Download - Sobre chapeus e alegria
Sumário:
O papel normatizador da imprensa nas décadas de 20 e 30 ............ 02
O deschapelado .............................................................................................. 04
Depoimento de Aninha .......................................................................................... 04
Depoimento de Albertinho ..................................................................................... 05
O mal da alegria .............................................................................................. 06
Depoimento do delegado Granjeiro .............……....................................…….…....... 06
Depoimento de Antônio .......................................……….......................................... 07
Entre as grades e o mar ................................................................................... 08
Depoimentos de Roberto .........................……………………….............................…...... 08
Depoimento do policial Waldo .............................……….......................................... 09
Depoimento do policial Getúlio ...........................……….......................................... 10
Anitas, Belas e Margaridas ......................................................................... 11
Depoimento de Margarida .................................................................................... 11
Depoimento de Zé ................................................................................................. 12
Sob(re) a proteção ......................................................................................... 13
Depoimento de Joaquim ........................................................................................ 13
Depoimento de Bela .............................................................................................. 14
Os desocupados ............................................................................................... 15
Depoimento de Carlos Schirmer ............................................................................. 15
Mulher de alegria ........................................................................................... 16 Depoimento de Flor do Campo .............................................................................. 16
Depoimento de Josué ............................................................................................. 17
Editorial ............................................................................................................... 18
Como participar ................................................................................................ 18
Ficha Técnica .................................................................................................... 18
Florianópolis - Setembro de 2012 Travessa em Três Tempos Ano III N° 12
O inconveniente de andar sem chapéo
ANDRÉ Lavadan, numa das suas saborosas crônicas, da secção “A moda” no
“Petit Parisien” fala sobre o maior dos inconvenientes da moda masculina de
andar sem chapéo. Não se trata do perigo de insolação ou de constipação, por
causa das ardências do sol ou das cardas d’água.
Os que andam de cabeça ao léu, em geral, sofrem os assaltos das intempréries
sem maiores inconvenientes para a preciosa saúde. O caso é outro. É que, para
as pessoas “deschapeladas” só há dois tipos de cumprimento – um aceno de
mão aos amigos, e para “os outros” uma simples inclinação de cabeça. E “os
outros” pódem ser moças, senhoras respeitáveis, cavalheiros de idade e
consideração, personalidades de categoria, enfim toda uma porção de pessoas,
pertencentes às mais variadas classes, e para as quais há dezenas de maneiras
de tirar o chapéo, isto é, de cumprimentar.
“O abandono do chapéo priva-nos da técnica do cumprimento, pela qual se
reconhecia, e ainda hoje se reconhece, ‘a origem e a raça dos homens distintos’.
Isto quer dizer que: deixando-se o chapéo em casa, deixa-se em casa, também,
o culto das boas maneiras”.
O estado – 02 de dezembro de 1939
Queixas e reclamações
Moradores à rua Curitibanos queixam se contra um grupo de notívagos que
naquella via publica perturbam o sossêgo das famílias ali residentes, fazendo
serenatas ao som de violões. Para o facto chamamos a attenção da policia civil.
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Pedem-nos chamemos a attenção da policia para o facto de, á noite, reunirem-
se á entrada da travessa Loureiro um bloco de desoccupados, proferindo toda a
sorte de palavras indecentes e perturbando a tranquillidade das familias
residentes nas immediações.
O estado – 15 de outubro de 1932
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Florianópolis - Setembro de 2012 Travessa em Três Tempos Ano III N° 12
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A rua Annita Garibaldi
Dos moradores da rua Annita Garibaldi recebemos constantes reclamações sobre o
procedimento incorrecto e offensivo a moral publica, de mulheres da vida alegre que por ahi
residem. Ainda hontem os moradores da casa n. 16 da referida rua se viram na dura
contíngencia de recorrer as nossas autoridades policiaes solicitando uma providencia que
ponha cobro ás estravagancias e attitudes “bellicosas” das taes “marrequinhas”.
O que, porém, é fora de duvida é que a rua Anitta Garibaldi, hoje transformada numa das
nossas principaes vias publicas, já não se presta para morada de gente de tal profissão.
Bom seria, por isso que as nossas autoridades policiaes decidissem a remoção dessas mulheres
para outra rua menos transitada.
O estado – 14 de fevereiro de 1920
O papel normatizador da imprensa nas décadas de 20 e 30
“Analisando diversos jornais que circulavam em Florianópolis, entre as décadas de 1920 e
1940, encontra-se sem dificuldades artigos ou notas que ilustram perfeitamente o papel
normatizador da imprensa entre as populações. Como exemplo disto, em 14 de fevereiro de
1920, o Jornal O Estado publicava uma nota contra algumas prostitutas que residiam na rua
Anita Garibaldi (região central de Florianópolis), “sugerindo” às autoridades que se
procedessem as suas remoções. Em diversas edições de janeiro 1931, o jornal O Estado
denunciava também o “falso profeta” de um culto espírita que resultou em processo criminal.
Notas sobre comportamento, indumentária e notas policiais delatando a “vadiagem” e a
“desordem”, entre outras, eram comuns, servindo principalmente como alertas à população,
para que correspondessem às expectativas das normativas vigentes, estabelecidas pelo
governo nacionalista. Passados oito anos, o mesmo jornal publicou, em 2 de dezembro de 1939
uma nota cujo título era “O inconveniente de andar sem chapéo”, onde o maior problema,
segundo a notícia, não era o perigo de pegar alguma insolação ou doenças causadas por
excesso de sol ou chuva, mas sim a “sociabilidade, ou antes, a boa educação”, já que o chapéu
era acessório usado para cumprimentar respeitosamente outros cavalheiros e senhoras, assim
como também indicar sinal de respeito em eventos de cunho religioso.”
Recortes e texto retirados da da dissertação de mestrado de Lisandra Barbosa Macedo: MACEDO, L.B. Ginga, Catarina: Manifestações do Samba em Florianópolis na década de 1930. Florianópolis, 2011. Dissertação de Mestrado. (História do Tempo Presente) Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Disponível em: http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2636
O Deschapelado Roberto entrou no banheiro da Rua Divago, sentou na privada de uma das cabines,
perdeu-se em pensamentos vagos. Foi à pia, lavou as mãos, e então se flagrou deschapelado. O
cabideiro ao lado da porta estava vazio, o chapéu não estava onde havia deixado. Sua situação
era de assustar: tinha jantar marcado com os Granjeiro, rica família conhecida no Brasil inteiro.
Patrícia Granjeiro havia por ele se encantado, não era sorte pequena, era um caso raro. Mas
sem chapéu como cumprimentaria a família da senhorita?
Impossível, dizia consigo mesmo. Era bem treinado nos três cumprimentos que todo
homem de respeito devia saber: um para as jovens que lhe interessavam (esse era o mais
extravagante, algo parecido com a dança de acasalamento dos pavões), outro para os homens
que, como ele, eram de respeito (era frio e tinha um quê de desafio, como que uma
competição), ainda outro para os idosos em geral (era o mais cortês dos três). Certamente a
ocasião do jantar com a família Granjeiro seria um intenso exercício dessa aclamada boa
educação. Imprescindível para mostrar aos pais de Patrícia sua integridade. Roberto não tinha
dinheiro para comprar outro chapéu, - apesar de ser rapaz respeitado, não vinha de família rica
- mais um motivo pelo qual lhe era imprescindível as boas maneiras.
Saiu do banheiro alarmado, olhou pela agitada avenida e avistou a uma quadra de
distância um sujeito que andava apressado: era o ladrão (não havia dúvidas de que era seu
chapéu azul com listra branca que o sujeito usava). Roberto correu o mais rápido que pode
para alcançar o fanfarrão chapelado, este logo percebeu e acelerou rua abaixo. Roberto pegou
um atalho e o esperou. Que susto! O deschapelado (Roberto, no caso) o pegou pela gola e o fez
confessar. Mas logo veio saber que aquele pobre homem não era ladrão treinado, era de
improviso e ainda por cima apaixonado.
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Depoimento de Aninha
Minha mãe nunca gostou das moças alegres da casa de n° 17, nunca entendi muito bem o
porquê. Ao que diz respeito às normas de etiqueta elas estavam sempre bem arrumadas e
acompanhadas de senhores com chapéus elegantíssimos. Um dia suspeitei que elas estivessem
traficando chapéus, e esse seria o motivo da irritação da minha mãe. Já era tarde da noite e eu
estava espiando pela janela, como faço quando estou entediada. As sirenes soaram indicando que
a polícia se aproximava e vi um homem dobrar a esquina a passos largos com ares de quem está
fugindo. Segurava o chapéu com as mãos para que este não caísse na sua corrida, quando chegou
à porta da casa 17 parou para conversar com uma das meninas. Não sei qual foi o assunto, mas ele
lhe entregou o chapéu e entrou na casa olhando para os lados. Aposto que havia afanado o dito
cujo.
Depoimento transcrito por [M.B]
O coração de Roberto amoleceu quando o ouviu contar o motivo de seu delito. Era
menino pobre, não tinha dinheiro para comprar um chapéu, hoje ele se organizava para
cantarolar na janela de sua bem amada. Via-se em seus olhos um encanto que não podia ser
ignorado, de fato amava. O chapéu, disse ele, não pode faltar, sem ele não há olhos que
possam dignar-se a me olhar; e hoje, somente hoje, quero ser ouvido cantar, os doces e lindos
versos que vou dizer ao luar. De fato era um poeta apaixonado, Roberto aceitou emprestar-lhe
o chapéu. Após a serenata o pegaria de volta, a tempo de comparecer na casa dos Granjeiro.
Chegando na beira da rua, na casa da bela senhorita, Roberto ouviu encantado, músicas
da mais bela harmonia. Viu nos olhos da moça, que ouvia de sua janela, o mais puro
sentimento, amor de branca capela. Mas percebeu vizinhos muito incomodados, reclamantes
daquela cantiga, desproporcionalmente irritados. Logo ouviu a sirene dos homens fardados,
era tempo de deixar o poeta deschapelado. Assim o fez. Pegou seu chapéu e fugiu o mais
rápido que pode, para a ruela mais próxima que encontrou. Quando voltou a si, percebeu
assustado onde estava. Na mal falada rua Anita Garibaldi. Raparigas o cercavam por todos os
lados. Que balbúrdia! Que vulgaridade! Pensava ele, repudioso. Ocultava lá no fundo seu
medo e seu gozo. Uma delas lhe encantou, tinha olhos de jade verde, era linda. Não condizia
estar num lugar daqueles! Disse ela: Flor do campo, eu me chamo, prazer em lhe conhecer, dez
cruzados e de pronto poderás me merecer. A sirene ele ouviu de novo, como poderia ser?
Novamente os homens da lei. Dessa vez expulsar as mulheres do prazer. Segurou Flor do
Campo, seu coração vibrou. Não tens dinheiro, ela disse. Esse chapéu agora é seu, me segue
para onde vou! Deschapelado Roberto esqueceu do jantar, que horas depois começou.
Historieta narrada por Queixinho
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Depoimento de Albertinho
Eu passeava pela Rua Divago quando de subido senti a necessidade de adentrar o toalete.
Não é que eu estivesse apertado, mas um frio me passou pela espinha como se meu futuro se
encontrasse dentro daquele banheiro. E de fato lá estava ele, na forma de um listrado chapéu
azul. Eu preparava uma serenata para a Maria Rosa e tudo o que me faltava era uma cobertura
que me fizesse homem de respeito. Aproveitei a oportunidade e surrupiei o chapéu, não era um
roubo, apenas um empréstimo. Chapéu é coisa muito importante na vida de um homem e isso eu
tive comprovado à noite enquanto cantava para a flor do meu coração. Quando, em meio às juras
de amor, ouvi sirenes da polícia se aproximando, arrumei o chapéu e sai andando calmamente.
Escapei de passar a noite atrás das grades, o que não aconteceu com Maurício. Sem chapéu o
pobre foi preso em flagrante por perturbação à ordem, talvez um chapéu o salvasse deste fim.
Depoimento transcrito por [M.B]
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O mal da alegria
Mamãe não quis explicar-me porque chegou à nossa casa toda esbaforida naquele fim
de tarde. Estávamos em pleno mês de fevereiro, os senhores poderiam muito bem alegar,
porém tamanha falta de compostura não lhe era característica. As bochechas extremamente
coradas, o suor em suas têmporas, as mangas de seu vestido dobradas até os cotovelos... não,
algo definitivamente havia acontecido!
Comecei a desconfiar que Antônio estava envolvido de algum modo quando este
também chegou. Meu irmão mais velho jamais soube esconder grandes problemas ou
mentiras; suas orelhas vermelhas sempre denunciavam as traquinagens quando era mais moço
e agora, que era quase um homem feito, igualmente denunciavam suas aventuras pelo mundo.
Mamãe costumava lamuriar-se quando descobria suas brigas ou os seus namoricos mais
recentes. Então rezava ainda mais fervorosamente do que o usual, pedindo perdão pelo filho
“desajuizado”.
Foi a chegada de papai, à noitinha, que sanou minha curiosidade e fez com que minha
imaginação parasse de desenhar os cenários mais absurdos. Não que ele estivesse mais
disposto do que os outros dois a me contar o que se passava, longe disso; porém, foi só então
que qualquer palavra a respeito do grande mistério foi proferida sob o teto do número
dezesseis. Esgueirei-me por entre as sombras e prendi a respiração, tentando escutar a
conversa que se desenrolou no cômodo vizinho.
Por entre os soluços compulsivos de mamãe, a firmeza da fala de papai e a voz quase
inaudível de Antônio é que eu soube da existência de Josefina.
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Depoimento do delegado Granjeiro
Você tem que me entender, eu sou de família tradicional, não podia deixar um desaforo
como aquele passar em branco. Aquele Roberto, moleque atrevido, desistiu do possível
casamento com minha filha no mesmo momento em que resolveu não aparecer no jantar de
introdução à família. Ele não mais terá a oportunidade de casar com uma moça de respeito como
a Patrícia. E ainda disseram por aí que ele anda engalfinhado com uma das moças alegres da casa
de n° 17 da Anita Garibaldi. Mas eu não deixei barato, outro dia o filho do Doutor Ronaldo Guerra
entrou na minha delegacia pedindo que o casasse com aquela Josefina, rapariga da casa 17. Pensei
com meus botões: vou realizar o casamento e me divertir quando a mãe do rapaz vier aos prantos
ter comigo. Talvez eu desfaça o casamento, mas esses jovens precisam aprender o que é mulher
de alegria e o que é moça de família.
Depoimento transcrito por [M.B]
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Aparentemente Josefina é o que costumam chamar de “moça alegre”. Nunca
compreendi exatamente o significado da expressão e ninguém nunca quis me explicar. A única
coisa que eu sabia é que moços de família jamais se casavam com as tais... e, aparentemente,
fora esse o grande crime de Antônio. Depois de uma longa noite de jogatina, bebedeira e
cantoria, Antônio pediu Josefina em casamento e ela, impaciente, sugeriu que eles firmassem
o compromisso no mesmo dia.
Só então entendi o desapontamento de mamãe. Como meu irmão poderia ter feito uma
coisa daquelas sem avisar aos nossos pais? Senti a indignação inflar dentro do meu peito por
alguns instantes, pensando no belo vestido que eu poderia usar na grande ocasião. Mas as
frases seguintes de papai me fizeram voltar a prestar atenção na conversa: aparentemente, ele
estava disposto a fazer o que quer que estivesse ao seu alcance para mandar não somente
Josefina, como qualquer outra “moça alegre” que vivesse em nossa rua para bem longe.
Entendo – e até compartilho! - a indignação de mamãe, porém não consegui entender a
decisão de meu pai. Por que as “moças alegres” não podem mais morar por aqui? O que ele
tem, afinal, contra a alegria dessas moças? Mamãe não é exatamente a pessoa mais alegre do
mundo e ainda assim ele gosta dela, mas isso não quer dizer que Antônio tenha de nutrir os
mesmos gostos que os de papai, certo?
Aninha, 12 anos.
Historieta narrada por Rosa de Versalhes
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Depoimento de Antônio
Sempre tive uma queda, para não dizer um tombo, pelas meninas de alegria do teto
dezessete. E digo sim meninas, no plural, porque todas elas me despertavam o amor juvenil. A
minha preferida era a Josefina com quem, numa noite de amor e outras drogas, decidi me casar.
Mas seria igualmente feliz se fosse com Bela, ou Margarida que eu passasse resto de meus dias. Eu
sabia o nome de cada uma delas, o verdadeiro e o de guerra, e durante a noite devaneava com a
imagem de seus corpos e seus sorrisos. Às vezes me fingia de tolo e arrumava um subterfúgio para
me aproximar de uma ou de outra, perguntava-lhes o nome aos sussurros, como se não tivesse
coragem de olha-las de frente. Mas Josefina era diferente, Josefina adormecia nos meus braços e
quando dormia parecia anjo caído do céu. Pelo amor de Josefina eu iria contra meu pai, minha
mãe e a sociedade. Se preciso fosse até o chapéu eu abandonaria por ela.
Depoimento transcrito por [M.B]
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Entre as grades e o mar
Já era de manhãzinha, eu podia sentir o cheiro salgado da maré que entrava por entre as
grades da janela. Nas manhãs, quando meu velho pai saía no seu barquinho para pescar, ele
tentava me ensinar àquela linguagem que só mesmo pescador entende. Maral, terral, vento
sul, meu pai nunca percebeu que o filho tinha mais interesse por rodas de violão e cavaquinho
do que por tainhas e anchovas. Mas seu rosto iluminava quando tentava me ensinar os truques
da tarrafa e as ordens das marés, e eu gostava daquele brilho no olhar e por isso mostrava o
máximo de interesse que conseguia. Mesmo que em minha mente eu estivesse repassando as
notas de cavaco que aprendera na noite anterior. Engraçado como agora, preso nesta sela de
onde não posso sair, me pego farejando o mar e pensando no meu pai. Afinal de contas, foram
notas e acordes que me trouxeram até a delegacia.
Tudo por conta da ideia de jerico que o Albertinho teve de fazer uma serenata pra
conquistar a Maria Rosa. De inicio eu já avisei que a rapariga era grã fina, o que é que um
deschapelado como o Albertinho poderia conseguir com uma moça como ela? Maria Rosa era
moradora da Rua Curitibanos e todo mundo sabe que por aquelas bandas só habita homem de
chapéu e rapariga que sabe bordar e tocar piano. De regra de etiqueta Albertinho não sabia
nada, sequer tinha dinheiro para um chapéu.
Levei meus conselhos aos ouvidos do apaixonado como um bom amigo deve fazer.
Tentei avisar que a noite terminaria em presepada, e o que ganhei em troca?! Um “Fique
calmo Maurício! Chegarei na hora marcada e terei um chapéu”; e uma noite no xilindró.
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Depoimento de Roberto
Eu havia acabado de escapar da polícia, alguns moradores da Curitibanos tinham reclamado
que um grupo de arruaceiros estava perturbando a ordem, na verdade era só uma serenata de
amor. Eu peguei meu chapéu e sai correndo pela Annita Garibaldi, quando passava pela frente da
casa de n° 17 vi a moça que alegrou o meu sorriso. Chamei-a: Flor do Campo. Eu não tinha como
pagar os prazeres que ela me proporcionaria, então, lhe ofereci meu chapéu como forma de
pagamento. Esqueci meu jantar e de meu possível noivado. Entrei na casa e me deparei com
Antônio aos braços de Josefina, este também tinha esquecido todas as regras de etiqueta e dos
cumprimentos com chapéu. Na manhã seguinte, quanto fui acordado pela dor que tomava minha
cabeça, recebi a notícia de que Antônio havia se casado com Josefina. Peguei meu chapéu e sai
pela porta o mais rápido possível, antes que Flor do Campo desejasse um destino similar.
Depoimento transcrito por [M.B]
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É bem verdade que meu amigo cumpriu com o prometido, chegou pontualmente e
portando um belo chapéu azul listrado. De onde tinha tirado eu não quis nem saber,
empenhei-me em tocar a bendita música o mais rápido possível para voltar para casa antes
que os digníssimos senhores moradores da Rua Curitibanos tivessem a chance de chamar a
polícia. Não deu muito certo!
Estávamos no meio da música, um samba de Sinhô que falava de juras de amor, quando
ouvimos as primeiras sirenes. Albertinho embaixo do símbolo de finesse que era o seu chapéu
saiu andando como se fosse um morador. Quando chegou à esquina vi um homem lhe tirar o
chapéu da cabeça e os dois saíram correndo. Sobrou mesmo foi pra mim, sem chapéu e com
um violão fui levado diretamente à delegacia. Passar a noite em cana, para aprender a deixar
de ser desocupado! Grunhia um policial ao meu ouvido. Me veio a mente que desocupado era
quem me levava para a delegacia em vez de estar defendendo a cidade, mas julguei melhor
guardar meus pensamentos. Afinal, não queria ver minha estada na cadeia ser prolongada.
Passei a noite ali, num colchão de concreto e sob uma orquestra de mosquitos. De
manhã cedinho chegou o delegado Granjeiro, o caro chapéu de tecido fino não melhorava a
cara de mau humor do sujeito. Mais tarde ouvi dois guardas cochichando que o motivo da cara
azeda do delegado era porque tinha esperado noite adentro o noivo da filha aparecer para um
jantar e o gatuno tinha desaparecido. Àquela altura já surgiam boatos de que o espertinho
tinha deflorado a moça e fugido do matrimônio. Não se pode dar muito crédito para conversas
de delegacia, mas o fato é que se o delegado queria casar alguém ele teria a sua chance.
hahahahahaha
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Depoimento do policial Waldo
Toda a manhã o delegado Granjeiro sustenta um fino chapéu sobre a cabeça. Todos sabem
que ele é de uma família conhecida no Brasil inteiro. Eu, na verdade, tenho até alergia ao ouvir
falar dessas famílias tradicionais, é sempre um bando de almofadinhas que só se preocupam com
carreiras e chapéus. Eu me pergunto: e de que adianta um glorioso chapéu sobre a cabeça se o
humor do velho é a coisa mais azeda com que tive a infelicidade de conviver?! E agora dizem que a
filha dele foi trocada por uma mulher de alegria, o chapéu dele salvou a filha do triste fim? Aquele
moleque ali, foi preso ontem por ter feito arruaça, garanto que se tivesse um chapéu a história
teria sido diferente. Mas aqui em Florianópolis as coisas são assim, quem tem chapéu é rei e quem
não tem se vira com a lei.
Depoimento transcrito por [M.B]
Florianópolis - Setembro de 2012 Travessa em Três Tempos Ano III N° 12
Pois Antônio e Josefina tinham acabado de adentrar a delegacia ao som de uma marcha
nupcial cantarolada pelos dois.
Era visível que a noite do casal tinha sido longa e anuviada. Antônio trançava um pouco
as pernas, enquanto Josefina berrava pelo delegado. Me case! Me case, que é hoje que mudo
de vida! Berrava a moça alegre, sacudindo um buquê de margaridas que tinha roubado do
canteiro de alguma casa no caminho. O humor do delegado, ou a falta dele, entrou na sala
antes mesmo que a sua figura. Olhou para os pombinhos com um ar de escárnio que quase
achei que teria que ceder meu lugar na sela para os dois.
Não sei se o que aconteceu a seguir surpreendeu mais a mim, ou aos guardas que antes
cochichavam sobre a filha do delegado. Tomado de um súbito bom humor, o delegado
Granjeiro vestiu o pomposo chapéu e pediu que o casal o seguisse até o fórum mais próximo.
Antes de deixar a delegacia o ouvi dizer: “Quero ver quando o balaço passar, ele vir me
implorar para desfazer o mal feito” e sorriu com os lábios. Mas só com os lábios, pois os olhos
diziam que era outra coisa o que ele sentia por dentro.
Quanto a mim, farejei mais uma vez o mar e pensei que quando saísse daquela sela
subiria no barquinho do meu pai. Dessa vez vou escutar, pai! Dessa vez vou aprender como se
joga uma tarrafa!
Historieta narrada por Maria Bonita
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Depoimento do policial Getúlio
Olha lá, aquele rapaz passou a noite atrás das grades e pela bobagem de não saber que um
homem de respeito deve andar sempre chapelado. Mas os jovens de hoje já não sabem mais se
comportar como homens civilizados. Se este aí tivesse aprendido a arte de tocar violino, e tivesse
aprendido as regras de etiqueta e a erudição. De certo teria arranjado um chapéu e não se
envolveria com cavaquinhos e rodas de samba, e não estaria na rua incomodando o sono dos
homens de bem. Eu mesmo se não fosse policial e tivesse a oportunidade de usar um chapéu em
vez de um quepe, certamente já teria conseguido um bom casamento para mim. Mas o uniforme
me impede de vestir belos chapéus, e a cobertura de um policial não é muito atrativa para as
mulheres, mesmo que seja digna de respeito. Um dia eu chego a delegado, aí terei o meu próprio
chapéu.
Depoimento transcrito por [M.B]
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Anitas, Belas e Margaridas
Quando me mudei pra cá, pra casa da Dona Elisa, nº 17 da rua, mais conhecida como “a
da Luz Vermelha” da Annita Garibaldi, perguntei pra Maria – de dia, porque de noite era
Margarida – quem era essa tal de Annita. Não era uma das nossas, era? Já vi rua com nome de
prefeito, de presidente, de engenheiro, de santa e até de data, mas nunca vi rua com nome de
puta.
As mocinhas e mocinhos com seus respectivos chapéus passam aqui embaixo da sacada.
Olho, toda manhã depois de arrumar o quarto, o movimento das calçadas, que nunca me olha
de volta. “Eu sou invisível?”, às vezes me pergunto. Já estou até acostumada, ou estava - até
um moço sorridente olhar de relance da casa verde, nº 16. Os olhares, as trocas de olhares e de
um pouco além de simples olhares se tornaram diárias. Imaginava quem seria aquele rapaz
que saía no burburinho e no sol das 11, sem chapéu.
Um dia saí pra comprar um laço num armarinho da Rua da República – que nesse ano
virou Felipe Schmidt, de quem nunca ouvi falar também – algo menos usual que o destrato da
vendedora ocorreu: encontrei-o. Ele, o objeto – deschapelado – do meu olhar. Com um sorriso
quase imperceptível no canto do olho e na beira da boca -, cumprimentou-me. Não tirando o
chapéu, como faziam os bons moços da Annita Garibaldi que tanto observava na janela, e
claro, não indiscretamente como os que nos visitavam à noite. Fez uma leve inclinação com a
cabeça, e logo em seguida, com um murmúrio que apenas eu, da rua inteira, poderia ouvir,
perguntou meu nome. Isabel. Ou Bela, depois de o sol se esconder atrás daqueles morros -
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Depoimento de Margarida
Eu estava recostada na esquadria da janela olhando a chuvarada que caia lá fora. Em dias
como aquele, escapulidas eram mais difíceis e por isso nossa casa não tinha muito movimento. Eu
podia ficar horas admirando as belezas que a chuva traz. Normalmente as pessoas gostam de dias
de sol, mas eu, eu sou apaixonada pela chuva. Ela lava a terra do mesmo jeito que lava a minha
alma. Mas lá estava eu, distraída, quando vejo passar correndo um sujeito com a cabeça
descoberta. As roupas ensopadas denunciavam a tentativa frustrada do jovem de se proteger da
água. Ela vinha de todos os lados e o máximo que ele podia fazer era cobrir a cabeça com os
braços e correr. A cena me fez refletir, esses homens da capital, proferem seu amor pelos chapéus
aos quatro cantos e na hora que ele é realmente útil os deixam em casa.
Depoimento transcrito por [M.B]
Florianópolis - Setembro de 2012 Travessa em Três Tempos Ano III N° 12
perguntou meu nome. Isabel. Ou Bela, depois de o sol se esconder atrás daqueles morros -
claro que o preferi omitir. Até mesmo porque não daria tempo: meu encantador deschapelado
passou por mim num piscar de olhos, sem o mínimo último olhar.
Nunca mais o vi. Naquele mesmo dia Dona Elisa havia ficado nervosa como nunca a vi
antes: queriam nos expulsar! O delegado em pessoa veio apresentar as queixas dos moradores
da região em relação as suas luzes vermelhas. Com um pouco mais de licor da casa, ele revelou
que o estopim fora causados pelos moradores do nº 16: a Senhora reclamava que gente de
respeito não deveria ter marrequinhas como vizinhas, ainda mais quando elas, sem vergonha,
na frente de todos e à luz do dia, assanhavam-se com homens honestos. “Honestos como seu
esposo e seu filho, pobres vítimas de nós vagabundas?” tive vontade de gritar à porta de sua
casa. Mas do que adiantaria?
Pouco tempo depois acabamos nos mudando pra perto do Cais, pra Rua da Figueira – ou
melhor, R. Conselheiro Mafra, como diz aqui na plaquinha da esquina. Menos luzes vermelhas,
mais nomes pra lembrar. Finalmente Maria descobriu pra mim quem foi aquela Annita
Garibaldi. Perguntou pra um estudado que caiu nos encantos da Margarida há umas noites: era
uma mulher de Laguna que lutou numa guerra há uns cem anos. Porque amou um estrangeiro
que veio pra cá e fugiu com ele, pra luta, ele disse pra ela, que me disse. Como nós, ela
também lutava. Será que o tal estrangeiro usava chapéu?
Historieta narrada por Talia
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Depoimento de Zé
Margarida era a minha preferida dentre as moças do teto dezessete. Ah, suas curvas e seus
perfumes. Ela não era só minha mulher de alegria, era quase minha confidente. Quando
estávamos na cama, depois de satisfeitos, trocávamos ideias e conversas. Certa data,
conversávamos sobre os chapéus. Margarida ficava impressionada como os homens
florianopolitanos se preocupavam com este acessório, concordei com ela. E lhe relatei que
Joaquim há algumas semanas tinha saído sem chapéu e foi pego de surpresa pela chuva. Joaquim
ficou perturbado com seu descuido quanto às normas de etiqueta, ainda mais depois daquele
artigo no jornal. Margarida riu-se sozinha, parecia que via a cena diante dos olhos. No final da
noite, quando já me levantava para ir-me embora, ela me perguntou: Zé? Você sabe quem é
Annita Garibaldi. Respondi, mesmo sem entender de onde vinha a referência e fui embora.
Depoimento transcrito por [M.B]
Florianópolis - Setembro de 2012 Travessa em Três Tempos Ano III N° 12
Sob(re) a proteção
Joaquim chegou da rua molhado por inteiro, xingando o tempo maluco desta ilha, todo o
aguaceiro que tinha despencado dos céus, enquanto desenlaçava os cadarços dos sapatos que
eu emprestei pra ele ir à rua passear e conhecer um pouco mais da cidade. Recém-chegado,
vinha pra cá estudar qualquer coisa sobre Economia, colocaram-no por dentro do comércio
local antes mesmo de sair de sua cidade natal, o pai dono de grandes posses influenciou
enormemente seu destino pra esses lados. Joaquim resmungava, embrabecido, mas logo que
virou os olhos e encontrou-me à beirada da mesa, sentado para tomar café e dobrando-me de
tanto que ria, a cara feia desvaneceu e ele desistiu do grande trabalho que é pensar em mil
palavras feias pra São Pedro e riu também, acompanhando-me.
De banho tomado e roupa trocada, sentou-se à mesa ao meu lado e puxou o jornal pra
perto de si. Balbuciando baixo, leu as manchetes, até que parou de falar e eu diria que até
mesmo respirou um tanto fundo quando se deparou com um grande título, impresso em letras
muito redondas, que anunciava que o seguinte texto falaria sobre “O inconveniente de andar
sem chapéo”. Leu-o, as expressões alternando-se entre concordância e reflexão, e após
terminar permaneceu silencioso durante alguns segundos. Então, virou-se para mim, os olhos
cuidadosos, um pequeno tremor na voz:
-Zé...? Eu saí deschapelado hoje, por acaso? Não me recordo...
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Depoimento de Joaquim
Eu sei bem que o chapéu é um item importante do nosso cotidiano, com o clima que faz
nessa terra de desterrados entendo bem que os homens usem chapéus. Quero dizer, neste lugar o
tempo é diferente, vamos do frio glacial ao calor infernal num só dia. Eu sei, estou exagerando,
mas as quatro estações do ano podem ser percebidas num único dia nessa ilha. Estou tentando
dizer que o uso do chapéu é algo lógico e aceitável, ou pelo menos era até sair aquela notícia no
jornal. Quer dizer, sou menos respeitoso se não tiver o chapéu na cabeça? E se os franceses
resolverem que o amarelo é a cor da moda, será somente esta a cor das minhas vestimentas? Sou
um homem de respeito e dado a me vestir bem. Mas depois deste artigo decidi, de hoje em diante
não uso mais chapéu.
Depoimento transcrito por [M.B]
Florianópolis - Setembro de 2012 Travessa em Três Tempos Ano III N° 12
Afirmei com a cabeça e ele ficou sem reação. Eu quase lia a mente dele, perguntando-se
de que forma poderia ter deixado passar sem perceber a ausência de um objeto tão usual.
Logo ele, tão vaidoso e bonito, adorava olhar-se nos espelhos e reflexos das vidraçarias das
lojas... e, oh céus, o que pensariam dele na rua, no comércio, na cidade, entre as moças e entre
as famílias nobres? Desobedecendo assim as regras morais e comportamentais dessa
sociedade que adora gabar-se de seus homens distintos, certamente não era a via para
alcançar o destaque que seu pai tanto queria pro filho moço inteligente e sabido das finanças...
e logo hoje publicam isto no jornal, logo hoje, no dia em que ele simplesmente se esquece do
tal do chapéu.
Chateadíssimo, Joaquim pegou a caneca de café e foi pro sofá, ainda refletindo.
- Zé...?
- Pois não?
- O chapéu me cobre a cabeça contra o sol, e contra a chuva - desse modo, eu não sinto
tantos calores e também não fico à mercê das doenças que vêm pela roupa molhada, como
bem disse o jornal. Mas refleti e refleti, e te pergunto e me responde, por favor: o chapéu me
protege do preconceito por não seguir essas regras sociais?
Historieta narrada por Raio de Sol
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Depoimento de Bela
O Joaquim era o homem dos meus sonhos, pena que ele nunca quis casar com rameira.
Tivesse eu a mesma sorte que a Josefina, teria esse português só para mim. Homem inteligente,
estudado, lindo e com um sotaque encantador. Sob o teto dezessete nós não podíamos
demonstrar preferências, ou predileções. Todos que caiam nos nossos braços deveriam achar que
eram sempre os mais amados e os mais queridos. Mas eu não conseguia disfarçar que Joaquim era
o brilho dos meus olhos, quando via seu chapéu pendurado no cabideiro ia logo procurá-lo, e ai da
rapariga que estivesse se engraçando para o meu homem. E falando em chapéu, o português tinha
uma coleção de dar inveja a qualquer um. Eram todas as cores, e tecidos que você podia imaginar;
o homem era vaidoso. Até que um dia ele apareceu na casa da Dona Elisa sem chapéu, e aquele
foi o último dia que o vimos. Ele até parecia outra pessoa, bem que eu queria saber o motivo
daquela mudança e ter o português de volta nos meus braços.
Depoimento transcrito por [M.B]
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Os desocupados Eles estão muito mal acostumados! Inconvenientes são vocês, escritores de meia-tigela!
Escrever algo tão descabido desses – sobre a estética do chapéo e as possíveis acrobacias
chapelísticas - é coisa de desocupado!
Vocês, meus caros metidos a franceses, foram também repudiados pelo admirador das
mulheres de trinta: os jornais são, como Balzac bem disse, os lupanares do pensamento. Não,
com tanta coisa para se falar, não há nenhum fundamento. A vestimenta, tudo bem, até é
possível em concordar – vocês, sendo curto e grosso, tiram os seus respectivos chapéos
quando vão aos lupanares para se esbaldar?
Vou lhes dizer o que as boas maneiras são: não metam os bedelhos onde não foram
convidados e todo o resto é resto. Todo homem é honesto? Bem, há muitas maneiras – boas
ou não – de se duvidar, sabe?
Não que eu seja totalmente do contra, mas é que existem muitos sujeitos que não põem
– ou não conseguem colocar – o tal do chapéo por estar cheio de adereços na cabeça. Outros
acabam colocando para se mostrarem, pois afirmam que desse mal eles nunca sofrerão. São
bem esses que acabam, vem ano e passa ano, comprando chapéos maiores e maiores...
Há, também, aqueles que o utilizam por não mais conseguirem pentear os até então
lindos cabelos. A experiência vem, os fios se vão.
Afirmam que o chapéo faz parte das tradições. Aí é que eu desconfio: tradições? Deixe-
me só, sem chapéo, é melhor eu partir, antes que eu parta a cara desses cheios de adereços,
esses sem eira nem beira.
Historieta narrada por L!
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Depoimento de Carlos Schirmer
Para falar bem a verdade eu não me importo muito com convenções sociais, ou regras de
etiquetas. Sabe, essas coisas que os ricos inventam para deixarem bem claro que são ricos. Eu sou
editor d’O Estado, você sabe, O Estado é um jornal conhecido e reconhecido, o que eu tenho que
fazer é vender jornal. Não me importa se quem vai comprá-lo usa chapéu, ou é deschapelado.
Sobre o artigo que saiu na semana passada, pergunte ao redator que o escreveu. Mas se em Paris
as pessoas estão usando chapéus, então em Santa Catarina as pessoas vão usar chapéu e eu vou
publicar notícias sobre isso. Porque tudo que vem da França vende e eu preciso vender meu
jornal. Pra ser bem sincero, esse chapéu coça um pouco a minha cabeça. Mas se ele faz meu jornal
vender, então usarei chapéu.
Depoimento transcrito por [M.B]
Florianópolis - Setembro de 2012 Travessa em Três Tempos Ano III N° 12
Mulher de Alegria O frio matara mais três mulheres naquela manhã. Tínhamos sido colocadas junto à parede
na tarde anterior para tomarmos o que aqueles enfermeiros tinham a coragem de chamar de
banho. Já vinham tossindo há alguns dias, e eis que, quando o sol começou a banhar o cimento do
pátio, uma velha encarquilhada gritava apontando para um dos corpos caídos no chão imundo.
O banho era dado daquele jeito absurdo: ficávamos enfileirados, e uma mangueira jogava
água fria em todos nós. No frio inverno que fazia entre aqueles morros, muita gente morria.
Pneumonia, tuberculose, crises de hipotermia. Até a gripe, no caso dos corpos mais frágeis, fazia
sucumbir alguns loucos: era assim que se vivia e morria na colônia Sant’Ana.
Minha entrada no “Livro de Atendimento de Psicopatas” era de número 311. Eu era a última
paciente da primeira leva da Colônia. Sem filhos, marido ou qualquer outra coisa que me
garantisse alguma saída de lá, fui jogada às traças. Por ser prostituta, as freiras me odiavam. Fui
jogada nas celas diversas vezes, jogada na maca do eletrochoque frequentemente, de forma que
parei de agredir as pessoas, para não morrer com o cérebro queimado. Fiquei dez anos lá.
As mulheres mortas foram removidas por enfermeiros – não eram bem enfermeiros, já que
não tinham formação alguma e isso era visível, mas todos os chamavam assim. Recolhi-me num
dos cantos da Sombrinha, um lugar onde muitos pacientes ficavam nos dias mais quentes, e onde
passávamos a maior parte do dia. Fiquei lá divagando enquanto outros ziguezagueavam ao redor,
numa eterna jornada em busca do nada. Eu era filha de estrangeiros. Minha mãe, uma mulher
com um nariz muito grande que eu herdara, estava doente quando fui internada. Eu começara a
me prostituir para ajudá-la, mas ela só fazia piorar. Na manhã de 27 de setembro de 1950, meu pai
apareceu para me visitar – algo que nunca fizera antes. Veio tirar-me de meu cárcere. “Agostina.
Tua mãe morreu.”
A pobre mulher havia sido jogada num hospital, mas num diferente: o Hospital Nereu
Ramos, inaugurado em 1943, e que abrigava tuberculosos. Minha mãe ia e voltava de lá, até que
não aguentou mais e morreu.
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Depoimento de Flor do Campo
Ainda me lembro da primeira noite em que Roberto frequentou a casa da Dona Elisa, nós ainda
estávamos localizadas na casa de número dezessete da Annita Garibaldi. Depois daquela noite, a
do casamento de Josefina, Roberto, virou frequentador do nosso teto. Me procurava na maioria
das noite, por eu ter sido a primeira, mas quando nos mudamos para a rua da figueira Roberto
conheceu a Italiana e se apaixonou por ela. Dali para frente os olhos dele eram só dela, mas ele
acabou constituindo família e depois do casamento as visitas foram ficando cada vez mais
distantes, até o dia em que cessaram de vez. Com o sumiço de seu homem a Italiana ficava cada
dia mais doente até que nem puta conseguiu mais ser e teve que ser levada para a colônia
Sant’Ana, pois enlouquecera. Foi muitos anos depois que eu descobri o motivo do
desaparecimento de Roberto: tinha morrido o coitado!
Depoimento transcrito por [M.B]
Florianópolis - Setembro de 2012 Travessa em Três Tempos Ano III N° 12
Vi então meu pai chorar pela segunda vez na vida. A primeira foi quando me bateu certa vez
na infância. Enterrada num cemitério de pobres, mamãe parecia um anjo no vestido branco que
eu havia roubado para mim quando saí de casa. Tinham sido conservados pela Dona Elisa, a
senhora bonita que me abrigara anos antes. Desculpei-me com mamãe no túmulo inúmeras vezes
por ter-lhe roubado os vestidos, e desculpei-me por ter ido pra Rua da Figueira. Creio que ela
tenha me perdoado, como meu pai acabou me perdoando.
Terminei minha vida morando com meu pai num bairro mais ao sul da ilha. Papai morreu
quatro anos depois da mamãe. Eu já estava com mais de quarenta anos quando, um dia, um
homem muito bonito, mais ou menos da minha idade, veio bater em minha porta. Carregava
traços familiares e uma caixinha de joia nas mãos. Eu morava num sobrado caindo aos pedaços em
cima de uma vendinha paupérrima. Como aquele moço me achou, não faço a mínima ideia. Mas
era filho do primeiro homem que atendi na casa de Dona Elisa, aquele que, tendo morrido, me fez
enlouquecer – eu o amara, muito. O homem, que devia ter a minha idade, talvez mais, veio me
entregar um anel e uma quantia considerável de dinheiro. Junto a isso, dois bilhetes e uma foto.
Era eu, nova, aos dezesseis anos, e meu bem feitor, o Primeiro. Os bilhetes eram nossas confissões
apaixonadas, e, na boca do homem à minha frente, as palavras: “Meu pai deixou para você.
Esperei que minha mãe morresse para te procurar, mas te achar foi muito mais difícil do que eu
esperava”. Contou-me que quando era um rapazote seu pai contava de suas aventuras com as
mulheres, e prometia levar-lhe até o bordel de Dona Elisa para conhecer as beldades de lá, e a
mulher dos seus sonhos. Morreu antes disso, deixando-me só e louca.
Meus olhos encheram-se de lágrimas, e o homem me abraçou. Chorei minhas pupilas,
pulmões, coração, meu peito inteiro ali, nos braços do filho do único homem entre tantos em
minha vida. Depois de alguns minutos soluçando, acabei por me acalmar. Olhei nos olhos do
homem, com devoção. Disse-lhe algumas palavras de gratidão. Quando ele estava indo embora,
chamei-o, e, com olhos maliciosos, perguntei: “Tem alguma coisa que a Italiana possa fazer por
você?”.
Ele sorriu, arrumou o chapéu, e saiu andando com as mãos nos bolsos.
Narrado por Belo Mar.
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Depoimento de Josué
Meu pai foi um homem de muitas paixões, a primeira foi a minha mãe, Patrícia. Eles estavam de
casamento quase marcado quando ele se apaixonou por uma mulher de alegria que ele chamava
Flor do Campo. Por causa dessa rapariga quase perdeu o casamento com minha mãe, meu avô
Granjeiro conta que nunca perdoou meu pai por ter faltado um jantar importante. Mas o velho
Granjeiro acabou cedendo à mão da filha já que ela estava decidida a se casar com Roberto e
chegou a ameaçar não se casar com mais ninguém. E você sabe, filha solteirona não é coisa bem
vista na sociedade. Meu pai foi a grande paixão de minha mãe, mas ele tinha uma paixão secreta,
como era de costume os homens de família ter naquela época. Seu Roberto pensava as escondidas
numa rameira de nome Gertrudes, a Italiana, e na hora de sua morte me fez jurar que a
encontrasse e lhe falasse de seu amor.
Depoimento transcrito por [M.B]
Florianópolis - Setembro de 2012 Travessa em Três Tempos Ano III N° 12
Olá! Nós somos a Revista Travessa em Três Tempos. Ouve-se pelos corredores
que o âmago desta idealização nasceu despretensiosamente, em blog, com o
objetivo de três autores-amigos pass[e]arem pelos três tempos históricos, tendo a
travessa como cenário, sem ser revisitada. De mais, “não sei, só sei que foi assim...”
Hoje, somos um projeto de extensão do Laboratório de Imagem e Som da
UDESC. Nos definem como revista histórico-literária e dizem que nosso objetivo é o
entretenimento do público em geral ao brincar com as diferentes versões da história.
Bem, concordamos com isso! Porque, como bem sabemos, na história não existe
uma verdade, mas várias. E é por isso que a gente se propõe a colocar a imaginação –
histórica ou não - pra funcionar e criar novas versões dos fatos trazidos prontos pelos
documentos históricos. Assim, a revista se forma, com várias possibilidades para a
história principal. Dizem que dá um bom resultado. Confira!
Editorial:
Como participar:
Um ou mais contos antes que o mundo acabe
Que a Travessa em Três Tempos é uma revista que narra a história de todas as
formas possíveis você já sabe. O que talvez você não saiba, é que pode participar
disso e contar a sua versão – como você gostaria que a História se desenrolasse?
Você é quem tece: damos o tema, a fonte, alguns fatos. A você cabe inspirar-se e
escrever!
No endereço http://revistatravessaemtres tempos.blogspot.com.br/, você pode
acompanhar os editais e mandar sua história! Conte, reconte, aumente quantos
pontos quiser – desde que sua narrativa não tenha diálogos e tenha a ver com o
documento (para mais detalhes, consulte os editais).
E então? Não vai escrever antes de o mundo acabar?
Ficha Técnica:
Atenção!
As historietas e depoimentos contidos nesse exemplar são todos fictícios.
Documento Base:
MACEDO, L.B. Ginga, Catarina: Manifestações do Samba em Florianópolis na década
de 1930. Florianópolis, 2011. Dissertação de Mestrado. (História do Tempo
Presente) Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Disponível em:
http://www.tede.udesc.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2636
Autores Participantes:
Kamylla Silva, Yuri Oberlaender
Textos de Redatores:
Ana Terra de Leon – Luccas Neves Stangler – Luiza Tonon – Taiane Santi Martins -
Tainah Lunge
Revisão:
Luiza Tonon
Edição e Diagramação:
Taiane Santi Martins
Capa:
Foto: Emilio Mesquita
Arte e design: Taiane Santi Martins
Equipe Travessa em Três Tempos:
Ana Terra de Leon - Luccas Neves Stangler
Mariana Rotili – Luiza Tonon
Taiane Santi Martins - Tainah Lunge
Idealização: Taiane Santi Martins
Apoio: Laboratório de Imagem e Som – LIS
Orientação: Profa. Mariana Joffily
Endereço para contato:
@revistatravessa
http://revistatravessaemtrestempos.blogspot.com