagem e aponta para o
funcionamento significante da cadeia do saber inconsciente, como nos mostra Lacan a
partir da série de traços inscritos na costela do animal pré-histórico. A série aponta o
funcionamento significante do traço tomado aí como traço unário; traço distintivo que
remete a outros traços e cuja relação se dá entre os traços e aponta para o funcionamento
simbólico que se diferencia/separa do campo do real. Todavia, os encontros de Roberto
com as mulheres de todos os homens – a namorada mitológica, a noiva teológica e a
esposa mística – não separam/diferenciam o campo do prazer sexual do campo do Gozo
do corpo; campo do Outro primordial. Se todas as mulheres estão encarnadas em um só
corpo – o da prostituta – a série fracassa na tentativa de produzir um traço distintivo que
daria origem a cadeia do saber inconsciente.
A rasura na escrita de Roberto
promove o deslocamento da letra ao
lixo e nisso se aproxima da escrita de
Joyce. É assim, fazendo com que
desapareçam para aparecer em
outro lugar, que se apropria do que
as letras simbolizam; o que vale
também para as imagens que ele
assinala e para os restos que recolhe.
Letras, imagens, restos, uma vez
esvaziados de sua “substância”,
passam a pertencer-lhe. E é a partir
do desaparecimento da imagem da
mulher amada que Roberto a
conserva. Trata-se aí de uma espécie
de subtração da imagem do corpo;
subtração que também pode ser
pensada em relação ao
desaparecimento das letras que, em
um primeiro tempo do trabalho de
Robe rto, eram rasgadas, e são agora
completamente riscadas, ou seja,
têm seu corpo tipográfico rasurado e
sua significação perdida.
A escrita utilizada na sua
função de rasura promove uma
subtração do corpo, o toque vai
justamente colocar em causa uma
espécie de encenação do corpo.
Enquanto seu corpo, que pode ser
tocado, é interditado, Roberto toca
os símbolos, aquilo que, em
princípio, não pode ser tocado; e,
diante do fracasso da inscrição do
traço como traço simbólico através
da rasura da letra, resta a Roberto a
barreira do tabu. O tabu, como
assinalamos antes, apresenta-se
como possibilidade de uma barreira
ao real que emerge no ponto em que
o interdito simbólico falha. É a
regra estabelecida por Roberto –
regra de não repetir o alvo – que
re mete à função do tabu como
defesa contra a indiferenciação entre
o símbolo e o corpo, e funda um
espaço sustentado em proibições
cujo desígnio é estabelecer barreiras
contra o real que ameaça invadir o
corpo. Nesse caso, as barreiras que
introduzem diferença no espaço não
suprem, como no caso da fobia, a
ausência do interdito simbólico. O
que sustenta as barreiras é o ato
contínuo de Roberto, ato que
implica o movimento incessante do
corpo e a fixidez dos alvos.
Será que podemos dizer que ao
rasurar as letras do código Roberto
procura silenciar o Outro; o Outro
que fala nele qual um estrangeiro
tagarela, cuja língua permanece
pura exterioridade impossível de
assimilar ou decifrar? Segundo
Willemart (1999), a rasura presente
nos manuscritos dos escritores
instaura o silêncio e aponta a
passagem do manuscrito ao
pensamento. Ela remete à origem da
criação, a elementos simbólicos e a
pedaços do real: “A rasura será,
portanto, o signo de uma luta não
resolvida de elementos
movimentando-se no espírito,
pertencentes à função simbólica ou
aos diferentes não sabidos que
assinalei e que fará o escritor ver um
pedaço de real.” (WILLEMART,
1999, p. 180)
Através da rasura o escritor tem acesso ao pedaço de real ou “grão de gozo” que
funciona como motor da criação. O contato com o “grão de gozo” através da rasura
assemelha-se ao contato com o espaço do exílio que habita em cada um de nós, o espaço
ex-timo cuja lembrança, que mantém o exílio, permite-nos criar, elevar o objeto à
dignidade da Coisa. A rasura enlaça criação e origem, mas a origem, justamente graças à
criação, permanece exilada nesse interior excluído que nos é tão próximo e ao mesmo
tempo tão distante. Certamente podemos dizer que Roberto cria, mas a rasura, embora
seja tomada aí como o motor de sua criação, não instaura o silêncio, não apaga o ruído
incessante que o Outro primordial o faz ouvir; essa rasura não permite que o manuscrito
dê lugar ao pensamento, ao saber inconsciente assim como não permite que sua insígnia
funcione como assinatura. A assinatura é para Lacan o traço apagado: um signo que
anulado funciona como assinatura, como a cruz que simboliza a barra. A insígnia através
da qual Roberto tenta representar-se simboliza o vôo de um pássaro e, nesse sentido,
podemos dizer que expressa o desejo de alçar vôo pela via do significante, alcançar a
imaterialidade do corpo deixando para trás as amarras da origem. Diferente é a maneira
que o Condicionado encontra para tentar se representar. Ela remete à origem à qual ele
está amarrado, condicionado, sem, aparentemente, tentar se libertar. Se Roberto quer
voar, o Condicionado quer ficar sempre no mesmo lugar…
FIM
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