SABERES NÓMADAS E MODELOS
DE LEGITIMAÇÃO DO CONHECIMENTO
Aquilo que vou aqui abordar diz respeito ao modo como podemos observar os processos de estruturação dos valores segundo vários eixos; como esses eixos se constituem como charneira central que determina a necessidade e o tipo de comunicação que se activa. Como a acção comunicacional envolvendo a generalidade das relações sociais e institucionais se metamorfoseia, transformando-se segundo um processo mais ou menos aleatóreo de estruturação axial que vai ao mesmo tempo criando uma topologia dinâmica de relação entre sujeito e objecto, objecto e objecto, sujeito e sujeito.
Como as circunstâncias que envolvem a presença de novas media-ções tecnológicas, auxiliares do processo de transformação axiológica, forçam a emergência de novos modelos de presença e representação: por exemplo, sequência e causalidade, substituidas por campo de acção; sujeito e objecto substituidos por nó e rede; estrutura e função por processo e devir, etc. Como, afinal, esse processo de estruturação dinâmica afecta a generalidade dos saberes constituidos, forçando-os a uma migração permanente em busca de paradigmas e dimensões novos mas consensuais, mesmo que utilizando elementos constituintes do paradigma anterior.
Como essa migração de saberes deixa por vezes confusas as mentes mais estáticas, e como a escola e a universidade estão condenadas, no quadro actual, a um permanente atraso relativamente à vanguarda de actualização desses saberes.
Como, enfim, o investigador (avançado....) deve ser capaz de con-ceber o novo quadro que configure esta dinâmica e possa, no mínimo, retratar momentaneamente a sua actualização.
Texto síntese extraído da “Lição” das provas de Agregação do autor em Socio-
logia da Cultura e da Comunicação, na sala de actos do Colégio do Espírito
Santo da Universidade de Évora em Julho de 2002.
14 EDUARDO ESPERANÇA
Não se trata aqui, para já, de levar a cabo uma análise profunda a um objecto de estudo e subsequente crítica. Trata-se, no seu sentido mais expositivo, de oferecer uma panorâmica da abordagem possível a objectos contemporâneos que de algum modo se destacam pelo seu envolvimento nas problemáticas da actualidade. Isto, segundo pers-pectivas que tento conciliar nem sempre com facilidade, encontrando os seus pontos charneira comuns, e que aqui passam pelo valor, emer-gência axial dos objectos e, essencialmente, os modos de constituição dos olhares que lhes conferem valor.
Porquê os valores?
Aquilo que queria destacar ocorre na sequência do trabalho que fiz sobre o património e, em particular, a análise da emergência e turbo-lência dos valores que situam precisamente a emergência do patrimó-nio como valor.
A noção de valor ou hierarquia de valores, tanto no senso comum como em algumas áreas do saber que vão da filosofia à sociologia passando pela economia, está indexada a um sentido relativamente circunscrito que limita a sua abrangência ao estar virtuoso, moral ou ético.
O modo como aqui observo os cenários em que é possível recortar a emergência do valor é bem mais abrangente, e envolve diversas morfologias axiais inerentes às esferas em que estas são moldadas e produzidas. Numa sociedade ainda eminentemente capitalista, em que o equivalente universal – o capital – continua a ser o único índice de liquidez axial quando todas as outras formas de valor desaparecem, é preciso tê-lo em conta, quanto mais não seja como imanente a todas as outras formas de valoração, por vezes até como anti-forma. Simmel
Isto acontece porque, mesmo quando os objectos se inscrevem e evoluem num determinado campo de forças sociais, um campo axial específico, com uma forma de valoração específica, o único índice de valor comum continua a ser o capital que indexa, queiram ou não esses campos, o valor de equivalência comum à generalidade dos seus objectos.
É preciso olhar de frente o que acontece, e com que contornos;
por exemplo, observar o modo como a sociedade compensa o con-tributo dos seus agentes e do seu trabalho – isto é trabalho de sociólo-go, e aqui ele tem que detectar as inércias, as desigualdades, o non--sense nalgumas formas de valoração. Ele tem que descobrir porque é
SABERES NÓMADAS 15
que um chofer de camiões TIR ganha 1/10 de um chofer de aviões, ou 1/5 de um chofer de ministros.
Como é que a nossa sociedade nos diz o que é mais importante e o que é acessório. É assim?
Este panorama é um pouco geral. Por um lado,o caos axial, a difi-culdade em encontrar uma referência estável com a pulverização das meta-narrativas, e não há uma que se sustenha de pé frente a este tipo de agentes.
A este estado, tem-se vindo a chamar crise – crise de valores.
Neste meu trabalho – independentemente do modo como a socie-dade o avalia – o que quero tentar oferecer a quem me preste atenção é um modo de recortar e fazer aparecer as diferentes morfologias do valor, através da análise de discursos, actos, narrativas e experiências que suscitem o nosso interesse e possam ser constituidas como objecto de estudo. Não só descrevê-los ou cartografá-los, mas constituí-los como corpo significante – a fazer revelar sentido – para quem não os consegue ler dentro deste caos.
– O trabalho sobre os arquivos de filme e imagens em movimento
– Além de todas as problemáticas que ainda hoje o envolvem, fas-cinou-me um problema que implica a emergência da decisão ou juízo sobre os objectos, quando há que decidir o que se guarda e o que se deita fora; um momento em que um sujeito decide sobre a vida ou morte dos objectos. Por vezes, este juízo é exercido directamente sobre sujeitos – outros sujeitos.
Neste percurso encontrei ainda outro momento em que o sujeito homem tenta imitar a Deus, isto é quando cria algo. Também já reflec-ti e escrevi sobre isto, mas este momento não tem o peso dramático e axiológico do primeiro.
Na busca do modo como os homens decidem e ajuizam sobre os outros homens, objectos e experiências, acabamos necessariamente imersos na problemática dos valores. Os valores são, afinal, os qua-dros de referência que orientam essas decisões.
Como emerge o valor, hoje, na turbulência de critérios e cir-
cunstâncias
Num viedograma que costumo mostrar aos meus alunos em Socio-
logia da Comunicação, James Burke acaba a sua exposição acerca das modificações que a imprensa trouxe ao Ocidente, perguntando:
16 EDUARDO ESPERANÇA
– Hoje, numa altura em que os factos circulam à velocidade da luz, o que acontece aos valores que neles é suposto assentarem?
E eu pergunto:
– Aceitando que os factos são o suporte dessa estrutura intermediá-ria que são os valores, – quando os factos adquirem esta dinâmica informacional, o que é que acontece aos valores?
Mas desçamos ao procedimento analítico:
O que é um facto?
Um facto, do ponto de vista sociológico, é aquilo que é, ou passa a ser, porque assim é reconhecido como tal pela comunidade.
E o que é então um valor?
Pode dizer-se que é o componente mínimo de uma estrutura axial, um modo estabilizado de estruturar, hierarquizar e colorir factos, objectos, experiências e tudo o mais.
Valor ou hierarquia de valores, será então uma estrutura intermédia através da qual estabilizamos a nossa experiência.
Para quê estabilizar a experiência?
Para evitar sobressaltos, surpresas, tornar o futuro previsível, per-mitir a vida em sociedade, criando instituições, logicamente à custa da perda de alguma liberdade.
E acreditem que temos vindo a perdê-la, em particular no espaço público que hoje se expande.
Um Almada Negreiros, hoje, na sua energia e vitalidade, seria pra-ticamente improvável, difícil de se sustentar, – iria ao programa do Herman e seria comparado ao hipnotizador chalado. –
A questão seguinte é:
– Porquê estabilizar?
Para auxiliar a estabilidade social – essa hierarquia é comum e objectiva-se na cultura de um povo.
É aqui que se percebe a relação entre valores, cultura e comunica-ção; – sem um referencial comum – que tem que ser ao mesmo tempo semântico, pragmático e axial – a comunicação torna-se um chorrilho de mal-entendidos e a generalidade das relações atingem um nível máximo de probabilidade de não acontecerem.
Isto explica um pouco a premência dos actuais individualismos,
isolamentos e solidões que a pos-modernidade oferece e cultiva.
SABERES NÓMADAS 17
Então, o sociólogo tenta perceber os vectores intervenientes neste
processo dissolvente:
– as novas tecnologias a acelerar todo o tipo de acesso: on line, on
time, de fusão com a experiência virtual
– os valores massificantes a dissolver tudo o que possa produzir di-
ferença e, eventualmente, poder;
– a subida e contaminação do valor das práticas envolvendo objec-
tos tecnológicos:como, por exemplo a que envolve o espectáculo e a
mais valia visual da tecnologia; em que o telemovel é o último gadget;
– a imposição de práticas e protocolos de relação por essa mesma
tecnologia: ou seja, a influência do modo de estar da tecnologia no
modo de estar das pessoas;
– a televisão, os jogos e o entretenimento massificado no processo de
empobrecimento da experiência quotidiana – a superficialidade degra-
dante, como lhe chama Richard Sennett n’A Corrosão do Carácter;
– enfim, a dissolução dos saberes modernos apanhados no vórtice
da mutação contínua.
Mas o que acontece então quando os factos sobre os quais assenta a
hierarquia de valores são altamente dinâmicos?
Acontece essencialmente aquilo que, em termos físicos se pode
chamar um efeito centrífugo. Com a velocidade do movimento, as
pessoas são atiradas para as margens.
(No filme Les 400 Coups, um dos primeiros de François Truffaut, a
certa altura a personagem principal do filme, um rapaz de 14 anos, vai
a uma feira em Paris onde experimenta um carroussel que no fim dos
anos 50 devia ser comum mas que entretanto desapareceu. Era nada
mais que um cilindro que rodava, como que um “poço da morte gira-
tório, em que é a própria estrutura que roda e não quem está lá dentro.
Com o movimento do cilindro, as pessoas ficam “coladas” às paredes
laterais e têm muita dificuldade em mover-se; a gravidade é exercida
contra a parede lateral e não mais de cima para baixo, o que lhes
permite ficar em qualquer posição – relativamente a quem observa –
sem cair, até que o cilindro pare de rodar.)
E nas margens, como tal, observam-se dois cenários marginais:
As pessoas dividem-se em dois grandes grupos (aqui heurísticos
mas nem tanto, como se verá), no meio dos quais há outros sub-grupos
menores:
18 EDUARDO ESPERANÇA
a) Umas, de um grupo mais pequeno, ficam confusas, em particular
as que se interrogam acerca da legitimidade e fundamentação dos
valores para os quais é mais difícil encontrar factos certificantes e
estabilizantes;
b) As outras, a maioria, agarram-se a dogmas – à solidez de estru-
turas de valoração mais rígidas para fugir à confusão e instabilidade
do questionamento.
Neste cenário, de pessoas confusas e dogmatizadas, acontece o
meio ideal, o conjunto de condições reunidas de modo perfeito para a
propagação de efeitos modais; modas no sentido do senso comum. Em
todas as esferas públicas e privadas são fáceis de detectar.
O que são modas?
São kits temporàrios para a orientação e guia de experiências e
formas de valoração de factos particulares.
Na contemporâneidade têm como características o facto de:
– serem temporários
– serem mais facilmente assimilados por serem normalmente tem-
prárias e integradores;
– poderem ser integradores e ad-hoc, sem qualquer relação com o
existente.
MTV mais cool
Nos Estados Unidos – As editoras parceiras do MTV (canal de tele-
visão) e sponsors reúnem os putos mais cool dos liceus (até certo ponto,
neste âmbito – a vanguarda) de vários pontos do país, e questionam-nos
sobre o que está a dar. – Como se vestem, o que vestem, o que comem,
o que ouvem, o que vêem, como falam, o que é mais cool.
Estudam o “produto”, fazem um mix e a seguir, vendem isso mes-
mo à generalidade dos outros putos; um kit integrado com tudo isso:
roupa + música + discurso + bebida + atitude, etc.
Assim que o resultado deste kit modal se difunde e instala, que
começa a ser adoptado, este modo de estar morre enquanto cool e, de
novo, recomeça todo o ciclo outra vez, com outros putos a destaca-
rem-se como + cool.
(Isto revela a convergência de esferas que eu próprio estudei e mostrei
em 95-96, e de que fala o prof. Bragança de Miranda; o facto de várias
SABERES NÓMADAS 19
empresas de áreas e com produtos diferentes se associarem para a
orientação do seu marketing.)
A aceitação das modas é mais dependente da necessidade que as
pessoas têm de um guia, necessidade que se acentua neste período de
turbolência ou ausência de referências estáveis.
Apercebemo-nos de algo quase óbvio, que é a presença imanente
do valor como instância e factor de referência referencial de aferição
da experiência e dos factos.
Perante a emergência deste relativismo axial, voltemos ao proce-
dimento analítico:
Percebemos que para viver em sociedade, é necessário um contrato
(social) em que abdicamos de muitas das nossas possibilidades e
liberdades em troca de uma identidade, de uma paz social, de uma
possibilidade de integração.
Ao pensar este contrato hoje, quase vemos um negócio de casas,
um negócio imobiliário com intermediários e especulação, que impli-
ca deixarem-nos ou não habitar o social. Então surge aquilo a que
podemos chamar o paradoxo da desmultiplicação das esferas de poder
e acção social, – que se fazem corresponder a igual desmultiplicação
de esferas de valor.
Vários autores falam e tentam mapear estas esferas de valoração
quase ingloriamente:
– A esfera pessoal e íntima;
– A esfera da família;
– A esfera da instituição ou empresa;
– A esfera do Estado;
– A esfera da Igreja;
– A esfera de Escola;
– A esfera da justiça;
etc.
Cada uma com as suas diferentes estruturas e estratégias de valora-
ção, assim como objectos privilegiados.
Perante este cenário, ocorre-me tentar identificar os operadores
axiais que auxiliam a legitimação dos valores nas diferentes esferas:
Por exemplo, num esboço rápido, os operadores axiológicos do Po-
lítico-militar, caracterizado pelo exercício da força de coacção mais
dura, militar ou ideológica;
20 EDUARDO ESPERANÇA
– Os operadores da razão/verdade/ciência, operadores adjacentes do técnico-científico, com o eixo entre a performance e a verdade;
– Os operadores estéticos, em particular na esfera da cultura, que operam no eixo do sensorio-emocional
– Os operadores político-democráticos, que operam com base nas sondagens universais.
Pensando bem, olhando as coisas por este prisma, repare-se que ra-ramente se põem em causa as práticas consolidadas e existentes que podem expôr a inconsistencia dos modos de estar axiais ou do valor nas diferentes esferas. Foucault tentou, através da sua genealogia e análise do arquivo mostrar isso mesmo, observando o processo de consolidação das epistemes.
Por vezes, o non-sense da constituição histórica de práticas sociais que se cristalizam e se mantêm por inércia sobre factos e experiências que em nada as sustentam.
Por exemplo: porque é que o valor do Direito – espelhado na justi-ça, – é geralmente entregue a um especialista e só um, quando não é um colectivo que pensa em uníssono, por vezes em causas de Estado e, por outro lado, o poder político não é entregue a especialistas?
As diversas reificações
No actual espaço liberal capitalo-economista, o mercado, no seu sentido mais abrangente, é um conceito que não pode ser ignorado. O mercado é hoje, por excelência e força das circunstâncias, um espaço de fronteiras indefinidas mas afinal a única réstea de processo estutu-rante a que ainda podemos recorrer para aferir valores e dinâmicas de valor nas suas diferentes morfologias. Bauman, inspirando-se em Levi-Strauss, fala-nos, relativamente à cultura, em processos de estru-turação contínuos, numa actividade diacrítica que se vai estruturando, mas sempre difícil de prever. Um processo de investimento de ordem e selecção na vida mais difícil de adivinhar do que gostariam as or-dens de saber mais ortodoxas e positivistas.
Acontece que este grande mercado que aqui observamos, e que em termos morfológicos se configura na arena do espaço público onde ocorre a generalidade das transacções, é hoje um espaço razoavelmen-te reificado, contaminado por todas as formas de objectificação. Neste espaço, até a experiência mais metafísica se apresenta como objecto transaccionável e rentável.
SABERES NÓMADAS 21
Nesta “Era do Acesso” de que nos fala Jeremy Rifkin, o produto
com índice de vendas mais alto e em crescimento é a “experiência
segmentada”. Isto é, a experiência recortada e adaptada aos públicos
que para ela se criam. Um dia na Disneylandia (mais ou menos 18
contos);Uma semana em cruzeiro no Barco do Amor – (Uns mil e
quinhentos contos) Uns dias no Espaço (mais ou menos quatro mi-
lhões de contos); Um dia na Cidade-Património Évora, ou mesmo um
dia na Universidade Património, experiência fascinante mas de con-
torno imprevisível...
Enfim, a experiência exótica para os entediados do quotidiano rotinei-
ro; A experiência cultural para os bulímicos dos refrigerantes e enlatados
culturais; a experiência radical para os adrenalino – dependentes, etc.
De algum modo, o capitalismo industrial controlava e explorava os
recursos naturais e a mão-de-obra local para produzir bens e serviços.
O novo capitalismo expropria os recursos culturais para os exportar. E
o local onde ocorre uma maior quantidade de experiências por metro
quadrado, é o Centro Comercial. Estes são os lugares onde é possível
comprar o acesso a toda a espécie de experiências vividas. Nos gandes
Centros Comerciais Americanos pode-se assistir a aulas/conferências
de todo o género e feitio, fazer exames médicos, comer, ir a um con-
certo, praticar desporto, ir à igreja, encontrar amigos, jogar, fazer
compras, etc. O Mall of America, em Minneapolis, o maior Centro
Comercial dos Estados Unidos, tem mais visitantes por ano que o
DisneyWorld, Graceland e o Grand Canyon todos juntos.
Consumir é um acto de cultura...
Há muitas culturas!
Isto interessa-nos, porque a esfera cultural é, por excelência, a esfe-
ra da comunicação – a comunicação é o seu operador de serviço per-
manente.
Pouco depois do início do séc.XX, a esfera cultural tornou-se o re-
fúgio de todos os que queriam resistir à omnipresença dos valores
materiais. Não durou muito. Pouco depois do fim da 2.ª Guerra, a
saturação de um mercado invadido por todo o tipo de produtos fez
crescer o marketing, e a bola passou-se para o lado do consumo em
deterimento da produção, que estava garantida. Um eixo que fez
mudar tudo, por esta altura; a esfera do consumo privilegia os “perfis
de consumidor”, segmentando o mercado por estratos de rendimento e
22 EDUARDO ESPERANÇA
opção de consumo – quem pode comprar e quem compra o quê –
numa infinidade de perfis agrupados por segmento de aquisição. É
neste eixo do consumo e na criação desenfreada de novos produtos
para novos consumidores que o capital tudo transforma em mercado-
ria até a mais volátil das experiências, como vimos há pouco.
É um eixo de Produção na primeira metade do séc. XX, que leva a
um eixo do consumo na segunda metade e, neste entretanto, ao apaga-
mento da noção de “classe social” como esta era conhecida e ao nasci-
mento do “perfil do consumidor” e do “estilo de vida”. Estes novos con-
ceitos permitem a segmentação necessária ao tratamento dos dados refe-
rentes às diversas formas de consumo e orientações pessoais e grupais.
Rifkin diz-nos:
“Quando os especialistas do marketing e os teóricos do ciberes-
paço advogam que se utilizem as novas tecnologias da informa-
ção como instrumentos relacionais e proclamam um novo en-
vangelho comercial que promove a venda das experiências
vividas, a mercantilização das relações a longo prazo com os
consumidores e a formação de comunidades de interesse, o seu
objectivo final, saibam ou não eles o que fazem, é a vedação e a
absorção pela esfera do mercado, do nosso patrimóno comum.”
(A Era do Acesso).* p. 172.
A lógica do acesso, que de algum modo implica também o acesso à
comunicação, já não se define relativamente a critérios intrínsecos à
experiência e ao grupo, envolvendo tradições, ritos, relações de paren-
tesco, religião ou sexo, – o acesso é redefinido unicamente pelo crité-
rio decisivo da conta bancária.
Há uma nova vedação, ao mesmo tempo mais fechada a todos, – os
sm meios de acesso, istoé, uma conta a condizer, e mais aberta a todas
os que a tenham.
O problema é que é determinante questionar a legitimidade, autenti-
cidade, o que se quiser, deste grande Centro Comercial que se constitui
à nossa volta, sem darmos por isso, ou dando apenas marginalmente.
Esta dialética acesso/vedação faz-nos pensar até que ponto o culto
patrimonial recente dos mortos – abrindo casas museu na casa onde
* Jeremy Rifkin, A era do acesso - a revolução da nova economia, ed. Presença,
Lisboa, 2001, p. 172.
SABERES NÓMADAS 23
viveu a figura em destaque, não está já a passar para os vivos; e há
espaços em que essa experiência inolvidável é já oferecida – turismo
de habitação, com família (falida) incluida. Venha jantar conosco e
ajude-nos a pagar a renda da casa.
Neste Grande Centro Comercial, a virtude foi reduzida à capacida-
de de acção do capital, e os diversos perfis axiológicos – inerentes às
respectivas esferas, podem ser sempre adquiridos, vendidos e trocados
através da grande mediação do capital. Paul de Man falava, no segui-
mento de Marx, do Grande Dissolvente.
É à presença dessa mediação dissolvente que podemos imputar par-
te do processo de reificação geral a que assistimos.
O comércio dos Afectos
Neste processo de mercantilização de todos os objectos e experiên-
cias, não posso deixar de me lembrar, entre outros, de Pierre Klossowski
que, no fim dos anos 60 publicou um pequeno tratado acerca do que ele
chamava “La Monnaie Vivante” – a moeda viva, e que se debruçava
sobre o modo como damos valor e acabamos por reificar a transacção do
mais diverso tipo de sensações, sendo o meio de acesso a essas sensa-
ções, o corpo do outro e a sua habilidade para nos oferecer as sensações
desejadas. Enfim, o comércio do desejo e da sua satisfação, olhando
analiticamente os meios de produção e modos de valoração adjacentes.
Esta, uma economia dos afectos e das necessidades que evoluiu por
vezes marginal, por vezes abertamente ao longo do sec. XX, e que
fascinou em particular os filósofos franceses que tudo inventaram
acerca das máquinas desejantes.
O que aqui me ocorre é o facto, talvez já exposto e muito proble-
mático, que envolve a experiência comprada ou encomendada. Apesar
de todos os restos de tabu ético e moral, a verdade é que caminhamos
para um tempo em que a relação envolvendo capital, a relação que
envolve por exemplo a compra da experiência afectiva, se possa vir a
tornar mais valiosa, valorizada, profunda e desejada que a relação
tradicionalmente valorizada como legítima e natural.
Isto percebe-se melhor se pensarmos no que já se vê na ficção e
que, de algum modo retrata já modos de existir com cyborgs na satis-
fação do desejo e outras necessidades. Replicants modelo, melhores
que a mediania dos humanos em certas funções que é suposto su-
prirem; mais dóceis, menos exigentes, prontos a satisfazer tudo.
24 EDUARDO ESPERANÇA
Pergunta-se:
– Então o que é que acontece aos humanos que entre si são mais
exigentes, menos dóceis, mais incapazes e incompetentes?
Vê-se aqui um quadro comum ao problema do medo da máquina –
bastante antigo, e que se retrata no conto do Aprendiz de Feiticeiro. O
aprendiz consegue memorizar as palavras mágicas que iniciam a acção
mágica sobre os objectos. Quando o feiticeiro sai e lhe ordena que
limpe a casa e as retortas, o aprendiz espera que ele se ausente e profe-
re as palavras mágicas, seguidas da ordem de acção, para que os
objectos iniciem a limpeza e arrumação da casa. M há um problema; o
aprendiz não sabe como os mandar fazer parar...
Na estoria que se vê, por exemplo, em Blade Runner, há um apren-
diz que se apaixona pela replicant criada pelo feiticeiro, e a partir daí,
nada será como dantes.
O comércio dos afectos preenche igualmente um fascinante eixo do
valor que as circunstâncias de mudança hoje existentes, prometem
fazer durar ainda umas décadas....
Voltando aos objectos, Anthony Giddens destacou a importância
da segurança ontológica no espaço basal da existência e experiência
do sujeito. A dinâmica que se impõe e instabiliza quase todas as refe-
rências impelem o sujeito à solidez dos objectos e entre estes, a do
supremo objecto, a suprema segurança ontológica; o capital e as
formas de rendimento.
O sujeito activo na sua singularidade selecciona os seus objectos de
suporte: o lugar onde mora, o bairro, a sua casa, os móveis; o lugar
onde mora em movimento – o seu carro; o lugar onde mora quando
trabalha – o seu estatuto e objectos adjacentes, enfim, o lugar onde
mora no social, pelo modo como selecciona os amigos e as relações.
Emerge aquilo a que Rifkin chama uma personalidade proteiforme,
pronta a adaptar-se e flexibilizar-se a tudo, esquecendo a noção de
carácter desenvolvida pela burguesia do sec.XIX. Walter Benjamin, e
antes dele Simmel, haviam já percepcionado esta mudança ao retratar
a metropole no início do sec.XX. Simmel dizia que “o ritmo da activi-
dade humana se torna tão frenético que nele todas as formas estáveis
desaparecem – sobrevoamos com o olhar um abismo de vida informe.
O agir humano é tão volátil e a consciência tão fluida, que a existência
trava uma luta constante contra as suas próprias manifestações.” Esta
retrato feito por Simmel é tão actual que julgamos ter ele estado a
assistir a uma emissão da MTV.
SABERES NÓMADAS 25
Bauman fala também de um cidadão entretido com os seus jogos
domésticos, os seus objectos de domínio espontâneo que de fora
retratam personalidades superficiais e voyeuristas animados de uma
única vontade de jogarem e se distrairem na infinidade do entreteni-
mento da telecidade. Esta segurança ontológica, que implica estes
níveis de distância, oferece-nos por isso uma nova axiologia – a
capacidade de constituir uma nova tipologia de valores centrados
neste modo de estar e, até, uma nova proxémica das relações (uma
tipologia das novas distâncias e sentidos produzidos) sob estes novos
modelos de relação em ambas as dimensões da relação pessoal e
simbólica.
O problema aqui é que os últimos 30 anos têm vindo a reconfigurar
padrões de selecção que nos levam a confirmar esse processo de
reificação da generalidade das relações que sustentam esta segurança.
Nem Giddens parece ter-se apercebido da extensão deste processo
reificador. São todas as esferas de acção rodeando o sujeito, que o
impelem para esta forma de se agarrar a objectos socialmente bem
recortados, abandonando toda e qualquer criação própria ou oferecida
que não no domínio da coisa bem definida e socialmente aceite.
O maior dano observa-se ao nível da relação pessoal entre sujeitos,
que de imediato se objectualiza, numa mediação qualquer de contor-
nos bem definidos e lapidados.
A distância que cresce e de que falam alguns sociólogos não é mais
que o resultado deste rápido processo de reificação das relações. Tanto
o modelo da produção-consumo como o da Sociedade do Espectáculo
são aqui coincidentes. Queiramos ou não, somos transformados em
consumidores, receptores do outro, sujeitos ao modelo de representa-
ção que é ao mesmo tempo geral, mas que é essencialmente aquele
que o outro, querendo ou não nos impõe. Até ao imaginário espectacu-
lar e sobre-determinado pela sala de espelhos em que nos deslocamos,
temos dificuldade em escapar.
Cresce a cultura do espectáculo e entertenimento que teve início no
fim do séc. XIX com todas as fantasmagorias associadas. Como nos
diz Andrew Darley em “Visual Digital Culture”, – “é o voraz consu-
mo de relações e objectos, materiais e imateriais. Um desenvolvimen-
to que veio a dar numa ordem massiva que toca virtualmente todos os
aspectos da nossa existência quotidiana. Poucos escapam ao imperati-
vo altamente sistematisado de consumir, e ao destaque dado ao estilo,
à moda, à novidade, apesar de alguns disso serem excluídos.”
26 EDUARDO ESPERANÇA
É claro que a dimensão transformacional envolvida em crescendo é a
industria de sistemas de comunicação e representação de massa. É neste
contexto que se observa uma economia mista e transversal de modos de
exibição pública e privada do mais variado tipo de conteúdos digitaliza-
dos. Estes fazem parte de uma ordem consumista estabilizada que
explora todo o tipo de novidade e excitação, não apenas ao nível de
novos locais públicos de exibição mas, em particular no mais recente
espaço de cultivo e consumo cultural que é o espaço doméstico.”185.
De algum modo, como nos anos 60 relativamente ao grande con-
sumo, é nos anos 90 que a imagem assume definitivamente um papel
axial em todos os aspectos do consumo e quotidiano.
Bauman fala mesmo de uma telecidade para descrever um modo
particular de substituição levado a efeito pelos media, novos modos de
entretenimento e representação disponíveis que conseguem aliar a
dupla segurança da distância simbólica e pessoal, a distância de que
há pouco falávamos.
O típico espectador cultural da pos-modernidade é visto como es-
sencialmente centrado no espaço doméstico e cada vez mais um joga-
dor solitário que, através de vários meios de telemediação (alta-fideli-
dade, consolas de video-jogos, videogramas, terminais digitais e tele-
visões) um actor que se revela num “mundo-à-distância” domesticado.
Por detrás dos écrans a que as suas vidas se confinam, os estranhos e
outros que habitam a telecidade não constituem ameaça. Boa parte
destes objectos superficiais de fruição voyeuristica, estes mundos
virtuais que este espectador parece comandar tão inquestionavelmente,
são afinal mundos de outros sujeitos: a outro nível, concebidos e diri-
gidos, cuidadosamente disfarçados para darem a impressão de ofere-
cerem o comando e a espontaneidade” (Bauman:PostModern Ethics,
p. 173). Este contexto repete-se à exaustão noutras esferas com entrega
ao domicilio. O engraçado nisto tudo é que a entrega ao domicílio –
estilo telepizza – não exige existência de domicilio; quando o sujeito
se desloca para fora do domiclio, é-lhe oferecido um domicílio tempo-
rário. Como os domicílos estão cada vez mais padronizados, isto faci-
lita a operação. Em “The Tourist: A New Theory of the Leisure Class”,
Dean MacCannel mostra o panorama da explorção turistica, quando se
evita que contactem os habitantes naturais. Os espaços visitados são
de um conforto a toda a prova, onde o turista pode ver o mundo como
se estivesse diante da sua televisão, à distância e com toda a seguran-
ça.” (MacCannel, D. The Tourist...., Shocken Books, N, 1989, p. 100).
SABERES NÓMADAS 27
Por outro lado, Paul Virilio, nesta intensificação do papel substitu-
tivo dos media, Virilio vê essencialmente uma instância veicular, que
oferece uma dinâmica virtual, oferecendo a deslocação sem sair do
mesmo sítio. Para Virilio, o sec. XX teria sido dominado pelo auto-
móvel oferecendo uma deslocação em tempo extensivo, o sec. XXI
viria a ser dominado pelos diversos veiculos estáticos oferecendo uma
deslocação em tempo intensivo, oferecida pelos sistemas digitais de
simulação, levando a uma “inércia doméstica”.
Pergunta-se:
O que acontece à comunicação – tradicional acto de relação indivi-
dual e colectiva, quando este saber-fazer pode ser adquirido, enco-
mendado, ou pura e simplesmente aplicado para o desenvolvimento do
consumo?
Afinal, como se aplicam os saberes, entre outras coisas, para o
crescimento do consumo?
A Aplicação dos Saberes
Sobre a aplicação ocorre-me observar o valor que assume, hoje, o
famoso modelo de gestão do conhecimento dentro da empresa actual.
O que nos interessa averiguar é se este “saber” tem algo a ver com
os outros saberes hoje mais negligenciados. Que “gestão do conheci-
mento” é esta e que “saber da empresa” é este, hoje tão caro a certas
escolas de gestão?
É verdade que ainda há empresas que capitalizam em saber e co-
nhecimento. A sua performatividade passa pela gestão aplicada do
conhecimento enquanto gerador de capital. Qualquer projecto, para o
mínimo sucesso ou hipótese de realização, necessita hoje de uma
enorme capacidade estratégica. Que quer isto dizer?
Isto diz-nos que no horizonte quotidiano desta pós-modernidade, o
avaliar de qualquer acção passa pelo modo como o sujeito lida com a
contingência, e como a consegue ou não descrever e mapear instanta-
neamente para poder agir. Esta é hoje uma tarefa difícil e que causa as
maiores desorientações.
Richard Sennett conta a estória de uma meia dúzia de amigos que
ele acompanhou e se encontravam regularmente num café em Nova
York. Homens de meia idade, tinham todos lugares estáveis e de
prestígio na consagrada IBM. De um momento para o outro, aquele
28 EDUARDO ESPERANÇA
gigante institucional, por erros estratégicos de gestão e circunstâncias
de mercado, teve de emagrecer e eles, programadores e analistas de
sistemas de mainframes foram sendo despedidos, sendo que uns
tiveram que despedir outros e foram a seguir despedidos. Conta Sen-
nett que até hoje continuam a digerir o seu trauma, sem grandes con-
clusões. E aconteceu algo; da grande massa de despedimentos ocorri-
da entre os anos 80 e 90, boa parte dos que antes tinham papeis
importantes na autarquia, na comunidade ou eram parte do conselho
de administração da escola, perderam completamente o interesse por
esses cargos.”Perderam simplesmente o interesse pelos assuntos
cívicos” diz Sennett, muitos deles “viraram-se para dentro” (C.C.
p. 199, + exílio interior) Eles pura e simplesmente não conseguem
encontrar sentido para o que aconteceu; o seu ponto de vista não os
deixa ver nada da realidade actual. E não vêem nada porque, de algum
modo, o seu engenho para lidar com uma realidade altamente dinâmi-
ca e inesperada foi progressivamente adormecido dentro da instituição
supostamente estável; um processo narcotizante de que só se aperce-
bem após o choque. É desse engenho para lidar com esta realidade que
fala Jose Antonio Marina, no seu “Elogio e Refutação do Engenho”
quando diz que “As culturas tenderam sempre para o barroquismo por
um excesso de insaciável imaginação. Ao homem não lhe terá bastado
nunca o que via e, sempre possuído por uma fúria fabuladora incom-
preensível, criou os mais despropositados e belos mitos para explicar
o evidente. Somos incapazes de nos contentar com ver sem inventar,
entre outras razões porque sem inventar não vemos nada”.
As grandes narrativas, ou tapeçarias, como lhes chama Kundera,
foram-se esfumando, e o que ficou foi – no dizer de Bragança de
Miranda – “a projecção de uma malha que recobre a experiência, nua
aparência de totalidade, “híbrida” e “mista”, ou um “simulacro” (...)
onde outras figuras de experiência são possíveis.”
É preciso ter uma capacidade pluridimensional para oscultar e loca-
lizar esta malha espectral de ligações que sustentam a experiência. Por
isso hoje, o senso comum anda perdido, e a ciência, boa parte do tempo
busca sentido para o que encontra. Não admira pois que Bauman evo-
que Umberto Eco para falar “por uma geração que cresceu no cada vez
mais desregulamentado e polifonico mundo da pos-modernidade. Difi-
cilmente o romance pode acrescentar liberdade a um mundo já aturdido
pela infinidade de possibilidades em que oscila. Mas pode, ao contrário,
oferecer um ponto de apoio para pernas que procuram, em vão, amparo
na areia movediça dos estilos mutáveis, das identidades que não sobre-
SABERES NÓMADAS 29
vivem à própria construção e das histórias sem passado e sem conse-
quência” (O Mal-Estar da Pos-Modernidade, p. 152).
Por seu lado, a par do homem pressionado, o homem sujeito à pres-
são moderna do trabalho descrita por Weber, Richard Rorty vê nascer
o homem irónico, caracterizado por nunca ser capaz de se levar a sério
porque tem sempre consciência de que os termos em que se descreve a
si próprio estão sujeitos a mudança. “Uma visão irónica de si próprio é
a consequência lógica de viver no tempo flexível, sem padrões de
autoridade e de responsabilidade” (Contingency, Irony, and Solidarity,
1989, cit CC Sennett, p. 176). O problema, diz ainda Rorty, é que a
ironia tão pouco estimula as pessoas a por o poder em causa ou ence-
tar qualquer tipo de luta. Este carácter pode até tornar-se auto-destru-
tivo. Uma pessoa passa a acreditar que nada é fixo, “eu não sou real,
as minhas necessidades não têm substância”, serei eu próprio apenas
mais um espectro, etc.
“Esses pontos de vista da narrativa (pessoal) por vezes rotulados
como pos-modernos, espelham a experiência do tempo na economia
política pos-moderna. Um ego necesariamente adaptável, uma cola-
gem de fragmentos incessante na sua transformação”, envolvendo o
curto prazo e as instituições flexíveis. (CC p. 204)
Aqui não há segurança ontológica que valha seja a quem for. É esta
ausência de estabilidade que gera alguns perfis de personalidade que
chegam quase ao perverso, o que também é bem definido por Sennett.
Hoje, o objectivo do gestor e do supervisor é formar equipas coesas e
dóceis, orientadas para o objectivo, mas ao mesmo tempo com capaci-
dade de rápida reestruturação. Isto gera um perfil ideal de aparência
dócil e bem relacionado, cheio de capacidades portáteis e recicláveis.
Um dos seus elementos de segurança, é o desapego; alguém que tem
de ter a capacidade de rapidamente se afastar de relações firmadas e
encetar outras, um pouco como a prostituta que, por razões de sobre-
vivência se não pode apegar nem ao cliente mais terno. Neste contex-
to, o trabalhador em equipe tem de aprimorar as suas ficções de per-
sonalidade e a sua máscara de cooperação que depois leva de tarefa
em tarefa, de empresa em empresa, “essas janelas de capacidade social
cujo «hipertexto» é um sorriso vencedor.” (CC.p. 173)
E estes são, teoricamente os mais orientados. Percebe-se que a situa-
ção é difícil de mapear. É preciso, igualmente ser capaz de agir em
consonância e dentro de alguma estratégia para a mais-valia, ainda
que localizada.
30 EDUARDO ESPERANÇA
Ora, relativamente aos saberes que mais nos interessam, o espaço
da comunicação em geral diluiu-se nas especialidades e nas situações.
Já não faz sentido tentar criar um modelo geral, muito menos univer-
sal, para dar conta das diversas situações de comunicação.
A história das teorias da comunicação mostra isso mesmo; uma su-
cessão de modelos que se observam como viáveis e aplicáveis em
pouco mais que um espaço e tempo específicos.
Interessa-nos então ver, afinal, o que sobra de todas estas declina-
ções e impossibilidades.
Existirá um resto?
Que resto é este?
Afinal, o que resta estável?
Este resto, a ser contemplado, é precisamente o que se queda está-
vel, ou é passível de ser estabilizado nas actuais condições de incerte-
za e contingencialidade. Estas são as actuais condições que gerem os
relacionamentos entre sujeitos, independentemente das mediações,
num espaço cada vez mais difícil de programar.
A acção subjectivamente investida tem probabilidades de se ver es-
tabilizada apenas sobre o objecto; difícilmente sobre outro sujeito. É
neste quadro de incerteza e aleatoriedade que se pode começar por
procurar o que resta estável.
Ainda que epistemologicamente criticável, esta representação que
envolve a relação sujeito-objecto é heuristicamente fértil.
Um modelo pragmático, por exemplo, encontra a estabilidade nos
signos, na objectivação consensual dos signos, e tenta ir mais além
observando a acção do sujeito sobre esta instância de mediação –
questiona-se – o que faz dela? – o que se faz com ela?
Cassirer, no seu ensaio intitulado “Forma e Técnica”, desloca o
quadro semiótico exposto na sua “Filosofia das Formas Simbólicas”,
para um modelo de crítica analítica da tecnologia. Aí aparece um
triângulo em cujos vértices estão a “expressão”, a “representação”, e a
“significação”, conjunto que ele estabelece como cobrindo todas as
funções e espaços que controlam a generalidade das actividades pro-
dutivas. Este triângulo oferece a demonstração do distanciamento cada
vez maior entre as coisas e os signos, assim como a sua desmateriali-
zação progressiva.
SABERES NÓMADAS 31
Destacamos aqui o vértice da “expressão” que é, para Cassirer, o
ponto em que o signo está tão perfeitamente embutido no corpo do
sentido e do objecto que é forçado a viver e incorporar essa realidade.
Este, por exemplo, é o problema que “exprime” a personagem cen-
tral de “Inteligência Artificial” (de Spielberg e Kubrik) – o menino
robot adoptado pelo casal, um menino tão igual aos outros que nem ele
mesmo sabe que é robot. Entre outras, esta é a ilusão da omni-capaci-
dade humana de replicação – do clone/replicant igual ou tão igual aos
originais que perde a marca de origem, a identificação de objecto tecno-
lógico produto do homo faber em vez de produto da natura.
Em Blade Runner, de Ridley Scott, essa distinção era mais exposta
e visível, com a excepção de um último replicant que se aproximava
mais do humano
– todos os outros eram para abater. Apesar de esteticamente mais
pos-moderno, este filme/narrativa pode dizer-se que é mais “realista”,
no sentido em que oferece à tecnologia ainda um grau de opacidade
que a torna visível, mesmo no caso de clonagens ou próteses perfeitas.
A progressiva desmaterialização do signo já convertido em tecno-
logia altamente performativa, chega ao extremo da clonagem simula-
cral perfeita; o desígnio do outro que é máquina mas não parece.
Uma vez configurados e inseridos num mundo determinado por
signos e sistemas de signos, acabamos por nos sujeitar à sua lógica
funcional e semiótica.
O que Cassirer nos diz é que a tecnologia é um modo de fazer, e de
fazer mundos, tal como o mito, a linguagem, a ciência ou a arte. A
tecnologia inscreve, por isso, no mundo um padrão específico de
inteligibilidade, uma lógica de acção e leitura pragmáticas, determi-
nando o seu modo de agir e produzir.
Se o signo é a instância de mediação por excelência, o objecto tec-
nológico enquanto signo materializado, é o dispositivo de mediação.
Como o objecto tecnológico se nos impõe como um outro com
poder
Pragmaticamente não só nos diz que “serve para”, diz-nos também
como serve ou como pode ser servido. Além de serem representacio-
nais, tais dispositivos adquirem hoje uma vida própria, ao fundir
expressividade com utilidade. Isto é visível e denunciado também
32 EDUARDO ESPERANÇA
n’ “O Mito do Estado”, no qual Cassirer destaca os efeitos catalíticos
que o agir discursivo e actancial do político imprime na criação dos
mais diversos poderes míticos, em particular os de maior efeito deter-
ministico. Ele diz:
– “Os mitos políticos agem do mesmo modo que a serpente que
tenta paralizar as suas vitimas antes de as atacar. os homens socum-
bem sem grande resistencia. São vencidos e dominados antes de se
aperceberem sequer do que Ihes aconteceu.
Envolvido no jogo e lógica do sistema sígnico de informação, o uti-
lizador acaba por ser um receptáculo determinado por um complexo
sistema energético, afectivo e intelectual de interpretantes. Até certo
ponto se poderá dizer que nos tornamos, a vários níveis, o resultado da
acção dos dispositivos de mediação em que nos incorporámos.
Exemplo disto, se descartarmos todos os maquiavelismos, é oes-
trondoso insucesso dos serviços de informação americanos, em parti-
cular da CIA e NSA, na previsão dos ataques de 11 de Setembro. Ao
lado do mito da universalidade superior do capitalismo e das relações
de mercado, funcionou o mito da infalibilidade e completude da má-
quina de controlo.
Ora, transpondo este raciocínio para a esfera do saber, posso per-
guntar:
– O que se faz com esta instância de mediação que se dissolve?
Que se metamorfoseia conforme a episteme dominante?
– O que se pode fazer com um saber museificado, um objecto que
as condições sociais só admitem como relíquia de exposição condi-
cionada? Será que o imperialismo da techne-objectificado que mantem
o exercício da acção do sujeito sobre o objecto – exige uma omniob-
jectificação para que qualquer acção comunicacional possa ocorrer
sem sobressaltos?
Mark Poster na sua “Segunda Era dos Media”, fala da necessidade
de observar o modo como as bases de dados nos interpelam. Pois, as
bases de dados são parte desse resto que há pouco referi. Nelas se
incorporam todos os museus que recebem todos os saberes descartados.
Mas o saber das bases de dados, que antes era o saber dos livros e dos sábios, é cada vez menos passivo. Este, tal como a tecnologia, interpela-nos e fá-lo de um modo muito específico. Também o saber se torna mais acessível e manipulável, mas apenas dentro de uma lógica específica de inteligibilidade e de relação com o mundo como o
SABERES NÓMADAS 33
demonstraram as várias idades por que passou, da oralidade e do mito para a escrita e a prova, até ao hipertexto aparelhado.
Se o saber tornado signo, dispositivo de mediação, se sujeita aos condicionamentos da acessibilidade, esses condicionamentos vão-lhe igualmente esculpindo uma forma e um modo de fazer absolutamente dedicados.
Talvez seja este o desígnio do homem pos-moderno. Um modo de estar paradoxal e ansioso que se pode assim descrever:
– Como nunca antes, ter a liberdade e capacidade de acesso a todo o saber e mais algum e, ao mesmo tempo, o constrangimento sufocan-te da presença desse saber e da exigência (moral?, social?) da sua sensata utilização.
Os Saberes na Universidade
Observemos então um espaço que é suposto conhecermos.
A Universidade, é ponto assente que, sujeita à massificação que se iniciou nos anos 70, levou a médio prazo a comprometer o seu estatuto de laboratório de ideias novas.
Thomas Molnar, que não tem o perfil ideal para ser aqui chamado, escreveu um livro importante que não podemos negligenciar. O Declí-
nio dos Intelectuais no Ocidente chama a atenção para o facto de entre os anos 50 e os 80,os intelectuais terem sido capazes de instalar nos campus universitários as caldeiras e as condições de criação de novas vagas de pensamento e acção – dentro de um objectivo ideal de trans-formar a Universidade no protótipo da sociedade ideal.
É preciso aqui chamar a atenção para o fenómeno de erosão e dela-pidação que, nos últimos anos, sofrem as mais variadas áreas do saber, aqui incluídas as práticas e conhecimentos da escola em geral, e da Universidade em particular.
Ainda não há muitos anos, era possível sentir a força carismática do saber nas Ciências Humanas, como em outras áreas, uma força que se podia observar corporizada em alguns detentores desse saber – professores, intelectuais, e os próprios livros e testemunhos que deles a sociedade guardava.
É incrível como, em pouco mais de quinze anos, essa força fasci-nante que energizava grande parte de quem se dedicava a tais saberes – é incrível como essa força se diluíu na indiferença comum aos objectos sociais mais banalizados.
34 EDUARDO ESPERANÇA
No “O Castelo do Barba Azul” George Steiner diz o seguinte:
“Há um fosso de anos-luz entre a sensibilidade característica
dos meus anos de aprendizagem, segundo os moldes franceses
tradicionais, com a sua insistência óbvia no prestígio do génio e
a reivindicação de uma existência fecunda para alem da morte,
e a atitude peculiar dos meus alunos. Será que ainda dão às pra-
cetas da nossa cidade nomes de matemáticos? (...) o público já
não é um eco esclarecido do talento do artista, uma entidade que
responde à sua actividade singular e a transmite; transformou-se
em co-criador num agregado confuso de forças avulsas e parti-
cipantes. Abaixo os pressupostos de permanência da obra clás-
sica, abaixo os mestres.”
Não foi apenas Steiner que se apercebeu disto mais corporalmente;
estou a lembrar-me de Allan Bloom, Saul Bellow, etc.
No entanto, o estatuto e competências que a universidade conferia,
atraíu cada vez mais candidatos quase extinguindo os ensinos inter-
médios e massificando o ensino superior.
Rapidamente o mercado se apropriou do produto da Universidade,
como um filão para o abastecimento barato em Recursos Humanos
“semi-formatados”.
Esta viragem determina que passa a ser o mercado quem dita o ní-
vel, quantidade e qualidade da formação, com cabeças padronizadas,
orientadas para a sobrevivência, e destilados de todo o encantamento
intelectual que já nem sabem o que é e, pior, se por acidente dele se
aproximam, o sentem como altamente perturbador ou até absurdo.
Há pouco, observávamos o modo como as formas de reificação ac-
tuais haviam contaminado os diversos tipos de relação, e se tinha
consubstanciado em eixos de valor social e mediaticamente configu-
rados por esta dinâmica reificante. Nesta nova axiologia económica,
estamos mergulhados num universo de símbolos, redes e elos de
retroacção, de conectividade e interactividade, dentro do qual as fron-
teiras são fluidas e onde se torna evanescente tudo o que antes era
sólido. (Rifkin, p. 170.) Este panorama é natural que torne cada vez
mais difícil a relação entre sujeitos sem a mediação permanente da
almofada, para não dizer colchão protector/mediador que ofereça
segurança e distância a um sujeito cada vez mais frágil e medroso na
sua intimidade. Nitidamente um sujeito cada vez mais esquizóide,
cada vez mais apreciador de heróis destemidos e aventureiros, ou da
SABERES NÓMADAS 35
sua simulação e encarnação temporária nos jogos de video. Afinal, a
compensação devida ao déficit de relações fortes e liberdade concreta
de acção em que o actual sujeito é obrigado a viver na panóplia de
forças que sujeitam o seu corpo e que Foucault tão bem retratou.
Como um esquizóide que é incapaz de se expôr e precisa da media-
ção de personagens que ele próprio enverga para se relacionar, sem
esta inter-mediação ou qualquer outra que o proteja até da relação
consigo próprio, o actual sujeito sente-se nu e bloqueado a qualquer
relação. Ele tem de envergar uma camisola e falar de futebol; vestir
um carro e falar de automóveis; fumar uma marca de experiência e
falar de dependencia; habitar um estilo e passar o dia a fazer de mane-
quim enfim, calçar um autor e discorrer sobre um módulo de conhe-
cimento.
A Reificação dos Saberes
O que acontece quando este processo reificante chega aos saberes e
ao conhecimento?
É difícil apresentar uma perspectiva crítica original neste campo.
Mas o que ocorre na generalidade das outras esferas, reflecte-se
igualmente na produção científica e académica.
O processo de reificação que, na Modernidade seleccionava os sa-
beres segundo o paradigma dominante, provado, objectivado e sancio-
nado pela comunidade científica, transferiu-se para a pos-modernidade
substituindo o carácter iso-paradigmático e objectivante por um novo
conjunto de características igualmente (verificáveis) – chamemos-lhe
visibilidade. O que é isto?
Visibilidade, nas actuais circunstâncias, cobre um leque de variá-
veis que se aglutinam igualmente sob um novo tipo de objectividade
da produção.
Se antes estávamos reduzidos a um modelo quase unidimensional –
hoje abre-se um leque de dimensões onde essa visibilidade/objecti-
vidade pode concretizar-se. Pode ser mesmo uma objectivação pela
eficiência dos resultados, sob um modelo de rendimento dos investi-
mentos na investigação – a eficiência pode até ser objectivada a outros
níveis.
Pode ser uma visibilidade investida no próprio corpo da descoberta
e da investigação, uma corporificação do processo heurístico pelo
fascínio do método ou mesmo a fertilidade do objecto a investigar.
36 EDUARDO ESPERANÇA
Pode até ser uma visibilidade assente na visibilidade e prestígio do
investigador.
Estas visibilidades e objectificações desmultiplicam-se em várias
dimensões, mas têm o carácter comum de se corporificar em algo
tangível dentro das circunstâncias que as objectivam. Basta observar
os modos de seleccionar projectos de investigação para nos aperce-
bermos de que, a par das várias sensibilidades dos selectores, há um
olhar comum para os resultados, uma teleologia comum que de ime-
diato corporifica/visualiza as hipóteses de sucesso do projecto; e
sucesso aqui é a capacidade de produção de um objecto exequível e
performativo em termos científicos, quanto mais não seja em termos
de exposição e mostração.
Heisenberg dizia que na investigação científica, aquilo que obser-
vamos não é a natureza, mas a natureza submetida ao nosso método de
interrogação.
Apesar de um pouco mais abertos a novos objectos, os modelos de
interrogação, as configurações heurísticas dos projectos apoiados e
financiados, isto é, com hipótese de concretização, continuam a ser
razoavelmente restritos a um modelo dominante e epocal.
Como já disse, na Universidade, um dos problemas centrais reside
do grande mercado de Recursos Humanos em que ela se constituíu
neste advento da massificação, orientada para a produção de robots
performativos e programados, circunstância que desincentiva qualquer
género de pesquisa fundamental.
Em termos sintéticos, se a pesquisa aplicada não acontece dentro
do espaço dos possíveis, mas apenas dentro das dimensões visíveis,
aceites e sancionadas no seu presente, isto continua a excluir toda a
novidade que não se apresente dentro do quadro de referências em
agenda.
Muitos saberes então, tal como os ursos, hibernam até que novas
condições climatéricas menos adversas lhes dêem alguma chance de
sobrevivência.
Outros saberes migram, instalando-se em dimensões-objecto privi-
legiadas pelas circunstâncias.
Condições de actualização, valores e circunstâncias axiológicas fa-
voráveis e adversas, padrões comunicacionais preponderantes, – são
estas variáveis que, tentei mostrar, hoje condicionam A Migração dos
Saberes.