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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.
Sem ilustrao: a incapacidade das populaes rurais na profilaxia rural do Paran (1916-1921)
Beatriz Anselmo Olinto*
Resumo: No presente trabalho, a anlise da atuao da Comisso de Profilaxia Rural no Paran (1916-1919),
o ponto de partida para a reflexo sobre diferentes processos de deteriorao identitrias das populaes
rurais daquele estado no perodo de 1916 a 1921. Em meio a projetos sanitrios, colonizaes, resistncias,
misria, falta de recursos e parcerias, alm da ecloso da pandemia de Gripe Espanhola em 1918, a Comisso
elaborou um extenso relatrio sobre suas atividades. Com base nesses dados e dialogando com outros
documentos do perodo, busca-se perceber como foram articuladas e constantemente apropriadas concepes
a respeito das populaes do Brasil em horizontes de incapacidade, tanto civilizatria quanto de gesto
autnoma de suas vidas. Tambm so problematizadas quais expectativas de futuro, classificaes de grupo e
intervenes, estatais ou no, foram legitimadas por esses discursos.
Palavras-chave: Historia rural; Identificaes; Doenas.
Abstract: In this study the analysis of the actions of the Commission of Rural Prophylaxis in Paran (1916-1919),
is the starting point for thinking about different processes of deterioration of the rural identity in this state in
the period 1916 to 1921. In the midst of health projects, colonization, resistance, poverty, lack of resources,
partnerships and the outbreak of the Spanish Flu pandemic in 1918, the Comission prepared an extensive
report on their activities. Based on these data and dialogue with other documents of the period, we seek to
understand how they were constantly articulated and appropriate conceptions about the population in
horizons of disability for the civilization and autonomous management of their lives. Which are also
problematized the future expectations, group interventions, for the state or not, were legitimized by these
discourses.
Keywords: Rural history; Identity; Diseases.
INTRODUO
Toda a gente mais ou menos infensa a submeter-se a um tratamento mdico srio, sobretudo quando a doena no o fez sofrer muito, e o povo, a classe baixa, sobretudo o sertanejo sem educao e sem ilustrao, ainda mais difcil de se deixar convencer da necessidade de certas medidas teraputicas e higinicas.
1
No presente trabalho, a anlise da atuao da Comisso de Profilaxia Rural no
Paran (1916-1919), chefiada pelo mdico Herclides de Souza Arajo e autor da citao
acima, o ponto de partida para a reflexo sobre diferentes processos de deteriorao
identitria das populaes rurais daquele Estado no perodo de 1916 a 1921. Em meio a
* Professora associada da Universidade Estadual do Centro-Oeste e professora do programa de ps-graduao em Histria na mesma instituio. 1 SOUZA ARAUJO, Herclides Cesar de. A Prophylaxia Rural no Estado do Paran: Esboo de Geografia mdica.
Curitiba: [s.n.], 1919, p. 130.
http://dx.doi.org/10.5007/1984-9222.2012v4n8p102
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projetos sanitrios, colonizaes, resistncias, misria, falta de recursos e parcerias, alm da
ecloso da pandemia de Gripe Espanhola em 1918, a Comisso elaborou um extenso
relatrio sobre suas atividades, bem como construiu quadros de Geografia Mdica sobre as
doenas, o territrio e as populaes atendidas. Com base nesses dados e dialogando com
outros relatrios da viagem e mensagens do governador no perodo, busca-se perceber
como foram articuladas e constantemente apropriadas concepes a respeito das
populaes do Brasil em horizontes de incapacidade, tanto civilizatria quanto de gesto
autnoma de suas vidas. Tambm so problematizadas quais expectativas de futuro,
classificaes de grupo e intervenes, estatais ou no, foram legitimadas por esses
discursos.
A hiptese aqui levantada que a noo de heteronomia auxilia a compreenso dos
diagnsticos cientficos elaborados, nas primeiras dcadas do sculo XX, por diferentes
parcelas da intelectualidade nacional. Neles construram-se regies e identidades de grupo
como formadores do que era ento compreendido como o rural neste pas. Os discursos
podiam ser diversos, porm apresentam permanncias de deslegitimao de pessoas como
sujeitos autnomos e, tambm, deslegitimam seus saberes, hbitos e posses sobre a terra.
Para prosseguir nesse intento o primeiro passo definir o que se entende por
heteronomia e autonomia. Aqui, acompanha-se a definio de Kant, na qual a autonomia
no escolher seno de modo a que as mximas da escolha estejam includas
simultaneamente, no querer mesmo como lei universal.2 Assim, a autonomia deriva da
noo de esclarecimento (ilustrao), definida por esse filsofo. Pois que, para Kant,
esclarecer era sair da minoridade, da tutela de outrem, era o uso livre da razo por si e a
conseqente responsabilidade por isso, nas palavras do autor: A menoridade a
incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direo de outro indivduo. 3
Em oposio ao uso autnomo da razo e ao seu imperativo categrico, que se
compem o conceito de heteronomia. Nele encontra-se uma forma de sujeio a uma lei
exterior ou quaisquer outras determinaes que no pertenam ao mbito da legislao
estabelecida pela conscincia moral de maneira livre e autnoma, nas quais no a
vontade que ento da lei a si mesma, mas sim o objeto que d a lei vontade pela sua
relao com ela4. A heteronomia ento seria uma menoridade diante da vontade de
outrem, de um interesse pessoal ou passional.
A proposta aqui compreender essa diferenciao como parte integrante da
resposta a pergunta O que o esclarecimento? em Kant. Conseqentemente, esclarecer
seria uma sada, uma soluo. Michel Foucault tambm analisou o mesmo texto e destacou
que o sentido do esclarecimento seria ao mesmo tempo um processo e uma tarefa, j que
para Kant: o prprio homem responsvel por seu estado de menoridade. preciso
2 KANT, I. Fundamentao da metafsica dos costumes. Lisboa: Edies 70, 2005 (p. 85, BA 87)
3 KANT, I. O que Esclarecimento? Disponvel em , Acesso em: 12. dez.2010.
4 KANT, I. Fundamentao da metafsica dos costumes. Op. Cit. (p. 86-87, BA 88-89).
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conceber ento que ele no poder sair dele a no ser por uma mudana que ele prprio
operar em si mesmo. Uma sada autnoma.5
Ento, apesar da autonomia ser a base para o esclarecimento, esse ltimo,
enquanto paradigma de conhecimento acabou delegando os imperativos ao seu prprio
fundo social. Assim, a sociedade burguesa que se desenvolveu no sculo XVIII entendia-se
como um mundo novo: reclamava intelectualmente o mundo inteiro e negava o mundo
antigo. Cresceu a partir do espao poltico europeu e, na medida em que se desligava dele,
desenvolveu uma filosofia do progresso que correspondia a esse processo. O sujeito desta
filosofia era a humanidade inteira que, unificada e pacificada pelo centro europeu, deveria
ser conduzida em direo a um futuro melhor.6
Esse movimento desenvolveu-se, durante os sculos XIX e XX no ocidente, por uma
razo Iluminista composta como fora constituidora do novo, como razo instrumental que
age no presente para superar o passado e construir um futuro melhor. Essa reflexo
fundamental na crtica contempornea dialtica inerente ao esclarecimento. Construindo
um paradigma de conhecimento no qual o conhecer dominar e transformar o outro.
Essas crticas so aqui pertinentes pois que se busca incluir o projeto de Profilaxia
Rural no Paran em horizontes mais amplos de reflexo, a saber a formao do
conhecimento e a manipulao da diferena na epistem moderna. Pois que, se o projeto de
Profilaxia visava criar sujeitos higinicos em corpos dceis, esse processo de encontro entre
saberes cientficos e os viventes do campo se dava atravs de uma postura de tutela do
outro pelo conhecimento e conhecedor autorizado pela cincia. As mudanas propostas por
parte da Profilaxia para as populaes rurais do pas poca deste estudo no foram
pensadas como mudanas destas pessoas por si mesmo, ou melhor, mudanas produzidas
por vontades autnomas (e imperativos universais), mas sim como objetos para os
interesses e determinaes nacionais de ento. A poltica nacional era biopoltica, em nome
de um projeto de construo da nao sua populao deveria ser salva de sua pressuposta
ignorncia, suas vidas avaliadas, territorializadas, classificadas e projetadas para o futuro por
diferentes dispositivos, a Profilaxia Rural no Paran foi um deles.
PROFILAXIA RURAL NO PARAN: IDENTIFICAES, DOENAS E TRAGDIA
Os trabalhos desenvolvidos pela Comisso de Profilaxia Rural no Paran entre os
anos de 1916 e 1919, passaram por diferentes estratgias e olhares sobre as populaes
rurais paranaenses. A Comisso foi chefiada pelo mdico Herclides de Souza Araujo, mdico
paranaense e membro do grupo de cientistas em torno de Oswaldo Cruz. Souza Arajo
voltara ao Paran em 1916, exatamente para chefiar a Comisso de Profilaxia Rural no
Estado (C. P. R. Pr.). Souza Arajo, Adolpho Lutz e Olmpio da Fonseca haviam publicado o
5 FOUCAULT, Michel. O que o esclarecimento? In: FOUCAULT, M. Arqueologia das Cincias e Histria dos
sistemas de pensamento. (Ditos e Escritos II) 2 ed. Rio de Janeiro: Forense universitria, 2005 (p. 338). 6 KOSELLECK, Reinhart. Crtica e crise: uma contribuio para patognese do mundo burgus. Rio de Janeiro:
EDUERJ/ Contraponto, 1999, p. 9-10.
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relatrio da viagem feita pelo rio Paran, ao incio do ano 1918, naquele mesmo ano pelo
Instituto Oswaldo Cruz.7 As informaes colidas durante essa viagem sero utilizadas
tambm no relatrio da C.P.R.Pr.
Inicialmente, a Comisso pretendia desenvolver uma proposta profiltica para a
lepra. Porm, para o grupo de jovens mdicos que o acompanharam na Comisso, o desafio
inicial de combate lepra logo seria ampliado para o combate s diversas verminoses
disseminadas na populao rural do Estado, tanto nos campos, no litoral, nas cidades e nos
sertes. A Comisso realizou trabalhos de profilaxia da ancilostomose, da ascaridase, entre
outras verminoses. Alm destas, tambm exerceu profilaxia sobre a sfilis, o
impaludismo/malria, o bcio, a doena sodoku e, diante da impossibilidade de lidar com a
lepra, elaborou um grande projeto de isolamento compulsrio para essa doena. A Comisso
tambm tratou de organizar e propor diversos projetos sanitrios e da ampliao das
pesquisas sobre as doenas atendidas.
A problemtica aqui desenvolvida busca compreender como a complexidade e o
carter trgico das vivncias encontradas pelos jovens mdicos da Comisso expuseram as
contradies entre os planos iniciais traados pelo olhar mdico, os interesses oligrquicos,
os recursos disponveis e as vivncias das populaes atendidas. O relatrio apresenta um
mundo sem consolo, compondo um palco trgico no qual: o belo e o horrvel que compem
a vida humana tornavam-se plasticamente conhecidos, em uma sabedoria maior que as
palavras. 8 Alm disso, rastreia-se a permanncia de vises sobre as populaes rurais nas
quais so percebidas como incapazes para a autogesto de suas vidas impondo-lhes, como
caminho para o progresso, uma vivncia tutelada.
Em 1919, a Comisso entregar aos governos Federal e Estadual, como tambm
publicar, um amplo relatrio dos trabalhos desenvolvidos at aquele ano. Nele, encontra-se
o mapeamento do combate realizado s doenas endmicas que, segundo o prprio decreto
que regulamentava o Servio de Profilaxia no Estado do Paran, dificultavam o trabalho nos
campos e concorrem para a inferioridade orgnica do Homem 9 Assim, no eram todas as
doenas que seriam alvo da profilaxia , mas sim as que incapacitavam ao trabalho, como a
lepra, a sfilis, o impaludismo e as verminoses, essas tambm eram vistas como causas de
uma suposta inferioridade daquele homem.
Com a criao de uma viso de caos sanitrio no universo rural, uma ao ordenatria
ser iniciada pelo Presidente do Estado Afonso Alves de Camargo em 1916 e mantida na
dcada de 20, quando o governador Caetano Munhoz da Rocha impor uma poltica de
sade pblica sistematizada em grandes instituies no Paran. Alm de manter em
funcionamento os servios de Profilaxia Rural. Se Afonso de Camargo constituiu um trip de
7 LUTZ, A., SOUZA ARAUJO, H.C, FONSECA, O. Viagem Cientfica pelo rio Paran e a Asuncion com volta por
Buenos Aires, Montevidu e Rio Grande. Memrias do Instituto Oswaldo Cruz. Fascculo III, tomo X. Rio de Janeiro: Manguinhos, ano 1918, p. 104-173. 8 OLINTO, B. A . Pontes e Muralhas: diferena, lepra e tragdia no Paran no incio do sculo XX. Guarapuava:
UNICENTRO, 2007. (p. 20) 9 Decreto 799/1918 In: SOUZA ARAUJO, Herclides Cesar de. A Prophylaxia Rural no Estado do Paran: Esboo
de Geografia mdica. Curitiba:[ s.n.], 1919, p. 25.
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atendimento baseado na Profilaxia, vacinao e hospitais, ser Munhoz da Rocha que far
uma poltica de sade pblica monumental, simbolizada pela construo de trs grandes
instituies hospitalares: uma para a centralizao de todos os leprosos do estado, o
Leprosrio So Roque; outra para atendimento aos tuberculosos, o Sanatrio So Sebastio
da Lapa e, finalmente, uma para doenas transmissveis em geral, o Hospital de Isolamento
Oswaldo Cruz.10
Destaca-se que a Comisso funcionar com a parceria entre o governo Federal,
Estadual e a Fundao Rockefeller, esse modelo foi implantado durante a Primeira Repblica
no Brasil, a partir de 1910. Segundo Lina Faria, a partir de ento que as reas rurais
passaram a fazer parte das polticas de sade executadas pelo governo federal, at ento
essas eram muito mais centradas nos portos e na capital11.
Os recursos para essa profilaxia rural vinham do governo federal (variavam entre
e 1/3, conforme decreto federal de 1 de maio de 1918 e as regulamentaes estaduais
posteriores12) Assim, constitui-se um projeto de nao que pressupunha a integrao do
rural ao paradigma de civilizao importado da Europa em um universo no qual as vises
sobre as mazelas do Brasil se davam dentro de um enquadramento dualista habitado por
pares indissociveis, tais como litoral-serto, sade doena e moderno-atrasado13
Porm, ainda acompanhando as pesquisas de Faria, as parcerias com a Fundao
Rockefeller foram firmadas aps o Brasil j ter atravessado os momento iniciais de sua
reforma sanitria.14 Nesse sentido, a Profilaxia Rural no Paran foi estabelecida em um
sistema elaborado a partir dos trabalhos desenvolvidos por Oswaldo Cruz e do grupo em
torno de Manguinhos. Aliana entre o governo federal, o estadual e a Fundao Rockefeller (
dos recursos) constituda com papis bem especficos: o primeiro encarregava-se da
direo, das estratgias e grande parte dos recursos, o segundo tambm com recursos e
pessoal para apoio logstico, e a terceira atuava de forma mais localizada, no caso do Paran
com postos em Antonina e Paranagu. Porm, a Fundao Rockefeller fornecia a troca de
experincias e bolsas de estudo para a formao dos profissionais da rea mdica do pas.15
Cabe apontar mais um fator na instituio da CPRPr, a instncia municipal de
administrao pblica, pois o relatrio aponta frequentemente para a diferena de apoio
recebido por parte dos governos municipais para os trabalhos da Comisso. Esses sero pea
chave para a manuteno dos servios ou no, pois para alm da escassez de recursos
mapeia-se tambm as tenses que envolviam a realizao do projeto elaborado no nvel
federal e executado nos domnios das oligarquias locais. Em 1919, quando Souza Araujo faz
10
Ver: OLINTO, Beatriz. Pontes e Muralhas: Diferena, lepra e tragdia no Paran. Guarapuava, PR: UNICENTRO, 2007. 11
FARIA, Lina. Sade e Poltica: a fundao Rockefeller e seus parceiros em So Paulo. Rio de Janeiro: Fio cruz, 2007 (p. 52). 12
SOUZA- ARAUJO. Profilaxia... Op. Cit., p. 14 e 21. 13
LINA, Nsia ; HOCHMAN, Gilberto. Pouca sade e muita sava: sanitarismo , interpretaes do pas e cincias sociais. In:HOCHMAN, Gilberto; ARNUS, Diego. Cuidar, controlar, curar: ensaios histricos sobre sade e doenas na America Latina e Cariba. Rio de Janeiro: Fio cruz, 2004 (p. 496-497) 14
FARIA, Lina. Sade e Poltica..., op. cit., p. 55. 15
Idem (p. 40)
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uma avaliao dos trabalhos realizados dirigida ao Presidente da Repblica, a forma
escolhida pelo autor narrar e justificar primeiro as dificuldades na execuo para, somente
aps, no desenrolar do texto apontar as realizaes, assim:
O servio da profilaxia rural ainda representa para ns uma tentativa e uma experimentao. Sua execuo se nos apresenta extremamente cheia de dificuldades em virtude da grande extenso do nosso territrio, da quase infinita diversidade das condies locais, onde temos de operar, e, finalmente, em face da exigidade dos nossos recursos relativamente ao vulto grandioso da empresa.
16
Apesar de fazer parte da smula dos trabalhos realizados17, o texto compe um
ideia de continuidade desses trabalhos, o que conseguiria em 1920 com a renovao do
convnio entre estado e o governo federal18. Tambm passa a ideia de uma experimentao,
ou seja, se por um lado traz a noo de conhecimento produzido pela experincia, por outro
ameniza as expectativas quanto ao seu resultado. Funo tambm cumprida pelo destaque
dado s dificuldades encontradas, a saber, a extenso do territrio, as sua diversidade local
e a falta de recursos. Ser a partir desse quadro que o mdico passar a descrever
minuciosamente a atuao da Comisso no captulo seguinte da obra, sob o ttulo
Geografia Mdica.19 A modernidade rural apresentada como tarefa imensa para heris
incompreendidos e solitrios, quase personas trgicas.
Foi no sculo XX que a questo da constituio de polticas de sade para a rea
rural por parte do governo federal brasileiro foi elaborada. O debate em torno da
possibilidade civilizatria dessas populaes levou uma intelectualidade nacionalista a
primeiro diagnosticar quais seriam os entraves para esse progresso e depois a lutar pela
realizao da reforma sanitria nos sertes. Assim, um novo projeto de nao foi elaborado
e esse s seria vivel por meio da integrao do sertanejo civilizao do litoral.20
Atuao da CPRPr pode ser compreendida a partir da publicao do relatrio de
Artur Neiva e Belisrio Penna sobre a expedio mdico cientfica do Instituto Oswaldo
Cruz ao interior do Brasil em 1916, nele o quadro composto era de um pas com uma
populao desconhecida, atrasada, doente, improdutiva e abandonada, e sem nenhuma
identificao com a ptria.21 Logo em seguida, ao incio de 1918, criada Liga Pr-
saneamento do Brasil, liderada tambm por Penna. Some-se a isso, a intensa publicao de
artigos por parte de mdicos e intelectuais tanto na capital do pas, quanto na capital do
Estado sobre a temtica, constitua-se uma viso de atraso do Brasil em relao aos pases
europeus e sua nova resposta. Afinal, no era mais a culpa da raa e sim das doenas, o
suposto atraso civilizatrio do Brasil.
16
SOUZA ARAJO. Profilaxia Rural..., op. cit., p. 30. 17
Idem, capa. 18
PARAN. Mensagem do Presidente do Caetano Munhoz da Rocha dirigida ao Congresso Legislativo do Estado. 01/02/1920, p. 89. 19
Idem, p. 4. 20
FARIA, Lina. Sade e Poltica..., op. cit., p. 52. 21
LIMA, N.; HOCHMAN, G. Pouca sade e muita sava. Op. Cit., p. 498.
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Essa mudana de postura bem representada em Jeca Tatu a ressurreio de
Monteiro Lobato, publicado no mesmo ano de 1918. Pois que a descrio do personagem
pelo autor passara de funesto parasita da terra em 1914, para: O Jeca no assim; est
assim em 191822. A representao do caboclo no era mais de um ser quase morto em
meio a uma natureza exuberante, mas sim, de algum doente a ser salvo pela ao da
medicina.23 Essa mudana na viso de Monteiro Lobato pode ser vista como um smbolo da
nova problemtica construda pela intelectualidade brasileira sobre as populaes rurais. Se
at a primeira da dcada do sculo XX, o povo estava condenado a uma incapacidade
civilizatria pela raa, agora, ele poderia ser higienizado atravs do saneamento do serto.
Esse era o novo problema a ser solucionado pelo estado e pela cincia atuando em conjunto.
Viso essa que ser reencontrada ao final do relatrio da C.P.R.Pr.:
Combatemos tambm a assero vulgar desprovida de qualquer fundamento cientifico, to arraigada entre o povo e tambm os letrados, de que a anemia do nosso povo do litoral e dos campos corre por conta da m e insuficiente alimentao, a que ele se sujeita, descrevendo os nosso patrcios do interior como vitimas da inanio em meio a uma natureza rica e uma terra que d tudo o que se quer. O que acontece o seguinte; nas zonas de alta endemicidade da ancilostomose o homem em geral pouco produtor porque pouco trabalha, e se no trabalha mais no instinto de preguia e sim por que doente
24
Na passagem acima, no mesmo sentido da ressurreio do Jeca Tatu, tambm o
homem rural do Paran poderia ser salvo de seu suposto pouco trabalho. Esse no era por
ndole e sim por anemia. Doena esta, causada por verminoses e no por subnutrio, na
viso do mdico. Porm, se fosse subnutrio, a sim seria culpa do trabalhador, pois que a
qualidade da terra nunca questionada nos discursos provenientes das autoridades ligadas
ao governo do Estado do Paran. Porm, esses discursos no podem em nada ofuscar a
compreenso da diversidade de posies relacionais dos grupos envolvidos.25 O convnio do
Governo Federal com o Estado, que possibilitava a existncia da Profilaxia Rural, necessitava
criar constantemente imagens de consenso para aprovar o seu oramento26. O convnio
com a Fundao Rockefeller elogiado, entretanto o prprio Souza Araujo aponta limites do
tratamento ali desenvolvido. As oligarquias locais orbitam entre apoio aos trabalhos da
Comisso e o aberto boicote a eles.
22
Passagens extradas de Urups e Problema vital de Monteiro Lobato apud NAXARA, Mrcia. Estrangeiro em sua prpria terra: representaes do brasileiro - 1870/1920 . So Paulo: FAPESP/Annablume, 1998 (p. 25 e 28). 23
Idem, p. 29. 24
SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. cit., p. 211. 25
Sobre conflito de interesses entre governos estaduais e federais para a Profilaxia Rural , ver: LINA, Nsia ; HOCHMAN, Gilberto. Pouca sade e muita sava: sanitarismo , interpretaes do pas e cincias sociais. In: HOCHMAN, Gilberto; ARNUS, Diego. Cuidar, controlar, curar: ensaios histricos sobre sade e doenas na America Latina e Cariba. Rio de Janeiro: Fio cruz, 2004 (p. 496-497), artigo demonstra o conflito entre governo federal e seus projetos de profilaxia e as oligarquias locais a partir da constituio de 1891. 26
Sobre as estratgias para a construo de um apoio no Congresso Legislativo Estadual do Paran para investimento em sade ver: OLINTO, Beatriz. Pontes e Muralhas: Diferena, lepra e tragdia no Paran. Guarapuava: UNICENTRO, 2007. A autora aponta que o oramento para a construo de um Leprosrio havia sido rejeitado pelo congresso legislativo do Paran em 1917.
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Todavia, atravs do Relatrio da C.P.R.Pr., Souza Arajo, como tambm os demais
mdicos da sua equipe, narram e organizam, avaliam e classificam as suas atividades como
se essas fossem a nica sada para o futuro nacional. Para isso, assumem a responsabilidade
por essa tarefa de conduzir o progresso, constituindo-se como sujeitos modernos. Da
tambm apresentarem as dificuldades encontradas, a populao atendida, as doenas, os
tratamentos e os resultados.
No incio do Relatrio, o mdico j afirma que a motivao de todo o trabalho havia
sido a questo da lepra, mas por vrios motivos acabara ficando relegada a um segundo
plano, pelo menos naquele momento. Segundo ele:
Vrios obstculos foram aparecendo e no se fez at hoje (1919) a profilaxia da lepra, mas em compensao, a campanha contra as verminoses em todos os municpios da marinha vai dando os mais brilhantes resultados, e a campanha anti-paldica por ns iniciada e dirigida acabou com o grande espantalho e o grande ceifador da vida dos preciosos trabalhadores do serto.
27
Na passagem acima o mdico aponta os vrios caminhos em que os trabalhos da
Comisso se subdividiram, para alm do projeto inicial. O fracasso com a lepra naquele
momento inicial era amenizado pela construo de uma viso atuao diante das outras
doenas. Porm, os trabalhos da Comisso e de Souza Arajo devem ser analisados dentro
do quadro maior de criao, pelo Governo Federal, do Servio de Profilaxia Rural com o
objetivo de combater as endemias que assolam o interior do pais28 . Atravs desse Servio
foram fundados postos sanitrios em vrias cidades do interior do pas. com esse sentido
que, em 1919, ainda sob o impacto da Gripe Espanhola, os servios nacionais de sade so
reformulados29.
Souza Arajo continua a obra relatando as campanhas realizadas contra as
verminoses, o trabalho conjunto com a Comisso Rockefeller30, o caos dos servios de sade
no Paran quando da Gripe Espanhola. O Relatrio, alm de ser uma fonte profcua sobre
esses assuntos, apresenta as propostas do mdico para o atendimento lepra. Nelas
delineia-se a sua viso sobre o isolamento. Esses indcios apontam que, entre os finais das
dcadas de 10 e 20, ocorreu uma mudana de perspectiva mdica e poltica sobre a sade
das populaes, demarcando uma maior atuao estatal na sade pblica. As polticas de
sade pblica nesse perodo demonstram a ampliao do papel do estado, assumindo a
responsabilidade pelo manejo das populaes.
Por outro lado, percebe-se Souza Arajo como um sujeito da razo que projeta
sobre o papel um vir a ser futuro para aquelas populaes. Para isso os trabalhos da
27
SOUZA ARAJO. Profilaxia Rural...., op. cit., p 12. 28
Artigo 1 do decreto 13/ 001 de 1 de maio de 1918 que criou o servio, In: SOUZA ARAJO. Idem, p. 20. 29
Ver: OLINTO, B. A. Uma cidade em tempo de epidemia: Rio Grande e a Gripe Espanhola. Dissertao (Mestrado em Histria). Florianpolis: UFSC, 1995. 30
A Comisso Rockefeller, segundo ROSEN, atuava no sentido de auxiliar os pases na criao de agncias de sade nacionais e locais, includos os recursos humanos e materiais sobre os quais, no futuro se possam sustentar. Ver: ROSEN, George. Uma Histria da Sade Pblica. So Paulo: UNESP, Rio de Janeiro: HUCITEC, 1995, p. 363.
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Comisso eram tambm uma organizao das gentes e das coisas em um conhecer
elaborado atravs da classificao, do levantamento estatstico e espacializao das
doenas. O mdico construa em seus escritos um mundo perfectvel, sua viso era de
superao constante rumo ao progresso e de uma crena, at aquele momento, inabalvel
na cincia e no futuro.
Espacializar a distribuio de doenas um criar de territrios para elas,
possibilitando assim, o domnio desse territrio por um saber estratgico, sendo ento um
suporte para o exerccio de poderes. Acompanhando Foucault, ao recorrer geografia o
discurso mdico estaria se apropriando dos dois procedimentos de verdade que ali se
encontram. A saber, o inqurito seria o procedimento de verdade das cincias naturais; o
exame, o procedimento de vigilncia das cincias humanas31. Pode-se ento perceber, de
que maneira a medicina ancora a sua cientificidade duplamente, nas cincias naturais e nas
cincias humanas.
UMA GEOGRAFIA MDICA: O INQURITO, O EXAME E A VIGILNCIA
Para compreender o horizonte conceitual da atuao mdica de Souza Arajo
necessrio refletir sobre a concepo de Geografia Mdica. O conceito Geografia Mdica
advindo do sculo XIX, mais especificamente da obra Ensaio de Geografia Mdica de Boudin
em 1843. Segundo Sandra Caponi, nessa obra o autor procurava por leis de propagao das
enfermidades que fossem anlogas s da distribuio das espcies vegetais. Isso ,
percebendo a influncia da latitude, longitude, temperatura, presso, geologia, relevo, etc.
Assim, a Geografia Mdica tinha como objetivo estudar a distribuio das doenas e
conhecer as modificaes que imprimem no organismo por influncia do clima. 32 Desse
conhecimento adviria o projetar das intervenes necessrias no ambiente com o objetivo
de controle das doenas. Ideias que fundamentavam, por exemplo, a secagem de pntanos,
pois que esses para Boudin seriam propcios para febre paldicas e a peste.33
O conhecer geogrfico ento apresentado como um suporte condio de
possibilidade do exerccio de poderes cientficos e estatais para o saneamento do ambiente
e a sade das populaes. Nesse caminho o captulo Geografia Mdica do relatrio da
Comisso de Profilaxia Rural inicia com a descrio e avaliao dos trabalhos realizados por
esta em Curitiba e no incio do ano de 1917, o ento Presidente do Estado Affonso de
Camargo faz tambm sua avaliao da necessidade da Profilaxia e de sua atuao:
Se h servio pblico que mais deva preocupar a ateno dos governantes sem dvida o da
higiene. Em que pese a salubridade e a amenidade do nosso clima, devemo-nos acautelar
contra molstias endmicas e epidmicas.34
31
FOUCAULT, M. Microfsica do Poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 162. 32
CAPONI, Sandra. Sobre La aclimatacin: Boudin y La geografia mdica. Histria,Cincia e Sade- Manguinhos. V.14, n. 1, p. 13- 38, jan.- mar. 2007, p. 29. 33
Ver: CAPONI. Idem..., p. 29. 34
PARAN. Mensage... 01/01/1917, p. 11.
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111 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
Da a importncia do trabalho da Comisso, pois naquele momento estava a
percorrer o Litoral do Estado, onde faz a geografia mdica daquela regio, para que, em
virtude das observaes feitas, possa o governo tomar as providncias que elas
aconselham.35 Percebe-se ento a viso do conhecimento cientfico instrumental, na qual
as informaes levantadas pelo trabalho da C.P.R.Pr. seriam a origem de uma ao eficaz por
parte do governo do estado na gesto da higiene pblica.
Trazer o conceito de Geografia Mdica para o Paran nas primeiras dcadas do
sculo XX apresentava-se aos envolvidos como um trabalho hercleo. Foi assim constituda
toda uma hierarquia burocrtica entre guardas sanitrios, tcnicos laboratoriais e mdicos.
Para cobrir esse espao, a C.P.R.Pr. contava com uma equipe inicial interdisciplinar com dez
mdicos e composta por microscopistas e guardas sanitrios. O pequeno nmero de pessoas
envolvidas na Comisso aponta a importncia das parcerias municipais para a realizao dos
trabalhos e, com a Fundao Rockefeller, para o levantamento de dados.
Abaixo se pode observar a amplitude do levantamento da Comisso, atravs do
mapa elaborado a partir dos dados sobre a infeco por Ancilostomose no estado.
Figura 1: Mapa do Paran na perspectiva mdica da Ancilostomose
Fonte: SOUZA ARAUJO. Profilaxia. Op. Cit.
importante destacar que essa espacializao era sempre feita a partir das normativas
do Instituto Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, como tambm eram os saberes desse Instituto
35
PARAN. Mensagem.... 01/01/1919.
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112 SEM ILUSTRAO
que instruam todo o projeto de Profilaxia Rural no pas. No Paran as medidas adotadas
pela Comisso Profilaxia Rural iniciaram pela capital do estado. Essa no escapava a
percepo de rural, pelo menos no olhar projetado do Rio de Janeiro. Consequentemente,
os trabalhos realizados em Curitiba iniciam, com a abertura do Posto de Profilaxia. L a
situao apresenta-se um pouco diversa em relao as outras localidades do Paran, pois o
seu posto ser central, ou seja, o local de centralizao de todos os trabalhos da Comisso.
Para isso o Governo Federal definiu em junho de 1919 que somente funcionariam junto ao
Posto Central os servios de vacinao e o dispensrio anti-siflico, devendo ser fechada a
Policlnica dos Pobres que funcionava, at ento, no mesmo prdio.36
Entretanto, pode-se compreender melhor essa instruo acompanhando o
Relatrio. Nele Souza Arajo informa que, aps a epidemia de gripe de 1918, [...] a
populao pobre desta capital continuou a procurar, para consulta de todas as doenas, o
nosso posto central, acostumada que estava a ser aqui prontamente socorrida por ocasio
da grande epidemia. Em consequncia disso, o Ministro da Justia e Negcios Interiores, a
quem estava subordinada a Comisso, havia decidido pela extino da tal Policlnica dos
Pobres, pois [...] a maioria destes doentes no interessava muito a questo da higiene
pblica, e devendo os mdicos internos se preocupar mais com as pesquisas de laboratrio e
o dispensrio anti-siflico [...].37
Nessa passagem, a constituio da doena como problema a ser solucionado,
quase nada tem a ver com a sua existncia natural e sim com as questes histricas que
transformam em um dado momento, uma determinada doena, em um problema. Segundo
o Relatrio em questo, a populao de Curitiba padecia de muitas outras molstias e as
percebiam como passiveis de tratamento mdico e a ele recorriam. Mas, apesar dessa
demanda, o Ministrio havia decido fechar esse servio em favor da higiene, da pesquisa e
do tratamento da sfilis. Indicando que o atendimento disponvel por parte de uma medicina
social definido pelos cnones da cincia e da administrao pblica e no por demanda.
Esse evento narrado por Souza Araujo corrobora com as interpretaes
recorrentes na historiografia sobre esse momento histrico, como um perodo no qual a
interveno buscava prioritariamente salvar o futuro nacional, em nome de um modelo de
civilizao ocidental moderna. As populaes pobres eram percebidas como potencialmente
perigosas e entraves a esse modelo. A higienizao dos seus corpos e o saneamento do seu
habitat seria, supostamente, o caminho para transform-las e sujeit-las produtividade
capitalista. A Comisso de Profilaxia apresenta-se nesse quadro como uma operao
estratgica de produo de conhecimento, da tambm a importncia das pesquisas
realizadas por seus membros, pois delas deveria decorrer a verdade cientfica sobre o
presente que instrumentaria a interveno estatal e possibilitaria prever e controlar o
futuro.
Logo a seguir, na narrativa do prprio mdico, ele informa que, aps o fim da
Policlnica dos Pobres no ms de junho de 1919, [...] pudemos nos escusar da obrigao de
36
SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. Cit., p. 40. 37
Idem (p. 50).
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113 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
examinar e tratar todos os doentes que procuravam o nosso servio, mas, pelo habito de
humanidade que adquire todo o mdico que lida com o povo, fomos afrouxando e hoje a
consulta gratuita diria no nosso servio voltou a ser um fato.38 A vida mais complexa que
os projetos e se infiltra nas fissuras dos dispositivos.
O Dispensrio Antissifiltico de Curitiba era apresentado como o arqutipo
civilizacional da Comisso, l era a central de comando da estratgia profiltica, o local que
abrigaria os principais laboratrios. Um espao disciplinar privilegiado para estudar os
comportamentos desviantes. Porm, as pessoas atendidas pela Policlnica dos Pobres
tambm estavam l. Elas eram sujeitos que sabiam resistir e manipular regras e situaes
que se apresentavam. Tal fato expe os mdicos a uma dimenso trgica do viver, pois a
populao recorria aos seus saberes, entretanto os parcos recursos dispensados sade no
haviam sido projetados para esse tipo de atendimento. No projeto profiltico rural, a
populao que deveria ser salva e as doenas que deveriam ser combatidas tornavam-se
apenas uma projeo sobre os viventes. As mximas a serem conhecidas e atendidas eram
exteriores vontade dos envolvidos, eram mscaras, fantasmagorias cientficas, apartadas
da vontade e necessidade cotidiana.
Retomando a anlise da opo da Comisso de Profilaxia Rural do Paran por uma
geografia mdica, destaca-se que essa opo j indicava o carter de seus procedimentos. O
conhecer geogrfico reunia em si os procedimentos do inqurito (cincia naturais) e do
exame (cincias humanas). Nele a verdade constitua-se tanto por ajustamento de partes
(testemunhos, provas), quanto pela vigilncia (um olhar minucioso).39 Da deter-se um pouco
mais no funcionamento deste dispositivo.
O funcionamento dos servios profilticos iniciava com a abertura do Posto
Sanitrio. Esse era organizado em um prdio cedido pela prefeitura local e tinha a sua
direo geral entregue a um mdico diplomado. Esse ltimo deveria residir no local e
realizar os tratamentos gratuitamente. Tambm cabia ao mdico visitar em casa os doentes
que resistissem ao tratamento e convenc-los a participar, bem como proferir as
conferncias educativas para a populao.40 Os resultados esperados dessas medidas podem
ser resumidos na passagem abaixo:
Vereis que aos poucos estes indivduos plidos, edemaciados, barrigudos, e de olhos sem brilho, de pele cor de terra, de fisionomia sem expresso, de artrias sem sangue, de crebros sem inteligncia e de crescimento retardado, iro cada dia rareando mais e a sade voltar aos vossos lares e com ela a alegria e a felicidade. Ento levantareis as mos para o cu e agradecereis ao Deus de vossa religio os benefcios que a cincia vos trouxe. Chegar ento o dia, feliz para a nossa ptria, em que no mais sero chamados os nossos irmos do litoral e dos campos, de indivduos, indolentes e preguiosos e sem inteligncia.
41
38
SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. cit., p. 50. 39
Ver: FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurdicas. 3 ed. Rio de Janeiro: NAU, 2003 e FOUCAULT, M. Sobre a Geografia In:FOUCALUT, M. Microfsica do Poder. 10 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 40
SOUZA ARAUJO. Profilaxia... Op. Cit., p. 66. 41
Idem, p. 64.
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114 SEM ILUSTRAO
A citao acima foi retirada do discurso proferido pelo mdico Herclides de Souza
Arajo em 12 de dezembro de 1918, quando da inaugurao do Posto Sanitrio do municpio
de Morretes. Esse discurso foi reproduzido pelo seu autor tanto no Relatrio da Profilaxia
Rural do Paran, quando na Revista Paran Mdico.
O Posto Sanitrio de Morretes foi o primeiro inaugurado pela Comisso Sanitria
Federal para o Estado do Paran fora da capital. O posto de Morretes j estava em pleno
trabalho desde o dia 1 de outubro de 1918, porm, s foi inaugurado oficialmente, segundo
as palavras do prprio mdico aproveitando a presena do Sr. Dr. Lewis Wendell Hackett ,
diretor no Brasil do Conselho Sanitrio Internacional da Rockefeller Fundation42, o qual
estava no Paran para firmar a parceria para a instalao de dois postos de campanha contra
a ancilostomose, verminose mais abundante no litoral segundo os levantamentos da prpria
Comisso de Profilaxia.
A inaugurao do Posto de Morretes foi adiada quando da ecloso da Gripe
Espanhola, qual se seguiu a paralisao dos trabalhos da Comisso no dia 20 de outubro de
1918, pois todos os seus membros foram desviados para o atendimento populao doente.
Nas palavras de Souza Arajo: ficou o pessoal da nossa comisso a disposio do Governo
do estado para auxilio no combate a gripe.43 Mas, tambm a Gripe, transformou-se em
dados e porcentagens de letalidade populacional ao encontrar a Comisso, como pode ser
verificado abaixo:
O sistema projetado era to eficaz que mesmo doenas no previstas acabavam
por fortalec-lo, pois que forneciam mais informaes para a totalizao geogrfica e
podiam ser alardeadas como servios prestados, como no caso da Gripe Espanhola e da
Policlnica dos Pobres.
Sobre a ordenao do Posto da profilaxia pode ser percebida a preocupao de
detalhar todas as funes e hierarquiz-las no Relatrio. Assim, cada Posto deveria contar
com um microscopista, ressaltando uma vez mais a importncia da pesquisa emprica (no
caso e exame de fezes) para a construo da verdade na geografia mdica. Sobre a
hierarquia, essa era estruturada e projetada com mincia, assim: Os guardas s podero
administrar o tratamento por determinao do mdico, no podendo nunca alterar a dose
prescrita. Ou ainda: qualquer sintoma diferente [...] o guarda dever sem demora correr e
dar conta do que se passa para o mdico.44
Assim, o relatrio sempre reitera a autoridade do mdico sobre o guarda, essa
necessidade de reforar frequentemente o papel de cada categoria envolvida no projeto e
deixar claros os limites da atuao dos guardas sanitrios, indicia um receio do mdico em
relao a estes ltimos. Talvez uma falta de confiana na sua subservincia hierarquia e
autoridade cientfica. Talvez por serem pessoas escolhidas entre os moradores locais, mais
prximos dos pacientes, proximidade reforada por visitarem as residncias e ministrarem
42
SOUZA-ARAUJO. Profilaxia... Op. cit., p. 61. 43
Idem, p. 121. 44
Idem, p. 71-72.
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115 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
os medicamentos, o que poderia acarretar um reconhecimento como uma autoridade
saneadora por parte da populao local. Mas so apenas hipteses.
Figura 2: Quantificao da Gripe Espanhola
Fonte: SOUZA ARAUJO. Profilaxia.Op. cit.
Logo ao incio do servio o municpio em questo era dividido em zonas e cada
uma delas era entregue a um guarda sanitrio. O servio do guarda baseava-se na coleta de
material e tratamento. O diagnstico e a prescrio do tratamento eram exclusividade dos
mdicos, porm a coleta e o ministrar dos remdios indicados para a populao eram feitos
pelos guardas sanitrios.
Para isso toda uma srie de dispositivos burocrticos instaurada, os guardas
sanitrios deviam fazer a numerao, identificao de todas as casas na zona de sua
responsabilidade e anotar em suas cadernetas os dados de cada morador e as doses
ministradas a eles. Alm disso, o guarda sanitrio era encarregado de distribuir os folhetos
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116 SEM ILUSTRAO
informativos. E mais, ele poderia a qualquer momento perder o seu emprego: O guarda ou
qualquer outro funcionrio que se apresentar freqentemente doente, prova a sua
incapacidade para os servios da comisso e ser obrigado a deixar o emprego.45 O guarda
e outros cargos inferiores na hierarquia profiltica, aparecem como seres limtrofes entre o
saber cientfico e o povo. Podendo cruzar uma tnue linha que parece separar os dois grupos
por se apresentar doente, estigma incapacitante para a funo na viso da Profilaxia.
Ao final se organiza com os dados um boletim mensal com cpias enviadas ao
Ministro da Justia, ao secretario do Interior do Estado, ao Diretor da Higiene e a imprensa.46
O essencial era produzir informaes, disciplinar corpos e hierarquizar saberes; o prdio, o
censo, os medicamentos e a propaganda so seus instrumentos.
Essa atuao que constri o esboo de Geografia Mdica no Paran apresentado
no Relatrio da Comisso, mas nele tambm so territorializadas regies a partir de uma
diviso nosolgica. Apesar das doenas apresentarem-se em todos os locais analisados pela
Comisso, a sua atuao deveria escolher quais seriam combatidas em cada lugar.
nesse sentido que Curitiba descrita sempre a partir do Dispensrio
Antissifiltico. Cabe destacar que o atendimento ali prestado era gratuito para meretrizes
(devidamente recenseadas e identificadas) e indigentes. Tambm oferecia leitos para que as
mulheres que no tivessem onde ficar durante o tratamento e fossem internadas. Para,
assim, segundo o mdico, no continuassem a disseminar ao doena por falta de opo
para sobrevivncia. Todas as meretrizes eram obrigadas a comparecer decentemente
vestidas e portar-se respeitosamente, sob pena de censura.[...] 47 A profilaxia da sfilis era
baseada tambm no recenseamento e na expedio de carteiras de identificao das
prostitutas. 48
Bem diferente a regio denominada Litoral. Essa compreendia as localidades de
fato litorneas e as que ficavam entre essas e o incio da Serra do Mar. L seria o lugar de
maiores resistncias do mandonismo local, segundo Souza Araujo:
preciso confessar que a nossa ao no foi recebida com a boa vontade que era de se esperar. Diversos indivduos de cidade e entre eles o homem de mais responsabilidade na administrao municipal, procuraram impedir a execuo das mais comezinhas medidas de higiene pblica, tais como a construo de latrinas, etc. Uma verdadeira luta.
49
O Litoral o espao para os chamados refratrios profilaxia. O mdico
descreve a regio em situao de penria e ausncia de gua potvel, de esgotos e latrinas.
Em Morretes, a prescrio persuadir refratrios, a Comisso intensifica a estratgia de
visitas domiciliares para o convencimento da populao bem como as propagandas em
panfletos e filmes. Souza Araujo organiza todo um esquadrinhar da municipalidade, exige
45
Idem, p. 70. 46
Idem, p. 153. 47
Idem, p. 298. 48
Idem, p. 285 e 308. 49
Idem, p. 65.
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117 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
exatido e mincia nos relatrios, cria prmios e penalidades. O resultado dos exames e
trabalhos por fim quantificado: 100% infectados, 50% com anemia, 149 latrinas
construdas. Nas vizinhas Antonina e Porto de Cima, a malria e as verminoses so
identificadas. Os mdicos da Comisso trabalham ali com apoio da Fundao Rockefeller e
diagnosticam tambm 100% da populao infectada por verminoses. Destaca-se a
inexistncia de fossas em Porto de Cima e, principalmente, a alta letalidade de Gripe (57%)
em Antonina, mas essa no recebe nenhuma explicao ou formulao de hipteses por
parte da Comisso, mesmo diante da mdia geral de mortalidade no Paran, apenas 1,8%,
os dados da prpria Comisso. No Litoral , apesar de existirem dois portos, Antonina e
Paranagu, o relatrio no problematiza a existncia de sfilis.
Ainda no Litoral, agora em Paranagu, a preocupao a malria e tambm as
verminoses, 100% da populao diagnosticada com vermes. Nessa localidade, a parceria
com a Fundao Rockefeller ser descrita pelo mdico: Comprometeu-se esta (Fundao
Rockefeller) a instalar um posto de campanha contra as verminoses no municpio de
Paranagu.50 A diferena de projetos profilticos e os conflitos internos do campo cientfico
na rea mdica so apontados pelo mdico:
Nota Em Paranagu a comisso Rockefeller limitou-se a tratar os opilados, sem cogitar do servio de latrinas o que nos obriga a fazer este servio com mxima urgncia, porque do contrrio, terminado o tratamento, poucos meses depois de curados se reinfestaro outra vez.
51
A distino apontada central na estratgia de Souza Araujo, no a toa que
existem punies previstas para a no construo de fossas e intimaes para a construo
foram distribudas por todo o litoral52, se alguma consequncia da decorreu no se tem
indcios at o momento. Porm, Souza Araujo conhecia bem os insucessos da Fundao
Rockefeller e os aponta em diferentes momentos do texto53. Para o mdico as falhas
estavam exatamente na vigilncia constante dos doentes, pois que, a Fundao Rockefeller
distribua os remdios e no fiscalizava a sua ingesto. Ao contrrio, na Profilaxia Rural, um
guarda sanitrio passava de casa em casa ministrando a dose prescrita pelo mdico, esse
mtodo era denominado de intensivo e justificado pela gravidade da situao do Litoral, pois
que esse logo tornar-se-ia inabitvel por causa das verminoses. Nas palavras do nosso
narrador:
O mtodo intensivo ou sistemtico o mais prprio para as grandes campanhas contra as verminoses intestinais e aquele que apresenta
54todos os requisitos de
xito completo. A base do mtodo o tratamento a domicilio de toda uma
50
Idem, p. 84. 51
Idem, p. 87. 52
Idem, p. 93. 53
Idem, p. 87 e 192. 54
Idem, p. 100.
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118 SEM ILUSTRAO
populao opilada, dirigido pessoalmente pelo mdico, e freqentemente fiscalizado pelos seus auxiliares.
55
A Profilaxia Rural construiu muitos planos de interveno, mas tinha poucos
recursos a ela destinados pelos governos Federal e Estadual. A insistncia de Afonso
Camargo e Munhoz da Rocha em elogiarem a pessoa de Souza Araujo como ilustre, digno e
perseverante56 inversamente proporcional ao apoio financeiro aos seus projetos. Mdicos
e populaes abandonados pois em um palco trgico ningum ter consolo.
Entretanto a agricultura no Paran durante o perodo de 1916 a 1921
apresentada como um sucesso pelos presidentes do estado. Afonso Alves de Camargo, em
sua Mensagem ao Congresso Legislativa ano incio de 1918, se refere ao ano de 1917 como:
ano decorrido foi de verdadeiros triunfos para o nosso estado no que diz respeito a sua
produo agrcola.57
O referido presidente tambm prev um grande futuro para o Paran atravs da
agricultura: Nesse dia seremos um dos expoentes mximos da riqueza econmica do Brasil.
[...] E estou seguro que esse dia no tardar desde que continuemos, sem esmorecimentos,
a nossa propaganda rural, pois o abandono do campo a nica hiptese de fracasso do
nosso engrandecimento futuro.58 E o incremento agrcola do estado, a lisonjeira situao
financeira decorrente e o elogio aos trabalhos da Profilaxia Rural se repetem ano a ano.
POPULAO RURAL TUTELADA: PERMANNCIAS E VISAGENS
Pode-se indicar que o trabalho da Comisso ajudou na diminuio das resistncias
existentes, durante a primeira dcada do sculo passado, ao investimento pblico vultoso na
rea da sade. Tais resistncias parecem ter sido dissipadas atravs da constituio de uma
verdade mdica calamitosa sobre a situao do interior do Estado, viso essa instituda a
partir dos trabalhos da Comisso de Profilaxia.
Souza Araujo defendia a ao direta do mdico sobre a populao, o que
aproximaria a autoridade do povo com a entrega dos remdios no prprio habitat. Um
mtodo intensivo segundo o autor, atravs do recenseamento, visitao do mdico e seu
uso assistido dos medicamentos, ou seja, a sua administrao pelo guarda sanitrio. S
assim, com essa proximidade com essa populao refratria, o mdico passaria [...]a ter
sobre eles verdadeira e direta ascendncia. A ao do povo passa a ser apenas obedecer,
cumprir ordens em seu benefcio e deixar-se medicar.59 Como j dissera Trajano dos Reis e
no se pode cuidar da salvao pblica sem ser um ditador60.
55
Idem, p. 163. 56
Ver. PARAN. Mensagem do Presidente..., op. cit., p. 1916-1921. 57
PARAN. Mensagem do Presidente Afonso Alves de Camargo ao Congresso legislativo do Estado 01/02/1918 (p. 33) 58
Idem, ibidem. 59
SOUZA ARAUJO. Profilaxia..op. cit.., p. 130. 60
Idem, p. 112.
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119 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
Para justificar o autoritarismo evidente das afirmaes da profilaxia, so
compostas vises depreciativas arquetpicas sobre as populaes rurais. Nesse sentido, o
Relatrio apresenta, alm das resistncias das oligarquias locais, tambm formas de
resistncias das prprias populaes rurais, apesar de lidas depreciativamente dentro de
modelos arqutipos de teimoso e ignorante, respectivamente:
Cuidando carinhosamente, fazendo-se respeitar pela nobreza do seu gesto, vai o mdico, pouco a pouco, se apoderando da confiana da gente dos campos, levando-a, com habilidade, ao exame e tratamento das outras doenas, que, raramente, suspeita causar-lhe dano. Porque essa gente naturalmente impressionvel, o mdico no esquece os meios de que a cincia pode dispor para convencer os mais teimosos.
61(...) No dia em que se conseguir pela educao do
sertanejo convenc-lo de que o maior mal que ele pode fazer a si mesmo, aos parentes e vizinhos permitir que em redor da sua habitao, na horta e no seu pomar, continuem a espalhar fezes humanas ou defecar na superfcie do solo ora aqui, ora ali, poderemos precisar o tempo necessrio para a extino da ancilostomose entre ns
62
O teimoso e o ignorante so quase ingnuos, seres abandonados em sua eterna
minoridade. Uma nova ordenao s poderia vir como uma salvao externa a essas
criaturas sem nenhum trao de civilizao. Convencidos das benesses da cincia porque so
impressionveis e, se um dia forem educados, cessaro apenas de adoecer por sua prpria
culpa. A Profilaxia apresenta-se como uma positividade biopoltica, nica forma de inclu-los
no projeto nacional seria manipul-los e salv-los de si mesmo.
Figura 4: Um dos modelos de construo de fossas
Fonte: SOUZA ARAUJO. Profilaxia...op. cit.
61
Idem, p. 158. 62
Idem, p. 211.
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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.
120 SEM ILUSTRAO
Com isso suas vidas sero expostas como vidas nuas, no sentido definido por
Giorgio Agamben63, ou seja, sua hexis corporal ser minuciosamente examinada e seus
costumes tero valorao moral ao tornarem-se maus hbitos, pois: No h nenhuma zona
do Estado que a gente visite, seja no litoral, seja nos campos, nos sertes ou no Baixo
Paran, em que se no encontre o povo dominado pelo mal habito de no fazer usos de
latrinas. 64
O que enfim est aqui sendo gerido por essa profilaxia? Vidas olhadas por um
projeto poltico, ou melhor, vidas nuas objetos de biopoltica. Uma vida exposta a luz de
saberes a fim de transform-la em operaes reconhecveis e previsveis. A Profilaxia lidava
com a vida compondo duplos como: civilizao e barbrie, progresso e atraso, higiene e
perigo, sujeito da ao e objeto de pesquisa. Duplicao integrante da ordenao das coisas
e das gentes pela epistem moderna. O ser - humano duplicado e seu ser e estar no mundo
analisado e modificado. Acompanhando Naxara: O povo brasileiro, visto por suas elites,
aproximava-se do atraso e da barbrie, enquanto que o que se tinha em vista era alcanar o
progresso e a civilizao. Tal questionamento acabou levando a uma identificao do
brasileiro pela ausncia do que se esperava ele pudesse ser, ou seja, por aquilo que lhe
faltava.65
Para isso, a C.P.R.Pr., faz tabula rasa sobre as medidas profilticas desenvolvidas
pela cultura indgena, do trabalho desde a infncia, da existncia de uma medicina popular e
do crescimento agrcola. A vida dos trabalhadores no campo vista como o negativo, o
avesso da civilizao desejada, seus conhecimentos e seu trabalho desprezado. So
representados como ignorantes e embrutecidos, s vezes por ignorncia e sempre pela
doena. Vistos como seres incapazes de autogesto, necessitando serem retirados de uma
situao de falta, de ausncia, por uma nomos planificada por um sujeito do conhecimento
externo a eles.
A modernidade fiel a herana metafsica ocidental e com isso ao politizar a vida
nua e inclu-la na polis, o faz construindo a poltica como biopoltica.66 Assim, a zo, a vida
nua, entra na polis e o viver transformado em bem viver, entendido como o viver de um
corpo disciplinado, mas ainda excludo. Pois que a incluso ocorre apenas diante do
abandono de sua vontade autnoma em nome de uma submisso aos objetivos pragmticos
de um outro.
O projeto de construo de um povo para o Brasil estado-nao pretendeu incluir
trabalhadores rurais tutelados, vistos como sem ilustrao em permanente minoridade.
Lembrando Kant:
O esclarecimento a sada do homem de sua menoridade, da qual ele prprio culpado. A menoridade a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direo de outro indivduo. [...] A preguia e a covardia so as causas pelas quais
63
Ver: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. 2ed. Belo Horizonte: UFMG, 2010. 64
SOUZA ARAUJO. Profilaxia..., op. cit, p. 211. 65
NAXARA, M. Estrangeiro em sua prpria terra..., op. cit., p. 18. 66
AGAMBEM, G. Homo Sacer..., p. 15.
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Julho-dezembro de 2012
121 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
uma to grande parte dos homens, depois que a natureza de h muito os libertou de uma direo estranha, continuem no entanto de bom grado menores por toda a vida. So tambm as causas que explicam por que to fcil que os outros se constituam em tutores deles. to cmodo ser menor
67.
O vivente rural era transformado em sinnimo de atraso, sozinho no teria futuro,
s os mdicos a esse conheciam, mas ser o orculo tambm um papel na tragdia. A
comisso de Profilaxia sustentava ento uma minoridade de longa durao para essas
populaes, tuteladas por seus senhores, sejam eles senhores de terras, de saberes ou
soberanos.
A pesquisadora Carmem Kummer tambm apontou, com muita propriedade, ao
final de sua dissertao dedicada a Profilaxia Rural no Paran, uma permanncia do
problema da sade nas zonas rurais do estado, assim:
Conforme o IPARDES, apenas 35,8% de 199 municpios considerados rurais apresentavam (em 2001) algum tipo efetivo de prestao de servios na rea da sade. No podemos negar que nenhuma ao foi tomada desde a dcada de 1910, uma vez que o saneamento no meio rural nessa poca deu incio a muitos projetos realizados dcadas depois. Por outro lado, possivelmente podemos afirmar que as justificativas apresentadas para definir este ndice alarmante se inserem nas mesmas queixas apresentadas por Souza Arajo, Joo de Barros Barreto e Eduardo Leal Ferreira, quais sejam, o infindvel descaso poltico das elites locais com aqueles que julgam ser irrelevantes e desnecessrios para o pas.
68
Uma continuidade de problemas que poderiam ser trazidos para a ordem do dia sob
as mesmas justificativas utilizada pelos mdicos do incio do sculo XX. Ou seja, uma
permanncia de uma viso de mundo em torno do rural e sobre as pessoas que l vivem.
Essas permanncias se caracterizam como um conjunto de estigmas, metforas,
estratgias, imagens, polticas, etc; dispostas para o rural e que partem do pressuposto de
uma eterna minoridade daquela populao. Consequentemente, o apelo recorrente por
formas de tutela e conseguinte sujeio, como uma inferioridade diante do urbano, do
moderno, do cientfico e do erudito. No seria a toa que os discursos sobre a modernidade
no campo hoje, incio do sculo XXI, sejam ligados ao agronegcio, um empreendimento
extremamente mecanizado e de alta tecnologia, que necessita de poucos viventes no
campo. Sem os viventes, s restaria a terra boa? Por outro lado, a agricultura familiar
objeto de inmeras tentativas de resgate, de conservao, ou ainda de criao de opes
econmicas sustentveis, as quais permitam a sua sobrevivncia. Propostas cientificamente
embasadas por bem intencionados saberes acadmicos.
Aqui, novamente a heteronomia, as solues encontradas para os problemas
criados, so elaborados por outrem com interesses e disposies de fora da vontade
autnoma. As pessoas envolvidas e as necessidades por elas mesmas percebidas, no
67
KANT, I. O que esclarecimento? Op. cit. 68
KUMMER, Carmem Slvia da F. No esmorecer para no desmerecer: As prticas mdicas sobre sade da populao rural paranaense na primeira repblica. Dissertao (Mestrado em Histria) Curitiba: UFPR, 2007, p. 136.
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Revista Mundos do Trabalho, vol. 4, n. 8, julho-dezembro de 2012, p. 102-123.
122 SEM ILUSTRAO
participam do projeto, esvaziando a ao como um processo autnomo de
responsabilizao. Em ambos os casos, a verdade cientfica incorre, mais uma vez, no perigo
de subsumir o outro. Lembrando mais uma vez Foucault vocs no tem direito de
menosprezar o presente.69 Pois cada um responsvel pelo processo histrico do conjunto.
Afinal a modernidade uma atitude, uma maneira de pensar e agir que se apresenta como
tarefa.
CONSIDERAES
Em 1919 a Profilaxia Rural no Paran propunha questes mais amplas do que o
saneamento do serto paranaense, pois que era a vida das pessoas o objeto de interveno.
O rural era visto pela Profilaxia como um espao de falta, o olhar que se lanava no via o
que l existia, pois o quanto prostrado pela doena e indolente pelos vermes podia ser um
trabalhador que sustentavam a economia do estado?
No Relatrio da C.P.R.Pr. no faltam exemplos disso, porm sempre citados de
forma indireta. Como quando o mdico analisa a Doena de Soduku, decorrente da mordida
de rato e narra as condies de vida da menina que fora mordida. Ela tinha 11 anos e
trabalhava de empregada domstica na casa de um advogado em Curitiba a onde fora
mordida. Sua famlia era de origem polaca e continuava morando em Ponta Grossa, onde
eram agricultores.70 Tambm a vida dos homens moradores do Alto e Baixo Paran descritos
como ausentes por estarem trabalhando na coleta e transporte do mate. Eram homens,
mulheres e crianas, todos sujeitos de sua prpria sobrevivncia cotidiana, porm narrados
como objetos de interveno.
E os outros saberes? Souza Araujo transcreveu o relatrio de lvaro Lobo sobre
Tomazina: No s a gripe vitimou enormemente a populao sertaneja, tambm os
curandeiros e raizeiros, bem como prticas de farmcia audaciosos e incompetentes
aumentaram extraordinariamente o coeficiente de mortalidade, chegando a tal imbecilidade
muita vez s raias do assassnio puro e frio.71 Os saberes saneadores populares so assim
ou culpabilizados pela piora do caos higinico j existente, como no caso da Gripe, ou
silenciados. Contra esse silncio pode-se recordar a fala sobre Foz do Iguau como um local
de total caos na viso do mdico, mas que por outros documentos pode-se saber que ali
residia a senhora Joana Rosa, descrita como algum de grande conhecimentos sanadores,
inclusive salvando a vida de militares alocados na Colnia Militar de Foz.72 Tambm as
formas indgenas de profilaxia das doenas, descritas no relatrio, mas no consideradas
como tal. Nesses pequenos fragmentos da vida dos outros, a heteronomia das populaes
rurais se dissolve, transforma-se em uma iluso de tica, talvez uma farsa. De longa
69
FOUCAULT, M. O que so as luzes? In:______. Arqueologia das Cincias e Histria dos sistemas de pensamento. (Ditos e Escritos II) 2 ed. Rio de Janeiro: Forense universitria, 2005, p. 341- 349. 70
SOUZA ARAUJO. Profilaxia..., p. 314. 71
Idem, p. 125-126. 72
Ver novamente: MYSKIW, Antonio Marcos. A Fronteira como Destino de Viagem: A Colnia Militar de Foz do Iguassu. Tese (Doutorado em Histria). Niteri: UFF, 2009.
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Julho-dezembro de 2012
123 BEATRIZ ANSELMO OLINTO
permanncia, mas ainda uma farsa.
para encontrar caminhos para essa proposta que se reflete mais uma vez sobre a
Profilaxia Rural. Essa, como um dispositivo de conhecimento, constituiu bem intencionados
procedimentos produtores de novos sujeitos, mas foi tambm um projeto de heteronomia.
Eis a sua tragdia, querer dessujeitar o outro em nome de uma nova sujeio, mas produzir
apenas sujeitos espectrais. Retornando a Giorgio Agamben, os viventes encontram os
dispositivos entendendo-se esses como: Qualquer coisa que tenha de algum modo a
capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os
gestos, as condutas, as opinies e os discursos dos seres viventes.73
Se a vida e as pessoas envolvidas no projeto profiltico so compostas como
sujeitos espectrais e os prprios processos de subjetivao eram essenciais para a
construo de possibilidades de integrao poltica, a prpria motivao primeira da
interveno profiltica, a saber, a inveno de um estado-nao, teria como resultado
apenas sujeitos fantasmas e, assim, o palco poltico composto permanecer vazio.
Seguindo as reflexes de Foucault e Agamben, por uma ltima vez, o dispositivo
atende a uma urgncia, apresenta-se como estratgia concreta de saberes e poderes74. A
Profilaxia Rural ser um dispositivo no s pela sua urgncia (aps a construo do rural
como um problema nacional pelos prprios mdicos), mas tambm pelos seus
procedimentos para a gesto prtica dos viventes. Pois ela, atravs de sua geografia mdica,
disps, ao organizar as normas de conduta do viver; situou, ao construir as regies
endmicas e, tambm, positivou, isto , coagiu, comandou sentimentos e comportamentos.
nesse sentido que a Profilaxia dessujeitava os viventes ao reproduzir a
heteronomia e constitu-los como incapazes de autonomia. Assim, o agricultor higinico, ou
o Paran saneado, bem como, o mdico ilustrado e o guarda sanitrio obediente, so
visagens de um olhar iludido, capturado por promessas de felicidade e de possibilidades de
evitar a dor atravs da interveno da razo, de sua tcnica e cincia.
Nem a ao da Profilaxia Rural atingiu os seus objetivos, nem a zo foi incorporada
definitivamente a polis. O bem viver continuou o viver. Projetos grandiloquentes no Brasil do
sculo XX tendiam a ser aplicados apenas de maneira fragmentria e particularista, quando
no clientelista. O trgico subjacente em todo conhecer se mantinha. O indizvel, o
imprevisvel, o inclassificvel permanece na complexidade da vida cotidiana.
____________________ Recebido em 05/08/2012
Aceito para publicao em 01/10/2012
73
AGAMBEM. O que o contemporneo? Op. cit., p. 40. 74
AGAMBEM, op. cit., p. 29.