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Luz, sombra e cor em
Perceval ou Le Roman du Graal,
de Chrétien de Troyes
Telmo Daniel Roseiro Rodrigues (nº 38303)
___________________________________________________
Literatura Francesa Medieval
Professora Doutora Ana Paiva Morais
Departamento de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas
Licenciatura em Línguas, Literaturas e Culturas
19/12/2013
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Índice
Introdução ....................................................................................................................... 3
Alguns conceitos iniciais sobre a temática da luz........................................................... 4
Estudo da presença da luz, sombra e cor em Perceval ou le Roman du Graal ............. 7
Conclusão ....................................................................................................................... 15
Bibliografia ..................................................................................................................... 16
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Introdução
Desde a Antiguidade, a temática da luz sempre foi alvo de fascínio por parte do
Homem, interferindo, como entidade física, nos seus rituais, mas também no seu
quotidiano. Em última instância, poder-se-á dizer que a luz faz parte da cultura do ser
humano, e, consequentemente, do seu pensamento.
Efetivamente, e apesar desse papel fulcral que a luz sempre desempenhou na
vivência do Homem, nem sempre foi interpretada da mesma forma em todas as
épocas históricas. Aceitamos com facilidade, e até porque parece ser um dado
adquirido, o facto de o estudo desta temática no Renascimento ter sido desenvolvido
de maneira distinta em relação, por exemplo, ao século XVIII, tal como neste século
terá também tido um tratamento diferente daquele que lhe é dado pela
contemporaneidade. O que poderá não nos parecer tão evidente é a evolução que a
interpretação dos fenómenos da luz, e concomitantemente, da sombra, sofreu em
cada época histórica.
Neste estudo pretende-se aprofundar o conhecimento sobre estas temáticas,
com relação a um período específico da História: A Idade Média. Sob que ponto de
vista era tido em conta o fenómeno da presença/ausência de luz? O que levou os
teóricos medievais, como Robert Grosseteste1 a postular nos seus ensaios e tratados,
princípios e ideias-chave relativas a esta questão? Eis algumas das questões que se
assumem como preâmbulo para a realização do presente trabalho de investigação, e
às quais se tentará dar resposta ao longo da execução do mesmo.
Contudo, e porque uma pesquisa sem a devida contextualização é suscetível de
colocar em risco a plena utilidade desta investigação, define-se como ponto de partida,
a obra Perceval ou le Roman du Graal, de Chrétien de Troyes, poeta francês que viveu
no século XII. Pretende-se ainda com este trabalho, de uma forma complementar ao
estudo da luz, uma vez que com este está inteiramente relacionado, averiguar e
compreender a simbologia da cor – conceito de extrema importância na Idade Média –
mediante a análise das passagens mais pertinentes da obra de Chrétien de Troyes em
relação a este aspeto.
1 Figura central do importante movimento intelectual da primeira metade do século XIII em Inglaterra,
por ter dado ênfase à matemática como ferramenta de estudo da natureza e defendido que a experimentação deveria ser usada para verificar as teorias a respeito da mesma.
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Alguns conceitos iniciais sobre a temática da luz
Durante a Idade Média, vários foram os teóricos que se dedicaram ao estudo do
tema da luz e sombra, contudo, um dos mais divulgados e representativos terá sido
Robert Grosseteste. A sua formação, que proveu a sua mente de conceitos
relacionados com as ciências físicas e naturais, permitiu que investigasse o tema de
uma forma mais aprofundada que a maioria dos seus contemporâneos, tendo
colocado a experimentação – ainda que, obviamente, de uma forma mais arcaica e
pouco desenvolvida em relação à actualidade – num patamar privilegiado do seu
processo de obtenção de conhecimento.
Este bispo inglês salientou o papel metafísico da luz não só como origem da
extensão de toda a ação causal, mas também de todo o movimento. Influenciado por
Santo Agostinho, e como religioso que era, Grosseteste concebeu Deus como fonte
primordial da Lux Suprema. Ao mesmo tempo, via na luz a capacidade de produção e
desenvolvimento do universo. Há, consequentemente, uma presença simultânea de
dois significados diferentes de luz em Grosseteste: o religioso e o científico.
O espaço é igualado à luz, tendo nesta consideração Grosseteste em mente a
«matéria-prima» postulada por Aristóteles. Assim, na sua obra De Luce, considera a luz
como «primeira forma material», sendo assim a origem da extensão e das dimensões
espaciais:
A primeira forma corporal, que alguns chamam corporeidade (corporeitatem), eu defendo ser a luz. Pois a luz (lux) por sua própria natureza difunde-se em todas as direções, pelo que de um ponto de luz, uma esfera de luz é instantaneamente gerada, desde que um corpo opaco não interfira. Corporeidade é o que necessariamente segue da extensão da matéria em três dimensões. (Grosseteste, 1942, p. 10)
Como matéria-prima, a luz é a entidade natural mais simples que existe. Não se
encontrando sujeita a impressões adicionais, é de natureza incorruptível e imutável,
isto é, perfeita. Assim, a essência da luz é a simplicidade que, por sua vez, segundo
Grosseteste, assegura a unidade do cosmos.
Esta simplicidade tem ainda consequências metodológicas. Para explicar a
origem do universo, Grosseteste considerou a hipótese que defendia ser a mais
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simples, estando essa hipótese também ligada à sua conceção de luz: a luz (ou lux
segundo o autor, num sentido mais amplo), que intrinsecamente está determinada a
seguir o caminho mínimo na sua propagação, devia ser considerada a causa geral e a
origem da multiplicidade de todos os fenómenos na natureza. É o princípio de unidade
e de perfeição, mas igualmente, de diferenciação e diversidade.
Grosseteste defende assim que a luz é a «forma de corporeidade». Mas o que
será isso?
De facto, quando observamos os fenómenos naturais, constatamos que os
seres materiais se encontram em contínua evolução, transformam-se, chegando
mesmo alguns a desaparecer. Segundo Aristóteles, essas mudanças explicam-se pela
presença de um princípio de indeterminação nas realidades naturais. Tal princípio de
indeterminação, vulgarmente chamado de «corporeidade» por Robert Grosseteste,
nada mais é que a «matéria-prima» anteriormente enunciada.
Todos os objetos possuem uma «forma» e uma «matéria», situando-se o
«princípio de corporeidade» entre estes dois conceitos. Por «forma», entendemos
uma identidade básica, um conjunto de propriedades estáveis. Já a matéria
corresponde a um princípio de mudança: a realidade em questão, adquirindo
dinamismo e volatilidade, pode transformar-se em outra, adquirir outras formas que
suplantam ou substituem as formas anteriores. Edgar de Bruyne, numa das suas obras
consagradas ao estudo deste tema, faz explicitamente referência a isso:
La lumière n’est pas forme pure, puisqu’elle est quelque chose de corporel ; elle n’est pas non plus la matière même, puisque la matière pure ne peut ni agir ni se multiplier à partir du néant. Elle est donc la forme fondamentale du corps comme tel, la détermination première qui à la matière première donne le mode d’être, le mode d’agir, propre au corps comme tel. (Bruyne, 1975, p. 20)
Várias foram as razões que levaram Grosseteste a postular que a forma de
corporeidade, por si anunciada, nada mais era que a luz. A primeira diz respeito ao
facto de essa forma de corporeidade dar dimensões à matéria-prima que em si mesma
é indeterminada a todos os níveis, não tendo qualquer propriedade definida no
espaço. A ação da luz, como forma de corporeidade, consiste em conferir extensão a
uma matéria-prima no espaço.
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Assim, constatando que a luz se encontra provida desta propriedade de se
difundir e propagar rapidamente em todo o espaço2 a partir de um ponto (fonte)
concluímos que a mesma se propaga instantaneamente, com um poder de difusão
infinito. Tal não implica que exista passagem sucessiva das partículas luminosas pelos
diferentes pontos da trajetória, mas como um processo que ocorre continuamente: as
partículas luminosas despoletam a ação de outras partículas luminosas contíguas, e
assim sucessivamente. A propagação da luz dá-se, segundo Grosseteste, através de
zonas concêntricas sucessivas. Segundo Saint Bonaventure3, difundindo-se
uniformemente, a luz forma uma esfera da qual o extremo é luminoso. Segundo este,
urge ainda a necessidade de distinguir entre dois conceitos: «lux» e «lumen»,
referindo-se a «lux» quando consideramos a luz em si, ou seja, como princípio de
corporeidade anteriormente referido, difundindo-se indefinidamente e capaz de
provocar a expansão de um ponto de matéria no espaço. Pelo contrário, deve fazer-se
referência a «lumen» num sentido mais estrito, naquele em que existe
necessariamente a formação de uma imensa zona luminosa. Em Le Roman du Graal, a
aparição do Graal, no episódio que relata a passagem de Perceval pelo castelo do Rei
Pescador, é um exemplo em que isso acontece.
2 A luz tem a propriedade, ao contrário do som, de se propagar no vazio. Por essa razão, os raios solares
e a energia emitida pelo Sol chegam à Terra, ao contrário do som, que não se propaga no vácuo. 3 Filósofo e teólogo escolástico medieval nascido no século XIII.
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Estudo da presença da luz, sombra e cor em Perceval ou le Roman du
Graal
Quando entramos no estudo da temática da luz, insurge-se um outro conceito,
não menos importante, e com ela inteiramente relacionado: a questão da beleza.
Em Études d’Esthétique Médiévale, temos :
«C’est donc vraiment la lumière qui est le principe de toute beauté», comme le dit Robert Grosseteste dans son Hexaëmeron (Lond. Bibl. Reg. 6. E.V., fol. 147 v.) : «La lumière est en tant que principe de couleur la beauté et l’ornement de tout visible». En tant que principe de couleur, dit-il ici : «et en tant que principe de proportion» ajoutera-t-il ailleurs. Mais si la lumière est la chose la plus belle, elle est aussi la chose la plus délectable et la meilleure dans ce monde corporel. (Bruyne, 1975, p. 23)
No primeiro episódio de Le Roman du Graal encontramos esta temática bem
presente, em relação à decisão de Perceval de sair de casa a fim de «voir les herseurs
qui lors semaient les avoines avec douze bœufs et six herses» (Troyes, c. 1180, p. 34-
35): na passagem «Ce fut au temps qu’arbres fleurissent, feuilles, bocages et près
verdissent et les oiseaux en leur latin doucement chantent au matin et tout être de
joie s’enflamme» (Troyes, c. 1180, p. 34), a primeira saída da personagem principal
deste locus amoenus – espaço de frequente aparição nas composições literárias da
Idade Média – acabaria por ser o acontecimento que, mais à frente, despoletaria a sua
saída definitiva de casa, abandonando a sua mãe e todos os que por ele tinham
afeição, em busca de um caminho que lhe permitisse alcançar o seu objetivo: tornar-se
cavaleiro. Parecem estar reunidas, no início da narrativa, todas as condições para que
se dê, efectivamente, um acontecimento marcante: as árvores florescem, os pássaros
cantam na parte da manhã, existe a presença do Sol, e consequentemente da sua luz.
O que, de facto, pode parecer curioso é que, não só nesta obra, mas em várias outras
desta época, a decisão que dá origem à ação é tomada no período matinal, em que o
sol nasce, e resplandecentemente, espalha a sua luz pelo cenário referenciado na
descrição.
Surgem-nos então, várias dicotomias associadas e esta temática: se por um lado
temos reunidos conceitos como «luz», «espírito», «bem» e «beleza», do outro lado
temos as «trevas», o «tenebroso», o «mal» e a «fealdade». Essa situação encontra-se
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claramente patenteada no episódio em que Perceval avista os cavaleiros do Rei Artur
na floresta.
Assim que estes vão ao seu enconto, Perceval fica maravilhado com o brilho e a
luminosidade das suas armaduras. Como se nunca tivesse visto entidade dotada de tão
grande beleza, acorre ao seu encontro:
Et voici qu’il entend venir cinq chevaliers armés, de toutes leurs armes parés. Menaient grand bruit les armes de ceux qui venaient, car souvent elles se heurtaient aux branches de chênes et des charmes. Tous les hauberts en frémissaient. Les lances aux écus se heurtaient. Sonnait le bois, sonnait le fer et des écus et des hauberts […] Mais quand ils sont à découvert, il voit les hauberts étincelants, les heaumes clair luisants et des lances et des écus, et l’or et l’azur et l’argent. Il s’en écrie, tout ébloui : «Ah, sire Dieu, pardon ! Ce sont des anges que je vois ici ! En vérité, oui, j’ai péché en croyant que c’était des diables ! Ma mère ne me trompait pas quand elle me disait que les anges sont les plus belles choses qui soient, excepté Dieu, plus beau que tous. Mais celui-ci que je vois bien, est si magnifique que ceux qui l’accompagnent sont dix fois moins beaux que lui ». (Troyes, c. 1180, pp. 35-36)
Mas será que, neste contexto, a luz apenas representa a bravura e o despontar
do impulso aventureiro que leva Perceval a um estado de estupefação? Dependendo
da perspectiva com que analisemos a situação, poderá assim não ser
obrigatoriamente. Se analisarmos o episódio do ponto de vista da mãe de Perceval, as
elações que tiramos podem ser bastante diferentes. É importante ter em conta que, tal
como é explicado na narrativa, a mãe de Perceval sempre fez tudo para o proteger,
afastando o seu filho dos combates e de uma realidade que apontasse para o facto de
num futuro poder vir a ser cavaleiro. Nada mais era que uma tentativa de evitar que
acontecesse o mesmo que acontecera com o pai de Perceval, que este nunca chegou a
conhecer. Ora, do ponto de vista desta personagem, a luz das armaduras dos
cavaleiros da floresta propicia o início de um volte-face na acção, uma espécie de
concretização de um destino pré-estabelecido que se começa a cumprir, apesar dos
seus esforços para o evitar.
A narrativa progride e outro dos episódios em que a temática da luz assume
grande importância é no episódio de la tente merveilleuse. A descrição da tenda é
peculiar: «La tente est, d’un côté, d’une étoffe vermeille, verte de l’autre bordée
d’orfroi. Au-dessus, à la pointe du mât, un aigle doré que frappent les rayons du soleil.
Toute la prairie est illuminée de sa splendeur». (Troyes, c. 1180, p. 45)
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A questão da luz neste episódio torna-se ainda mais complexa, porque para além
das várias referências à luminosidade, o que confere à tenda características de espaço
sagrado, existem ainda referências explícitas à sua cor (vermelha).
Sobre a relação da luz e da cor, Bruyne escreveu o seguinte:
Enfin, elle se dit «splendeur» ou «couleur» quand elle se heurte à un coups opaque qui la termine ou la réfléchit: toute couleur est plus ou moins resplendissante, toute splendeur est plus ou moins colorée. Mais au sens strict, la splendeur est attribuée surtout aux corps lumineux qui par elle deviennent visibles, la couleur rend perceptibles surtout les corps terrestres. (Bruyne, 1975, p. 27)
Segundo esta perspetiva, aferimos que a cor é uma característica dos corpos que
está dependente da luz para existir e ser tomada em conta, ou seja, a cor é produzida
graças ao reflexo da luz. Pela perspectiva neste excerto apresentada, é possível então
concluir que a cor não existe por si só em cada objecto, mas é o resultado do reflexo
da luz sobre o referido objeto. Partindo desse pressuposto, e tendo em conta que
existem imensas cores diferentes, tal significa que será a composição material exterior
de cada objeto que dará origem à sua cor.
No episódio da tente merveilleuse, o que poderá simbolizar a cor vermelha no
exterior da tenda?
O vermelho (vermeil) é uma cor que nos textos medievais, frequentemente
aparece associada ao branco. Neste tema encontramos presente a temática da beleza
feminina, e de certa forma, o amor cortês. A aparição desta cor é uma constante ao
longo da obra. Tornar-se-ia de tal forma extensa a análise pormenorizada de todos os
contextos em que o vermelho é referenciado que seria possível a elaboração de um
trabalho que remetesse especificamente para esse fim, contudo, tendo em conta a
diversidade de significados simbólicos que esta cor pode assumir, é importante
referenciar os mais significativos.
Apesar da subversão de valores nele presente, o episódio não deixa de ter
presente a temática do amor cortês pois apesar de Perceval ter obrigado a jovem a
beijá-lo, apenas o fez com o intuito de cumprir as ordens (ainda que mal interpretadas)
da sua mãe, que iam exactamente nesse sentido: mostrar cortesia para com todos
aqueles que no seu caminho se atravessassem. O vermelho no exterior da tenda acaba
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assim por ser uma premonição daquilo que viria a acontecer no seu interior, com a
donzela que lá dentro se encontrava.
A cor vermelha volta a aparecer referenciada mais à frente, no episódio de
Perceval e o Chevalier Vermeil. Neste episódio o vermelho aparece com outra
simbologia, diferente da do amor e sedução: «Il en sortit un chevalier très bien armé
tenant coupe d’or en main droite. De sa main gauche il tient la lance et les rênes et son
écu. Il porte armure vermeille qui lui sied bien». (Troyes, c. 1180, p. 50)
Jacques Ribard teorizou sobre a simbologia da cor na Idade Média, numa das
suas obras mais conhecidas sobre este tema: «Une nouvelle dimension du symbole se
dessine soudain […] le vermeil, le rouge, celui du sang répandu, se charge d’une
signification sacrificielle». (Ribard, 1984, p. 45)
Ribard descreve o vermelho em relação a outro episódio – episódio da lança que
sangra – mas com os dados que temos sobre a obra no seu todo, bem pelo que
conhecemos desse episódio, é possível chegar a esta conclusão por associação do
episódio no castelo do Roi Pêcheur ao do Chevalier Vermeil.
O Cavaleiro Vermelho tinha vestida a roupa que Perceval acabaria
posteriormente por vestir, pois a roupa (e o aspeto exterior, no geral) assume-se como
um importante requisito para a obtenção do título que Perceval almejava – ser
cavaleiro. Ora, como podia isso ser possível sem uma armadura adequada para o
efeito? Para Perceval, a luta com o Cavaleiro Vermelho constitui uma primeira fase do
seu percurso, em que este devia mostrar a capacidade de enfrentar outros cavaleiros.
Perceval sai vencedor devido à lança que faz penetrar no olho do seu oponente, sendo
o «sang répandu» (Ribard, 1984, p. 45), portanto, a consequência disso. Esta situação
mostra, de facto, a valentia do protagonista e a sua ambição de se tornar um cavaleiro
da corte de Artur.
Em relação à luz, verificamos também o brilhantismo com que a armadura do
cavaleiro é descrita, efeito que ocorre graças ao fenómeno de reflexão da luz, que
realçam a função deste importante objeto na obtenção de mérito e honra cavaleiresca.
Também em relação à cor vermelha o episódio do cavaleiro vermelho não é a
única referência nesta obra. Veja-se, por exemplo, o episódio de Blanchefleur:
Blanchefleur é um exemplo da presença da temática do amor cortês que se
encontra presente em toda a obra, mas ao contrário do episódio da tente merveilleuse,
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um amor consentido. Blanchefleur é uma donzela cuja beleza é passível de
confirmação através da leitura da sua descrição:
La demoiselle qui s’approchait était plus gracieuse, vive, élégante, qu’épervier ou papegai. Son manteau et son bliaut étaient de pourpre sombre, étoile de vair, garni d’hermine […] avec un beau collet de martre zibeline noire et blanche. Si j’ai déjà décrit la beauté que Dieu peut mettre en un corps ou en un visage de femme, je veux le faire une autre fois sans mentir d’une seule parole. On eût cru ses cheveux d’or fin, qui flottaient sur ses épaules tant ils étaient blonds et luisants. Son front était haut, blanc et lisse, comme taillé de main d’homme dans le marbre ou l’ivoire ou un bois précieux ; large entre-œil, sourcils brunets, les yeux vairs, bien fendus et riants. Elle avait le nez droit. Le blanc sur le vermeil éclairait son visage mieux que sinople sur argent. (Troyes, c. 1180, pp. 66-67)
É uma personagem com uma caracterização física extremamente interessante,
mas também uma das mais complexas. Apesar de a descrição (quer de objetos, quer
de ser humanos) ser recorrente ao longo da obra, a de Blanchefleur é particularmente
marcante por remeter simultaneamente diretamente para as questões da luz e da cor.
A beleza desta personagem, para a qual contribui, de forma geral, a harmonia
entre as suas características físicas e os adereços com que é apresentada, assemelha-
se a uma beleza utópica, difícil de alcançar no mundo dos mortais. Por isso faz-se
referência, mais uma vez, a Deus, como sendo não só o criador da beleza de
Blanchefleur (porque Deus, reunindo em si toda a beleza do mundo, é também o
criador de todas as coisas belas) sendo a luz que emana do corpo de Blanchefleur um
índice para a confirmação da sua presença nesta personagem.
Essa beleza é, mais à frente, novamente explorada, no episódio «três gotas de
sangue sobre a neve», assim como a relação branco/vermelho da face de Blanchefleur:
Cette oie était blessée au col d’où coulaient trois gouttes de sang répandues parmi tout le blanc […] Et Perceval voit à ses pieds la neige où elle s’est posée et le sang encore apparent. Et il s’appuie dessus sa lance afin de contempler l’aspect, du sang et de la neige ensemble. Cette fraîche couleur lui semble celle qui est sur le visage de son amie. Il oublie tout tant il y pense car c’est bien ainsi qu’il voyait sur le visage de sa mie, le vermeil posé sur le blanc comme les trois gouttes de sang qui sur la neige paraissaient. (Troyes, c.1180, p. 111)
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A beleza de Blanchefleur deixa, como se vê, Perceval num estado de êxtase. A
visualização da face de Blanchefleur é feita, à partida, de uma forma imotivada e
arbitrária, não existe uma propensão natural para que a seja Blanchefleur a figura vista
por Perceval, formada a partir das três gotas de sangue. Tal ocorre devido à idealização
de beleza, da figura da sua amada que este tinha construído na sua mente,
embalando-o numa espécie de viagem espiritual na qual permanece durante alguns
momentos. Esta situação permite-nos comprovar a perceção do branco como «cor do
outro mundo».
A relação estabelecida entre o vermelho e o branco é peculiar, e esta obra não é
um caso isolado na exploração deste tema.
Segundo Jacques Ribard, o vermelho associa-se à temática da beleza feminina,
muito frequentemente através do contraste estabelecido com o louro do cabelo
destas personagens4. Ainda assim, em Le Roman du Graal, para além de adquirir esta
significação, pode ainda dizer respeito à desencarnação da beleza e da sua essência,
através da associação do vermelho ao sangue e do branco, em contraste, à neve. A
gota vermelha, que no episódio no castelo do Rei Pescador se encontra presente no
momento da aparição da «lança que sangra», poderá estar também, de certa forma,
ligada ao sofrimento, tendo já alguns críticos conotado esse episódio com o sofrimento
pelo qual passou Jesus Cristo, aquando da sua crucificação, vertendo sangue por todos
os poros. Por outro lado, esta simbologia pode ainda ser problematizada, pois em
contraste com isso, no episódio das «três gotas de sangue na neve», as mesmas têm
origem num ferimento de um pássaro, ferimento esse que é descrito como não tendo
produzido dor, razão pela qual o mesmo retoma o seu voo imediatamente após o
derramamento das gotas de sangue: «Mais l’oiseau n’a peine ou douleur qui la tienne
gisante à terre». (Troyes, c. 1180, p. 111)
Entremos agora numa abordagem daquilo que pode ser o papel da sombra em
contraste com a luz. Sabemos, através da descrição e da narração do episódio de
Blanchefleur, que existe um envolvimento físico entre esta e Perceval, que ao
contrário do que tinha sido manifestado no episódio da tente merveilleuse, é fruto de
um amor recíproco e correspondido. O episódio do encontro entre os dois amantes dá-
4 Cf. Ribard, Le Moyen Age : Littérature et Symbolisme, pp. 44-45
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se, curiosamente - mas também simbolicamente –, numa altura do dia em que não
existe luz5, logo, na parte da noite:
Elle [Blanchefleur] quitte son lit, sort de sa chambre, se trouve saisie d’une telle peur qu’elle en pleure d’angoisse entrant dans l’autre chambre où le chevalier sommeille paisiblement. Elle est en larmes auprès di lit où repose le chevalier. Tant elle sanglote et soupire, penchée sur lui agenouillée au bord du lit […] qu’il s’en éveille, surpris de se sentir visage tout mouillé. (Troyes, c. 1180, pp. 69-70)
Neste episódio, a noite pode ser interpretada simbolicamente como o espaço de
tempo que leva Blanchefleur, amedrontada devido ao facto de o seu castelo se
encontrar sob ameaça, a retirar-se dos seus aposentos para ir ao encontro de Perceval.
Nesse sentido, uma das funções importantes da sombra (entenda-se isto sempre do
ponto de vista da ausência de luz) é propiciar o clima de romance, baseado,
evidentemente, na noção de amor cortês.
O episódio no castelo do Roi Pêcheur, sendo um episódio central na história, é
também sem dúvida um dos mais importantes, pois nele encontra-se o clímax da
narrativa. Neste episódio dá-se, entre outros, a aparição do objeto que cujo nome
aparece no título da obra: o Graal. O Graal é, assim, o expoente máximo da
luminosidade, da claridade (relação com o divino, transcendência da Idade Média). A
propósito disto, mais uma vez Edgar de Bruyne refere :
Dès lors, partout où il y a des corps, il y a de la lumière. Mais dans les corps, c’est la lumière qui constitue la source et l’essence de toute perfection: plus un corps concret est brillant, c’est-à-dire plus sa matière indifférente est dominée, irradiée, intrinsèquement déterminée par la forme lumineuse, plus il est noble. Bien mieux, plus un corps est «clair» ou resplendissent, plus il se rapproche da la simplicité et de la spiritualité: plus il est divin. […] La splendeur de la matière est une participation à la splendeur de Dieu et ce n’est pas dans le clair visage de la seule Béatrice que le médiéval peut admirer la Lumière du Créateur (Bruyne, 1975, p. 21)
A ideia de Deus, do divino, parece estar inerente ao pensamento da Idade
Média, sobretudo em relação à questão do Graal. Com esta ideia, e porque são
conceitos quase inalienáveis nesta obra, apresenta-se também o tema do belo e do
bem.
5 Tome-se a noção de «dia» como um período de vinte e quatro horas, e não somente aquela em que os
raios solares atingem o planeta.
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Une demoiselle très belle, et élancée et bien parée qui avec les valets venait, tenait le graal entre ses mains. Quand en la salle elle fut entrée avec le Graal qu’elle tenait, une si grande lumière en vint que les chandelles en perdirent leur clarté comme les étoiles quand se lève le soleil ou lune (Troyes, c. 1180, p. 92)
Esta passagem parece ir ao encontro da teoria de Grosseteste sobre a luz, no
sentido em que esta é o prolongamento de um objeto no espaço, permitindo que o
esplendor do Graal se espalhe por toda a sala. Há que ressalvar a função de contraste
que a luz (ou claridade) assume neste episódio. O Graal, com a sua beleza, ofuscava
todos os outros objetos. Trata-se de uma espécie de «atração de gravidade», mas
aplicada à luminosidade. Coloca-se, portanto, em causa, a beleza. A introdução do
estudo do Belo no conjunto das propriedades transcendentais inerentes ao objeto
remonta a Guillaume d’Auxerre. A beleza corresponde à harmonia, e esta última, por
sua vez, corresponde à luz, como já tínhamos feito referência em relação ao
pensamento de Grosseteste6. Por outro lado, a beleza permite também definir um
ponto de convergência com o seu oposto, ou seja, todo o objeto que carece de
luminosidade (dualismo entre o bem e o mal), não é, assim, provido de beleza.
A beleza do Graal remete também para a transcendência, para a relação com o
divino, característica da Idade Média. De facto, a estética desta época histórica
encontra-se repleta de problematizações teológicas e apresenta um caráter
profundamente religioso: a beleza das coisas é produzida em função da beleza do seu
criador, sendo a luz uma forma de projetar o objeto na mente daquele que com ele
entra em contacto visual.
Concentremos ainda a análise do episódio do ponto de vista do Graal sob o
ponto de vista do contraste que é produzido em relação aos demais objetos existentes
nessa sala. A evidência desse contraste só é possível porque existem objetos
desprovidos de «une si grande lumière» (Troyes, c. 1180, p. 92) e de «clarté» (Troyes, c.
1180, p. 92). Para que essa luminosidade seja atribuída ao Graal, é necessário que, de
certa forma, os outros seres na sala do castelo do Rei Pescador se tornem sombrios
(pelo menos no momento da aparição do Graal), caso contrário, o efeito de contraste
que se pretende transmitir não teria impacto.
6 Cf. Bruyne, Études d’Esthétique Médiévale, Tome 3, pp. 4-5.
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Conclusão
Onde há corpos, há luz. Tal não significa que todos os corpos sejam emissores de
luz na mesma quantidade: por isso é que uns são mais brilhantes que outros, por isso
se distinguem objectos mais claros, e outros mais escuros. Essa é uma das influências
da luz em todos os corpos, mas também sobre a própria cor: ou seja, é a luz que
permite, entre outras coisas, distinguir cores claras de cores escuras, pelo menos no
que à vertente estética diz respeito.
Contudo, e tendo sido estabelecido como objetivo inicial a compreensão da
forma como o fenómeno da luz e da cor era interpretado na Idade Média, foi
importante, além de atender a esta característica, analisar também este fenómeno de
um ponto de vista filosófico, e até mesmo simbólico.
Este é um campo de análise bastante rico, e que pode dar origem a
interpretações bastante subjetivas de um mesmo facto literário, como é o caso do que
acontece em Perceval ou le Roman du Graal, de Chrétien de Troyes, justamente pelo
facto de a situação ser vista à luz da experiência e do conhecimento que o sujeito
avaliador tem.
Ainda assim, a partir da realização deste trabalho é possível compreender, de
forma mais explícita, que a luz era encarada como algo que remetia para a
transcendência, para uma relação simbólica com a entidade divina, ainda que, para os
teóricos da Idade Média – muitas vezes também ligados às ciências experimentais -
fosse necessário aliar o conhecimento religioso ao conhecimento prático do mundo.
Dessa forma, tudo o que diz respeito ao campo do tenebroso, está conotado não com
a sombra em si, mas com a ausência de luz, porque a sombra nada mais é que a não
existência de luminosidade: assim se distinguem, por exemplo, cores escuras - cores
que têm tendência para absorver a luz e que, por isso, não produzem muita «clarté» -
de cores claras (das quais o branco é o melhor exemplo, uma vez que é um reflector
perfeito), que não a absorvem, mas reflectem-na com grande facilidade.
Integrado no estudo do tema da narrativa medieval, em Perceval ou le Roman du
Graal, a luz assume-se, então, em certos aspetos, como uma entidade mediadora, e
revelando, em outros aspetos, um papel ativo naquilo que se considera ser o
desenvolvimento da principal linha diegética da ação.
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Bibliografia
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