Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
Sattelzeit:um elemento importante para uma discussão crítica sobre o conceito de modernidade na linguagem historiográfica
George Zeidan Araújo1
Resumo: Poucos conceitos utilizados pelas ciências humanas e sociais são tão polissêmicosquanto o de modernidade. Frequentemente, a palavra é usada para designar coisas distintas, e seusignificado depende muito do contexto no qual é empregada. Não obstante, “modernidade” etermos correlatos como “Idade Moderna”, “História Moderna” e “modernização” são amplamenteutilizados na linguagem historiográfica. Por esse motivo, é fundamental que entre os historiadoreshaja um aprofundamento dos debates sobre suas diversas acepções. Nesse sentido, acreditamos serválido apreendermos o conceito de Sattelzeit, cunhado pelo historiador dos conceitos ReinhartKoselleck, para designar o período que o autor considera essencial para a conformação damodernidade. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é o de apresentar o conceito de Sattelzeit namedida que este constitui-se como um elemento importante para uma discussão crítica sobre autilização do conceito de modernidade na linguagem historiográfica.
Palavras-chave: Modernidade, Sattelzeit, Linguagem Historiográfica, Historiografia.
Introdução
Poucos conceitos utilizados pelas ciências humanas e sociais são tão polissêmicos
quanto o de modernidade. Frequentemente, a palavra é usada para designar coisas distintas, e
seu significado depende muito do contexto no qual é empregada (EDGAR, 2008, p. 214). Não
obstante, “modernidade” e termos correlatos como “Idade Moderna”, “História Moderna” e
“modernização” são amplamente utilizados na linguagem historiográfica. Por esse motivo, é
fundamental que entre os historiadores haja um aprofundamento dos debates sobre suas
diversas acepções. Nesse sentido, acreditamos ser válido apreendermos o conceito de
Sattelzeit, cunhado pelo historiador dos conceitos Reinhart Koselleck, para designar o período
que o autor considera essencial para a conformação da modernidade.
Dessa forma, o objetivo deste trabalho é o de apresentar o conceito de Sattelzeit na
medida que este constitui-se como um elemento importante para uma discussão crítica sobre a
utilização do conceito de modernidade na linguagem historiográfica. Antes de prosseguirmos,
1 Mestre em História pela UFMG, Doutorando em História pela UFSC, Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]
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porém, julgamos útil mapear a aparição e percurso do termo modernidade, a partir do
surgimento da palavra moderno, da qual modernidade se originou.
Antigo, Moderno e Modernidade
Aproximadamente a partir do século III, foi-se consolidando no Império Romano do
Ocidente um período de crescente incorporação de mercenários de tribos bárbaras e de
assimilação de povos de língua não-latina nas fronteiras do Império. Além disso, a ascensão
do Cristianismo provocava novas e importantes divisões hierárquicas na sociedade romana.
Nesse período, conhecido como Antiguidade Tardia, foi sendo criada uma língua escrita –
identificado na literatura especializada como “Latim tardio ou “Baixo latim” (ROBERTS,
1996, p. 537 ) – para tentar solucionar a necessidade de uma comunicação mais padronizada
entre os diferentes registros socioeconômicos e as regiões distantes do Império.
O termo “moderno” (do Latim tardio mŏdernus), teria surgido no período posterior à
queda do Império Romano do Ocidente, no século V. Formado a partir de modo, significava
originalmente “recente”, ou ainda “as coisas ou as instituições do presente” (LEWIS; SHORT,
1879, p. 1154). Esse sentido ter-se-ia mantido mais ou menos inalterado até o século XVI, e
não possuía, a priori, conotações positivas nem negativas. Contudo, antigo e moderno têm
formado um par ambíguo na história do Ocidente, nem sempre tendo existido como termos
antagônicos (LEGOFF, 1999, p. 167).
Inicialmente, “moderno” com o significado de “atual”, isto é, o modo como as coisas ou
instituições encontram-se no presente, constituiu-se em oposição ao passado pagão greco-
romano. Entretanto, a partir do século XVI, quando os eruditos do Renascimento promoviam
a revalorização da cultura pagã greco-romana e propuseram a divisão da história em três
Idades (Antiga, Medieval e Moderna), moderno passou a opor-se ao medieval, e não mais à
Antiguidade. Contudo, longe de ser tomada de forma acrítica, essa própria classificação –
com a qual estamos tão habituados – deve ser matizada, uma vez que as pessoas que viveram
naqueles períodos nem sempre se identificavam com ela ou com as características gerais que
foram posteriormente atribuídas a cada uma das “Idades”. Por isso, identificar
tautologicamente a modernidade como sendo uma “característica daquilo que é moderno” não
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basta, já que a pluralidade de concepções do que seria ser moderno incide sobre a própria
conceitualização do que consistiria a modernidade.
Para alguns autores, o termo “modernidade” teria aparecido no Latim medieval
(modernitas) ainda no século XII, “[…] referindo-se aos últimos cem anos então vividos e
ainda presentes na memória dos contemporâneos” (SILVA; SILVA, 2009, p. 297). Porém,
Hans Robert Jauss, um dos expoentes da teoria literária no século XX, sustenta que há
registros do uso da palavra
[…] já no século XI em um relatório produzido […] durante o sínodo quaresmal deRoma de 1075, o qual havia sido convocado pelo Papa Gregório a fim de chamar aatenção para as instruções transmitidas pelos padres da Igreja, mas agora esquecidaspela modernitas nostra […]. O primeiro uso conhecido de modernitas teve, portanto,um sentido depreciativo (JAUSS, 2005, p. 338).
Todavia, os vários significados que foram sendo cristalizados no conceito histórico
iriam diferir significativamente da acepção e sentido originais. No século XVIII, com o
Iluminismo, o moderno e a modernidade foram identificados ainda mais com o presente e
com o novo, mas com um sentido positivo (LANCEROS, 2001, p. 569). Além disso, mais do
que uma referência à época em que se vivia, buscava-se difundir ao maior número de pessoas
as “características modernas” da sociedade na qual se vivia – a ocidental – e ressaltar as
benesses de uma “modernização”. “A sociedade ocidental […] tornou-se o emblema da
modernidade. […] Modernizar era ocidentalizar. A sociedade moderna, portanto, carrega os
marcos da sociedade ocidental desde o século XVIII” (KUMAR, 1996, p. 473).
Como definir a modernidade?
É uma tarefa árdua definir as características da modernidade dado que a dimensão
axiológica do conceito “[…] coexiste com o enfoque cronológico, duplo aspecto que
acompanhará a noção de modernidade em todos os seus avatares e em todas as suas
discussões” (NOUSS, 1997, p. 10). Com efeito, a modernidade tem sido definida tanto de
acordo com certos períodos, como por eventos que representariam suas balizas temporais, ou
mesmo segundo fenômenos específicos que corresponderiam a uma certa “visão de mundo”.
Uns inclinam-se para o séc. XVI e a sua convicção de inaugurar uma era novareatando com a Antiguidade. Outros ligam-se, […] ao séc. XVII e ao aparecimento
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da ciência e da filosofia política contratualista. Outros ainda descem até ao séc.XVIII, à filosofia das Luzes e aos primeiros passos da industrialização, ou até aoséc. XIX e ao triunfo da ciência, da técnica e da indústria (BAECHLER, 1989, pp.164).
Por outro lado muitos autores que têm se dedicado à temática da modernidade
afirmam tratar-se de um complexo, multifacetado e abrangente processo de transformação dos
domínios político (criação de mecanismos de participação na vida pública e controle do
poder), filosófico (valorização do pensamento científico e racional), religioso (laicização),
econômico (otimização da produção e distribuição de bens e serviços), social (distinção entre
o público e o privado) e individual (florescimento da individualidade), que teria se
intensificado na Europa por volta do século XIX. Ainda assim, subsiste entre eles um
profundo dissenso no que diz respeito às causas e consequências da modernidade (ELLIS,
2005, p. 1473).
De qualquer maneira, parece-nos que um bom ponto de partida para uma
compreensão mais adequada dessa problemática é reconhecer a necessidade de que sejam
combinados tanto os fatores que influenciaram na modificação da percepção temporal, no
reordenamento da vida coletiva/social e na predisposição psicológica/individual. Esse é um
dos pilares da abordagem proposta pela Begriffsgeschichte (História dos Conceitos).
A História dos Conceitos
A partir de meados do século XX, foi sendo conformada na Alemanha a chamada
História dos Conceitos (Begriffsgeschichte), cuja principal realização teórica e editorial foi a
confecção do projeto Geschichtliche Grundbegriffe - Historisches Lexikon zur politisch-
sozialen Sprache in Deutschland (Conceitos básicos de história – Dicionário histórico da
linguagem político-social na Alemanha), dirigido por Otto Brunner, Werner Conze e Reinhart
Koselleck, e publicado entre 1972 e 1997. Porém, ter nesse dicionário apenas uma “obra de
referência” seria não atentar corretamente para todos os seus méritos e potencialidades
(CARRIÈRES, 2005, p. 57).
Em certa medida, a História dos Conceitos pode ser vista como uma espécie de reação
às limitações apontadas por alguns autores à abordagem de uma vertente da História das
Ideias (um tradicional campo de estudos que originado no século XVIII) identificada com
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Arthur Lovejoy, defensor da noção de que as ideias seriam constantes no tempo. Ressalte-se
que no interior mesmo da História das Ideias, essa posição já havia sido criticada e combatida
por Robert Collingwood, cujas críticas influenciaram os eminentes teóricos John Pocock e
Quentin Skinner. Atualmente, a maioria das pesquisas no campo da história das ideias adotam
a perspectiva collingwoodiana da História das Ideias ou a koselleckiana da História dos
Conceitos. Porém, apesar de guardarem algumas afinidades e influências comuns – como a
teoria da ação social de Max Weber e certa identificação com algumas das ideias veiculadas
pelo historicismo do século XIX –, a vertente colingwoodiana da História das Ideias e a
História dos Conceitos diferem na medida que o arcabouço teórico desta última encontra-se
na tradição hermenêutica filosófica alemã e no recurso à compreensão (Verstehen), enquanto
que a primeira fundamenta sua análise na filosofia da linguagem e na teoria dos atos de fala
(speech acts). A História dos Conceitos ressalta a historicidade das palavras e a noção de que
o significado que determinado conceito adquire em uma época específica só pode ser
compreendido levando-se em conta a consciência histórica daquele período. Para tanto, é
preciso que sejam relacionadas a experiência individual e a vivência coletiva, entrelaçando-as
no contexto histórico-social em que o conceito aparece e é veiculado, transformado ou
ressignificado (BENTIOVOGLIO, 2010, pp. 114-122). Nesse sentido, ao defender que a
busca pela compreensão mais apurada de um certo conceito implica ir além da dimensão
linguística, a História dos Conceitos não nega que na constituição da realidade social e
política haja a incidência do caráter linguístico, mas sim almeja a concepção de “[…] um
modelo teórico no qual os significados linguísticos simultaneamente criam e limitam as
possibilidades da experiência política e social” (JASMIN, 2005, p. 34). Koselleck, aliás, faz
questão de sublinhar que os acontecimentos históricos não podem ser totalmente reduzidos à
linguagem ou à sua expressão linguística.
Os acontecimentos históricos não são possíveis sem atos de linguagem, e asexperiências que adquirimos a partir deles não podem ser transmitidas sem umalinguagem. Mas nem os acontecimentos nem as experiências se reduzem à suaarticulação linguística. Pois em cada acontecimento entram numerosos fatores quenada têm a ver com a linguagem, e existem extratos da experiência que se subtraema toda comprovação linguística. Sem dúvida, para serem eficazes, quase todos oselementos extralinguísticos dos acontecimentos, os dados naturais e materiais, asinstituições e os modos de comportamento, dependem da mediação da linguagem.Mas não se restringem a ela. As estruturas pré-linguísticas e a comunicaçãolinguística, graças à qual os acontecimentos existem, permanecem entrelaçados,embora jamais coincidam inteiramente (KOSELLECK, 2006, p. 267).
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Destarte, deve-se considerar também a dimensão temporal do conceito e como ambas
– dimensão linguística e dimensão temporal – se articulam com a pluralidade de concepções e
determinações individuais, bem como com a consciência histórica coletiva de uma sociedade
em determinada época. A relação entre essas dimensões cria, tece, modifica e pode fazer
esquecer determinados significados para um dado conceito, ou mesmo provocar o
esquecimento do próprio conceito. Aliás, o tema do esquecimento é importante para a História
Conceitual, pois há o reconhecimento de que alguns conteúdo conceituais não apenas podem
ser modificados, mas mesmo abandonados ao longo das gerações, ao serem perdidos na
memória coletiva alguns de seus elementos prévios constitutivos (BENTIOVOGLIO, 2010, p.
123). Uma proposição que vai ao encontro do conceito de Sattelzeit, formulado por Koselleck.
A tese de Reinhart Koselleck: o Sattelzeit
Reinhart Koselleck é, no Brasil, provavelmente o mais famoso dos historiadores
ligados à Begriffsgeschichte e foi o principal mentor do referido dicionário histórico sobre a
linguagem político-social na Alemanha. Ao longo de sua longa trajetória intelectual, uma de
suas maiores preocupações foi a de tentar compreender de que maneira as transformações
substanciais ocorridas na Europa entre os séculos XVIII e XIX modificaram a percepção das
pessoas sobre si mesmas, sobre o tempo histórico e sobre o mundo. Em sua obra Crítica e
Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês (1954), fruto de sua tese de
doutorado, o autor buscou demonstrar como, ao longo do século XVIII, a ordem absolutista
na Europa ruiu à medida que a ascendente sociedade burguesa – entendendo-se como arauto
de um novo mundo – empreendia ações revolucionárias práticas e específicas, ao mesmo
tempo em que planejava genérica e utopicamente um futuro comum para toda a humanidade.
No século XVIII, o planejamento utópico do futuro já tinha uma função históriaespecífica. Em nome de uma humanidade única, a burguesia europeia abarcavaexternamente o mundo inteiro e, ao mesmo tempo, em nome deste mesmoargumento, minava internamente a ordem do sistema absolutista. A filosofia dahistória forneceu os conceitos que justificaram a ascensão e o papel da burguesiaeuropeu e, na medida em que se desligava dele, desenvolveu uma filosofia deprogresso que correspondia a esse processo (KOSELLECK, 1999, p. 10).
Em especial, para Koselleck, as transformações que ocorreram entre 1750 e 1850 na
Europa foram tão importantes e significativas que esse período teria constituído um Sattelzeit,
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isto é, um “tempo de sela”. Durante esse período seria possível entrever a passagem para a
modernidade na linguagem política e social, nos conceitos histórico-filosóficos utilizados e
nos discursos e nas ideias políticas.
Uma hipótese com relação ao nosso dicionário de conceitos históricos fundamentaisé que, apesar do uso continuado das mesmas palavras, a linguagem político-socialmudou a partir do século XVIII, na medida em que, desde então, um "novo tempo"foi articulado. Os coeficientes de mudança e aceleração transformam velhos camposde significados e, portanto, também a experiência política e social. Significadosanteriores de uma taxonomia que ainda está em uso devem ser apreendidos pelométodo histórico e traduzidos para a nossa linguagem. Tal procedimento pressupõeum quadro de referência que foi esclarecido teoricamente; somente no interior de talquadro podem tornar-se visíveis essas traduções. Falo aqui do "tempo de sela"(Sattelzeit) […]. Esse período tematiza a transformação do uso pré-moderno dalinguagem para nosso uso, e não posso enfatizar de maneira forte o bastante seucaráter heurístico (KOSELLECK, 2002, p. 5).
Portanto, no período compreendido pelo Sattelzeit, que Koselleck considera não só
uma época de transformações, mas também de crise (DUARTE, 2012), não houve apenas a
criação de novas palavras para expressar ideias ou acontecimentos inéditos ou a mudança no
significado de palavras já existentes. O ponto central a ser destacado é o de que “[…] os
conceitos passaram por transformações semânticas em suas estruturas, através de sua
temporalização, democratização, ideologização e politização” (GAIO, 2009, p. 2). A ênfase
de Koselleck reside, é certo, no processo ocorrido nos territórios de cultura alemã, mas suas
conclusões não estão restritas a eles uma vez que, em períodos distintos, outras regiões da
Europa e do mundo foram sendo afetados pela transição histórica engendrada pelo advento do
Iluminismo, da Revolução Industrial e da Revolução Francesa (CARRIÈRES, 2005, p. 58). O
Sattelzei, portanto, seria um momento-chave não só para a história europeia, mas também
para a própria história mundial por ter implicado uma radical alteração da consciência
histórica da época, modificando suas interpretações do passado e suas expectativas com
relação ao futuro.
Para Koselleck esta mutação pode ser detectada, por exemplo, no próprio horizonteda História que, de magistra vitae deixa de ser Historie para se converter emGeschichte. Ou seja, a crise no conceito revela uma nova perspectiva para oconhecimento do passado, que através da crítica foi responsável pelo surgimento daciência histórica moderna. A noção de progresso ou de experiências exemplares dopassado deu lugar à percepção de coexistência infinita de temporalidades relativas ede experiências e reconhecimentos variados na contemporaneidade. Sattelzeitcorresponde a um distanciamento entre o espaço da experiência e o horizonte deexpectativas, fazendo com que os sujeitos históricos projetem cada vez mais aofuturo a possibilidade de construção de novos tirocínios (BENTIOVOGLIO, 2010,p. 124).
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A proposta de Koselleck é, sem dúvida, instigante e frutífera para a pesquisa
histórica relacionada à questão da modernidade. Mas apesar da tese do Sattelzeit ser um
elemento importante a ser levado em conta para uma discussão crítica sobre o conceito de
modernidade na linguagem historiográfica, ela não esgota a temática.
Considerações finais
Ao longo dos dois últimos séculos, o tema da modernidade foi tratado, de uma forma
ou de outra, por importantes teóricos, estudiosos e intelectuais. Dentre eles, destacam-se
Charles Baudelaire, Karl Marx, Max Weber, Norbert Elias, Anthony Giddens, David Harvey,
Jürgen Habermas, Jean-François Lyotard, Frederic Jameson, Marshal Bermann, Reinhart
Koselleck, Peter Osborne, e Zygmunt Bauman, apenas para citar alguns nomes de uma lista
bastante extensa. Partindo de pressupostos distintos, os muitos autores que de alguma maneira
se debruçaram sobre o tema enxergaram-no através de diferentes óticas e apresentaram
maneiras diversas de abordá-lo. Em que pese todo o acúmulo teórico obtido através dos
debates travados, algumas questões importantes continuam a ser objeto de deliberação:
* O que exatamente teria engendrado a modernidade: o pensamento científico, o capitalismo,
a industrialização, a progressiva igualação dos direitos sociais e a democracia, a
racionalização, todos esses fatores combinados, ou algum outro fator?
* A modernidade corresponderia a um período temporal (uma categoria cronológica) ou a uma
determinada condição humana (uma categoria qualitativa)?
* No caso de ser considerada um período temporal, quando a modernidade teria surgido?
* Seria a modernidade um processo longo ou algo desencadeado por um evento ou um
conjunto de eventos específicos?
* A modernidade conformaria um determinado “projeto para a humanidade”?
* Esse projeto já teria sido cumprido ou ainda não?
* Em caso positivo, os resultados foram majoritariamente positivos ou negativos?
* Em caso negativo, o projeto da modernidade é válido, indesejável ou, ainda, simplesmente
inexequível?
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* Estaria em curso atualmente uma “desvirtuação” ou mesmo uma “liquefação” dos valores,
ideias e ideais modernos?
* Estaríamos ainda vivendo sob o signo da modernidade ou já teríamos ultrapassado essa
“etapa”, vivendo em uma “condição pós-moderna”?
Por outro lado, sem que se haja chegado a um consenso sobre as questões acima, e sem
que essas dúvidas tenham sido satisfatoriamente elucidadas, debates mais recentes sobre a
modernidade (EISENSTADT, 2000; MACAMO, 2014) argumentam que outras questões
também essenciais têm sido deixadas de lado e chamam a atenção para a necessidade
imperiosa de se refletir sobre elas:
* Teria havido uma única modernidade ou seria possível verificar até os dias de hoje a
existência de fenômenos que poderiam ser classificados como “modernidades múltiplas”?
* A modernidade seria um fenômeno exclusivo da sociedade ocidental ou teriam existido
modernidades diversas em distintas sociedades?
* Falar em modernidade não seria apenas mais uma expressão do antigo eurocentrismo que
identifica a história com a história da Europa, e adota uma concepção teleológica que implica
que toda a humanidade deveria alcançar essa mesma “etapa do desenvolvimento histórico”?
* Em que medida o binômio modernidade-tradição foi e continua sendo usado pelas potências
ocidentais para subjugar outros países e povos, relegando-os à periferia econômica e política
do sistema capitalista mundial?
Em suma, por ser um tema tão complexo, multifacetado e abrangente, a modernidade
parece destinada a ser objeto de discussões infindáveis. Para os historiadores que se propõem
a aventurar-se nessa seara, tão importante quanto o conhecimento das “questões clássicas”, é
que se debrucem também sobre as novas problemáticas, uma vez que elas podem significar
uma reinterpretação histórica da modernidade e das questões relativas a ela.
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