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Trnsito Seguro: Direito Fundamental de Segunda Dimenso1
CSSIO MATTOS HONORATO
Mestre em Direito pela Unespar, Especialista em Trnsito pela Polcia Rodoviria do Estado de So Paulo, Promotor de Justia no Estado do Paran.
rea do Direito: Constitucional, Internacional, Trnsito. Resumo: O Trnsito Seguro, como direito e dever de todos, constitui Direito Fundamental de Segunda Dimenso que precisa ser reconhecido e incorporado cultura brasileira como instrumento de proteo vida e respeito aos direitos fundamentais relacionados ao uso social e coletivo das vias terrestres. A especificao desse Direito Humano pelas Naes Unidas e a implantao de um sistema homogneo de sinais virios, em todos os territrios, tambm constituem desafios a serem alcanados durante a Dcada de Aes para a Segurana Viria. Palavras-chave: Direitos Fundamentais - Direito de Trnsito - Trnsito Seguro - Embriaguez ao Volante - Dcada de Aes para a Segurana Viria - Crise Mundial de Segurana Viria - Convenes internacionais sobre Trnsito Virio. ABSTRACT: Road Safety, as right and duty of all citizens, constitutes Human Rights of Second Generation that needs to be recognized and incorporated to the Brazilian culture as an instrument of life protection respecting the fundamental rights related to the social and collective use of the roads. The specification of this Human Right by the United Nations and the adoption of a homogeneous sign system, all around the world, are also challenges to be achieved during the Decade of Action for Road Safety. Keywords: Human Rights - Road Traffic Law - Road Safety - Driving under the influence of alcohol - Decade of Actions for Road Safety Global road safety crisis - International Conventions on Road Traffic. Sumrio: Introduo. 1. Uma Dcada de desafios ao Trnsito Seguro. 2. As dimenses de Direitos Fundamentais. 2.1. Primeira Dimenso de Direitos: Liberdades Pblicas; 2.2. Interpretaes equivocadas e preconceitos em prejuzo segurana viria. 2.2.1. Nem s de Liberdades vive-se no trnsito! 2.2.2. Viso individualista sobre o conceito de Trnsito. 2.2.3. CNH no constitui um direito individual. 2.2.4. Necessidade de novo termo tcnico em substituio a Acidente de Trnsito. 2.3. Os Direitos Sociais (de Segunda Dimenso) e os deveres do Estado; 2.3.1. O Trnsito Seguro como Garantia Constitucional. 2.3.2. Direito ou Garantia Constitucional? 2.3.3. O conceito social de Trnsito. 2.3.4. Influncia dos Direitos Sociais sobre o fenmeno trnsito. 2.3.5. A controvertida interpretao das normas sobre Embriaguez ao Volante. 2.4. Outras dimenses de Direitos Fundamentais. 3. A internacionalizao dos Direitos Humanos. 3.1. Necessidade de reconhecimento internacional do Trnsito Seguro e a interveno da ONU. 3.2. Convenes sobre trnsito virio e o reconhecimento da situao de crise. 3.2.1. Tratados internacionais de Paris (1926). 3.2.2. Conveno Interamericana de Washington (1943). 3.2.3. Conferncia de Genebra (1949) e o Protocolo relativo aos 1 O presente texto foi originalmente publicado pela Revista dos Tribunais (RT n. 911, ISSN 0034-9275), em setembro de 2011. Para citar o texto, utilize a seguinte referncia: HONORATO, Cssio Mattos. Trnsito Seguro: Direito Fundamental de Segunda Dimenso. RT 911, ano 100, p. 107-169, set. 2011.
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Sinais Virios. 3.2.4. Conveno sobre Trnsito Virio, em Viena (1968). 3.2.5. Tratado de Montevidu, para o MERCOSUL (1992). 3.2.6. Novo rumo a partir de 2003 e a Conferncia de Moscou (2009). 3.3. Fase de especificao: necessidade de reconhecer o Trnsito Seguro em nvel internacional. 4. Ausncia de parmetros internacionais e desafios para a globalizao segura do fenmeno trnsito. Considerao Final. Referncia Bibliogrfica.
We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are
endowed by the Creator with certain unalienable Rights, that among these are
Life, Liberty, and the pursuit of Happiness. That to secure these rights, Governments are
instituted among Men, deriving their just powers from the consent of the governed
(Declaration of Independence - 1776)2
INTRODUO
H alguns sculos, THOMAS JEFFERSON e os Fundadores de uma Grande Nao
firmaram, pela primeira vez na histria da Humanidade, que todas as pessoas so iguais
e dotadas, pelo Criador, de direitos inalienveis que as identificam como seres
humanos, e que os governos so institudos para assegurar a realizao desses direitos.
A Declarao de Independncia (dos Estados Unidos da Amrica, datada de 04 de julho
de 1776), representou o ato inaugural da democracia moderna, combinando, sob o
regime constitucional, a representao popular [...] e o respeito aos direitos humanos.3
Decorridos mais de dois sculos, ainda hoje, o fenmeno trnsito rene (e por vezes fere
ou pe fim a) alguns desses direitos (v.g., vida, liberdade e felicidade) e impe a todos
(Governo e cidados) um conjunto de deveres que precisa ser reconhecido e cumprido
diuturnamente para a realizao plena do trnsito em condies seguras e a proteo
dos direitos inalienveis vida e incolumidade fsica dos usurios das vias terrestres.
A partir daquela inspiradora Declarao, destacam-se alguns dos desafios impostos ao
fenmeno trnsito durante a Dcada mundial de Aes para a Segurana Viria.
1. UMA DCADA DE DESAFIOS AO TRNSITO SEGURO
2 STEIN, R. Conrad. The Declaration of Independence. Chicago: Childrens Press, 1995. p. 16. Consideramos as seguintes verdades como auto-evidentes, a saber, que todos os homens so criaturas iguais, dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade. para assegurar esses direitos que os governos so institudos entre os homens, sendo seus justos poderes derivados do consentimento dos governados. (Traduo da Declarao de Independncia in COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos Direito Humanos. 3. ed., So Paulo: Saraiva, 2003. p. 105.) 3 COMPARATO. A afirmao histrica dos Direito Humanos, p. 95.
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Constituem desafios para aqueles que realmente desejam contribuir para realizao da
Dcada de Aes para a Segurana Viria (proclamada pelas Naes Unidas,4 para o
perodo de 2011 a 2020) reconhecer o Trnsito Seguro como um Direito Humano e
Fundamental de Segunda Dimenso, ou seja, uma garantia essencial proteo da vida
e da incolumidade fsica de todos os usurios das vias terrestres, prevista em nvel
constitucional; a ser promovida pelo Estado, declarando no apenas a Liberdade de
Circulao (como espcie de direito individual), e sim o Trnsito Seguro como um
conjunto de deveres coletivos (a todos imposto, sob o manto da igualdade de todos
perante a lei e com arrimo nas justas exigncias do bem comum, em uma sociedade
democrtica)5, para assegurar a segurana viria e proteger os usurios das vias
terrestres.
Diversamente do que afirmaram os grandes filsofos de nosso tempo (em especial
NORBERTO BOBBIO), o Trnsito Seguro ainda no foi incorporado cultura e ao
modo de agir dos brasileiros; fazendo-se necessrio, em primeiro lugar, reconhecer a
existncia e a natureza (ou seja, a essncia) desse direito fundamental, de modo a evitar
erros de interpretao e concluses precipitadas. O desafio daqueles que atenderam
convocao da ONU (e pretendem ser protagonistas dessa dcada de aes que ora se
inicia) maior que a tarefa imposta a outras reas, pois muitas atividades humanas j
foram reconhecidas e declaradas como essenciais dignidade da pessoa humana;
permitindo que seus defensores evolussem para as fases de internacionalizao e
especificao6 desses direitos, em busca de efetivao (junto aos Poderes Executivo e
Legislativo) e de tutela perante os Tribunais Jurisdicionais.
4 Em 02.03.2010, a Assemblia Geral da ONU (Organizao das Noes Unidas), durante o 64 Perodo de Sesses (Tema 46 do Programa), por meio da Resoluo n. A/64/255 (sobre Melhoria da Segurana Viria no Mundo" - "Improving global road safety"), proclamou o perodo de 2011-2020 Dcada de Aes para Segurana Viria, com o objetivo de estabilizar e, posteriormente, reduzir os ndices de vtimas fatais no trnsito em todo o mundo, aumentando as atividades nos planos nacional, regional e mundial (par. 2). Disponvel em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N09/477/13/PDF/N0947713.pdf (Acesso em: 25.Abr.2011). 5 Nos termos do Captulo V, art. 32, da Conveno Americana de Direitos Humanos (conhecida como Pacto de So Jos da Costa Rica, de 1969), h uma Correlao entre deveres e direitos, de modo que 1. Toda pessoa tem deveres para com a famlia, a comunidade e a humanidade. 2. Os direitos de cada pessoa so limitados pelos direitos dos demais, pela segurana de todos e pelas justas exigncias do bem comum, em uma sociedade democrtica. 6 Segundo BOBBIO, quatro so as fases de formao dos Direitos Humanos: jusnaturalismo, positivao, internacionalizao e especificao (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. ed., Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 49-50).
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Em relao ao fenmeno trnsito, seu elemento Enforcement7 (tambm conhecido como
Esforo Legal, e assim considerado um conjunto de esforos direcionados realizao
do trnsito em condies seguras) tem como primeiro desafio reconhecer (no mbito
pessoal) e fazer com que o Trnsito Seguro seja revelado (em relao a terceiros) como
um Direito Fundamental8 de Segunda Dimenso e, a partir da, conscientizar o Estado
de seu dever de proteger todos os direitos humanos e liberdades9 para, ento,
promover aes visando a efetiva realizao do Trnsito Seguro.
Trs, portanto, so os desafios ao fenmeno trnsito, no Brasil do sculo XXI (ao incio
da Dcada de Aes para a Segurana Viria): reconhecer (internalizando no fundo da
alma e do corao do povo brasileiro) a seriedade e a natureza (social e coletiva) da
utilizao das vias terrestres; revelar ao Estado sua funo de Enforcement e, como tal,
seu dever de promover aes visando assegurar todos os direitos inerentes aos seres
humanos e garantir a realizao do trnsito em condies seguras.
Para alm de nossas fronteiras, impem-se outros dois desafios em nvel internacional:
especificar o Trnsito Seguro como Direito Humano, em nvel internacional, e
implantar, em todos os territrios, um sistema homogneo de sinais virios. Como se
percebe, a partir do reconhecimento da crise mundial de segurana viria (pela
Organizao Mundial de Sade), as Naes Unidas adotaram um novo paradigma
relacionado ao fenmeno trnsito que, em breve, conduzir especificao do Trnsito
Seguro como Direito Humano indispensvel promoo da vida e da sade dos
usurios das vias terrestres em todos os continentes.
Com a esperana de vivenciar um trnsito mais humano e seguro, passa-se a justificar as
afirmaes acima realizadas.
7 Graficamente, o fenmeno trnsito representado como um tringulo (denominado 3E Engenharia, Educao para o Trnsito e Enforcement ou trinmio do trnsito), assim composto por diversos (e distintos) ramos do conhecimento humano. (HONORATO, Cssio M. O trnsito em condies seguras. Campinas (SP): Millennium, 2009. p. 03.) Enforcement making sure that something is obeyed (COLLIN, Peter H. Dictionary of Law. 3. ed. Teddington (UK): Peter Collin Publishing, 2000. p. 130); ou seja, tornar obrigatrio o cumprimento da lei. 8 Segundo exposio de INGO W. SARLET, h uma distino, ainda que de cunho didtico, entre as expresses direitos do homem (no sentido de direitos naturais no, ou ainda no positivados), direitos humanos (positivados na esfera do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado). (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 32.) 9 5. [...] dever dos Estados, sejam quais forem seus sistemas polticos, econmicos e culturais, promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. (Declarao e Programa de Aes de Viena, Sec. I, par. 5. Conferncia Mundial sobre Direitos Humanos, de 14 a 24 de junho de 1993 (A/CONF.157/23, de 12.07.1993). Disponvel em: http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/(symbol)/a.conf.157.23.en (Acesso em: 15.Maio.2011, s 08h29min)).
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2. AS DIMENSES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Um dos maiores filsofos do sculo XX, o Italiano NORBERTO BOBBIO afirmou que:
[...], o problema que temos diante de ns no filosfico, mas jurdico e, num sentido
mais amplo, poltico. No se trata de saber quais e quantos so esses direitos, qual sua
natureza e seu fundamento, se so direitos naturais ou histricos, absolutos ou relativos,
mas sim qual o modo mais seguro de garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declaraes, eles sejam continuamente violados.10
Embora essa afirmao no se aplique integralmente ao fenmeno trnsito (que ainda
precisa ser reconhecido e afirmado pelas solenes declaraes de Direitos), faz-se
necessrio conhecer e distinguir as diferentes geraes,11 ou melhor, dimenses de
Direitos Humanos, suas origens, fundamentos e objetivos, para ento perceber o longo
caminho a ser trilhado nessa Dcada.
Em relao s origens, os direitos do homem so direitos histricos, que emergem
gradualmente das lutas que o homem trava por sua prpria emancipao e das
transformaes das condies de vida que essas lutas produzem.12 O ideal cristo de
igualdade entre todos os irmos enquanto filhos de Deus13, a democracia Grega e a
famosa Magna Charta Libertatum, de 1215, imposta pelos Bares Ingleses ao Rei Joo
(conhecido como Joo Sem-Terra) constituem referncia segura primeira fase de
afirmao histrica dos Direitos Humanos, sob o lema: Todos os homens nascem livres
e iguais em dignidade e direitos.14 Os Direitos do Homem, portanto, constituem
direitos comuns a toda a espcie humana, a todo homem enquanto homem, os quais,
portanto, resultam da sua prpria natureza, no sendo meras criaes polticas.15
Sob o estandarte da Liberdade (considerada uma das principais (seno a principal)
exigncia da dignidade da pessoa humana)16 surgem, no sculo XVIII, duas Grandes
Revolues (a Americana, de 1776, e a Francesa, de1789) trazendo a positivao dos
Direitos Humanos e a Primeira Dimenso de Direitos Fundamentais, conhecida como
Liberdades Pblicas.
10 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 25. 11 [...] crticas que vm sendo dirigidas contra o prprio termo geraes por parte da doutrina aliengena e nacional. [...], de tal sorte que o uso da expresso geraes pode ensejar a falsa impresso da substituio gradativa de uma gerao por outra, razo pela qual h quem prefira o termo dimenses dos direitos fundamentais, posio esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina. [...]. (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 47.) 12 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 32. 13 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 58. 14 BOBBIO. Op. cit., p. 29. 15 COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos, p. 20. 16 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988. 2. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 46.
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2.1. PRIMEIRA DIMENSO DE DIREITOS: LIBERDADES PBLICAS
A positivao17 dos Direitos Humanos em declaraes solenes e em normas
constitucionais traduz certeza de existncia e necessidade que sejam desempenhadas
do modo prescrito pela lei18, como antdoto contra o arbtrio governamental. Nesse
sentido, destaca-se a exposio de FBIO KONDER COMPARATO: A lei escrita
alcanou entre os judeus uma posio sagrada, como manifestao da prpria divindade.
Mas foi na Grcia, mais particularmente em Atenas, que a preeminncia da lei escrita
tornou-se, pela primeira vez, o fundamento da sociedade poltica. Na democracia
ateniense, a autoridade ou fora moral das leis escritas suplantou, desde logo, a
soberania de um indivduo ou de um grupo ou classe social, soberania esta tida
doravante como ofensiva ao sentimento de liberdade do cidado. Para os atenienses, a
lei escrita o grande antdoto contra o arbtrio governamental, pois, como escreveu
Eurpides na pea As Suplicantes (versos 434-437), uma vez escritas as leis, o fraco e o
rico gozam de um direito igual; o fraco pode responder ao insulto do forte, e o pequeno,
caso esteja com a razo, vencer o grande.19
As primeiras declaraes (edificadas pelo bom povo da Virgnia, em 12.06.1776, e
junto Declarao francesa dos Direitos do Homem e do Cidado, de 1789) eram
principalmente exigncias de liberdade em face das Igrejas e dos Estados, [visando a]
reduo, aos seus mnimos termos, do espao ocupado por tais poderes, e ampliar os
espaos de liberdade dos indivduos. Essa liberdade era definida como o direito de
poder fazer tudo o que no prejudique os outros20 e somente poderia ser alcanada pela
no interveno do Estado. Surgia, ento, o Estado Mnimo, Liberal ou No-
Intervencionista. Destaca-se no artigo 4, da Declarao de Direitos do Homem e do
Cidado, de 1789, o culto liberdade individual:
Art. 4. A liberdade consiste em poder fazer tudo o que no prejudique a outrem: em
conseqncia, o exerccio dos direitos naturais de cada homem s tem por limites os que
17 [...], o positivismo jurdico uma concepo do direito que nasce quando direito positivo e direito natural no mais so considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido prprio. Por obra do positivismo jurdico ocorre a reduo de todo o direito a direito positivo, e o direito natural excludo da categoria do direito: o direito positivo o direito, o direito natural no direito. A partir deste momento o acrscimo do adjetivo positivo ao termo direito torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma frmula sinttica, o positivismo jurdico aquela doutrina segundo a qual no existe outro direito seno o positivo. (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico: lies de filosofia do direito. So Paulo: cone, 1995. p. 26.) 18 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico, p. 17. 19 COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos, p. 12-13. 20 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 75 e 94.
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assegurem aos demais membros da sociedade a fruio desses mesmos direitos. Tais
limites s podem ser determinados pela lei.21
As revolues liberais do sculo XVIII implantaram unicamente um dos ideais da
Revoluo Francesa: a Liberdade (esquecendo-se da Igualdade e da Fraternidade, ou
Solidariedade), e trouxeram consigo o reconhecimento da Primeira Dimenso de
Direitos Humanos, as denominadas Liberdades Pblicas, sob o lema laissez faire,
laissez passer (ou seja, "deixai fazer, deixai passar").22 Merece destaque a bem lanada
crtica de FBIO KONDER COMPARATO: A Confederao dos Estados Unidos da
Amrica do Norte nasce sob a invocao da liberdade, sobretudo da liberdade de
opinio e religio, e da igualdade de todos perante a lei. No tocante, porm, ao terceiro
elemento da trade democrtica da Revoluo Francesa a fraternidade ou solidariedade
os norte-americanos no chegaram a admiti-lo nem mesmo retoricamente. A isto se
ops, desde as origens, o profundo individualismo, vigorante em todas as camadas
sociais; um individualismo que no constitui obstculo ao desenvolvimento da prtica
associativa na vida privada, [...] mas que sempre se mostrou incompatvel com a adoo
de polticas corretivas das grandes desigualdades socioeconmicas.23
Os Direitos de Primeira Dimenso, em razo de suas caractersticas (i.e., Liberdades
Pblicas, consistentes em um conjunto de direitos e liberdades individuais,
demarcando uma zona de no-interveno e uma esfera de autonomia individual), so
apresentados como direitos de cunho negativo, vez que dirigidos a uma absteno, e
no uma conduta por parte dos poderes pblicos.24 Para PAULO BONAVIDES, o
Estado armadura de defesa e proteo da liberdade. [...] Sua essncia h de esgotar-se
numa misso de inteiro alheamento e ausncia de iniciativa social.25 Da falar-se em
Estado Mnimo e de no interveno, pois quanto menos palpvel a presena do
21 COMPARATO, Fbio K. A afirmao histrica dos Direito Humanos, p. 154. 22 LAISSEZ FAIRE, LAISSEZ PASSER, LAISSER ALLER, expresso francesa: Deixai fazer, deixai passar. Frase atribuda ao fisiocrata Gournay, [...]. A expresso parece ter sido consignada pela primeira vez em 1751, em um tratado do Marqus de Argenson, publicado no Journal conomique, e significa que a autoridade e os poderes pblicos devem intervir o mnimo possvel nos interesses particulares e nas associaes, e que a riqueza tende a desenvolver-se de forma mais ampla onde o governo deixa os indivduos em liberdade para produzir e contratar entre si, limitando suas funes proteo da propriedade e das pessoas, e a dar fora aos contratos (Enciclopdia Vniversal Ilvstrada Evropeo-Americana. Tomo XXIX. Madrid: Espasa-Calpe, [s:d]. p. 335). Laissez-faire may be defined as the doctrine which demands the minimum interference by government in economy and political affairs. (Encyclopaedia Britannicca. A New Survey of Universal knowledge. Vol. 13. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. p. 598.) 23 COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos, p. 104. 24 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais, p. 48. 25 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. Rio de Janeiro: FGV, 1972. p. 04.
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Estado nos atos da vida humana, mais larga e generosa a esfera de liberdade outorgada
ao indivduo. [Assim,] caberia a este fazer ou deixar de fazer o que lhe aprouvesse.26
Os resultados econmicos desse modelo no-intervencionista de Estado foram
rapidamente sentidos, com a implantao do sistema capitalista de produo (cuja
lgica consiste em atribuir aos bens de capital um valor muito superior aos das
pessoas) e a brutal pauperizao das massas proletrias, j na primeira metade do
sculo XIX.27 A gravidade da situao veio tona com a Revoluo Russa de 1917, a
Declarao dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 1918, e o surgimento dos
Estados Sociais (decorrentes da Constituio do Mxico, de 1917, e da Constituio
Alem, do ps-guerra, conhecida como Constituio de Weimar, de 1919), que
reconheceram a existncia e passaram a garantir os Direitos Humanos de Segunda
Dimenso, denominados Direitos Sociais.
Diversamente do que ocorreu com os resultados econmicos, nem todos os efeitos
sociais (decorrentes do Estado no-intervencionista) foram percebidos de imediato. H
algumas consequncias dessa ampla liberdade e do profundo individualismo
incorporados pelo sistema capitalista que, ainda hoje, tem-se dificuldade para
compreender. O individualismo e o desrespeito s normas de circulao e de segurana
no trnsito constituem exemplo bem caracterstico dessa influncia e precisam, com
urgncia, ser desmistificados se, de fato, o objetivo da Dcada de Aes para a
Segurana Viria for estabilizar e, posteriormente, reduzir os ndices de vtimas fatais
no trnsito.28
2.2. INTERPRETAES EQUIVOCADAS E PRECONCEITOS EM PREJUZO
SEGURANA VIRIA
O socilogo ROBERTO DA MATTA, em sugestiva obra intitulada F em Deus e P na
Tbua (ou como e por que o trnsito enlouqueceu no Brasil), esclarece como
acedemos individualizao, por que violamos o princpio da igualdade de todos
perante a lei e, ainda, tentamos justificar nosso estilo aristocrtico-fascista de dirigir.
Segundo o autor: [...] todos, no fundo de suas conscincias, se sentem especiais,
superiores e com direitos a regalias e prioridades. A imprudncia, o descaso e a mais
chocante e irreconhecvel incivilidade brasileira no trnsito decorre da ausncia de uma
viso igualitria do mundo, justamente num espao inevitavelmente marcado e
26 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 31. 27 COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos, p. 51 e 52. 28 Objetivo extrado do item 2, da resoluo A/64/255, da Assemblia Geral da ONU, datada de 02.03.2010.
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desenhado pela igualdade mais absoluta entre seus usurios, como ocorre com as ruas e
avenidas, as estradas e viadutos.29
E aqui surgem os primeiros grandes problemas relacionados ao fenmeno trnsito: nas
vias terrestres abertas circulao, onde todos so iguais e a lei deveria ser igual para
todos, o espao igualitrio da rua torna-se hierarquizado30 e os usurios das vias (com
raras excees) adotam uma viso individualista dessa atividade, diretamente
relacionada aos conceitos de propriedade privada, liberdades pblicas e (a falsa noo
de) direito de dirigir.
Essa viso individualista (em que se sustenta a supremacia do indivduo)31, decorrente
do modelo no-intervencionista de Estado, produziu suas marcas na Constituio de
1988, em que os Constituintes afirmaram (de forma explcita, junto ao art. 5, inc. XV) a
Liberdade de Circulao no territrio nacional. Como se percebe, j no Ttulo II da
Carta Magna brasileira, foi declarada e reconhecida uma espcie de Liberdade Pblica
(ou Direito Fundamental de Primeira Dimenso) diretamente relacionada ao fenmeno
trnsito: XV - livre a circulao no territrio nacional em tempo de paz, [...].
O trnsito, portanto, foi reconhecido, em nvel constitucional, como uma liberdade, ou
seja, a faculdade de realizar uma atividade sem interveno estatal ou, ainda, "a
possibilidade de escolha de um comportamento."32 Assim, a Liberdade de Circulao
es la facultad de desplazarse libremente por cualquier parte del territorio nacional.33
29 MATTA, Roberto da; VASCONCELOS, Joo Gualberto M.; PANDOLFI, Ricardo. F em Deus e p na tbua (Ou como e por que o trnsito enlouqueceu no Brasil). Rio de janeiro: Rocco, 2010. p. 20, 28, 36 e 64. 30 MATTA, Roberto da. Op. cit., p. 08-09. 31 Para DALMO DE ABREU DALLARI, o Estado Liberal apresenta trs grandes objetivos: a afirmao da supremacia do indivduo, a necessidade de limitao do poder dos governantes e a crena quase religiosa nas virtudes da razo, apoiando a busca da racionalizao do poder. (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21. ed., So Paulo: Saraiva, 2000. p. 198.) 32 "Uma outra posio jurdica fundamental expressa pela categoria jurdico-dogmtica de liberdades. Tradicionalmente ligado aos direitos de defesa perante o Estado (a liberdade seria um Abwehrrecht), o conceito de 'liberdades' permanece ainda bastante obscuro na doutrina. [...]. As liberdades (liberdade de expresso, liberdade de informao, liberdade de conscincia, religio e culto, liberdade de criao cultural, liberdade de associao) costumam ser caracterizadas como posies fundamentais subjectivas de natureza defensiva. Neste sentido, as liberdades identificam-se com direitos a aces negativas; seriam Abwehrrechte (direitos de defesa). Resulta logo do enunciado constitucional que, distinguindo-se entre 'direitos, liberdades e garantias', tem de haver algum trao especfico, tpico das posies subjectivas identificadas como liberdades. Esse trao especfico o da alternativa de comportamentos, ou seja, a possibilidade de escolha de um comportamento. Assim, como vimos, o direito vida um direito (de natureza defensiva perante o Estado) mas no uma liberdade (o titular no pode escolher entre 'viver ou morrer'). A componente negativa das liberdades constitui tambm uma dimenso fundamental (ex.: ter ou no ter religio, fazer ou no fazer parte de uma associao, escolher uma ou outra profisso)." (CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 3. ed., Coimbra: Almedina, 1999. p. 1181-1182.) 33 CAMPOS, Toms Cano. El rgimen jurdico-administrativo del trfico (Bases histricas y constitucionales, tcnicas de intervencin y sanciones). Madrid: Civitas Ediciones, 1999. p. 244. [...] la libertad de circulacin, la cual constituye la tpica libert daller et venir del constitucionalismo francs y consiste en la facultad del ciudadano de desplazar libremente en el espacio, de moverse
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Mas em que condio deve ser realizada a circulao de pessoas, veculos e animais, no
territrio nacional? E, ainda, at que limites devem ser toleradas ou reguladas as
alternativas de comportamentos adotadas durante o exerccio da liberdade de
circulao, diante da possibilidade de leso aos direitos fundamentais dos demais
concidados?
Para responder a esses questionamentos, os Constituintes tambm consagraram (de
forma bem menos explcita, verdade!), junto ao artigo 144 da Constituio da
Repblica, o dever de o Estado promover Segurana Pblica, para a preservao da
ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio de todos, inclusive dos
usurios das vias terrestres, no territrio nacional. O alcance (ou incidncia) desse dever
pode ser compreendido a partir da denominao atribuda ao Ttulo V, da Constituio
da Repblica (em que se situa o referido artigo 144): Da defesa do Estado e das
instituies democrticas. Desse modo, o dever de proporcionar Segurana Pblica
incide sobre todas as atividades realizadas no territrio nacional, inclusive sobre o
fenmeno trnsito. O conceito de Segurana no Trnsito desenvolvido por PILAR
GMES PAVON nos seguintes termos:
Podemos, en consecuencia, decir que la seguridad del trnsito es el conjunto de
condiciones garantizadas por el ordenamiento jurdico en su totalidad, para hacer que la
circulacin de vehculos de motor por las vas pblicas no presente riesgos superiores a
los permitidos.34
A distncia geogrfica entre esses dois conceitos (i.e., Liberdade de Circulao e
Segurana Pblica) tem dificultado a compreenso do Trnsito Seguro como um direito
fundamental, permitindo que as movimentaes individuais [sigam] sempre e
previsivelmente na direo de ignorar ou ultrapassar a regra em nome de alguma
singularidade, contexto ou circunstncia pessoal e conferindo s vias terrestres uma
imagem de terra de ningum.35 Exige-se do Estado, portanto, que o trnsito em
territrio nacional seja realizado em condies seguras.
2.2.1. NEM S DE LIBERDADES VIVE-SE NO TRNSITO!
personalmente de un lado para otro con cualquier medio de locomocin, de conformidad con las obligaciones, limitaciones y prohibiciones que, sobre la base de la Ley, puedan imponer las Administraciones Pblicas competentes en la materia. (CAMPOS, Toms Cano. El rgimen jurdico-administrativo del trfico, p. 243.) 34 PAVN, Pilar Gmez. El delito de conduccin bajo la influencia de bebidas alcohlicas, drogas txicas o estupefacientes. 2. ed., 2 reimpr., Barcelona: BOSCH, Casa Editorial, 1993. p. 95. 35 MATTA, Roberto da; et alli. F em Deus e p na tbua. p. 47.
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Ao classificar os direitos previstos pela Constituio, FLVIA PIOVESAN identifica
trs grupos distintos:
Prope-se, neste sentido, uma nova classificao dos direitos previstos pela
Constituio. Por ela, os direitos seriam organizados em trs grupos distintos: a) o dos
direitos expressos na Constituio (por exemplo, os direitos elencados pelo texto nos
incisos I a LXXVII do art. 5); b) o dos direitos expressos em tratados internacionais de
que o Brasil seja parte; e finalmente, c) o dos direitos implcitos (direitos que esto
subentendidos nas regras de garantias, bem como os direitos decorrentes do regime e
dos princpios adotados pela Constituio).36
O Trnsito Seguro (formado pela reunio da Liberdade de Circulao e pelo dever de o
Estado proporcionar Segurana Pblica, que atua como adjetivo37 a qualificar a forma
como nosso Estado Democrtico de Direito pretende que seja realizado o uso das vias
terrestres em territrio nacional) revela-se um Direito Fundamental Implcito,
decorrente do regime e dos princpios adotados pela Constituio.
A segurana indispensvel ao exerccio da Liberdade de Circulao em condies
seguras, denominada Segurana Viria por TOMS CANO CAMPOS,38 converte-se
em pilar fundamental da atividade reguladora do Estado, visando proteger a vida e a
integridade fsica dos cidados que fazem uso das vias terrestres. Esclarece o autor que:
El ejercicio de los derechos, entre ellos la libertad de circulacin, no puede poner en
peligro la seguridad y la libertad de los dems [...]. Por consiguiente, el derecho a
circular con vehculos a motor debe estar sometido a una serie de normas al objeto de
hacer posible un ejercicio seguro del mismo, de modo que la vida y la integridad fsica
del que lo ejerce y de los dems usuarios de las vas no sufra menoscabo alguno (art. 15
CE). La relevancia e importancia en el fenmeno de este derecho es fundamental [...].
Ello ha dado lugar a que la denominda seguridad vial, que en ltimo trmino no
persigue ms que la indemnidad de tales derechos, se erija en el objetivo prioritario y
esencial de la toda la normativa reguladora del trfico, desplazando incluso a un
segundo plano a la propia libertad de circulacin.39
36 PIOVESAN, Flvia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 6. ed., rev., ampl. e atual. So Paulo: Max Limonad, 2004. p. 81. 37 Adjetivos so palavras que expressam as qualidades ou caractersticas dos seres (CEGALLA, Domingos Pascoal. Novssima gramtica da lngua portuguesa. 46. ed. So Paulo: Cia. Editora Nacional, 2005. p. 159.) 38 La seguridad vial, no cabe la menor duda, es el pilar fundamental de la normativa reguladora del trfico, el objetivo preferente y prioritario de la intervencin pblica en el sector, pues es la vida y la integridad fsica de los ciudadanos lo que con ella se pretende tutelar. [] (CAMPOS, Toms Cano. El rgimen jurdico-administrativo del trfico, p. 276). 39 CAMPOS, Toms Cano. El rgimen jurdico-administrativo del trfico, p. 237-238.
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Trnsito, como se percebe, no constitui o exerccio de liberdades ou de direitos
individuais. A leitura atenta denominao atribuda pelo Legislador Constituinte ao
Captulo I, do Ttulo II, da Constituio da Repblica: Dos direitos e deveres
individuais e coletivos, associada ao dever de o Estado (ou seja, todos ns)
proporcionar Segurana Pblica aos que circulam em vias terrestres do territrio
nacional, confere a exata noo de Trnsito Seguro como dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos, como descrito no art. 144, CR/88. Exatamente nessa linha
de raciocnio, o legislador do Cdigo de Trnsito Brasileiro fez constar do art. 1, 2,
da Lei de Trnsito, a expressa referncia ao princpio do Trnsito em Condies
Seguras: O trnsito, em condies seguras, um direito de todos e dever dos rgos e
entidades componentes do Sistema Nacional de Trnsito, a estes cabendo, no mbito
das respectivas competncias, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.
Como se percebe, a redao conferida Lei de Trnsito foi tmida e poderia (na
verdade, deveria), com fundamento nas normas constitucionais (previstas no art. 5, inc.
XV, e no art. 144, da CR/88), ter afirmado o Trnsito Seguro como um conjunto de
deveres coletivos a todos imposto, pois, no moderno conceito de Estado,40 todos ns
integramos o elemento humano41 indispensvel a sua existncia.
A realizao do Trnsito Seguro, portanto, consiste em dever de todos e de cada um de
ns!
2.2.2. VISO INDIVIDUALISTA SOBRE O CONCEITO DE TRNSITO
A legislao de trnsito tambm vem colaborando para distorcer a imagem e dificultar a
compreenso do Trnsito Seguro, (i) ao apresentar (em seu artigo 1) um conceito
individualista e expropriatrio da utilizao das vias, e (ii) ao referir-se penalidade
imposta sobre a CNH (Carteira Nacional de Habilitao) como suspenso do direito de
dirigir (art. 256, inc. III, do CTB); quando, em verdade, tem-se a suspenso da licena
para dirigir, como sano administrativa que recai sobre um ato administrativo, e no
sobre um direito subjetivo individual e absoluto (como muitos ainda imaginam).
40 Segundo RGIS FERNANDES DE OLIVEIRA, Estado moderno, definido como a organizao juridicamente soberana da sociedade poltica, em um territrio delimitado. (OLIVEIRA, Rgis Fernandes de. Ato Administrativo. 4. ed. revista, atualizada e ampl., So Paulo: RT, 2001. p. 18.) 41 O Estado, como se nota, constitui-se de quatro elementos essenciais: um poder soberano de um povo situado num territrio com certas finalidades. E a Constituio, como dissemos antes, o conjunto de normas que organizam estes elementos constitutivos do Estado: povo, territrio, poder e fins. (SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed., So Paulo: Malheiros, 2002. p. 98.) DALMO DE ABREU DALLARI refere-se ao "povo" como o "elemento pessoal para a constituio e a existncia do Estado, uma vez que sem ele no possvel haver Estado e para ele que o Estado se forma." (DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 95.)
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O equivocado conceito de trnsito encontra-se inserto no art. 1, 1, do CTB:
Considera-se trnsito a utilizao das vias por pessoas, veculos e animais, isolados ou
em grupos, conduzidos ou no, para fins de circulao, parada, estacionamento e
operao de carga ou descarga.
O verbo utilizar, em uma viso individualista, pode ser compreendido como fazer uso
de, tirar utilidade de, ganhar, lucrar, servir-se; afastando-se dos conceitos solidrios de
tornar til, empregar com utilidade.42 Tem-se, ento, uma perigosa combinao de
liberdade individual, propriedade privada e o direito de servir-se das vias terrestres do
territrio nacional.
O Trnsito Seguro, como dever coletivo decorrente da necessidade de defesa do Estado
e das instituies democrticas43, impe uma nova forma de perceber e realizar a
circulao em vias terrestres. Essa nova filosofia consiste em mudana de atitude,
incorporando-se comportamentos mais seguros e comprometidos com este ideal.
Mudanas que no so impostas verticalmente, mas que passam a ser concretizadas com
a exteriorizao de novas condutas mais adequadas e seguras, de modo a incentivar os
demais, de forma horizontal. O trnsito em condies seguras no consiste em uma
filosofia vertical, imposta de soberano a sdito, mas de comportamentos de
concidados, como usurios das mesmas vias terrestres,44 compartilhando o mesmo
espao, em igualdade de condies e mediante respeito s normas gerais de circulao e
de segurana.
Da afirmar-se que o espao coletivo do Trnsito Seguro no pode ceder ao
individualismo, tampouco subordinar-se a direitos absolutos ou ao estilo aristocrtico-
fascista de dirigir. Ao Estado (todos ns) compete a busca do princpio da igualdade e
a realizao da segurana viria a favor de todos os usurios das vias terrestres.
2.2.3. CNH NO CONSTITUI UM DIREITO INDIVIDUAL
Como acima mencionado, a CNH (Carteira Nacional de Habilitao) no constitui um
direito subjetivo, e sim um ato administrativo favorvel, denominado licena, que ser
concedido a todo aquele que preencher os requisitos legais (art. 140, do CTB), realizar
com aproveitamento todas as etapas do procedimento de habilitao (previsto na
Resoluo n. 168, do Conselho Nacional de Trnsito, e suas alteraes) e submeter-se
42 FERREIRA, Aurlio B. H.. Dicionrio da Lngua Portuguesa. Verbete utilizar. 43 Denominao atribuda pelo Constituinte ao Ttulo V (art. 136 a 144), da Constituio da Repblica de 1988: "Ttulo V - Da Defesa do Estado e das instituies democrticas". 44 HONORATO, Cssio M. O Trnsito em condies seguras, p. 08.
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ao cumprimento das regras de circulao e de segurana (previstas na legislao de
trnsito).
Sobre as caractersticas da licena, leciona CELSO ANTONIO BANDEIRA DE
MELLO que constitui ato [administrativo] vinculado, unilateral, pelo qual a
Administrao faculta a algum o exerccio de uma atividade, uma vez demonstrado
pelo interessado o preenchimento dos requisitos legais exigidos.45
A denominao (ou rtulo) constante do art. 256, inc. III, do CTB (i.e., penalidade de
suspenso do direito de dirigir), constitui herana equivocada, pois advm
erroneamente do art. 96, da Lei n. 5.108/66 (que instituiu o 3 Cdigo Nacional de
Trnsito), ao referir-se penalidade decorrente da apreenso do documento de
habilitao. Entende-se que a expresso mais adequada, a designar essa penalidade
administrativa de trnsito, suspenso da licena para dirigir.46
Permitir que sejam associados os conceitos de propriedade privada, liberdades pblicas
e (a falsa noo de) direito de dirigir, constitui grave prejuzo segurana do trnsito e
incentivo ao individualismo.
2.2.4. NECESSIDADE DE NOVO TERMO TCNICO EM SUBSTITUIO A
ACIDENTE DE TRNSITO
Para arrematar essa perigosa combinao de conceitos equivocados e interpretados
exclusivamente luz das liberdades individuais, tem-se a nomenclatura empregada para
identificar os graves fatos que ocorrem diariamente nas vias terrestres, e que tem
violado os direitos fundamentais vida e felicidade de mais de 35.000 famlias
anualmente no territrio nacional: acidente de trnsito.
A substituio desse termo uma necessidade j reconhecida por estudiosos de
diferentes reas do conhecimento. Segundo esclio de HARTMUT GNTHER, a
caracterizao do evento como acidente, como acaso, como inevitvel, d margem a
desculpas e justificativas do tipo no sabia, no quis, foi o outro, algo que somente
aumenta os sofrimentos dos inocentes e alivia a conscincia daqueles que se
comportaram de maneira danosa.47 Ainda sob o aspecto psicolgico, MARIA
HELENA HOFFMANN sustenta que o acidente sempre esteve associado a uma
45 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. So Paulo: Malheiros, 2001. p. 391. 46 HONORATO, Cssio M. Sanes do Cdigo de Trnsito Brasileiro. Campinas: Millennium, 2004. p. 115. 47 GNTHER, Hartmut. Conscientizar versus punir: reflexes sobre o comportamento no trnsito. In: BIANCHI, Alessandra SantAnna (Org.). Humanidade e trnsito: desafios para um futuro sustentvel. Curitiba: Conselho Regional de Psicologia da 8. Regio, 2009. p. 24-25.
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imagem de azar, de gerao espontnea e impreviso implcitas na sua prpria
definio. [...]. Tanto o otimismo irrealista como a aceitao fatalista contribuem
perigosamente para que no adotemos os meios para evitar a probabilidade de nos
envolver num acidente.48
Ao discorrer sobre o equvoco da palavra acidente, a sugesto oferecida por ALBERI
ESPNDULA volta-se ao emprego da expresso ocorrncia de trnsito, para evitar
que preconceitos e julgamentos prvios dos peritos que, por vezes, so requisitos para
atender um acidente de trnsito que, na realidade, aps os peritos examinarem o local,
constataram que se tratava de um homicdio intencional e em outros um suicdio.
Assim, os peritos j adotam o procedimento de chegar num local de ocorrncia de
trnsito sem qualquer prejulgamento dos fatos.49
O termo acidente de trnsito, no obstante o fato de encontrar-se previsto em norma da
ABNT (NBR 10.697/89), precisa ser revisto e substitudo com urgncia, de modo a
afastar a falsa noo de mera fatalidade [...]; atribuindo-se conduta humana que gerou
o evento juridicamente relevante o devido grau de responsabilidade50, pois, como bem
observou GERALD WILDE, o termo acidente contm a noo de perdo.51
Desse modo, e na ausncia de denominao mais adequada, a doutrina defende o uso
das expresses evento culposo de trnsito e evento doloso no trnsito at que novos
conceitos sejam cientificamente desenvolvidos.52
A partir das consideraes acima realizadas j possvel perceber que o individualismo
imoderado das Declaraes do sculo XVIII ainda produz graves e negativos efeitos
sobre o fenmeno trnsito. Remover alguns desses preconceitos (em especial, o
conceito individualista de trnsito e a falsa noo da CNH como direito de dirigir) e
substituir a expresso acidente de trnsito constituem as primeiras aes a serem
desenvolvidas (durante a Dcada de Aes para a Segurana Viria) por aqueles que
compreendem o fenmeno trnsito como um conjunto de deveres coletivos, relacionado
aos Direitos Humanos de Segunda Dimenso.
48 HOFFMANN, Maria Helena; et alli. Comportamento humano no trnsito. 2. ed., So Paulo: Casa do Psiclogo, 2007. p. 380. 49 ESPNDULA, Alberi. Percia criminal e cvel: uma viso geral para peritos e usurios de percia. 2. ed. Campinas: Millennium, 2005. p. 149. 50 HONORATO, Cssio M. O trnsito em condies seguras, p. 09. 51 [...]. Somos de fato to acostumados a que o ambiente nos perdoe de uma maneira ou de outra, que quando a coliso acontece isto , propositadamente, chamado um acidente na linguagem cotidiana. (WILDE, Gerald J. S. O limite aceitvel de risco: uma nova psicologia de segurana e de sade: o que funciona? o que no funciona? e por que? Trad. Reinier J.A. Rozestraten. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2005. p. 239.) 52 HONORATO, Cssio M. O trnsito em condies seguras, p. 09.
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2.3. OS DIREITOS SOCIAIS (DE SEGUNDA DIMENSO) E OS DEVERES DO
ESTADO
A crise social instalada no incio do sculo XX exigiu profundas mudanas (econmicas
e sociais) e o reconhecimento de uma nova dimenso de Direitos Humanos (sem
excluso das Liberdades Pblicas j consagradas). Os Direitos Humanos de Segunda
Dimenso consistem em direitos com carter positivo, no sentido de exigirem efetiva
atuao dos Estados para a garantia da igualdade de todos perante a lei e a consolidao
do princpio democrtico.
Essa complexa transformao (do Estado Liberal ao Estado Social), dando origem ao
Estado Mximo, Social ou Intervencionista, foi percebida por PAULO BONAVIDES:
No liberalismo, o valor da liberdade [...] cinge-se exaltao do indivduo e de sua
personalidade, com a preconizada ausncia e desprezo da coao estatal. [...]. Mas como
a igualdade a que se arrima o liberalismo apenas formal, e encobre, na realidade, sob
seu manto de abstrao, um mundo de desigualdades de fato econmicas, sociais,
polticas e pessoais termina a apregoada liberdade do liberalismo [...] numa real
liberdade de oprimir os fracos, restando a esses, afinal de contas, to-somente a
liberdade de morrer de fome.53
O Estado Social (ou Intervencionista) instala-se em diversos pases, inclusive no Brasil
(com a Constituio de 1934),54 na primeira metade do sculo XX e busca consagrar
dois dos elementos essenciais da trade da Revoluo Francesa: a Liberdade e a
Igualdade, reunindo em nvel constitucional as Liberdades Pblicas (j consagradas na
Primeira Dimenso) e novos Direitos Sociais, que passaram a exigir aes de um
Estado que deixou a condio passiva (do laissez faire, laissez passer) e assumiu o
compromisso de realizar (de promover) aes visando a concretizao desses Direitos
Fundamentais.
Uma segunda espcie de Direitos do Homem passa, ento, a ser reconhecida,
consagrada em nvel constitucional, e requer uma interveno ativa do Estado, que no
requerida pela proteo dos direitos de liberdade, [...]. Enquanto os direitos de
liberdade nascem contra o superpoder do Estado e, portanto, com o objetivo de limitar o
poder, os direitos sociais exigem, para sua realizao prtica, [...], precisamente o
53 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. Rio de Janeiro: FGV, 1972. p. 31. 54 JOS AFONSO DA SILVA, ao discorrer sobre A Constituio de 1934 e a ordem econmica e social, ressaltou que Ao lado da clssica declarao de direitos e garantias individuais, inscreveu um ttulo sobre a ordem econmica e social e outro sobre a famlia, a educao e a cultura, com normas quase todas programticas, sob a influncia da Constituio alem de Weimar. Regulou os problemas da segurana nacional e estatuiu princpios sobre o funcionalismo pblico (arts. 159-172). Fora, por fim, um documento de compromisso entre o liberalismo e o intervencionismo. (SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed., So Paulo: Malheiros, 2002. p. 82)
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contrrio, isto , a ampliao dos poderes do Estado.55 Fala-se, ento, em Estado
Mximo ou Intervencionista, em que a dignidade da pessoa humana simultaneamente
limite e tarefa dos poderes estatais56. Para PAULO BONAVIDES, um Estado somente
poder ser reconhecido como Estado Social:
Quando o Estado, coagido pela presso das massas, pelas reivindicaes que a
impacincia do quarto estado faz ao poder poltico, confere, no Estado constitucional ou
fora dele, os direitos do trabalho, da previdncia, da educao, intervm na economia
como distribuidor, dita o salrio, manipula moeda, regula os preos, combate o
desemprego, protege os enfermos, d ao trabalhador e ao burocrata a casa prpria,
financia as exportaes, concede crdito, institui comisses de abastecimento, prov
necessidades individuais, enfrenta crises econmicas, coloca na sociedade todas as
classes na mais estreita dependncia de seu poderio econmico, poltico e social, em
suma, estende sua influncia a quase todos os domnios que dantes pertenciam, em
grande parte, rea da iniciativa individual, nesse instante o Estado pode com justia
receber a denominao de Estado social.57
Junto ao art. 6 da Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 1988, so
relacionados os seguintes direitos sociais: educao, sade, trabalho, moradia, lazer,
segurana, previdncia social, proteo maternidade e infncia, assistncia aos
desamparados. Nessa nobre relao de Direitos Fundamentais a serem defendidos e
buscados (perseguidos diuturnamente, poderia dizer!) faz-se necessrio destacar o
Direito Segurana que, em relao utilizao das vias terrestres do territrio
nacional, converte-se em Trnsito Seguro, como dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos.
2.3.1. O TRNSITO SEGURO COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL
Se de fato somos um Estado Democrtico de Direito que tem por fundamento a
dignidade da pessoa humana (como afirmado no art. 1, inc. III, da Constituio da
Repblica de 1988), o fenmeno trnsito no pode ser visto apenas como o exerccio de
liberdades individuais, pois onde no houver respeito pela vida e pela integridade fsica
e moral do ser humano, [...] no haver espao para a dignidade da pessoa humana58.
55 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 72. 56 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988, p. 47. 57 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 208. 58 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988, p. 61.
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No Estado de Direito democrtico, portanto, no basta a Liberdade de Circulao, faz-se
necessrio que o trnsito seja realizado em condies seguras, mediante sujeio de
todos s normas de circulao e de segurana (previstas no Captulo III e seguintes, do
CTB).
Por se tratar de Direito Fundamental de Segunda Dimenso, o Trnsito Seguro exige
que o Estado (por meio dos representantes legislativos) crie normas reguladoras do uso
das vias terrestres, visando tornar til e empregar com utilidade esse espao
coletivo; exige que o Estado (por meio dos rgos e entidades do Sistema Nacional de
Trnsito) fiscalize e faa cumprir a legislao de trnsito; e exige do Estado (de cada um
de ns) o fiel cumprimento das normas de circulao e de segurana no trnsito.
Eis os papeis do Estado Social (e Intervencionista) para a realizao do Trnsito Seguro:
regulamentar o uso das vias, realizar diuturnamente o policiamento ostensivo e a
fiscalizao do cumprimento das normas, e promover aes visando proteger todos os
Direitos Humanos relacionados ao fenmeno trnsito.
2.3.2. DIREITO OU GARANTIA CONSTITUCIONAL?
A utilizao das vias terrestres envolve uma srie de direitos fundamentais, em que se
destacam a vida, a integridade fsica, a propriedade, bem como a Liberdade de
Circulao.
Para assegurar o uso social dessas vias (no sentido de "tornar til e empregar com
utilidade" o espao coletivo), bem como conferir segurana aos direitos fundamentais
que ficam expostos a perigo de dano no exerccio dessa atividade, surge o Trnsito
Seguro como instrumento de defesa desses direitos e liberdades. Segundo PILAR
GMEZ PAVN, indudablemente, la razn para proteger la seguridad del trnsito es,
en ltimo trmino, la proteccin de la vida, integridad corporal, y bienes tanto
particulares como comunitarios que puedan verse daados.59
A distino entre aqueles institutos (i.e., direitos e garantias) foi realizada por RUI
BARBOSA, ao afirmar que se encontram [...], no texto da lei fundamental, as
disposies meramente declaratrias, que so as que imprimem existncia legal aos
direitos reconhecidos, e as disposies assecuratrias, que so as que, em defesa dos
59 PAVN, Pilar Gmez. El delito de conduccin bajo la influencia de bebidas alcohlicas, drogas txicas o estupefacientes, p. 90.
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direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias.60
Acrescenta, ainda, que as garantias constitucionais:
[...] so formalidades prescritas pelas Constituies, para abrigarem dos abusos do
poder e das violaes possveis de seus concidados os direitos constitutivos da
personalidade individual, e direitos, quer individuais, quer sociais, quer polticos, que
no so formalidades prescritas por Constituies, mas atributos da natureza humana,
que adquirem um carter tico na vida superorgnica, sem os quais a sociedade
impossvel [...].61
As garantias constitucionais, portanto, "asseguram ao indivduo a possibilidade de
exigir dos Poderes Pblicos o respeito ao direito que instrumentalizam".62
Dessas lies, torna-se fcil compreender que o Trnsito Seguro (como Direito
Fundamental de Segunda Dimenso, implcito e decorrente da liberdade inserta no art.
5, inc. XV, e do dever imposto nos artigos 6 e 144, da Constituio da Repblica)
assume a caracterstica de garantia constitucional, atuando como sistema de segurana63
e de defesa dos direitos fundamentais (i.e., vida, integridade fsica e propriedade) que
ficam expostos a perigo de dano durante a utilizao das vias terrestres.
A partir desse dever de o Estado criar e estruturar disposies assecuratrias dos
direitos relacionados ao uso (social e til) das vias terrestres, cumpre legislao de
trnsito estabelecer um conjunto de normas (denominadas regras gerais de circulao e
de segurana no trnsito) e cominar sanes a seus violadores, para evitar excessos e
"assegurar aos demais membros da sociedade a fruio desses mesmos direitos".64
O Trnsito Seguro consiste em garantia constitucional, cuja finalidade assegurar o
direito vida e incolumidade fsica de todos os usurios das vias terrestres.
2.3.3. O CONCEITO SOCIAL DE TRNSITO
O trnsito, quando realizado por concidados em um Estado Democrtico de Direito,
no pode ser conceituado (ou visto) como o uso individual do espao coletivo.
60 BARBOSA, Rui. Repblica: teoria e prtica: textos doutrinrios sobre direitos humanos e polticos consagrados na Primeira Constituio da Repblica. Seleo e coordenao de Hildon Rocha. Petrpolis: Vozes; Braslia: Cmara dos Deputados, 1978. p. 124. 61 BARBOSA, Rui. Repblica: teoria e prtica, p. 123. 62 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocncia Mrtires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 258. 63 Garantia, ou segurana de um direito, o requisito de legalidade, que o defende contra a ameaa de certas classes de atentados, de ocorrncia mais ou menos fcil. (BARBOSA, Rui. Repblica: teoria e prtica, p. 123.) 64 Texto extrado do artigo 4, da Declarao de Direitos do Homem e do Cidado, de 1789. Confira a redao do artigo junto ao item 2.1., supra.
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Constitui, em verdade, o empregar com utilidade as vias terrestres de todo o territrio
nacional, de modo a torn-las teis e seguras a todos.
Desse modo, dever-se-ia considerar trnsito a utilizao social e coletiva das vias
terrestres, por pessoas, veculos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou no,
para fins de circulao, parada ou estacionamento, mediante fiel cumprimento das
normas gerais de circulao, garantindo-se segurana a todos e respeito vida.
2.3.4. INFLUNCIA DOS DIREITOS SOCIAIS SOBRE O FENMENO TRNSITO
A afirmao, em texto de lei (art. 1, 2, do CTB), da existncia de uma nova filosofia
no trato dirio do trnsito constitui prova incontestvel da influncia dos Direitos
Sociais sobre nosso Estado e da necessidade de promover-se o Trnsito Seguro. Sobre a
filosofia do Trnsito em Condies Seguras destaca-se:
Mencionamos na introduo a necessidade de implantar uma nova filosofia no trato
dirio do trnsito. Mas, em que consiste esta filosofia do trnsito em condies seguras?
Para os catequizados, a nova filosofia consiste na manuteno (ou na renovao) da f.
A f aqui revelada pelo princpio da confiana (ou princpio da boa f), ou seja, na
certeza que fao a minha parte e acredito que os demais tambm cumpriro seus
deveres. Exemplo ilustrativo encontra-se no sinal luminoso de parada obrigatria
(conhecido como sinal, semforo, farol ou sinaleira): seguimos quando vemos a cor
verde porque acreditamos que os demais obedecero ao comando expresso em um
pedao de vidro de cor vermelha. Para os demais usurios das vias terrestres (ainda no
humanizados), a nova filosofia consiste em mudana de atitude, incorporando-se
comportamentos mais seguros e comprometidos com este ideal. Mudanas que no so
impostas verticalmente, mas que passam a ser concretizadas com a exteriorizao de
novas condutas mais adequadas e seguras, de modo a incentivar os demais, de forma
horizontal. O trnsito em condies seguras no consiste em uma filosofia vertical,
imposta de soberano a sdito, mas de comportamentos de concidados, como usurios
das mesmas vias terrestres.65
Exemplo marcante dessa influncia pode ser observado na forma de compreender
alguns institutos relacionados ao trnsito, em especial a licena para dirigir (CNH) e a
natureza jurdica das sanes que recaem sobre esse ato administrativo favorvel:
suspenso e cassao da licena para dirigir.
Todo aquele que, ao final do procedimento de habilitao, conquista a licena para
dirigir (como espcie de ato administrativo denominado licena), submete-se (como
65 HONORATO, Cssio M. O trnsito em condies seguras, p. 07-08.
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conditio sine qua non) ao cumprimento das normas previstas na legislao de trnsito.
Segundo leciona MARCELO CAETANO, o efeito mais importante da concesso de
licena consiste em colocar aquele que dela [se] beneficia, ou o local licenciado, sob a
vigilncia especial da polcia.66 Desse modo, esclarece a melhor doutrina que:
"Obtida a licena para dirigir, o interessado que cumpriu os requisitos legais torna-se
portador de um privilgio, e como tal passa a exercer uma atividade controlada pelo
poder de polcia; sujeitando-se a determinadas regras e condies para que possa
conduzir veculo automotor em via terrestre. No cumpridas essas condies impostas,
a licena poder ser suspensa ou cassada, sem que se fale em pena restritiva de direito;
mas to-somente em retirada de um ato administrativo."67
O concidado que desejar fazer uso do espao coletivo do trnsito precisar reconhecer
limites a sua liberdade de circulao, sob pena de violar as regras de segurana
(sujeitando-se a sanes) e expor a perigo os direitos fundamentais dos demais
cidados.
2.3.5. A CONTROVERTIDA INTERPRETAO DAS NORMAS SOBRE
EMBRIAGUEZ AO VOLANTE
Questo preocupante, na atualidade jurdica, volta-se interpretao das normas
relacionadas embriaguez ao volante, em especial o tipo penal descrito no art. 306 e a
norma inserta no art. 277, 3 do CTB (que foi acrescida pela Lei n. 11.705/08,
conhecida como "Lei Seca"): 3. Sero aplicadas as penalidades e medidas
administrativas estabelecidas no art. 165 deste Cdigo ao condutor que se recusar a se
submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.
Duas orientaes doutrinrias distintas foram estruturadas nos anos de 2008 e 2009,
gerando duas correntes jurisprudenciais opostas nos tribunais jurisdicionais, com
destaque para as decises da 5 e da 6 Turmas do Superior Tribunal de Justia (STJ).
A primeira orientao doutrinria foi exposta por LUIZ FLVIO GOMES, defendendo
a inconstitucionalidade da norma constante do art. 277, 3, e a inexistncia de Crime de
Embriaguez ao Volante na hiptese de o condutor recusar-se realizao dos exames de
alcoolemia (ou seja, exames laboratoriais, como o de sangue ou urina, e o exame de ar
alveolar, em etilmetros), com fundamento no art. 8, item 2, alnea g, da Conveno
Americana sobre Direitos Humanos (aprovada na Conferncia de So Jos da Costa
Rica, em 22.11.1969): 66 CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. 10. ed., 6. reimp., Coimbra: Almedina, 1997/1999. vol. II, p. 1168. 67 HONORATO, Cssio M. O trnsito em condies seguras, p. 117.
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Em matria de prova da embriaguez h, de qualquer modo, uma premissa bsica a ser
observada: ningum est obrigado a fazer prova contra si mesmo (direito de no auto-
incriminao, que vem previsto de forma expressa no art. 8 da Conveno Americana
sobre Direitos Humanos, que possui valor constitucional [...]. O sujeito no est
obrigado a ceder seu corpo ou parte dele para fazer prova (contra ele mesmo). Em
outras palavras: no est obrigado a ceder sangue, no est obrigado a soprar o
bafmetro (porque essas duas provas envolvem o corpo humano do suspeito e porque
exigem dele uma postura ativa). Havendo recusa, resta o exame clnico (que feito
geralmente nos Institutos Mdico-Legais) ou a prova testemunhal. [...]. Concluso: o
3 que estamos comentando s tem pertinncia em relao ao exame clnico. A recusa
ao exame de sangue e ao bafmetro no est sujeita a nenhuma sano. Quando algum
exercita um direito (direito de no auto-incriminao) no pode sofrer qualquer tipo de
sano. O que est autorizado por uma norma no pode estar proibido por outra. [...]. A
lei nova inconstitucional (como alguns juzes esto reconhecendo, em suas liminares)?
Em parte sim, em parte no. Quando ela pune o motorista (embora com penas
administrativas) por recusar o exame de sangue ou o bafmetro, sim (
inconstitucional). Por qu? Porque todos os cidados brasileiros, por fora do art. 8 da
Conveno Americana sobre Direitos Humanos, no so obrigados a se auto-incriminar,
ou seja, no so obrigados a ceder seu corpo ou parte dele (ainda que seja um s sopro)
para fazer prova contra eles mesmos. Bafmetro (que exige participao ativa do
suspeito e interveno do seu corpo) no a mesma coisa que mostrar a carteira de
habilitao.68
Essa orientao chegou, no segundo semestre de 2008, ao Superior Tribunal de Justia e
conduziu a 6 Turma de Ministros julgadores a adotar uma viso individualista do
fenmeno trnsito (focando exclusivamente as Liberdades Pblicas), culminando por
afirmar que "a figura tpica s se perfaz com a quantificao objetiva da concentrao
de lcool no sangue o que no se pode presumir". Destaca-se a Deciso:
"HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AO PENAL. EMBRIAGUEZ AO
VOLANTE. AUSNCIA DE EXAME DE ALCOOLEMIA. AFERIO DA
DOSAGEM QUE DEVE SER SUPERIOR A 6 (SEIS) DECIGRAMAS.
NECESSIDADE. ELEMENTAR DO TIPO. 1. Antes da edio da Lei n 11.705/08
bastava, para a configurao do delito de embriaguez ao volante, que o agente, sob a
influncia de lcool, expusesse a dano potencial a incolumidade de outrem. 2.
68 GOMES, Luiz Flvio. Lei seca: acertos, equvocos, abusos e impunidade. Disponvel em http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20080804114125256 (Acesso em: 14. Ago. 2008).
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Entretanto,com o advento da referida Lei, inseriu-se a quantidade mnima exigvel e
excluiu-se a necessidade de exposio de dano potencial, delimitando-se o meio de
prova admissvel, ou seja, a figura tpica s se perfaz com a quantificao objetiva da
concentrao de lcool no sangue o que no se pode presumir. A dosagem etlica,
portanto, passou a integrar o tipo penal que exige seja comprovadamente superior a 6
(seis) decigramas. 3. Essa comprovao, conforme o Decreto n 6.488 de 19.6.08 pode
ser feita por duas maneiras: exame de sangue ou teste em aparelho de ar alveolar
pulmonar (etilmetro), este ltimo tambm conhecido como bafmetro. 4. Cometeu-se
um equvoco na edio da Lei. Isso no pode, por certo, ensejar do magistrado a
correo das falhas estruturais com o objetivo de conferir-lhe efetividade. O Direito
Penal rege-se, antes de tudo, pela estrita legalidade e tipicidade. 5. Assim, para
comprovar a embriaguez, objetivamente delimitada pelo art. 306 do Cdigo de Trnsito
Brasileiro, indispensvel a prova tcnica consubstanciada no teste do bafmetro ou no
exame de sangue. 6. Ordem concedida."69
Interessante observar, desde logo, que na mesma Conveno de Direitos Humanos em
que foi destacado o direito de no auto-incriminao (previsto no art. 8, item 2., alnea
g, do Pacto de So Jos da Costa Rica), tambm se encontram previstas no artigo 32
duas normas revelando a impossibilidade de os direitos e as liberdades individuais
serem considerados valores absolutos; bem como a existncia de deveres sociais,
impostos a todos aqueles que convivem em um Estado Democrtico de Direito:
"Artigo 32. Correlao entre deveres e direitos. 1. Toda pessoa tem deveres para com a
famlia, a comunidade e a humanidade. 2. Os direitos de cada pessoa so limitados pelos
direitos dos demais, pela segurana de todos e pelas justas exigncias do bem comum,
em uma sociedade democrtica.70
Essa "correlao entre deveres e direitos" reconhece, mais uma vez, a existncia de
diferentes dimenses de Direitos Humanos e revela que, no espao coletivo do Trnsito
Seguro, o exerccio dos direitos e das liberdades individuais encontra-se regulamentado
pelo Estado por meio de normas que atuam como instrumento assecuratrio de padres
mnimos de segurana a todos no trnsito; ou seja, como garantia constitucional com o
fim de abrigar dos abusos do poder e das violaes possveis de seus concidados os
direitos constitutivos da personalidade individual71.
69 STJ. HABEAS CORPUS n. 166.377-SP (2010/0050942-8). Rel. Min. OG FERNANDES. Julgamento em 10.06.2010. Disponvel em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=10435711&sReg=201000509428&sData=20100701&sTipo=5&formato=PDF (Acesso em: 08.Maio.2011, s 11h08min). 70 PIOVESAN, Flvia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 442. 71 BARBOSA, Rui. Repblica: teoria e prtica, p. 123.
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Felizmente uma segunda orientao doutrinria foi defendida e divulgada ao incio do
ano de 2009, revelando a necessidade de harmonizao entre o exerccio de um direito
individual e o direito coletivo segurana do trnsito.72 A partir da natureza jurdica da
CNH e da ponderao entre as liberdades individuais e os deveres impostos ao Estado
(para garantir o Trnsito Seguro), restou consagrada a constitucionalidade da norma
inserta no artigo 277, 3, da Lei de Trnsito:
certo que aquele que exerce um direito fundamental (i.e., direito ao silncio e de no
produzir prova contra si mesmo), assegurado em Tratado Internacional e incorporado
por nosso Estado em nvel constitucional, no pode ficar sujeito a sanes de polcia ou
a penas de natureza criminal. Face a ausncia de ilicitude de sua conduta, no h que se
falar em crime de desobedincia (art. 330 do CP) ou em infrao administrativa (art.
195 do CTB). [...]. De outro lado, porm, o princpio do trnsito em condies seguras
(art. 1, 2 do CTB) e o dever de o Estado garantir a segurana pblica e preservar a
incolumidade das pessoas (art. 144, caput, CF/1988) exigem providncias, de modo a
evitar que os violadores das normas de circulao continuem a gerar perigo de dano aos
demais usurios da via terrestre. Nesse contexto de coliso (ou conflito) entre direitos
fundamentais individuais e direitos coletivos segurana e integridade fsica, que
merece ser pensada a constitucionalidade material da norma inserta no 3, do art. 277
do CTB, que possibilita Autoridade de Trnsito impor ao condutor que se recusar a
se submeter a qualquer dos exames de alcoolemia uma espcie de sano rescisria de
ato administrativo favorvel que recai sobre a licena para dirigir. Segundo JOS
CARLOS VIEIRA ANDRADE, haver coliso ou conflito [entre direitos ou entre
direitos e valores afirmados por normas ou princpios constitucionais] sempre que se
deva entender que a Constituio protege simultaneamente dois valores ou bens em
contradio concreta. Esse conflito, portanto, impe a ponderao de todos os valores
constitucionais aplicveis, para que se no ignore algum deles, para que a Constituio
(essa, sim) seja preservada na maior medida possvel.73 A ponderao desse conflito
entre direitos fundamentais (individuais e coletivos), associada natureza jurdica da
CNH e da sua eventual suspenso (como espcie de sano rescisria de ato
administrativo favorvel), conduz afirmao da constitucionalidade da penalidade de
suspenso da licena para dirigir, cominada junto ao art. 277, 3, do Cdigo de
Trnsito Brasileiro. [...]. A recusa realizao dos exames de alcoolemia precisa ser
72 HONORATO, Cssio M. Dois crimes de embriaguez ao volante e as alteraes introduzidas pela Lei 11.705/2008. RT 880, ano 98, fev. 2009. p. 348. 73 ANDRADE, Jos Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituio Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1987. p. 220 e 222.
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interpretada luz dos princpios constitucionais de garantia, evitando-se prises ilegais
e, ao mesmo tempo, proporcionando eficcia aos atos regra que integram a legislao
de trnsito. Revelada a natureza jurdica da Carteira Nacional de Habilitao (como
espcie de licena), e sendo possvel a suspenso ou a retirada desse ato administrativo
(desde que observados os princpios constitucionais, em especial o da legalidade e do
devido processo legal), pode-se afirmar que a norma inserta no 3, do art. 277 da Lei
de Trnsito, materialmente constitucional; encontrando-se cominada na legislao
ptria mais uma hiptese de suspenso da licena para dirigir74.75
Do mesmo modo, uma nova orientao jurisprudencial floresceu junto aos Ministros
que integram a 5 Turma do STJ, culminando por afirmar a "desnecessidade de
realizao de exame especfico para aferio do teor do lcool no sangue se de outra
forma se puder comprovar a embriaguez". Destacam-se nesse sentido:
"RECURSO ORDINRIO EM HABEAS CORPUS. TIPICIDADE. CRIME DE
TRNSITO. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ART. 306 DA LEI 9.507/97. RECUSA
AO EXAME DE ALCOOLEMIA. INVIABILIDADE DA PRETENSO DE
TRANCAMENTO DA AO PENAL PELA AUSNCIA DE COMPROVAO DE
QUE PREENCHIDO ELEMENTO OBJETIVO DO TIPO - CONCENTRAO DE
LCOOL DO SANGUE. DESNECESSIDADE DE REALIZAO DE EXAME
ESPECFICO PARA AFERIO DO TEOR DE LCOOL NO SANGUE SE DE
OUTRA FORMA SE PUDER COMPROVAR A EMBRIAGUEZ. ESTADO ETLICO
EVIDENTE. PARECER MINISTERIAL PELO DESPROVIMENTO DO RECURSO.
RECURSO DESPROVIDO. 1. [...]. 2. A ausncia de realizao de exame de alcoolemia
no induz atipicidade do fato pelo no preenchimento de elemento objetivo do tipo
(art. 306 da Lei 9.503/97), se de outra forma se puder comprovar a embriaguez do
condutor de veculo automotor. Precedentes. 3. A prova da embriaguez ao volante deve
ser feita, preferencialmente, por meio de percia (teste de alcoolemia ou de sangue), mas
esta pode ser suprida (se impossvel de ser realizada no momento ou em vista da recusa
do cidado), pelo exame clnico e, mesmo, pela prova testemunhal, esta, em casos
excepcionais, por exemplo, quando o estado etlico evidente e a prpria conduta na
direo do veculo demonstra o perigo potencial a incolumidade pblica, como ocorreu
no caso concreto. 4. Recurso desprovido, em consonncia com o parecer ministerial."76
74 Em relao s demais hipteses de imposio da penalidade de Suspenso da Licena para Dirigir, confira HONORATO, Cssio M. Sanes do Cdigo de Trnsito Brasileiro, p. 126-132. 75 HONORATO, Cssio M. Dois crimes de embriaguez ao volante e as alteraes introduzidas pela Lei 11.705/2008. RT 880, ano 98, fev. 2009. p. 350-352. 76 STJ. RHC n. 26.432/MT. 5 Turma. Rel. Min. NAPOLEO NUNES MAIA FILHO. Julgamento em 19.11.2009. Disponvel em:
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"HABEAS CORPUS. ART. 306, DO CDIGO DE TRNSITO BRASILEIRO. [...]. 1.
Segundo o art. 306 do Cdigo de Trnsito Brasileiro, configura-se o crime de
embriaguez ao volante ou de conduo de veculo automotor sob a influncia de lcool
ou substncia de efeitos anlogos se o motorista "[c]onduzir veculo automotor, na via
pblica, estando com concentrao de lcool por litro de sangue igual ou superior a 6
(seis) decigramas, ou sob a influncia de qualquer outra substncia psicoativa que
determine dependncia". 2. Demonstrado pelas competentes vias administrativas que a
concentrao alcolica no sangue do condutor de veculo automotor superior quela
que a lei probe, resta configurado o crime de embriaguez ao volante, o qual, segundo a
melhor jurisprudncia, crime de perigo abstrato, "cujo objeto jurdico tutelado a
incolumidade pblica, e o sujeito passivo, a coletividade." (STF, RHC 82.517/CE, 1.
Turma, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ de 21/02/2003). 3. A prova da embriaguez ao
volante deve ser feita, preferencialmente, por meio de percia (teste de alcoolemia ou de
sangue), mas esta pode ser suprida (se impossvel de ser realizada no momento ou em
vista da recusa do cidado), pelo exame clnico e, mesmo, pela prova testemunhal, esta,
em casos excepcionais, por exemplo, quando o estado etlico evidente e a prpria
conduta na direo do veculo demonstra o perigo potencial a incolumidade pblica,
como ocorreu no caso concreto." (STJ, RHC 26.432/MT, 5. Turma, Rel. Min.
NAPOLEO NUNES MAIA FILHO, DJe de 22/02/2010). Ainda que assim no o
fosse, h notcias nos autos de que o Paciente submeteu-se a exame de sangue, cujo
resultado no h como se inferir dos documentos juntados aos autos pela Defesa. 4. O
delito de conduo de veculo automotor sob a influncia de lcool ou substncia de
efeitos anlogos de ao penal pblica incondicionada, independente, portanto, de
representao das vtimas. Impropriedade da alegao de decadncia."77
O momento atual (ao incio da Dcada de Aes para a Segurana Viria) de grande
expectativa, pois h duas correntes doutrinrias distintas e duas orientaes
jurisprudenciais (opostas) em relao ao tipo penal descrito no art. 306 do CTB;78 e
muito tem-se trabalhado para revelar a existncia de dois Crimes de Embriaguez ao
https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=7095544&sReg=200901313757&sData=20100222&sTipo=5&formato=PDF (Acesso em: 08.Maio.2011, s 10h16min). 77 STJ. HABEAS CORPUS n. 117.230 - RS (2008/0217862-4). Rel. Min. LAURITA VAZ. Julgamento em 23.11.2010. Disponvel em: https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=13040874&sReg=200802178624&sData=20101213&sTipo=5&formato=PDF (Acesso em: 08.Maio.2011, s 09h53min). 78 CTB. Art. 306. Conduzir veculo automotor, na via pblica, estando com concentrao de lcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influncia de qualquer outra substncia psicoativa que determine dependncia. (Dispositivo com redao alterada pela Lei n. 11.705/08.)
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Volante: (i) por excesso de alcoolemia e (ii) por dirigir sob influncia de qualquer
substncia psicoativa, inclusive o lcool. Para tanto, destaca-se na melhor doutrina:
No h que se falar, portanto, em anistia ou abolitio criminis em relao aos Crimes de
Embriaguez ao Volante, pois a norma penal incriminadora anteriormente prevista no
artigo 306, do CTB, continua vigendo na segunda parte do atual dispositivo. A Lei n.
11.705/08, seguindo as finalidades expressamente declaradas em seu artigo 1, inovou a
legislao de trnsito, ampliando a norma penal previamente descrita no art. 306, de
modo a estabelecer alcoolemia zero e impor penalidades mais severas para o condutor
que dirigir (i) com excesso de alcoolemia, ou (ii) sob influncia de qualquer substncia
psicoativa (inclusive o lcool). Realizados os exames de alcoolemia, e restando
comprovada TAS [Taxa de lcool no Sangue] igual ou superior a 6 decigramas de
lcool por litro de sangue, o autor do fato ser denunciado e processado pela norma
penal incriminadora descrita na primeira parte do artigo 306 do CTB. Caso no sejam
realizados os exames de alcoolemia, mas havendo outros meios que comprovem que o
condutor do veculo encontrava-se sob a influncia de lcool ou qualquer outra
substncia psicoativa (e gerando perigo de dano aos demais usurios da via terrestre
[...]), a denncia poder ser oferecida com fundamento na norma descrita na parte final
do artigo 306, pois o lcool tambm constitui substncia psicoativa que determina
dependncia.79
Roga-se que o individualismo (sobre o qual se edificou a primeira orientao)
desacelere em favor da segurana viria e d preferncia orientao que privilegia o
aspecto coletivo do trnsito em condies seguras.
A interpretao das normas de trnsito no pode ser realizada exclusivamente sobre o
aspecto individual das Liberdades Pblicas (ou Direitos de Primeira Dimenso). Faz-se
necessrio que o Estado, por meio de todos os rgos e instituies democrticas (aqui
includos o Poder Judicirio e o Ministrio Pblico), promova segurana viria, na
forma dos artigos 6 e 144 da Constituio da Repblica.
Revelar ao Judicirio e s funes essenciais Justia80 seu papel de Enforcement para a
realizao do Trnsito Seguro tambm constitui desafio e misso a ser desempenhada
durante a Dcada de Aes para a Segurana Viria.
2.4. OUTRAS DIMENSES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS 79 HONORATO, Cssio M. Dois crimes de embriaguez ao volante e as alteraes introduzidas pela Lei 11.705/2008. RT 880, ano 98, fev. 2009. p. 361-362. 80 No interior do Captulo IV, do Ttulo IV da CR/88, sob a denominao Funes Essenciais Justia, destacam-se o Ministrio Pblico (art. 127 a 130), a Advocacia Pblica (art. 131 e 132), a Advocacia (art. 133) e a Defensoria Pblica (art. 134).
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Os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, inicialmente defendidos pela Grande
Revoluo francesa de 1789, somente foram reunidos e concretizados a partir da
Declarao Universal de Direitos do Homem, aprovada pela Assemblia Geral da ONU,
em 10 de dezembro de 1948. Destaca-se em seu artigo inaugural: Artigo I. Todos os
homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. So dotados de razo e
conscincia e devem agir em relao uns aos outros com esprito de fraternidade.81
Em defesa da solidariedade e da fraternidade, surge uma nova dimenso de Direitos
Humanos voltada realizao do direito paz, autodeterminao dos povos e defesa
de interesses coletivos e difusos, como a preservao do meio ambiente. Sobre essa
Terceira Dimenso de Direitos Fundamentais, destaca-se a lio de INGO W. SARLET:
Os direitos fundamentais da terceira dimenso, tambm denominados de direitos de
fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem,
em princpio, da figura do homem-indivduo como seu titular, destinando-se proteo
de grupos humanos (famlia, povo, nao), e caracterizando-se, conseqentemente,
como direitos de titularidade coletiva ou difusa. [...]. Dentre os direitos fundamentais da
terceira dimenso consensualmente mais citados, cumpre referir os direitos paz,
autodeterminao dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de
vida, bem como conservao e utilizao do patrimnio histrico e cultural e o direito
de comunicao. [...].82
Os direitos fundamentais vida e integridade fsica no so os nicos Direitos
Humanos (relacionados ao fenmeno trnsito) a serem tutelados (e garantidos) pelo
Estado. Bem lembra TOMS CANO CAMPOS que a su lado, existen otros muchos,
que tambin es preciso salvaguardar y tutelar. En este sentido merecen una mencin
especial la proteccin del medio ambiente, la defensa del patrimonio histrico, los
intereses econmicos, etc. Se trata de bienes y derechos, tambin de rango
constitucional, que sufren una incidencia negativa como consecuencia del progresivo
incremento de la motorizacin y que la normativa reguladora del trfico no puede (o
debe) dejar de lado.83
Prova da influncia da Solidariedade (ou da Fraternidade), em busca do trnsito em
condies seguras, encontra-se na norma inserta no art. 29, 2, do Cdigo de Trnsito
Brasileiro, ao prescrever a responsabilidade de todos, uns pelos outros e, em especial,
pela segurana dos pedestres: 2. Respeitadas as normas de circulao e conduta
estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veculos de maior porte sero 81 COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos Direito Humanos, p. 232. 82 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais, p. 50-51. 83 CAMPOS, Toms Cano. El rgimen jurdico-administrativo del trfico, p. 238.
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sempre responsveis pela segurana dos menores, os motorizados pelos no
motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres.
A partir do direito paz, PAULO BONAVIDES sustenta que a democracia constitui
um direito de qualidade distinta84, afirmando tratar-se de um Direito Fundamental de
Quarta Dimenso que exige duas condies bsicas: primeiro uma f pertinaz nos seus
valores e, segundo, um contnuo exerccio 85. A democracia foi reconhecida pela ONU
(A/Res/60/1, par. 135)86 como valor universal, em 2005, e pela Constituio da
Repblica Federativa do Brasil, de 1988, como qualidade essencial a legitimar o Estado
Democrtico de Direito (princpio estruturante do Estado, na forma do art. 1, caput, da
CR/88), sobre o qual se desenvolve a frmula de Lincoln: governo do povo, pelo povo
e para o povo.87
Por fim, chegando nova fronteira dos direitos humanos, encontra-se a noo de
Biodireito, ou seja, a compreenso do fenmeno jurdico enquanto conhecimento
prtico visceralmente compromissado com a promoo da vida humana88. Na rea
mdica, a Quinta Dimenso de Direitos Fundamentais recebe a denominao de
Biotica e apresenta quatro princpios bsicos: beneficncia, no maleficncia,
autonomia e preservao da vida.89
As diferentes dimenses de Direitos Fundamentais acima destacadas constituem um
conjunto de direitos, liberdades e garantias (individuais, coletivos e difusos) inerentes e
indispensveis aos seres humanos, cuja finalidade a realizao da dignidade da pessoa
84 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed., 3. tirag. So Paulo: Malheiros, 2001. p. 349. 85 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, p. 193. 86 "Democracy. 135. We reaffirm that democracy is a universal value based on the freely expressed will of people to determine their own political, economic, social and cultural systems and their full participation in all aspects of their lives. We also reaffirm that while democracies share common features, there is no single model of democracy, that it does not belong to any country or region, and reaffirm the necessity of due respect for sovereignty and the right of self-determination. We stress that democracy, development and respect for all human rights and fundamental freedoms are interdependent and mutually reinforcing." (U.N./General Assembly. 2005 World Summit Outcome. Resolution n. 60/1, par. 135. September, 15th. 2005). Disponvel em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N05/487/60/PDF/N0548760.pdf (Acesso em: 12.Maio.2011, s 06h45min). 87 Em relao justificao do princpio democrtico e a frmula de Lincoln, confira CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio,p. 281-319. 88 PEREIRA E SILVA, Reinaldo. Biodireito: a nova fronteira dos direitos humanos. RT/Fasc. Civ., So Paulo, v. 816, out./2003. p. 70. Segundo o autor, constituem desafios ao Biodireito: a discriminao gentica e o direito de no saber; a possibilidade (ou no) de patentear seres vivos; o comrcio de rgos, tecidos e partes do corpo humano; o direito ao conhecimento da ascendncia biolgica, e a polmica questo da distansia (ou seja, ao de prolongar a agonia humana, adiando inutilmente a morte) frente ao direito de morrer com dignidade, dentre outros (Id., p. 71-90). 89 HIRSCHHEIMER, Mrio Roberto; CONSTANTIVO, Clvis Francisco. Direito de morrer em paz e com dignidade. Boletim IBCCrim, So Paulo, n. 172, na 14, mar. 2007. p. 09. O tema encontra-se previsto na Resoluo CFM n. 1805, de 09.11.2006. Disponvel em: http://www.huwc.ufc.br/arquivos/biblioteca_cientifica/1188236