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Um sociólogo na periferia do capitalismo: a sociologia
histórico-comparada de Fernando Henrique Cardoso1
Karim Helayel (PPGSA/UFRJ)
I
Na presente comunicação discutirei, resumidamente, a hipótese mais geral que
norteou a minha tese de doutorado intitulada Um sociólogo na periferia do capitalismo:
a sociologia histórico-comparada de Fernando Henrique Cardoso, defendida em
dezembro de 2019, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ). Concederei ênfase ao processo
de constituição de uma perspectiva sociológica histórico-comparada por parte de
Fernando Henrique Cardoso, de modo a discutir a maneira pela qual o sociólogo
egresso da Cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo (FFCL/USP) aciona a interlocução entre a teoria sociológica
e a história ao longo de suas pesquisas.
Levando em consideração que o processo de consolidação da sociologia
histórica tem lugar nos Estados Unidos, ao longo dos anos 1960, em oposição à
“sociologia da modernização” e ao estrutural-funcionalismo parsoniano (cf. Skocpol,
1984b; Reis, 1998), procurarei contribuir para a localização de Cardoso nesse contexto.
Assim, a ideia será qualificar o sentido da contribuição do sociólogo brasileiro para o
debate da sociologia histórica, recorrentemente ignorada em trabalhos que têm em vista
a sistematização das principais contribuições da subárea (cf. Delanty & Isin, 2003;
Skocpol, 1984a; Smith, 1991), ou discutida lateralmente, sem a preocupação com uma
análise mais detalhada de sua proposta (cf. Adams; Clemens; Orloff, 2005). Cumpre
ressaltar que, por outro lado, Sztompka (1998, p.162) enquadra o famoso trabalho de
Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependência e desenvolvimento na
América Latina, publicado originalmente em 1969, no rol daqueles pertencentes à
chamada sociologia histórica da mudança social. Por seu turno, embora também não
desenvolva a discussão, podemos lembrar do trabalho de Connel (2007, p.146), que
1 44º Encontro Anual da ANPOCS - GT32 – Pensamento Social no Brasil.
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entende o trabalho de Cardoso e Faletto como um dos mais marcantes textos de
sociologia histórica de sua geração.
No contexto latino-americano, Giordano (2014) entende Dependência e
desenvolvimento como emblema da sociologia histórico-comparada latino-americana,
mostrando como o próprio processo de institucionalização das ciências sociais na
América Latina teria sido marcado por uma preocupação interdisciplinar. Tal
preocupação teria em vista aliar a sociologia à história, diante da qual o recurso à
comparação desempenharia papel decisivo. Segundo Giordano, o contexto de fundação
do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) seria marcado pela
“Conferencia Internacional sobre Investigación Social Comparativa en Países en
Desarrollo: discontinuidades internas en el proceso de desarrollo económico y social de
América Latina”, realizada em setembro de 1964, em Buenos Aires, da qual Cardoso
teria participado. Dependência e desenvolvimento teria sido diretamente atravessado
pelos principais debates da conferência, convertendo-se no trabalho emblemático do que
a autora entende ser a sociologia histórico-comparada latino-americana (cf. Giordano,
2014).
Não obstante concordar em parte com Giordano, - posto que entendo
Dependência e desenvolvimento como o ponto de chegada da sociologia histórico-
comparada de Cardoso – talvez não seja exagero sugerir que o ponto alto do que
podemos chamar de sociologia histórico-comparada latino-americana, pode ter sido o
debate mais amplo da dependência. As divergências em torno da categoria
“dependência” podem ser entendidas como um importante capítulo da história da
construção da sociologia histórica a nível global, não se confinando somente ao seu
contexto cognitivo imediato. As críticas de Cardoso à intelligentsia do Centro de
Estudos Socioeconômicos (CESO) da Universidade do Chile, especialmente aquelas
desferidas contra as proposições de Ruy Mauro Marini, voltam-se decisivamente para a
relação entre teoria e história (cf. Cardoso, 1975, 1980; Serra & Cardoso, 1979). Em
outras palavras, as críticas de Cardoso à intelectualidade do CESO são representativas a
esse respeito, ao incidirem diretamente no que ele entende ser o caráter a-histórico dos
trabalhos produzidos por seus interlocutores diretos2.
2 No terceiro capítulo de minha tese de doutorado, desenvolvo em detalhe a discussão sobre o modo pelo
qual os debates em torno da dependência codificaram a problemática da articulação entre teoria, história e
comparação (cf. Helayel, 2019).
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Conquanto, ainda que os trabalhos de Sztompka (1998), Connel (2007) e
Giordano (2014) cheguem a qualificar Dependência e desenvolvimento na chave de uma
sociologia histórico-comparada, não sistematizam o conjunto da contribuição do
sociólogo brasileiro, conferindo atenção apenas ao seu trabalho de maior repercussão
internacional3. Assim, procurarei indicar, de modo resumido, a contribuição mais ampla
de Cardoso para a sociologia histórica, mostrando a relação entre algumas de suas
pesquisas e os contextos intelectuais aos quais elas se vinculam, onde a articulação entre
teoria e história desempenha papel decisivo. Portanto, a hipótese mais geral que
discutirei é a de que a adoção de uma perspectiva sociológica histórico-comparada, por
parte de Cardoso, parece ter sido decisiva em seus trabalhos, permitindo-lhe uma visão
mais matizada e sofisticada das relações existentes entre teoria e história em sua obra.
Neste sentido, faz-se necessário ressaltar que a fortuna crítica de Cardoso vem se
avolumando consideravelmente nos últimos anos, seja para pensar o sentido assumido
pelo marxismo em sua obra (cf. Lima, 2015), seja para circunscrevê-la em relação ao
debate a respeito da “nacionalização” da abordagem marxista (cf. Santaella Gonçalves,
2018; Brito, 2019). Parte dela vem assinalando ainda a ênfase na política como variável
fundamental de sua reflexão, permitindo-lhe uma incursão mais densa sobre o plano
econômico (cf. Hadler, 2013; Leme, 2015), qualificando-o, em alguns casos, como
“politicista” (cf. Lahuerta, 1999; Cotrim, 2001). Nessa comunicação, ao tomar as
formulações de Cardoso como ponto de vista, tencionarei desestabilizar as versões mais
canônicas sobre o surgimento da sociologia histórica, as quais atribuem, em larga
medida, protagonismo exclusivo às intelectualidades europeia e estadunidense em seu
processo de construção. Apesar da proeminência recorrentemente atribuída aos
intelectuais situados especialmente nos Estados Unidos, argumentarei que a
internalização da equação analítica “teoria, história e comparação”4 não parece ter sido
menos decisiva no hemisfério sul do que na sociologia produzida nos países centrais no
contexto pós-guerra. Ou seja, a despeito da sociologia histórica ainda ser uma subárea
considerada incipiente no Brasil (cf. Monsma; Salla; Teixeira, 2018, p.82), sugiro que,
3 Diversos trabalhos chamam a atenção para a projeção internacional obtida por Fernando Henrique
Cardoso através de Dependência e desenvolvimento na América Latina (cf. Leoni, 1997; Sorj, 2001;
Goertzel, 2002; Garcia Jr., 2004), a qual pode ser constatada inclusive pelo seu amplo número de citações
(cf. Goertzel, 2010). 4 Tomo de empréstimo o termo “equação analítica”, sugerido pelo Prof. Lucas Carvalho que, ao discutir o
meu paper intitulado “Teoria, história e comparação na sociologia de Fernando Henrique Cardoso” -
apresentado no simpósio “Pensamento Social no Brasil: reflexividade e os efeitos políticos das ideias” do
42º Encontro Anual da ANPOCS, em 2018, - sintetizou muito bem, através do termo, a relação entre os
três elementos.
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malgrado Cardoso não ter tido em vista a sua constituição como campo de estudos no
país, suas formulações parecem ter aportado uma contribuição indireta para a sua
consolidação a partir da periferia. Não custa ressaltar que Cardoso desenvolve seus
principais trabalhos sobre a problemática da dependência ao longo da década de 1960,
exatamente no mesmo período em que Reinhard Bendix publica Construção nacional e
cidadania, no ano de 1964, e Barrington Moore Jr., As origens sociais da ditadura e da
democracia, em 1966.
Sendo assim, a análise proposta se concentrará, para fins expositivos, nos
trabalhos de Cardoso produzidos ao longo dos anos 1960, recortando dois momentos
através dos quais podemos flagrar o modo pelo qual o sociólogo procede a
internalização da história e da comparação enquanto recursos teóricos heurísticos. Em
um primeiro momento, no qual a sociologia histórico-comparada de Cardoso se volta
para o contraste entre a experiência social de modernização brasileira com aquela
sucedida nos países de capitalismo originário, remeter-me-ei aos livros Capitalismo e
escravidão no Brasil meridional, publicado originalmente em 1962, formalizando os
resultados de sua tese de doutoramento defendida em 1961 na USP, sob a orientação de
Florestan Fernandes, e Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil,
publicado em 1964, no qual apresenta os resultados de sua tese de livre-docência
defendida em 1963. Já em um segundo momento, tendo em vista a radicalização do uso
da história e da comparação nos trabalhos de Cardoso, tratarei do ponto de chegada de
sua sociologia histórico-comparada, Dependência e desenvolvimento na América
Latina, porém concedendo ênfase, para fins expositivos, a Política e desenvolvimento
em sociedades dependentes, trabalho solo do sociólogo brasileiro, publicado em 1971,
fruto de sua tese de cátedra apresentada no concurso da Cadeira de Política da USP,
realizado no ano de 1968.
II
Ao nos voltarmos para seus trabalhos elaborados no âmbito da Cadeira de
Sociologia I da USP, podemos constatar que Cardoso mobiliza a história e a
comparação de modo a demarcar as particularidades histórico-sociais do Brasil em
relação ao modo pelo qual o desenvolvimento capitalista foi encetado nos países do
centro. O retorno ao passado, bem como a mobilização do recurso à perspectiva
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comparada, circunscreve-se à identificação das particularidades da formação social
brasileira e seus efeitos no processo de constituição da sociedade de classes no país,
levando em consideração, basicamente, o contraponto com os países de capitalismo
originário. Em outros termos, ao proceder desse modo, Cardoso procura contribuir para
a desestabilização de modelos lineares de mudança social, que tenderiam a replicar o
processo histórico-social de desenvolvimento dos países centrais para a compreensão e
explicação de contextos periféricos, como o brasileiro.
Ao discutir tanto a questão da relação entre capitalismo e escravidão quanto a
formação e o modo de orientação da conduta do empresariado urbano-industrial
brasileiro, Cardoso logra se contrapor, como diversos trabalhos já chamaram a atenção
(cf. Cotrim, 2001; Romão, 2006; Bianchi, 2010; Lima, 2015; Ribeiro, 2015; Santaella
Gonçalves, 2018; Brito, 2019), às perspectivas adotadas pelas intelligentsias do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ao
retomar a relação de Cardoso com o debate, não tenciono tão somente reiterar suas
críticas, mas sugerir que é por meio da aposta na força de uma sociologia que se vale
heuristicamente da história e da perspectiva comparada que reside, a meu ver, a
potência de suas formulações. Tais ferramentas tiveram uma atribuição decisiva em sua
sociologia nesse momento, ao reforçarem o seu diagnóstico sobre a particularidade do
processo de desenvolvimento no Brasil e a respeito do papel coadjuvante desempenhado
pelo empresariado urbano-industrial no processo. Cardoso não parece mobilizar, dessa
maneira, a história apenas como um recurso que lhe permite um retorno ao passado, mas
a internaliza em sua tessitura, a fim de compreender e explicar processos sociais em
curso, como o de modernização e industrialização do país. Vale a pena lembrar que nem
mesmo em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional há um retorno ao passado
per se, haja vista que as tensões constitutivas do processo de transição da ordem social
estamental para uma sociedade de classes em formação aparecem como o ponto de
chegada de sua formulação (cf. Cardoso, 1997).
Mas, para pensarmos a relação entre a perspectiva sociológica histórico-
comparada de Cardoso e a questão da mudança social, cumpre discutirmos a maneira
pela qual tal problemática vinha sendo tratada no âmbito da Cadeira de Sociologia I da
USP. Como mostra Elide Rugai Bastos (2002), Florestan Fernandes recusa a chave de
leitura dualista da sociedade brasileira, comum a boa parte dos intérpretes do país. De
acordo com tais intérpretes, sustenta a autora, o dualismo emergiria como uma espécie
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de continuum no qual a mudança social desempenharia a função de superação do
retardo denunciado por seus diagnósticos. Ao recusarem essa visão, assinala Bastos,
tanto Florestan Fernandes quanto seus orientandos e assistentes - dentre eles, Cardoso –
encontrar-se-iam inclinados a perscrutar a problemática de um modo particular que lhe
alteraria o sentido até então comumente conferido, uma vez que estariam atentos às
continuidades, persistências e ao caráter não-linear assumido pela mudança em um país
situado na periferia do capitalismo. Ou seja, “em lugar de uma explicação linear, opera
como se as duas pontas do continuum se encontrassem e esse encontro gerasse,
simultaneamente, o objetivo, a unidade de pesquisa, o desafio à compreensão, a busca
de um suporte teórico e o método de investigação” (Bastos, 2002, p.186, grifo da
autora). Concordando com Bastos, desejo dizer que a forma pela qual Cardoso forja sua
perspectiva sociológica histórico-comparada se encontra inserida nesse quadro, que visa
trazer à tona a complexidade das tensões – as quais, aponta a autora, assumem sentido
heurístico nos trabalhos produzidos no âmbito da Cadeira de Sociologia I - e as
contingências históricas inscritas no processo de mudança social atravessado pelo país.
Neste sentido, Bastos (2002, p.187) aponta que o percurso analítico delineado
por Florestan Fernandes possuiria como referências complementares a história e a
totalidade, procurando “dar conta das peculiaridades da formação social brasileira como
uma forma particular de realização do sistema capitalista, ante as experiências clássicas
do capitalismo originário”. A autora argumenta que o objetivo traçado por Fernandes e
seus discípulos, vinculado à percepção da particularidade da formação social brasileira,
impingiria a busca por um novo padrão teórico-metodológico, que ancoraria o objeto de
investigação de seu grupo: “a partir da periferia percebe-se melhor o movimento da
sociedade, possibilitando a verificação dos princípios que a estruturam” (Bastos, 2002,
p.189, grifos da autora). Seguindo o raciocínio da intérprete, podemos dizer que
fundamentar historicamente a análise sociológica, levando em consideração uma
perspectiva totalizante, seria um pressuposto básico da reflexão proposta por Fernandes,
interpelando decisivamente a visão de seu então jovem pupilo.
Entretanto, ao chamar a atenção para a estreita relação entre a perspectiva de
Cardoso e a de seu orientador, não desejo reinventar a roda, uma vez que já existem
trabalhos como os de Milton Lahuerta (1999) e Lidiane Rodrigues (2011), que tendem a
conferir ênfase às continuidades entre os participantes do seminário d’O capital da USP,
do qual Cardoso fez parte, e Florestan Fernandes. Mais recentemente, Brito (2019, p.58)
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procurou destacar, acertadamente, ao recuperar e se posicionar no debate, a tensão entre
as continuidades e rupturas entre Cardoso e seu orientador, na chave de uma “ruptura
modulada pela continuidade”. Sendo assim, ao destacar as linhas de continuidade entre
a perspectiva de Cardoso e a proposta de Fernandes, não ouso dizer que não teriam
havido divergências entre eles, as quais já foram ressaltadas pelo próprio discípulo (cf.
Cardoso, 2006, 2009), bem como não ignoro leituras que chamam a atenção para suas
possíveis descontinuidades no plano cognitivo (cf. Lima, 2015). O que desejo destacar é
que o aprendizado sociológico de Cardoso se sucedeu em um contexto intelectual onde
a articulação entre teoria e história cumpre papel decisivo. Como mostra André Botelho
(2013), a sociologia política desenvolvida por Maria Sylvia de Carvalho Franco, cuja
tese também foi orientada por Fernandes, pode ser entendida como uma espécie de
contraponto crítico às proposições a-históricas das teorias da modernização,
recolocando em pauta a relação entre teoria e história no âmbito da sociologia.
Assim, cabe ressaltar que as divergências entre Cardoso e Franco são
emblemáticas no que diz respeito à preocupação com a articulação entre teoria e história
no âmbito da Cadeira de Sociologia I. Ou seja, além das divergências com seu
orientador, não podemos deixar de lado as críticas de Franco à mobilização da categoria
“patrimonialismo” por parte de Cardoso, como já foi destacado pela fortuna crítica da
socióloga paulista (cf. Hoelz, 2010; Botelho, 2013; Cazes, 2013). Ainda que a reflexão
de Cardoso estivesse orientada, em Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, para
a articulação entre teoria e história, sua perspectiva foi veementemente criticada por sua
colega. Tanto em Homens livres na ordem escravocrata, livro publicado em 1969, fruto
da tese de doutoramento de Franco, defendida em 1964, quanto em sua tese de livre-
docência O moderno e suas diferenças, de 1970, a socióloga problematiza o
entendimento de Cardoso em relação à sociedade brasileira. Se, por um lado, Cardoso
(1997) qualifica o tipo de dominação característico da sociedade escravocrata do Rio
Grande do Sul como patrimonial, por outro lado, Franco (1971, 1997) sustenta a
inviabilidade da categoria “patrimonialismo” e da noção de “tradicional” para a análise
da sociedade brasileira, dado que algo próximo a uma dinâmica patrimonial típica no
intercâmbio entre homens livres no Brasil oitocentista teria se confinado ao âmbito da
política.
A despeito da divergência aberta de Franco em relação ao diagnóstico de
Cardoso, cuja crítica incide diretamente nos trabalhos de Fernandes (Botelho, 2013), o
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debate em torno da mobilização da categoria “patrimonialismo” permite perceber que
sua ênfase reside na articulação entre categorias analíticas e matéria social. Deste modo,
não seria exagero algum sugerir que o aprendizado sociológico de Cardoso é
perpassado, de forma marcante, pela preocupação com o equacionamento da relação
entre teoria e história. No entanto, apesar da divergência com Franco poder ser flagrada
na correspondência entre Cardoso e Fernandes, uma vez que o regente da Cadeira de
Sociologia I chega a afirmar que “ela [Maria Sylvia de Carvalho Franco] construiu a
originalidade do trabalho que fez montando-o contra o que nós (e principalmente você)
tentamos evidenciar em nossos estudos” (Acervo da Fundação Fernando Henrique
Cardoso, correspondência passiva, Florestan Fernandes, 19-12-1964), o discípulo optou
por não formular uma resposta às críticas de sua colega, discrepando do tom polêmico
de alguns de seus trabalhos.
Além do contexto da Cadeira de Sociologia I, Cardoso se encontrava inscrito
em um contexto mais amplo em que pensar - valendo-me dos termos de André Botelho
(2008) - a “sociedade em movimento” dos anos 1950 constituía quase que uma missão
para a intelectualidade do país. Desta maneira, a sociologia histórico-comparada de
Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil foi forjada a contrapelo
dos diagnósticos e prognósticos produzidos pelos intelectuais ligados ao PCB e ao
ISEB. Haja vista que suas interpretações acentuavam, cada qual a seu modo, o suposto
protagonismo da burguesia brasileira no processo de mudança social, que, em aliança
com o proletariado, teria em vista dirimir a dominação articulada entre o imperialismo
estadunidense e os setores agroexportadores (cf. Mantega, 1984; Brandão, 1997;
Toledo, 1997), Cardoso mostra que o empresariado brasileiro teria tido um papel
coadjuvante no processo de industrialização do país. De modo resumido, isto se daria
tanto por um certo modo de orientação da conduta persistente, o qual decorreria da
manutenção da dinâmica patrimonialista na ordem urbano-industrial, inviabilizando a
modernização efetiva de suas empresas, quanto pela articulação com o capital
estrangeiro (cf. Cardoso, 1964a).
Com isso, por outro lado, não tenho a intenção de sugerir que Cardoso forjou
seus trabalhos, deixando de lado o debate teórico com formulações produzidas no
hemisfério norte. Ao lermos Empresário industrial, podemos perceber que Cardoso se
opõe abertamente aos esquemas propostos pela chamada “sociologia da
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modernização”5. Cardoso se contrapõe aos trabalhos de Walt Whitman Rostow e Bert
Hoselitz, seus interlocutores diretos em Empresário industrial, ressaltando que suas
formulações seriam reféns de uma perspectiva a-histórica, que privilegiaria a
combinação entre variáveis simples e nutridas por um universalismo que não daria conta
da dinâmica efetiva dos processos sociais (Cardoso, 1964a). Não à toa, Cardoso (1964a,
p.60-61) ressalta que a “história” e a “reflexão sociológica” não necessariamente
caminhariam pari passu, uma vez que não somente “o mecanismo da mudança assumiu
conotações abstratas [...] como as próprias situações sociais de partida e de chegada se
esvaeceram em conceitos gerais que nada retêm das condições concretas da vida
social”. A burguesia industrial brasileira não poderia ser identificada, sem mediações,
com suas congêneres europeias e estadunidense, ainda que as dimensões da apropriação
privada dos meios de produção e do lucro fossem comuns a elas. O modus operandi da
ação empresarial no Brasil não poderia ser entendido de acordo com os processos
clássicos de transformação capitalista, pois o contexto das “economias
subdesenvolvidas” seria marcado pela “concorrência imperfeita” e, ainda, pela
penetração em larga escala de grupos econômicos internacionais em seus mercados
(Cardoso, 1964a). Em resumo, nesse momento, a preocupação de Cardoso consiste
basicamente em lançar mão da história e da comparação como recursos cruciais para
acessar as particularidades do desenvolvimento brasileiro, restringindo-se ao contraste
com as experiências sociais de modernização centrais.
III
Em seu projeto de estudos “Empresários Industriais e Desenvolvimento
Econômico na América Latina”, publicado na edição do primeiro trimestre de 1964 da
revista América Latina do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais
(CLAPCS), ou seja, antes de seu exílio no Chile6, que se sucedeu entre os anos 1964 e
1968, Cardoso parece propor um uso mais adensado da historicidade e da comparação
pela análise sociológica. Nele, Cardoso esboça um corpo-a-corpo entre as distintas
experiências sociais de modernização na América Latina, posto que não seria mais
5 Para uma densa discussão sobre a “sociologia da modernização”, bem como a respeito da aclimatação
dos pressupostos deste repertório cognitivo aos contextos intelectuais argentino e brasileiro, através,
respectivamente, das sociologias de Gino Germani e Florestan Fernandes, cf. Brasil Jr., 2013. 6 Cardoso chega ao Chile em maio de 1964, após breve passagem pela Argentina (cf. Leoni, 1997).
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suficiente pensar o Brasil somente em relação aos países centrais. Em outras palavras,
seria necessário tensionar ainda mais a análise por meio da comparação dos países
latino-americanos entre si, no intuito de perscrutar o(s) sentido(s) do desenvolvimento
na região. Assim, seu projeto de estudo parece indicar a radicalização de sua perspectiva
sociológica histórico-comparada, que ocorria no mesmo momento em que trabalhos
exemplares da sociologia histórica eram publicados nos Estados Unidos. Bendix
publica, no mesmo ano de 1964, o seu clássico Construção nacional e cidadania (cf.
Bendix, 1996), e em 1966, no período em que Cardoso se encontra exilado no Chile,
preparando o seu Dependência e desenvolvimento, ao lado de Faletto (cf. Cardoso,
2004), Barrington Moore Jr. publica As origens sociais da ditadura e da democracia
(cf. Moore Jr., 1983).
Em seu projeto de estudo publicado na revista América Latina do CLAPCS,
Cardoso sublinha a sua preocupação em mobilizar a comparação como recurso teórico,
de modo a destacar a diversidade e as variações históricas que informariam o processo
de desenvolvimento dos distintos países latino-americanos. Nele, começam a ser
sistematizadas as questões e hipóteses que viriam a orientar a construção da sociologia
histórico-comparada de Dependência e desenvolvimento. Suas formulações ainda
embrionárias já expressam, desse modo, a sua preocupação em diferenciar os processos
sociais em curso na região, especialmente no que se refere aos casos de Argentina,
Brasil e México. Nas palavras de Cardoso (1964b, p.102),
[...] conjunturas político-sociais diversas têm se configurado em vários
países latino-americanos, de forma que as condições institucionais
para o desenvolvimento industrial têm variado de país para país. Em
alguns deles, como no México, chegou a completar-se uma ‘revolução
social’; noutros, como no Brasil, houve uma aliança entre os grupos
agrário-exportadores e as classes urbano-industriais; em outros, ainda,
como na Argentina, os grupos tradicionais de dominação política têm
exercido forte pressão contra as pretensões reformistas dos setores
urbano-industriais
Assim, seu projeto de estudo pode ser entendido como um ponto de interseção
entre o primeiro momento da sociologia histórico-comparada de Cardoso - atento ao
contraste entre o processo de mudança social no Brasil e o sucedido nos países de
capitalismo originário - e o segundo momento, no qual a mobilização articulada da
história e da comparação ganha densidade em seu trabalho com Faletto. Como podemos
constatar, antes de deixar o Brasil, Cardoso já tinha em vista a ampliação do escopo
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comparativo de suas pesquisas, ao propor o contraste entre as distintas experiências
sociais de modernização na América Latina. Em outras palavras, Cardoso já tinha em
vista a radicalização de sua perspectiva sociológica histórico-comparada antes mesmo
de seu exílio, não obstante ser no Chile que o sociólogo brasileiro levaria adiante suas
reflexões.
Em Dependência e desenvolvimento, Cardoso e Faletto não se restringem à
comparação de um único país latino-americano com o processo de mudança social
ocorrido na Europa ou nos Estados Unidos. Ao contrastarem os diferentes países latino-
americanos entre si, Cardoso e Faletto sublinham que o curso do desenvolvimento na
região teria sido marcado por uma diversidade de trajetórias, que somente poderia ser
apreendida através do corpo-a-corpo entre suas distintas formações sociais (cf. Cardoso
& Faletto, 2004). Desta maneira, o raio da perspectiva sociológica histórico-comparada
de Cardoso é expandido, passando a destacar as diferenças existentes entre os países da
região. Os autores qualificam, dessa maneira, as distintas situações de dependência na
América Latina, diferenciando aquelas que teriam como base o “controle nacional do
sistema produtivo” (casos de Argentina, Brasil, Uruguai e Colômbia) ou que se daria
mediante a atuação de enclaves econômicos instalados diretamente nas economias
periféricas (com destaque conferido pelos autores a México, Bolívia, Venezuela, Chile,
Peru e América Central). Não à toa, Cardoso reafirma que boa parte do valor de seu
trabalho com Faletto teria consistido em “mostrar que não há um só tipo de periferia”
(Cardoso, 2009, p.29), constatação essa que ganha desdobramentos em Política e
desenvolvimento em sociedades dependentes.
Além disso, Cardoso e Faletto se valem dos resultados de trabalhos produzidos
na CEPAL, bem como de sua gramática, estabelecendo uma interlocução que podemos
chamar de crítica com suas formulações, especialmente a categoria “deterioração dos
termos de intercâmbio”, elaborada pelo economista argentino Raúl Prebisch, propondo a
categoria “dependência” como alternativa. Não por acaso, Cristóbal Kay (2011, p.134)
assinala que o tipo de análise proposta por Cardoso teria como objetivo compreender e
explicar por que as previsões de intelectuais da CEPAL e dos teóricos da modernização
não se materializariam na América Latina. Contudo, os trabalhos de Prebisch e da
CEPAL tendem a enfatizar o “enfoque histórico-estruturalista”, ao mobilizarem a
história e a comparação na tentativa de darem conta das particularidades latino-
americanas (cf. Bielschowsky, 2000; Gurrieri, 2011). Como já ressaltaram Blomström
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& Hettne (1984), a abordagem dependentista tem lugar mediante a relação entre o
marxismo/neomarxismo e o debate em torno da questão substantiva do
subdesenvolvimento iniciada na CEPAL. Em registro similar, ainda que confira maior
ênfase ao estruturalismo cepalino, Love (1998, p.427) chama a atenção para sua relação
com o marxismo, pois, teria sido a partir dessas vertentes teóricas que “viria a surgir, em
fins dos anos 1960, uma nova literatura sobre a dependência”.
Mas, para fins expositivos, concentrar-me-ei em Política e desenvolvimento em
sociedades dependentes, no qual Cardoso contrasta as particularidades dos processos
histórico-sociais de desenvolvimento argentino e brasileiro, bem como as ideologias dos
empresariados de ambos os países, destacando suas especificidades. Cardoso analisa,
portanto, dois casos distintos inscritos na mesma modalidade de dependência, a saber,
aquela em que algum grupo nacional logrou controle do processo produtivo, modalidade
oposta àquela com base na atuação de enclaves econômicos diretamente instalados nos
países periféricos (cf. Cardoso, 1978). Em Política e desenvolvimento, Cardoso toma
como ponto de partida suas formulações construídas ao lado de Faletto, procurando
delimitar de modo mais preciso os casos empíricos analisados. Como o processo de
formação das burguesias latino-americanas responderia a itinerários díspares, o recurso
à comparação passa a ser mobilizado, de modo a circunscrever sua análise a dois casos
de burguesias que teriam se formado em um contexto no qual o controle nacional do
sistema produtivo de seus países foi possível. Ou seja, se em Dependência e
desenvolvimento, o recurso que combina a história e a comparação é operado com base
em um escopo mais amplo de países, em Política e desenvolvimento, Cardoso opta por
se debruçar de modo mais sistemático sobre dois casos empíricos distintos, ainda que
inscritos na mesma modalidade de dependência. Em outros termos, ao mesmo tempo em
que Dependência e desenvolvimento constitui o ponto de chegada da sociologia
histórico-comparada de Cardoso, permite uma abertura para um exame mais matizado
do processo de desenvolvimento na região, fornecendo-lhe os subsídios e a
problemática que nortearia o recorte analítico efetuado em Política e desenvolvimento.
Antes de operar comparativamente com as representações mantidas pelos
empresários argentinos e brasileiros, Cardoso reconstitui o processo de formação das
burguesias nos dois países. O autor passa pelo período de “desenvolvimento para fora”,
no qual se constituem seus Estados nacionais, pelo contexto de implementação das
políticas de industrialização substitutiva de importações, para aterrissar no momento de
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“internacionalização do mercado interno”, que já constitui ponto de chegada em
Dependência e desenvolvimento, formalizando o diagnóstico da simultaneidade entre
desenvolvimento e dependência. Em relação ao caso argentino, Cardoso assinala que a
unificação de sua sociedade teria se dado por meio do predomínio da burguesia
mercantil de Buenos Aires sobre os demais grupos econômicos locais que exerciam
algum grau de dominância. Já no Brasil, contrasta, a consolidação do Estado-nação teria
significado a conformação de uma “federação” de interesses localizados a nível
regional, embora circunscrita à política centralizadora do Império.
Neste sentido, na Argentina teria havido, como já ressaltado em seu trabalho
com Faletto, uma “unidade de classe” sob a égide da burguesia portenha, bem como
teria sido constituído um sistema produtivo agroexportador dinâmico o suficiente para
viabilizar a diferenciação interna do processo produtivo. Por outro lado, no caso
brasileiro, assinala Cardoso, não teria se visto, nem no Império e nem na Primeira
República, uma “unidade de classe”. No Brasil, como o sistema exportador se constituiu
com base em múltiplos setores produtores paralelos, o predomínio dos grupos
dominantes teria dependido de pactos consolidados na esfera principal do sistema de
dominação. Sendo assim, a estrutura de poder dos setores agroexportadores tenderia a
uma maior debilidade, uma vez que nenhum deles teria conseguido se impor de forma
hegemônica no cenário nacional. Em contraste com a “dinamização da sociedade” que
teria caracterizado o caso argentino após à crise da economia exportadora, momento em
que o mercado interno se fortaleceria, no Brasil tal debilidade não teria permanecido
restrita aos setores dominantes, atingindo também as “classes médias” e as “massas
urbanas”, o que indicaria que a “diferenciação econômica e a diferenciação social do
‘sistema exportador’ brasileiro foram relativamente menores do que na Argentina”
(Cardoso, 1978, p.99-100). No entanto, a despeito da ausência de uma “unidade de
classe” no Brasil, a oligarquia teria tido maior capacidade para suportar as “pressões de
baixo”, o que se deveria à incipiência organizativa da classe trabalhadora.
Cardoso indica ainda as significativas diferenças no que se refere à forma
assumida pelo processo de desenvolvimento em ambos os países. Na Argentina, o
desenvolvimento encetado após a crise econômica de 1929 teria repousado em larga
medida no dinamismo de grupos empresariais privados, onde boa parte deles estaria
organizada através da União Industrial Argentina (UIA). O Estado não teria cumprido,
nesse sentido, o papel de investidor direto, como teria se dado em outros países da
14
América Latina, dentre eles o Brasil, onde constituiria agente econômico fundamental
ao inverter capitais em setores básicos da indústria. Pensando o momento de maior força
do populismo na Argentina, que se consubstanciaria no peronismo, Cardoso ressalta que
o Estado teria surgido “como árbitro, como ponte, mas não diretamente como grande
investidor” (Cardoso, 1978, p.96). Essa ponte vincularia os grupos economicamente
hegemônicos da burguesia industrial e as “massas”, o que exprimiria, nota Cardoso, a
autonomia relativa de que dispunha o Estado naquela conjuntura. Entretanto, essa
relação não exclui o fato de que os setores oligárquicos agroexportadores teriam
continuado a obter benefícios com a então nova conjuntura populista. Como constata o
autor, “mesmo durante a vigência do regime peronista, a transferência de rendas
internas se fez em benefício do setor agroexportador” (Cardoso, 1978, p.97).
Em contraste com o peronismo, no Brasil, a forma assumida pelo populismo
varguista expressaria um “baixo nível de expectativas” ao não mobilizar os
trabalhadores rurais, tornando viável a composição dos “coronéis” ao sistema de poder à
época emergente. Apesar da participação dos setores agroexportadores na conjuntura de
poder sob a égide do peronismo, a pressão das camadas populares se fez sentir com
intensidade. Já no Brasil, diferentemente, a aliança política que se formaria entre as
classes sociais teria sido mais ampla, com pressões populares algo rarefeitas, deixando
ampla margem para a conciliação entre grupos sociais com interesses a princípio
opostos. Comparativamente, Cardoso destaca a importância da pressão operária no caso
argentino, cuja atuação teria sido mais contundente do que no Brasil, não obstante a
agressividade do proletariado argentino não ter impedido que o desenvolvimento
permanecesse a cargo dos setores empresariais privados. Divergindo do caso argentino,
o empresariado industrial brasileiro teria desempenhado papel secundário na equação
nacional do poder, valendo-se de uma política “eminentemente oportunista”.
De acordo com Cardoso, os governos de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e
Arturo Frondizi (1958-1962), em grande parte orientados por uma “ideologia nacional-
desenvolvimentista”, teriam tido lugar em um contexto no qual as possibilidades
práticas do “nacional-populismo” se encontravam prestes a se encerrar, bem como as
relações de dependência dos países periféricos com as economias centrais estavam
sendo reorientadas em um novo sentido. Valendo-se do diagnóstico apresentado em
Dependência e desenvolvimento, Cardoso sustenta que esse período teria sido marcado
por uma “internacionalização do mercado interno”, no qual as economias argentina e
15
brasileira teriam se beneficiado com altas taxas de investimentos diretos de capitais
externos, permitindo a manutenção de uma política de “incorporação das massas”.
Conquanto, politicamente, surgiria um dilema que incidiria diretamente no curso da
industrialização de ambos os países: “estabelecer o sistema de forças com base em uma
aliança entre o operariado e as ‘classes produtoras’, ou das classes produtoras entre si,
com exclusão das massas” (Cardoso, 1978, p.111).
Cardoso assinala que a primeira alternativa se mostraria inviável em um
contexto no qual o mercado interno passava por um amplo processo de
internacionalização, cujos fundamentos se encontrariam assentados sobre as grandes
empresas estrangeiras, nacionais e públicas. Tal projeto não se coadunaria com uma
orientação nacional-populista, já que as dificuldades para sustentar políticas de
redistribuição de renda e de formação interna de capitais teriam conduzido o
empresariado a um modelo de desenvolvimento econômico no qual a inescapável
associação com os capitais estrangeiros configuraria a tônica, implicando ainda na
adoção de um padrão de “industrialização restritiva”. Padrão esse que teria em vista,
nota Cardoso, um mercado de altas rendas, baseado em grandes unidades produtoras
que comporiam um circuito próprio de produção e de consumo. Em outras palavras, a
ênfase consistiria em um mercado consumidor diminuto, porém de grande capacidade
financeira, mais especificamente, como chama a atenção o autor, as grandes empresas e
o Estado. Estes seriam, portanto, os consumidores preferenciais das indústrias de
máquinas e insumos industriais, o que denotaria, portanto, o tipo de mercado
consumidor almejado por elas.
Como afirma Cardoso, os dados empíricos apresentados em sua pesquisa
mostrariam que o tipo de mercado considerado relevante para o desenvolvimento
operaria como um eixo ordenador da estrutura ideológica do empresariado. Com isso,
podemos dizer que a reconstituição histórica e comparativa procedida por Cardoso
parece servir como uma espécie de moldura que conferirá inteligibilidade sociológica à
análise empírica efetuada em Política e desenvolvimento. Assim, o autor procura
compreender e explicar as orientações ideológicas dos empresários industriais
argentinos e brasileiros, suas opções de alianças e articulações, bem como suas
oposições a determinados grupos sociais.
A contrapelo das interpretações do ISEB e do PCB, os dados indicam que os
empresários, no caso brasileiro, apresentariam uma tendência a não enxergar conflitos
16
entre interesses agrários e industriais – dentre eles, empresários orientados por uma
ideologia nacional-populista -, bem como procurariam, quase que exclusivamente,
estabelecer alianças com setores da burguesia em detrimento dos operários (Cardoso,
1978, p.129). Cardoso assinala que, também na Argentina, os empresários tenderiam a
não enfatizar conflitos com o setor agrário e muito menos com o setor externo da
economia. Ainda em relação ao caso brasileiro, os dados mostram que a maioria dos
industriais recusariam a reforma agrária como solução para os problemas referentes ao
tamanho do mercado interno. Os empreendedores tenderiam, dessa maneira, a um certo
“isolacionismo político”, preferindo constituir alianças entre si, preconizando ainda,
ideologicamente, o fortalecimento do chamado “bloco ocidental”, assumindo sua
posição favorável aos interesses dos Estados Unidos em oposição à União Soviética.
Um ponto importante que diferenciaria as orientações ideológicas dos
empresários industriais argentinos e brasileiros seria a questão referente à intervenção
estatal. Os dados corroborariam a história da industrialização na Argentina e no Brasil,
uma vez que os argentinos não teriam uma disposição tão acentuada quanto os
brasileiros para aceitar que o Estado atuasse de modo ativo na condução do processo de
desenvolvimento (cf. Cardoso, 1978, p.152). Este dado é significativo para mostrar que,
de acordo com o argumento de Cardoso, as ideologias que orientam a conduta do
empresariado devem ser circunstanciadas historicamente, uma vez que o seu surgimento
não ocorreu em meio a um vazio de relações sociais.
Neste sentido, Cardoso afirma que as orientações ideológicas do empresariado
precisam ser pensadas em relação ao tipo de vinculação estabelecida com o mercado
externo. Cardoso sustenta que os setores mais dinâmicos e modernos da economia
brasileira se encontrariam mais permeáveis ao controle de grupos econômicos
internacionais ou do próprio Estado. As grandes empresas brasileiras apresentariam,
desse modo, maior inclinação a se vincularem ao sistema internacional de produção,
modernizando-se, o que indicaria uma clara tendência à associação entre o “setor
moderno de produção” e a “dependência estrutural do exterior” (Cardoso, 1978, p.176-
177). No entanto, há um importante matiz que diferenciaria as empresas argentinas e
brasileiras, pois “enquanto aquelas tendem a estabelecer vínculos financeiros sem estar
ligadas por liames tecnológicos, nas brasileiras a vinculação tecnológica se verifica com
maior frequência e independentemente da vinculação financeira” (Cardoso, 1978, p.177,
grifo do autor).
17
Diante do contexto de “internacionalização do mercado interno”, Cardoso
salienta que tanto a burguesia argentina quanto a brasileira, apesar de suas diferenças,
não poderiam comportar uma “visão hegemônica”, o que não diria respeito a uma
“incapacidade histórica”, mas tão somente o reconhecimento da “impossibilidade
histórica” de colocar em prática uma política de hegemonia. Cardoso sustenta que não
se encontraria em pauta projeto político algum que pudesse vir a enfatizar um papel de
hegemonia a ser necessariamente cumprido pela burguesia industrial nos dois países.
Tanto o setor “nacional-populista” quanto o setor “internacionalizante” não
expressariam ideologias referentes a uma “vocação de domínio”, uma vez que
desenvolveriam, no plano político, ideologias propensas a “reações adaptativas”, que os
inclinariam a assumir compromissos com as forças políticas mais vigorosas do
momento, caracterizando o seu caráter acomodatício (Cardoso, 1978, p.203).
IV
Pudemos acompanhar, ainda que resumidamente, o processo de constituição da
perspectiva sociológica histórico-comparada de Fernando Henrique Cardoso, através da
breve análise de seus principais trabalhos produzidos ao longo da década de 1960. A
ideia foi apresentar a aposta de Cardoso em uma sociologia que se vale heuristicamente
da história e da comparação, ao perscrutar diacronicamente, em um primeiro momento,
o processo de modernização brasileiro em contraste com as experiências centrais. Já em
um segundo momento, em seus trabalhos em que discute a problemática da
dependência, Cardoso propõe um corpo-a-corpo não somente com a modernização
sucedida no centro, mas entre as distintas formações sociais latino-americanas,
complexificando sua análise sobre os processos histórico-sociais de desenvolvimento.
Com isso, a ideia foi buscar um contraponto em relação a trabalhos que tendem a
conferir ênfase às perspectivas de intelectuais situados no centro para a formação da
sociologia histórica (cf. Skocpol, 1984; Smith, 1991; Delanty & Isin, 2003), ou no que
se refere aos que tratam a contribuição de Dependência e desenvolvimento na América
Latina de forma lateral, posto que o livro de Cardoso e Faletto teria tido a capacidade de
interpelar o surgimento de extensões críticas inscritas na “segunda onda” da sociologia
histórica (1970-1980), especialmente o conjunto de trabalhos que propunham a análise
de contextos com formação distinta da Europa e dos Estados Unidos (cf. Adams;
18
Clemens; Orloff, 2005). Assim, ao não me concentrar exclusivamente sobre seu
trabalho com Faletto, como é feito recorrentemente ao vinculá-lo diretamente à
sociologia histórica (cf. Sztompka, 1998; Connel, 2007; Giordano, 2014), procurei
analisar sua produção intelectual desde os seus trabalhos produzidos no âmbito da
Cadeira de Sociologia I da USP. Deste modo, ao levar em consideração o conjunto de
seus trabalhos, acredito ser possível sugerir, de modo mais fundamentado, que suas
formulações parecem ter aportado uma contribuição indireta, a partir da periferia, para o
campo da sociologia histórica.
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