UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ECONOMIA
RICARDO CARVALHO GONÇALVES
Regime de Superávit Primário no Brasil: teoria,
institucionalidade e prociclicidade
Campinas 2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ECONOMIA
RICARDO CARVALHO GONÇALVES
Regime de Superávit Primário no Brasil: teoria,
institucionalidade e prociclicidade
Prof. Dr. Pedro Linhares Rossi – orientador
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Ciências Econômicas.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO RICARDO CARVALHO GONÇALVES E ORIENTADO PELO PROF. DR. PEDRO LINHARES ROSSI.
Campinas Fevereiro de 2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ECONOMIA
RICARDO CARVALHO GONÇALVES
Regime de Superávit Primário no Brasil: teoria,
institucionalidade e prociclicidade
Defendida em 23/02/2017
COMISSÃO JULGADORA
A Ata de Defesa, assinada pelos membros
da Comissão Examinadora, consta no
processo de vida acadêmica do aluno.
AGRADECIMENTOS:
Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, aos dedicados professores e
funcionários do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas
(IE/Unicamp), que tornam este lugar tão acolhedor e propício para o desenvolvimento
de seus alunos. Em especial, gostaria de agradecer ao meu orientador Prof. Pedro Rossi,
por toda sabedoria, didática, paciência e compreensão, sendo fundamental para o
processo de elaboração dessa dissertação.
A todos os professores e colegas de pós-graduação do Centro de Estudos de
Conjuntura e Política Econômica (CECON) pelo incentivo e pelo aprendizado ao longo
das reuniões mensais, que permitiram ampliar os horizontes acerca de diversos temas e
que contribuíram muito para o meu crescimento ao longo do mestrado. Ao Prof.
Guilherme Mello, pelas ótimas contribuições, tanto ao longo das reuniões no CECON
quanto na minha banca de qualificação. À Profª. Esther Dweck e ao Prof. Francisco
Lopreato, pelas excelentes críticas, comentários, sugestões e indagações, que trouxeram
reflexões importantes na minha banca de defesa de mestrado, colaborando, assim, para
melhorar a versão final deste trabalho e para perspectivas de pesquisa para o doutorado.
Não poderia deixar de agradecer aos meus colegas de pós-graduação, que se tornaram
grandes amigos, sempre abertos e com um espírito cooperativo. Impossível não lembrar
alguns colegas, como Thiago Machado, João Pedro Macalos, Christian Duarte, Flávio
Arantes e Flávia Filippin, que tiveram a paciência de ler, discutir ou colaborar de uma
forma mais direta com o meu trabalho de dissertação.
O mestrado no IE/Unicamp foi um período muito construtivo, quando tive a
oportunidade de conhecer diversas pessoas incríveis, economistas sensíveis aos
problemas sociais do país e participativos no debate público. É uma honra e um prazer
fazer parte de um centro de pesquisa que se preocupa em responder questões cruciais
para a superação de problemas econômicos, atacando questões estruturais como a
grande desigualdade social. O espírito de cooperação, incentivado dentro do IE e do
CECON, me trouxeram além de grandes amigos, uma perspectiva mais ampla sobre
métodos de pesquisa e exploração de problemas. Sem dúvida, essa característica torna o
trabalho mais prazeroso, tornando o IE um lugar ainda mais agradável para se trabalhar.
Por fim, gostaria de agradecer aos meus familiares e amigos de longa data (que
já são “quase família”) e que estiveram presente de alguma forma ao longo dessa
trajetória do mestrado. Aos meus pais, Regina e Paulo, eu não teria palavras para
agradecer tudo que já fizeram por mim. Aos meus irmãos, Rodrigo e Rafael, que apesar
da distância, conseguem mandar energias positivas e um apoio incondicional. Aos
amigos que fiz em Rio Grande, em Porto Alegre e em Campinas, que são muitos para
citar, mas que são únicos. Sinto-me uma pessoa de muita sorte por ter tantas pessoas
incríveis e que agregam muito para a minha vida de formas tão distintas e particulares.
The windows of the soul are infinite, we are told. And it is
through the eyes of the soul that paradise is visioned. If there
are flaws in your paradise, open more windows! Vision is
entirely a creative faculty: it uses the body and the mind as
the navigator uses his instruments. Open and alert, it matters
little whether one finds a supposed shortcut to the Indies – or
discovers a new world. Everything is begging to be
discovered, not accidentally, but intuitively. Seeking
intuitively, one’s destination is never in a beyond of time or
space but always here and now. If we are always arriving
and departing, it is also true that we are eternally anchored.
One’s destination is never a place but rather a new way of
looking at things. Which is to say that there are no limits to
vision. Similarly, there are no limits to paradise. Any
paradise worth the name can sustain all the flaws in creation
and remain undiminished, untarnished.
MILLER, Henry. Big Sur and the Oranges of Hieronymus
Bosh. New Directions Publishing Corporation, 1957, p.25.
RESUMO
Esta dissertação realiza uma avaliação crítica do regime fiscal de metas primárias
institucionalizado no Brasil após a reforma macroeconômica de 1999. Defende-se a
hipótese de que a rigidez desta regra atribui uma característica pró-cíclica ao regime
fiscal, além de desincentivar a realização de investimentos públicos, que se tornam
variável de ajuste ao longo do ciclo econômico. O desenvolvimento do trabalho segue
uma discussão teórica, buscando evidências de que o regime de metas fiscais está
fundamentado na visão do Novo Consenso Macroeconômico (NCM). Contrapondo-se a
essa vertente, levanta-se conceitos desenvolvidos por Keynes e Kalecki acerca da
dinâmica das economias capitalistas, a fim de indicar a importância da atuação estatal
para a manutenção dos níveis de investimento, principalmente em momentos de baixa
do ciclo econômico. Analisa-se, então, os objetivos e alguns resultados do regime fiscal
brasileiro – que pese à sustentabilidade da dívida pública – questionando-se o papel das
metas primárias dentro desse arranjo. Para defender a hipótese do trabalho, avalia-se o
comportamento de alguns componentes do orçamento do governo central – como os
gastos discricionários, as receitas e as despesas primárias – em relação à evolução do
PIB. Através da análise de gráficos (de dispersão e de evolução no tempo) busca-se
evidências de que os componentes do orçamento público tendem a variar no mesmo
sentido do que as variações do PIB. Esse fato seria particularmente problemático se em
períodos de queda do produto – quando há uma tendência de redução das receitas – o
governo contingencie investimentos para cumprir a meta de superávit primário. Como
esse dispêndio tende a apresentar um maior efeito multiplicador, essa dinâmica
reforçaria o movimento descendente do PIB e agravaria a queda das receitas, não
contribuindo, assim, para melhorar a situação fiscal nem para retomar o crescimento.
Assim, existiria uma barreira institucional à execução de políticas anticíclicas, já que
despesas com elevado efeito multiplicador tendem a ser cortadas nas fases de baixa do
ciclo econômico.
Palavras-chave: Regime Fiscal Brasileiro; Regime Fiscal Pró-cíclico; Novo Consenso
Macroeconômico.
ABSTRACT
This dissertation makes a critical appraisal of the fiscal regime of primary targets
institutionalized in Brazil after the macroeconomic reform of 1999. The hypothesis
defended is that the rigidity of this rule attributes a procyclical characteristic to the
fiscal regime, in addition to constrain the realization of public investments which
becomes the adjustment variable throughout the economic cycle. The development of
the paper follows a theoretical discussion, seeking evidences that the regime of fiscal
target is based on the vision of the New Consensus Macroeconomics (NCM).In contrast
to this view, the paper brings forward the concepts developed by Keynes and Kalcki on
the dynamics of capitalist economies, in order to indicate the importance of the state
interventions for the maintenance of investment levels, especially in times of economic
downturn. Some goals and results of the Brazilian fiscal regime are analyzed
(emphasizing the debt sustainability) to question the role played by the primary targets
on this arrangement. In order to defend the hypothesis of the paper, the behavior of
some components of the government budget – such as discretionary spending, primary
revenues and expenditures – are evaluated in relation to the GDP fluctuation. Through
graphic analysis (dispersion and evolution over time) it looks for evidences that the
public budget components tends to vary in the same direction as the variation of GDP.
This fact would be particularly problematic if in periods of declining output – when
there is a trend for revenues to fall – the government contingencies investments
spending to meet the primary surplus target. As this expenditure tends to have a greater
multiplier effect, this dynamic would reinforce the downward movement of GDP and
worsen the fall in revenues, thus not contributing to improvements on the fiscal
situation nor to resume growth. Thus, there would be an institutional barrier to the
implementation of countercyclical policies, since expenses with a high multiplier effect
tend to be cut in the downturn phases of the economic cycle.
Key Words: Brazilian Fiscal Regime; Procyclical Fiscal Regime; New Macroeconomic
Consensus.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Gráfico Teórico Pró-Cíclico .................................................................................. 129
Figura 2: Gráfico Teórico de Dispersão – Pró-Cíclico ......................................................... 130
Figura 3: Gráfico Teórico Contracíclico .................................................................................... 131
Figura 4: Gráfico Teórico de Dispersão – Contracíclico ..................................................... 132
Figura 5: Gráfico Teórico Acíclico ........................................................................................ 133
Figura 6: Variação do PIB e da FBCF acumulados em 4 trimestres em relação ao mesmo
período do ano anterior (1998.IV - 2016.III) ........................................................................ 136
Figura 7: Dispersão entre PIB e FBCF - taxa acumulada em 4 trimestres em relação ao
mesmo período do ano anterior (1998.IV - 2016.III) ........................................................... 137
Figura 8: Variação anual do PIB e do Investimento do Governo Central (1999 - 2015) .. 138
Figura 9: Dispersão entre a variação anual do PIB e do Investimento do Governo Central
(1999 – 2015) ............................................................................................................................ 138
Figura 10: Variação anual do Investimento e das Receitas Primárias do Governo Central
(1999 - 2015) ............................................................................................................................. 139
Figura 11: Dispersão entre a variação anual do Investimento e das Receitas Primárias do
Governo Central (1999 – 2015) .............................................................................................. 139
Figura 12: Variação do PIB e da Receita Total do Gov. Central – taxa acumulada em 4
trimestres em relação ao mesmo período do ano anterior (1998.IV – 2016.III) ................ 142
Figura 13: Dispersão entre PIB e Receita Total do Gov.Central - taxa acumulada em 4
trimestres em relação ao mesmo período do ano anterior (1998.IV – 2016.III) ................ 143
Figura 14: Variação trimestral do PIB e das Despesas Primárias Totais do Governo
Central – acumulado em 4 trimestre em relação ao mesmo período do ano anterior
(1998.IV - 2016.III) .................................................................................................................. 145
Figura 15: Dispersão entre a Variação Trimestral do PIB e das Despesas Primárias Totais
do Governo Central – acumulado em 4 trimestres em relação ao mesmo período do ano
anterior (1998.IV - 2016.III) ................................................................................................... 146
Figura 16: Variação Trimestral das Receitas Primárias Totais e Despesas Primárias Totais
do Governo Central – Acumulado em 4 trimestres em relação ao mesmo período do ano
anterior (1998.IV – 2016.III) .................................................................................................. 147
Figura 17: Variação Trimestral do PIB e das Despesas Discricionárias do Governo
Central – Acumulado em 4 trimestres, em relação ao mesmo período do ano anterior
(1998.IV – 2016.III) ................................................................................................................. 148
Figura 18: Dispersão entre PIB e Despesas Discricionárias do Governo Central –
Acumulado em 4 trimestres, em relação ao mesmo período do ano anterior (1998.IV –
2016.III) .................................................................................................................................... 149
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Quadro esquemático do planejamento orçamentário, PPA (2012-2015) ......... 119
Quadro 2: Fatores Condicionantes da Dívida Líquida do Setor Público Consolidado, em
% PIB (2002-2016) .................................................................................................................. 126
Quadro 3: Fatores Condicionantes da Dívida Bruta do Governo Geral, em % PIB (2007 -
2016) ......................................................................................................................................... 127
Quadro 4:Tendências de variação do PIB e da FBCF, dados trimestrais acumulados nos
últimos 4 trimestres em relação ao mesmo ao mesmo período (1998.IV - 2016.III) ......... 137
Quadro 5: Investimento do Governo Central e do Governo Geral – Taxa de Crescimento
ao ano........................................................................................................................................ 140
Quadro 6: Tendências de variação do PIB e da Receitas Primárias, dados trimestrais
acumulados nos últimos 4 trimestres em relação ao mesmo ao mesmo período (1998.IV -
2016.III) .................................................................................................................................... 144
Quadro 7: Tendências de variação do PIB e das Despesas Primárias, dados trimestrais
acumulados nos últimos 4 trimestres em relação ao mesmo ao mesmo período (1998.IV -
2016.III) .................................................................................................................................... 146
Quadro 8: Tendências de variação do PIB e das Despesas Discricionárias, dados
trimestrais acumulados nos últimos 4 trimestres em relação ao mesmo ao mesmo período
(1998.IV - 2016.III) .................................................................................................................. 150
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 15
1. O DEBATE TEÓRICO SOBRE O REGIME FISCAL: A VISÃO DO NOVO
CONSENSO MACROECONÔMICO .................................................................................... 20
Apresentação: .......................................................................................................... 20
1.1. O Novo Consenso Macroeconômico (NCM)......................................................... 22
1.2. O NCM e a Política Fiscal .................................................................................. 32
1.3. Algumas críticas ao NCM:.................................................................................. 39
1.4. O NCM pós-crise de 2008 ................................................................................... 44
1.4.1. Questão Fiscal: sustentabilidade da dívida pública e crescimento econômico ........ 47
1.4.2. Nova Geração de Regras Fiscais pós-crise de 2008................................................. 53
Considerações Finais ................................................................................................ 58
2. O DEBATE TEÓRICO SOBRE O REGIME FISCAL: A POLÍTICA FISCAL COMO
MECANISMO ESTRATÉGICO DO ESTADO .................................................................... 60
Apresentação: .......................................................................................................... 60
2.1. A Dinâmica Capitalista e a Política Fiscal em Keynes e Kalecki ........................... 60
2.1.1. A economia monetária de produção e os ciclos econômicos em Keynes .................. 61
2.1.2. O investimento e os ciclos econômicos em Kalecki ................................................... 68
2.1.3. A política fiscal em Keynes ....................................................................................... 72
2.2. A Visão da Modern Money Theory (MMT) ......................................................... 77
2.2.1. Aspectos Gerais da MMT .......................................................................................... 78
2.2.2. Os objetivos da política macroeconômica e a política fiscal na MMT ..................... 81
2.2.3. Notas Críticas à MMT ............................................................................................... 84
2.3. Política Fiscal e Estratégias de Desenvolvimento ................................................. 91
Considerações Finais: ............................................................................................... 99
3. O REGIME FISCAL BRASILEIRO: CONTEXTUALIZAÇÃO,
INSTITUCIONALIDADE E ANÁLISE DO ASPECTO PRÓ-CÍCLICO ........................ 101
Apresentação: ........................................................................................................ 101
3.1. Contextualização histórica: o tripé macroeconômico e a introdução do regime de
metas primárias ..................................................................................................... 102
3.1.1.Notas sobre a política macroeconômica brasileira na década de 1990: uma breve
contextualização ................................................................................................................ 102
3.1.2. O tripé macroeconômico, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e o novo regime
fiscal .................................................................................................................................. 107
3.1.3. Governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2015) ................................................. 111
3.2. Institucionalidade e Operacionalidade do Regime Fiscal no Brasil ..................... 118
3.3. Desempenho do Regime de Metas Primárias e o seu Comportamento Frente aos
Ciclos Econômicos .................................................................................................. 125
3.3.1. Análise geral do desempenho do regime de metas primárias no Brasil ................. 125
3.3.2. Notas metodológicas para a análise do aspecto cíclico do regime fiscal ............... 128
3.3.3. Notas sobre a variável “investimento” no Brasil ................................................... 135
3.3.4. O regime fiscal e os ciclos econômicos no Brasil ................................................... 140
Considerações Finais: ............................................................................................. 151
CONCLUSÕES ....................................................................................................................... 153
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 156
15
INTRODUÇÃO
A condução da política fiscal incitou grandes controvérsias no Brasil nos
últimos anos. Além de estar no centro de debates ao longo do pleito eleitoral de 2014,
essa questão foi o ponto crucial para justificar o processo de impeachment da presidente
eleita Dilma Rousseff. O governo de Michel Temer, com a equipe econômica liderada
por Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda, iniciou em 2016 um processo de
reforma fiscal que encerraria, na prática, o longo período em que a política fiscal foi
balizada pelas metas de superávit primário, colocando uma regra que limita os gastos
primários do governo central como um novo e principal norteador. Dentro dessa
conjuntura, emerge uma polêmica questão sobre a eficácia do regime de metas
primárias, que segue um controverso debate econômico entre as diferentes vertentes de
pensamento.
Para compreender melhor essa complexa conjuntura política e econômica, é
preciso ter em mente que as mudanças estruturais do regime macroeconômico brasileiro
seguiram, desde a década de 1990, uma vertente teórica de caráter ortodoxo. Em vista
disso, é preciso apreender a forma como essa linha de pensamento interpreta a lógica do
sistema capitalista e assimilar os pressupostos que assentam essa base teórica. Nesse
sentido, remete-se a um aspecto de extrema relevância: sobre o papel que o Estado deve
desempenhar na economia, que reflete um modo específico de lidar com a política
fiscal.
A formatação do regime fiscal, por meio da operação de receitas e gastos do
Estado, bem como o cumprimento de metas estipuladas institucionalmente, repercute
diretamente sobre questões essenciais da sociedade, desde a possibilidade de ofertar
bens públicos quanto às políticas que visem o crescimento econômico. Esse tema, que é
de grande relevância para o desenvolvimento de um país, gera polêmicas e divergências
dentro da ciência econômica,. Assim, é imperioso aprofundar estudos que levem em
consideração as inferências teóricas, os objetivos, e os resultados de determinadas
configurações de políticas fiscais. Em vista disso, essa dissertação realiza uma análise
crítica ao regime fiscal brasileiro de superávit primário, pesando o seu alicerce teórico e
a algumas consequências específicas de sua formatação institucional. Esse estudo se
mostra relevante, então, para se ponderar quais tipos de mudanças no regime fiscal
seriam desejáveis para se vislumbrar um desenvolvimento econômico para o país.
16
A hipótese principal do trabalho é, então, de que o regime fiscal de metas
primárias é pró-cíclico e ineficiente para prover um planejamento de longo prazo ao
desenvolvimento econômico, prejudicando a manutenção de níveis razoáveis de
investimentos públicos ao longo do tempo. Conforme será desenvolvido ao longo do
trabalho, o estabelecimento de uma rígida regra fiscal atribuiu à meta de superávit
primário uma característica “obrigatória”, relegando às despesas discricionárias (que
incluem parte dos investimentos públicos) a conta de ajuste, sempre passíveis de
contingenciamentos em momentos de frustrações de receitas. Seguindo essa lógica,
existe uma barreira institucional à execução de políticas anticíclicas, já que despesas
com elevado efeito multiplicador tendem a ser cortadas nas fases de baixa do ciclo
econômico. Esse fato tenderia a reforçar o movimento declinante do PIB e,
consequentemente, de queda das receitas do governo – se tornando contraproducente
aos seus próprios objetivos.
Essa dissertação defende, também, que essas características desse regime fiscal
são frutos de uma visão teórica baseada no Novo Consenso Macroeconômico (NCM),
que conjectura um papel limitado ao Estado. Busca-se demonstrar como a política
econômica brasileira, desde o início da década de 1990, se aproximou de abordagens
que pregam a redução da participação do Estado na economia e a liberalização dos
mercados, relegando ao setor privado a responsabilidade de ditar o desenvolvimento da
economia.
Faz-se relevante notar o contexto histórico-institucional das mudanças
estruturais do regime fiscal no pais. Nesse sentido, destaca-se que a regra de superávit
primário foi introduzida na reforma macroeconômica de 1999, após a crise cambial, e
perpetuada pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Assim, pretende-se compreender a
conjuntura e os objetivos da implementação do “tripé macroeconômico” – as metas de
inflação, o câmbio flutuante e as metas primárias – bem como os seus pressupostos
teóricos, que seguiram as recomendações da linha “dominante” (ou o mainstream) na
década de 1990, a saber, a do NCM.
Para colaborar com esse debate, essa dissertação se organiza em três capítulos,
excetuando-se esta introdução e as considerações finais. No primeiro capítulo se realiza
uma revisão bibliográfica acerca do Novo Consenso Macroeconômico (NCM). O
objetivo do capítulo é demonstrar os principais pressupostos teóricos que caracterizam
essa linha de pensamento, que irão remeter, no terceiro capítulo, à institucionalidade
macroeconômica brasileira. Faz-se necessário discorrer, na seção 1.1, sobre aspectos
17
macroeconômicos mais amplos para compreender como os teóricos do NCM
interpretam a dinâmica capitalista. Destaca-se as recomendações dessas autores sobre a
condução da política monetária, que seria o principal instrumento de ação do Estado e
cujo o objetivo principal seria manter a estabilidade de algumas variáveis
macroeconômicas (com grande destaque para a inflação). Esse ponto está diretamente
relacionado com a forma como o NCM interpreta a capacidade do Estado de intervir na
economia.
Com isso, a seção 1.2 aborda especificamente sobre o manejo da política fiscal
dentro dessa base teórica. Na seção 1.3, levanta-se algumas críticas sobre os principais
pontos abordados pelo NCM. Já na seção 1.4, discorre-se sobre algumas mudanças
ocorridas após a crise de 2008 em relação à interpretação de diversos autores do
mainstream acerca da condução da política macroeconômica – que passam a defender
certa flexibilização na condução da política fiscal para possibilitar ações anticíclicas
pelo Estado.
Contrapondo-se à visão do NCM, o segundo capítulo aborda uma linha teórica
em que o Estado possui um papel fundamental, tanto para executar políticas anticíclicas
quanto para direcionar investimentos estratégicos no intuito de reduzir vulnerabilidades
econômicas. Parte-se da visão de Keynes e Kalecki, dois autores seminais para se
compreender uma dinâmica capitalista diferente daquela exposta pelas linhas ortodoxas.
Dentro desse contexto, o investimento público ganha importância central.
Aprofundando esse debate, a seção 2.2 trata sobre a Modern Money Theory
(MMT), que defende a ideia de que o Estado não possui restrições orçamentárias por ter
a prerrogativa de emissão monetária. Após discorrer sobre os aspectos teóricos gerais e
as recomendações de políticas econômicas dessa linha teórica – nas seções 2.2.1 e 2.2.2,
respectivamente – realiza-se, na seção 2.2.3, algumas notas críticas a algumas
simplificações realizadas pela MMT. Apesar de insights importantes, que contribuem
para a discussão do tema fiscal, alguns autores pós-keynesianos refletem que as
simplificações realizadas pela análise da MMT são contraproducentes para se colocar
no debate teórico (já que poderia gerar algumas confusões).
De uma forma complementar, a seção 2.3 aborda sobre a importância da
política fiscal, dentro do arranjo macroeconômico, para a estratégia de desenvolvimento
do país. Reflete-se sobre as limitações que países emergentes podem sofrer em um
contexto de globalização econômica para realizar políticas voltadas ao
18
desenvolvimento. Essa seção busca reforçar a importância do Estado como agente
estratégico, contrariando as linhas teóricas de caráter ortodoxo.
O terceiro capítulo foca na condução da política fiscal no Brasil. Para colaborar
na compreensão do funcionamento do regime fiscal, se faz necessário uma análise
histórico-institucional, discorrendo-se brevemente sobre as principais mudanças na
condução da política econômica que moldaram o atual regime fiscal. É preciso
compreender aspectos conjunturais que cercam as mudanças ocorridas a partir da
década de 1990, quando o viés teórico ortodoxo se tornou hegemônico na formulação de
política econômica no Brasil. No discorrer da seção 3.1 – que insere a perspectiva
histórica – alude-se diretamente às questões abordadas nos dois primeiros capítulos,
remetendo-se às teorias que influenciaram o contexto econômico do período.
Já a seção 3.2 foca na operacionalidade e na institucionalidade do regime fiscal
de metas primárias, buscando apontar a lógica de organização do orçamento pública.
Esse ponto é de extrema relevância para se compreender a dinâmica que as metas
primárias anuais embutiriam no manejo do orçamento do governo e que acarretariam
em uma propensão de gestão pró-cíclica.
Por fim, a seção 3.3 busca ilustrar a análise crítica realizada previamente e
colabora para defender a hipótese de que o regime fiscal de superávit primário apresenta
uma tendência pró-cíclica, dificultando a realização de gastos discricionários nas fases
baixa do ciclo econômico. Para tanto, se compara a evolução de dados do orçamento
primário do governo central – receitas primárias, despesas primárias e despesas
discricionárias – com a evolução do PIB, buscando-se evidências empíricas acerca do
caráter pró-cíclico do regime fiscal brasileiro.
Cabe frisar que uma nota sobre a variável “investimento” se mostrou crucial,
dada a sua importância estratégica para a interpretação dos ciclos econômicos e dada a
dificuldade de se estimar a série de “investimentos públicos” no Brasil. Como os
investimentos públicos tendem a apresentar um efeito multiplicador elevado,
principalmente nas fases de queda do PIB, buscou-se explicitar o seu comportamento ao
longo do tempo. Utilizou-se a série de investimentos públicos estimada por Orair e
Siqueira (2016), que tomam por base a Formação de Capital Fixo do Governo.
Por fim, cabe enfatizar que a metodologia utilizada para analisar os dados do
orçamento primário do governo central é uma interpretação de dois tipos de gráficos, de
evolução no tempo e de dispersão, que comparam a variação das receitas e despesas
primárias do governo central com a variação do PIB. Ademais, busca-se em uma análise
19
qualitativa, observando os períodos em que essas variações se aceleram em relação ao
período anterior, o que colabora para a interpretação dos gráficos de dispersão.
20
1. O DEBATE TEÓRICO SOBRE O REGIME FISCAL: A VISÃO DO NOVO
CONSENSO MACROECONÔMICO
Apresentação:
Esse capítulo tem o objetivo de apresentar a forma como o Novo Consenso
Macroeconômico (NCM)1 lida com a questão fiscal – e que subentende uma visão
específica sobre o papel que o Estado deve desempenhar na economia. Contudo, para
esclarecer esse ponto, se faz necessário discorrer sobre a forma como essa linha de
pensamento aborda aspectos macroeconômicos mais gerais, relacionadas a alguns
pressupostos importantes acerca do funcionamento das economias capitalistas. Nesse
sentido, cabe enfatizar o papel limitado atribuído ao Estado, que reflete em regras
fiscais rígidas2.
Salienta-se que tanto a políticas monetária como a livre movimentação de
capitais no contexto de globalização, convergem para atribuir à política fiscal um papel
restrito, complementar e secundário dentro dessa linha de pensamento. Com o pretexto
de maximizar os resultados do mercado e da iniciativa privada, essa abordagem imputa
à política macroeconômica a principal responsabilidade de manter a estabilidade de
algumas variáveis-chave, com grande destaque para a taxa de inflação. Os teóricos do
NCM argumentam que, ao estabilizar o nível de preços, o governo estaria contribuindo
para melhorar a conjuntura em prol do investimento privado, dado que as expectativas
dos agentes seriam beneficiadas pela melhor previsibilidade econômica.
Conforme será exposto, o principal instrumento de ação do Estado seria as
taxas de juros nominais de curto prazo, que atuariam para controlar a demanda agregada
e manter o nível de preços no nível planejado. Ao convergir as expectativas dos agentes
para o nível de inflação futura anunciada pelo banco central, o governo abriria espaço
para reduzir as taxas nominais de juros e incentivar os investimentos privados. A
organização do capítulo segue da seguinte forma:
Na seção 1.1, discorre-se acerca do Novo Consenso Macroeconômico (NCM) e
suas principais influências teóricas. Alguns autores apontam que, apesar de algumas
1 Por estar entres as teorias de maior influência internacional, de melhor aceitabilidade nas universidades
de maior prestígio e publicada nas revistas mais conceituadas, pode-se considerá-la como parte do
mainstream economics (DEQUECH, 2007).
2 Compreendendo-se que o NCM abrange uma vasta literatura com diversos autores de grande relevância,
adverte-se para a limitação do escopo do capítulo que não tem a presunção de aprofundar e pormenorizar
ideias que não são consideradas essenciais dentro do núcleo teórico dessa linha de pensamento.
21
divergências, existe um núcleo de acepções de confluência que incorporou ideias das
escolas Novo Clássicas, Novo Keynesianas e do Ciclo Real de Negócios. Cabe enfatizar
a grande relevância que essa abordagem imputa à política monetária, que acaba
refletindo ao papel secundário da política fiscal. Nesse sentido, mostra-se relevante
discorrer sobre a forma como o NCM trata com a política monetária e que resulta na
recomendação de metas para a inflação.
Na seção 1.2, aborda-se sobre a política fiscal dentro do núcleo teórico do
NCM. Após discorrer sobre os aspectos gerais que caracterizam o NCM, em que a
política monetária se sobressai, esta seção trata especificamente sobra a forma como
essa vertente teórica lida com a política fiscal. As metas para o superávit primário são
uma consequência dos objetivos de sustentabilidade imputados pelo NCM à política
fiscal.
Após apontar o cerne teórico do NCM, aponta-se algumas críticas a
pressupostos e recomendações de política econômica defendidos pelo NCM. A seção
1.3 coloca argumentos críticos realizados por de Lavoie (2006) e Arestis e Sawyer
(2002), aos princípios que sustentam o núcleo teórico do NCM. Essa seção é importante
pois dialoga com as autocríticas realizadas por autores do mainstream após a crise de
2008 (discutidas na seção 1.4) e com a compreensão de uma outra vertente teórica, que
será apresentada no segundo capítulo.
Na seção 1.4, levanta-se, então, algumas reflexões realizadas por alguns
autores vinculados ao NCM após a crise de 2008. Com a eclosão da grave crise
financeira que teve repercussões globais, diversos economistas perceberam as
fragilidades teóricas que assentavam o mercado global desregulado e a condução da
política macroeconômica passiva de diversos países. Em certa medida, esses autores se
aproximaram de uma visão pós-keynesiana, em que a regulação financeira e os gastos
do governo são ferramentas essenciais para uma política econômica condizente com
crescimento e desenvolvimento sustentáveis. Contudo, apesar dessa discussão retomar a
importância da política fiscal como um instrumento anticíclico, percebe-se que para
muitos autores esse fato só deverá ocorrer em momentos específicos de crise
econômica, mantendo-se ainda a validade dos pressupostos do NCM.
22
1.1. O Novo Consenso Macroeconômico (NCM)
Conforme Blanchard (1997) e Taylor (1997), o Novo Consenso
Macroeconômico (NCM) seria um conjunto de proposições teóricas de grande aceitação
entre diversos economistas e instituições “mainstream”, que surgiu ao longo da década
de 1990. Esses autores realizaram um esforço de síntese, incluindo conceitos, definições
e interpretações das escolas de pensamento econômico mais influentes. Conforme
Blanchard (1997), o NCM aproximou a teoria econômica da prática realizada pelos
Bancos Centrais e pelos governos em diversos países.
Nesse sentido, para compreender as proposições teóricas do NCM sobre as
recomendações para a política fiscal, é interessante observar, brevemente, as principais
teorias que as influenciaram. Pode-se afirmar que o NCM segue uma vertente teórica
entendida como neoclássico, por aceitar hipóteses de equilíbrio geral (mesmo que
dinâmico), neutralidade da moeda (em algum espaço temporal, ou no curto ou no longo
prazo), além da racionalidade do agente econômico e da ergodicidade3, que permitem a
construção de modelos probabilísticos com erros esperados estatisticamente nulos.
Outros pressupostos incorporados por essa linha teórica também seguem a tradição
neoclássica, como a decomposição do ciclo-tendência, que permite distinguir análises
de curto e de longo prazo (HERSCOVICI, 2015; TEIXEIRA & MISSIO, 2011).
As principais influências teóricas do NCM foram, então, as escolas Novo
Clássica, Novo Keynesiana e Ciclo Real de Negócios. Cabe lembrar que para se
compreender as acepções teóricas dessas vertentes sobre a condução da política fiscal é
preciso explicitar, também, alguns pressupostos sobre questões macroeconômicas
gerais, como o entendimento sobre a moeda, a condução da política monetária, a
regulação financeira, a racionalidade dos agentes econômicos e a função que o Estado
deve desempenhar na economia.
A teoria econômica Novo Clássica ganhou grande destaque ao longo da década
de 1970 quando as ideias econômicas neoliberais voltaram a ganhar força no Reino
Unido e nos Estados Unidos se espraiando, posteriormente, para outras nações. Seus
grandes expoentes, Robert Lucas e Thomas Sargent, criticavam não só as teorias
3 O axioma da ergodicidade, segundo Davidson (2003), implica que as informações passadas sobre uma
determinada variável servirão como uma base confiável para se elaborar uma distribuição de
probabilidade que permitirá auferir previsões sobre eventos em qualquer período de tempo que se
relacionam com essa variável.
23
vinculadas ao keynesianismo como também o monetarismo de Milton Friedman.
Segundo Lucas e Sargent (1981), choques econômicos exógenos provocados pelo
governo (com mudanças de política econômica) apenas teriam efeitos reais sobre o
produto se fossem realizados de maneira imprevista pelo público. Contudo, essa ação
não poderia ser repetida sem a antecipação dos agentes econômicos que agiriam de
maneira racional e, aprendendo com as experiências passadas, poderiam prever
possíveis desvios de políticas econômicas do governo. Os mercados seguiriam um
sistema ergódico, compostos por indivíduos atomistas que agiriam individualmente para
maximizar ganhos segundo suas restrições. Os agentes seriam, então, tomadores de
preços, ou seja, em concorrência os preços convergiriam para um ponto de equilíbrio,
não sendo influenciados por decisões individuais dos empresários (DATHEIN, 2000).
Tendo isso em vista, os indivíduos agiriam conforme um agente representativo
segundo a Hipótese das Expectativas Racionais, em que as experiências passadas e
todas as informações presentes seriam suficientes para a formulação de modelos
econômicos probabilísticos em que os erros esperados seriam zero4. Essa ideia é central
para a aceitação da hipótese de neutralidade da moeda no curto prazo. Assim, essa linha
de pensamento defende que mudanças previsíveis na política macroeconômica não
afetam as variáveis reais da economia (tanto no curto quanto no longo prazo), apenas
alteram o nível de preços. Esse fato implicaria em uma curva de oferta vertical no curto
prazo, reiterando o conceito clássico da Lei de Say5. Embora esses autores não
trabalhem com o conceito de pleno emprego, defendem que o desemprego em um
mercado de trabalho flexível só poderá ocorrer se for “voluntário”, quando o
trabalhador preferir ficar sem emprego ao invés de trabalhar por um salário que
considere injusto.
Os modelos do Ciclo Real de Negócios (RBC6) buscam explicar as causas das
flutuações econômicas dentro do arcabouço neoclássico. Esses modelos trabalham com
a ideia de que os mercados são estáveis, porém estão sujeitos a influência de “choques
4
Essa hipótese é uma amplificação da Hipótese das Expectativas Adaptativas proposta pela escola
monetarista em que os agentes adaptariam sua base de informações conforme os eventos passados.
5 A Lei de Say é a lei de equilíbrio dos mercados proposta por Jean-Baptiste Say na primeira década do
século XIX e pela qual se desenvolveu a teoria econômica liberal, sustentando a ideia de que a produção
de um bem cria as condições de demanda para outros bens. Assim, se os preços e salários forem flexíveis
e a moeda neutra, as condições de oferta ditariam automaticamente as condições de demanda da
economia. A poupança dos agentes que não estiverem dispostos a gastar financiaria, automaticamente, o
investimento.
6 Sigla “RBC” do termo em inglês Real. Bussiness Cycle.
24
externos” que, exogenamente, provocam os ciclos econômicos. Esses choques podem
ser provocados tanto por distorções realizadas por mudanças na política econômica
quanto por rupturas tecnológicas que alterem de forma permanente a produtividade. Ao
seguir premissas dos Novos Clássicos, esses modelos trabalham com o conceito de
moeda neutra e de agentes representativos que seguem as expectativas racionais. Nas
palavras de Stadler (1994, p.1751):
(…) RBC theory views cycles as arising in frictionless, perfectly
competitive economies with generally complete markets subject to real
shocks. RBC models demonstrate that, even in such environments,
cycles can arise through the reactions of optimizing agents to real
disturbances, such as random changes in technology or productivity.
Furthermore, such models are capable of mimicking the most
important empirical regularities displayed by business cycles. Thus,
RBC theory makes the notable contribution of showing that
fluctuations in economic activity are consonant with competitive
general equilibrium environments in which all agents are rational
maximizers.
Nas fases de boom os trabalhadores prefeririam trabalhar mais devido as
melhores remunerações. Seguindo essa lógica, nas recessões, os indivíduos prefeririam
trabalhar menos, já que os salários são reduzidos. Percebe-se, assim, a lógica Nova
Clássica de desemprego voluntário ao longo dos ciclos econômicos. A principal
recomendação de política econômica, segundo esses modelos, é de que o governo não
deve responder aos movimentos cíclicos da economia com mudanças na política
econômica. Se o desemprego estiver elevado, argumentam que essa é uma resposta
eficiente ao fato de que a produtividade está baixa. Tendo isso em vista, a única reação
cabível ao governo seria em termos de melhorar a produtividade, reduzindo custos de
transação, promovendo a inovação e estimulando a competitividade. Contudo,
defendem que essas ações deveriam ser implementadas em qualquer fase do ciclo, não
podendo ser consideradas, assim, uma resposta a crises econômicas.
A década de 1980 assistiu, também, o fortalecimento da escola “Novo-
Keynesiana”, que divergia dos primeiros principalmente pela noção de rigidez de preços
e salários – inspirada na interpretação neoclássica da Teoria Geral de Keynes. Dessa
forma, poderiam existir falhas no funcionamento do mercado que impediriam a
economia de alcançar esse equilíbrio ótimo no curto prazo. É nesse sentido que os
teóricos do novo-keynesianismo buscam nos fundamentos microeconômicos (rigidez no
mercado de trabalho e formação de preços em concorrência imperfeita) a explicação
para que, no curto prazo, alterações na política econômica provoquem modificações no
25
produto em termos reais, além de impactar o nível de emprego. Ou seja, esses autores
recuperam a ideia de que, no curto prazo, a curva de oferta é ascendente e que variações
da demanda provocam modificações reais no produto e no emprego (DATHEIN, 2000;
FERRARI FILHO, 1996).
No longo prazo, contudo, essa vertente mantém a visão ortodoxa de
neutralidade da moeda e de equilíbrio. Isso implica que as mudanças reais de curto
prazo não se mantêm ao longo do tempo, sendo revertidas e compensadas por mudanças
nominais. Com isso, os choques econômicos de curto prazo são tidos como distorções
no sistema de informações do mercado que podem prejudicar o desenvolvimento de
longo prazo.
O desemprego é explicado por características estruturais de rigidez do mercado
de trabalho e de bens. Os autores novo-keynesianos mantêm o conceito de “taxa natural
de desemprego” dos monetaristas – a NAIRU7, proposta por Milton Friedman. Com
isso, existiria uma taxa de desemprego provocada por fatores microeconômicos da
oferta que não seria necessariamente “voluntária”. Não obstante, a teoria novo-
keynesiana trabalha com a ideia de ciclos econômicos, em que choques de demanda
provocariam respostas subótimas aos ajustes de preços, configurando diferentes pontos
de equilíbrio em situações de falhas de mercado. Dessa forma, esses autores explicam a
existência de pontos de equilíbrios com “taxas naturais de desemprego” pela própria
estrutura do mercado.
Os autores dessa escola aceitam a Hipótese das Expectativas Racionais, mas as
condições de mercado em que os agentes econômicos atuam são diferentes daquelas
expostas pelos Novo-Clássicos. A não aceitação da hipótese de market clearing8 e o
desenvolvimento de modelos de concorrência imperfeita (onde existem agentes
formadores de preços com diferentes poderes de mercado) complexificam os modelos
econômicos para tentar aproximar a teoria da realidade, contudo, não alteram de forma
significativa as recomendações de políticas econômicas (DATHEIN, 2000).
Cabe frisar que essas linhas teóricas ortodoxas foram gestadas nos think tanks
estadunidenses e ingleses desde a década de 1940. Segundo Gros (2008), os think tanks
7 A NAIRU, do termo em inglês non-accelerating inflation rate of unemployment, implica em uma taxa
natural de desemprego que seria observada no equilíbrio de mercado, ou seja, o ponto ótimo de
desemprego para que não se desencadeie um processo inflacionário.
8 A noção de market clearing está relacionada ao equilíbrio entre as condições de oferta e de demanda,
seguindo a Lei de Say. Com isso, os mercados tenderiam à plena utilização dos fatores de produção,
incluindo o pleno emprego.
26
são instituições privadas de pesquisa que participam ativamente (e com grande
influência) no debate público e na formulação de políticas de diversos governos.
Financiadas por doações de grandes empresas privadas e com ramificações em grandes
universidades, em partidos políticos e na mídia, essas instituições conseguiram manter a
influência das ideias liberais mesmo ao longo da “era de ouro” do keynesianismo e do
wellfare state até a eleição de Ronald Reagan em 1980, quando se tornam, então,
hegemônicas. De forma semelhante, os think tanks conservadores da Inglaterra
colaboraram para a eleição de Margareth Thatcher em 1979.
Reflete-se, então, que as formulações teóricas dos think tanks se encaixavam
perfeitamente com o viés político que emergia no final da década de 1970, pregando
que a redução da participação do Estado na economia e o livre funcionamento dos
mercados convergiriam para um equilíbrio econômico ótimo. No campo econômico, o
período de baixo crescimento do produto e a aceleração da inflação eram tidos como
provas empíricas do esgotamento das políticas keynesianas. No discurso social, a
moralização da ação individual em torno da meritocracia reforçava um ideal de justiça
de que cada cidadão ocupava uma posição na sociedade segundo seu próprio esforço e
capacidade. Enquanto ao Estado, caberia minimizar distorções do mercado, manter a
ordem e ofertar bens públicos básicos, como segurança e educação fundamental.
Já na década de 1990, percebe-se o esforço de concatenar ideias dessas escolas
de viés ortodoxo. Esse esforço de síntese, que passou a dominar a visão mainstream,
ficou conhecido como o “Novo Consenso Macroeconômico” (NCM). O NCM
incorporou, então, ideias dos Novos Clássicos, do Ciclo Real de Negócios e dos Novos
Keynesianos. Conforme Blanchard (1997) a intenção permanecia em aproximar a teoria
com as recomendações de políticas econômicas dos governos. Contudo, pode-se refletir
que as próprias ações políticas buscavam respaldo na teoria econômica para serem
legitimadas. Seguindo preceitos da escola clássica, alguns autores caracterizam o NCM
como uma “nova síntese neoclássica”, em alusão à síntese neoclássica dos anos 1950
(MIKHAILOVA & PIPER, 2012). Essa nova síntese, que dominou o debate econômico
a partir da década de 1990, serviu de base para a implementação de Regimes
Macroeconômicos de diversos países, inclusive o do Brasil.
Segundo Teixeira e Missio (2011), autores – como Blinder (1997), Blanchard
(1997) e Taylor (1997) – defenderam a existência de um conjunto de proposições com
grande aceitação dentro do mainstream que interpreta o desenvolvimento econômico
dos países capitalistas. É importante observar, de antemão, a diferenciação que esses
27
autores fazem entre os resultados de longo e de curto prazo, que será refletida na
maioria desses princípios. Essa diferenciação segue a linha da escola novo keynesiana,
trabalhando com modelos de concorrência imperfeita e rigidez de preços e salários.
Blanchard (1997) adverte a complexidade de se estudar a teoria
macroeconômica que, segundo ele, podem apresentar resultados contraditórios ao longo
do tempo. Esse fato seria exemplificado por políticas expansionistas (como déficits
fiscais ou expansões da base monetária) que poderiam provocar crescimento econômico
no curto prazo, porém teriam impactos negativos no longo prazo (como elevação da
inflação e das taxas de juros, fato que desestimularia investimentos privados). Além
disso, Blanchard (1997) salienta para as dificuldades de se compreender o longo prazo,
já que a trajetória de estado estacionário9 não é tão simples quanto nos modelos de
manuais baseados em mercados competitivos. Tanto o nível quanto a inclinação dessa
trajetória de longo prazo ocorrem em um sistema de mercados imperfeitos, onde a
produtividade, a tecnologia e o mercado de trabalho seguem uma lógica complexa de
desenvolvimento. Mas em suma, percebe-se a grande preocupação dos teóricos do Novo
Consenso com os movimentos do lado da oferta, enquanto as políticas de incentivo à
demanda são tidas como ineficientes (DRUMOND & JESUS, 2013).
Taylor (1997) aponta cinco princípios básicos desse consenso
macroeconômico. O primeiro refere-se à possibilidade de decompor o ciclo (flutuações
de curto prazo) da tendência (que depende de deslocamentos da função de produção que
afeta o longo prazo) para compreender a dinâmica da oferta e do crescimento
econômico. Blanchard (1997) cita Samuelson para afirmar que, no curto prazo, as
alterações na atividade econômica são provocadas por mudanças na demanda agregada
enquanto que, no longo prazo, a economia tende a retornar a uma trajetória de
crescimento estável baseada nas condições da oferta10
. Conforme Taylor (1997) a
produtividade do trabalho, que depende do estoque de capital por horas de trabalho e da
tecnologia, soma-se à estimativa de crescimento da força de trabalho para designar o
crescimento do PIB potencial. Através desse princípio, que é a essência da teoria
neoclássica de crescimento, seria possível discutir e estimar as fontes do crescimento
econômico de longo prazo, na qual as variações dos ciclos teriam pouco impacto.
9
Segundo o modelo de Solow, todas as economias tendem a um estado estacionário, ou seja, a um
equilíbrio de longo prazo no qual o estoque de capital não varia.
10 Conforme Blanchard (1997) essa ideia segue a teoria neoclássica de crescimento.
28
Taylor (1997) afirma, ainda, que esse princípio possui implicações importantes para a
realização de políticas públicas, sendo incluído em modelos utilizados pelo Fed e pelo
Congressional Budget Office para estimar o crescimento do PIB potencial.
O segundo princípio discutido por Taylor (1997) refere-se a não existência de
um trade off entre inflação e desemprego no longo prazo, ou seja, uma expansão
monetária não afetaria o produto e o nível de emprego de forma permanente, apenas
impactaria a taxa de inflação. Esse é um ponto de tangência entre diversas escolas de
cunho neoclássico, retomando a ideia de moeda neutra da teoria quantitativa da moeda.
Assim como na versão monetarista da curva de Phillips, existiria uma taxa natural de
desemprego – a NAIURU – que manteria a inflação constante no longo prazo. Uma
tentativa de reduzir o desemprego abaixo dessa taxa natural acarretaria em pressão
inflacionária, que tenderia a acelerar se nenhuma medida for tomada pelo governo para
alterar as expectativas dos agentes. No longo prazo, essa elevação do nível de preços
prejudicaria a conjuntura para investimentos privados e, consequentemente, não
resultaria em melhoria nos níveis de emprego. A provável reação do governo seria o
aumento das taxas de juros, colaborando para arrefecer o nível de investimentos.
Segundo Taylor (1997) as experiências internacionais indicariam que altas
taxas de inflação reduzem o crescimento potencial do PIB. Contudo, a deflação poderia
ser um impeditivo para o bom funcionamento dos mercados já que existe um limite
inferior para a taxa de juros nominal e uma tendência à rigidez de preços e salários. Em
vista disso, o segundo princípio seria a justificativa para que os governos adotem metas
de médio ou longo prazo para a inflação11
, que podem ser metas explícitas (como na
Nova Zelândia, no Reino Unido, no Chile e no Brasil) ou metas implícitas (como na
Alemanha e nos Estado Unidos). Ao perseguir essas metas, os bancos centrais estariam
se comprometendo a manter uma taxa de inflação estável e baixa, facilitando a tomada
de decisões dos agentes privados. A política monetária deveria, então, manter o
crescimento da demanda agregada estável para prevenir flutuações no produto real e na
inflação12
.
11
Blanchard, Dell'Ariccia e Mauro (2010) afirmam que as metas de inflação foram um resultado prático
da “divina coincidência”, em que a manutenção de uma taxa de inflação baixa e estável convergiria para a
minimização do hiato do produto. Haveria, também, a coincidência entre a necessidade de se manter a
credibilidade dos bancos centrais para manter a inflação baixa e o suporte intelectual provido pelos
modelos novos keynesianos.
12 Bernanke (2003) salienta que os vários países que adotaram as metas de inflação possuem estruturas
econômicas muito diferentes e, portanto, a operacionalidade de seus respectivos bancos centrais também
29
Bernanke (2003) afirma que a política de metas de inflação seria uma
“restrição com arbítrio”13
que permitiria institucionalizar um equilíbrio entre a
inflexibilidade de regras rígidas e a potencial falta de disciplina da arbitrariedade dos
policymakers. Destarte, esse framework possibilitaria estabelecer regras que
conduziriam a uma melhor administração das políticas econômicas. Os gestores
públicos seriam induzidos a agir de forma responsável, mas sem perder a capacidade de
enfrentar choques econômicos inesperados. A principal virtude das metas de inflação
seria, então, ancorar as expectativas dos agentes quanto à inflação futura, o que
facilitaria não só a retomada do equilíbrio macroeconômico de longo prazo, mas
também aumentaria a capacidade do banco central de estabilizar o produto e o emprego
no curto prazo. Bernanke (2003) aponta que, mesmo havendo choques de preços
inesperados14
, a transmissão para os preços do restante da economia dependerá da
condução da política monetária e a velocidade para retornar à estabilização dependerá
da credibilidade do banco central.
Assim, as metas de inflação funcionariam como uma âncora nominal tanto para
os preços quanto para as expectativas em relação aos preços futuros. Como o
componente expectacional ganha grande importância nos modelos do NCM, sendo uma
variável que afeta diretamente o nível de preços correntes, o cálculo da meta de inflação
deveria ser de fácil entendimento para o público, crível e sistematicamente
comunicável. Obviamente que o cumprimento regular (e rigoroso) dessa meta seria um
fator crucial para a manutenção da credibilidade do governo e do próprio funcionamento
do modelo.
Essa recomendação de política advém, também, do trade off de curto prazo
entre inflação e desemprego, considerado por Taylor (1997) como o terceiro princípio
básico do Novo Consenso. Uma das razões para esse trade off ocorreria pela rigidez de
preços e salários, que implicaria em pressões inflacionárias devido à redução do
desemprego e à elevação da demanda agregada. Além disso, esse trade off poderia
diverge. Contudo, o autor afirma que existem alguns princípios (e um framework) que poderiam servir de
base para todos os países e que inclusive teria influenciado a estratégia de bancos centrais que não
adotaram oficialmente as metas de inflação. Como exemplo, o autor cita o banco central estadunidense
(Federal Reserve) que buscou manter a reputação de perseguir baixas taxas de inflação desde a década de
1980 via gestão das taxas de juros.
13 Tradução livre da expressão constrained discretion utilizada por Bernanke (2003).
14 Bernanke (2003) cita como exemplo o choque do petróleo na década de 1970 que, segundo ele, só
impactou de forma significativa o nível de preços devido a política monetária frouxa que estava sendo
praticada.
30
sobrevir por questões informacionais dada as expectativas dos agentes. Dado que a
formação das expectativas seria impactada pela taxa de inflação passada, os agentes
estariam mais vulneráveis a “surpresas inflacionárias” provocadas por políticas
expansionistas, que poderiam reduzir o desemprego no curto prazo. Contudo, essas
ações discricionárias do governo seriam incorporadas nas expectativas futuras, fazendo
com que tentativas de as reimplementar se tornem ineficientes.
Taylor (1997) afirma, ainda, que existe um debate sobre os mecanismos de
transmissão da política monetária, se ocorreria pelo canal da oferta de moeda, pelo
crédito ou pelas taxas de juros e taxas de câmbio. Apesar de economistas divergirem
quanto as causas desse trade off, o simples fato de identificá-lo já acarretaria
implicações práticas consensuais: a política monetária deveria manter a demanda
agregada estável para evitar flutuações no produto real e na taxa de inflação. Ao
estabilizar o nível de preços, a taxa de desemprego convergiria para o nível que evitaria
aceleração inflacionária. Como exemplo, Taylor (1997) compara a década de 1970,
quando a inflação era alta e não se observou redução no desemprego, com a década de
1990, quando a inflação era baixa e o desemprego não se elevou. O autor conclui que a
condução da política monetária é a grande responsável pelo longo período de
estabilidade macroeconômica vivenciada pelos Estados Unidos na década de 199015
.
Em relação ao tema “racionalidade”, pode-se afirmar que os agentes
representativos da teoria do Novo Consenso seguem as expectativas racionais da escola
Novo Clássica. Seguindo essa linha, os agentes utilizam todas as informações
disponíveis (inclusive previsões sobre a evolução das variáveis macroeconômicas) para
tomarem suas decisões de alocação de recursos. A sensibilidade das expectativas dos
agentes às políticas macroeconômicas é o quarto princípio apontado por Taylor (1997).
Por intermédio de modelos econométricos que consideram a endogeneidade das
expectativas racionais, seria possível estimar os efeitos de mudanças na taxa de juros em
um plano plurianual para reduzir o déficit orçamentário futuro. As políticas econômicas
e a credibilidade do governo seriam fatores determinantes nas decisões de gastos dos
agentes privados. Tendo isso em vista, a demanda agregada teria grande sensibilidade a
variações das taxas nominais de juros.
15
Segundo Taylor (1997), desde 1950 todas as crises econômicas teriam sido precedidas por acelerações
inflacionárias. Em vista disso, ao manter a estabilidade das variáveis macroeconômicas o governo estaria
minimizando as possibilidades de uma recessão.
31
Dada as expectativas racionais dos agentes, um banco central com
credibilidade seria capaz de executar uma política de controle inflacionário com menor
custo de curto prazo, sem a necessidade de elevar demasiadamente a taxa de juros. No
mesmo sentido, uma política para reduzir o déficit orçamentário não seria contracionista
se o governo gozar de credibilidade frente aos agentes, já que ao antecipar os efeitos da
consolidação fiscal, os indivíduos poderiam antecipar suas decisões de gastos e
investimentos. Já um banco central que não possua credibilidade aumentaria as
incertezas e agravaria as falhas de informação. Uma política monetária ou fiscal
expansionista sinalizaria aos agentes privados uma provável elevação de preços no
longo prazo, seguido de uma provável ação contracionista emergencial e mais radical
por parte do governo. Esse fato desincentivaria as decisões de investimentos e de gastos
correntes e aumentaria o hiato do produto. Seria necessário um longo período de
“políticas responsáveis” para que o governo melhore sua reputação frente ao mercado.
O quinto princípio levantado por Taylor (1997) refere-se ao fato de que as
políticas macroeconômicas não poderiam ser avaliadas por mudanças únicas e isoladas
na operação de seus instrumentos, mas por uma série de mudanças vinculadas por um
processo sistemático ou por regras bem definidas. Isso implica que as regras monetárias
e o grau de reação de seus instrumentos frente a mudanças na taxa de inflação devem
ser claras e servirem de referência não só para os bancos centrais, mas também para os
agentes privados. O principal instrumento de política monetária, como já mencionado,
deveria ser as taxas nominais de juros de curto prazo.
A oferta de moeda, para o NCM, é considerada endógena – devido a
importância dos bancos comerciais dentro do sistema e da variação da demanda por
moeda pelo público. Tendo isso em vista, dificilmente o governo conseguiria executar
um controle quantitativista dos agregados monetários16
. Já a mudança nas taxas
nominais de juros de curto prazo é considerada exógena, demarcada pelo banco central
e com grande influência sobre preços de ativos e de taxas longas. Por conseguinte, os
policy makers devem seguir uma institucionalidade conhecida como a Regra de Taylor.
Essa regra prescreve a reação da taxa nominal de juros frente às expectativas
inflacionárias, ao hiato do produto, ao desvio da inflação de sua meta e às taxas reais de
juros de equilíbrio. Isso implica que qualquer aumento inesperado da inflação deverá ser
respondido automaticamente por uma elevação mais do que proporcional das taxas nominais
16
Esse é um importante ponto de divergência entre o NCM e os monetaristas.
32
de juros, de modo a reverter as expectativas dos agentes pelo aumento dos juros reais
(ARESTIS, PAULA & FERRARI-FILHO, 2009; BLANCHARD, DELL'ARICCIA &
MAURO, 2010).
Ademais, o banco central deveria criar mecanismos de transparência para
fortalecer a sua credibilidade. Em vista disso, os teóricos do NCM advogam por um
banco central independente, ou seja, os responsáveis pela condução da política
monetária devem ser técnicos de alto nível que não sofram influências políticas,
evitando “tentações de curto prazo” - tidas como “políticas populistas” – que poderiam
prejudicar o desenvolvimento de longo prazo. Além disso, a previsão do governo
quanto à taxa de inflação futura deveria ser sistematicamente divulgada, facilitando a
formação das expectativas. Portanto, se não houver relações políticas entre os
representantes do banco central e o poder executivo, a própria previsão de inflação
ganharia credibilidade, pois respeitaria somente questões técnicas.
1.2. O NCM e a Política Fiscal
Uma importante constatação que deve ser destacada sobre a visão teórica do
NCM é em relação ao papel secundário (ou passivo) atribuído à política fiscal. Essa
visão sugere que uma restrição fiscal intertemporal entraria em consonância com a
política monetária para manter a inflação sob controle, ou seja, serviria para manter a
credibilidade das metas de inflação. Segundo essa abordagem, o orçamento do governo
deveria se manter equilibrado ao longo do ciclo econômico. Mesmo admitindo-se a
possibilidade de se incorrer a déficits temporários pela utilização de estabilizadores
automáticos que visem amenizar a amplitude dos ciclos, o governo deveria se afastar de
gastos discricionários e manter, na média, o equilíbrio fiscal – preferencialmente um
superávit, atendendo, também, a sustentabilidade da dívida pública (ARESTIS e
SAWYER, 2008; BLANCHARD, DELL'ARICCIA e MAURO, 2010).
Diversos argumentos são levantados pelos teóricos do NCM contra a ação
discricionária da política fiscal. Blanchard, Dell'ariccia e Mauro (2010) apontam: o
ceticismo quanto à eficiência da política fiscal (baseada na Equivalência Ricardiana); a
evolução dos mercados financeiros, que teriam melhorado a efetividade da política
monetária17
; a prioridade em estabilizar e reduzir o nível de endividamento em um
17
Em vista disso, a política monetária teria a capacidade de minimizar o hiato do produto.
33
contexto de globalização financeira (principalmente em países emergentes); o longo
período necessário para que se percebam os efeitos da política fiscal (que a tornaria
ineficiente como medida anticíclica, já que as recessões ocorreriam em períodos curtos);
e as distorções de cunho político (as quais a política fiscal estaria mais suscetível).
Um argumento levantado pelo NCM em relação à ineficiência da política
fiscal, então, se refere ao lag temporal incerto entre a decisão de realizar a política
expansionista e o seu efeito sobre a economia. Existiriam, segundo essa ideia, duas
possibilidades de ocorrência desse efeito: o inside lag e o outside lag. O inside lag
dependeria do processo político, seria o tempo entre a aprovação da medida pelo
Congresso até a sua implementação. O outside lag seria o tempo que levaria para que a
execução do gasto público afete a demanda agregada.
Com isso, as regras de estabilizadores automáticos seriam preferíveis, já que
teriam um inside lag mínimo. Já os outside lags são mais imprevisíveis, tendo uma
maior variabilidade. Os teóricos do NCM argumentam que uma tentativa de executar
uma política fiscal anticíclica poderia, na realidade, se tornar pró-cíclica. Como os
efeitos da política fiscal teriam um tempo significativo para serem observados,
poderiam impactar a economia já em sua fase de recuperação, acarretando em pressões
inflacionárias. Além disso, argumentam que a política fiscal poderia provocar um viés
deficitário, já que um aumento de impostos e redução dos gastos do governo poderiam
ser politicamente inviáveis na fase ascendente do ciclo, de forma que a política
anticíclica não seria observada ao longo do crescimento econômico.
Ademais, o principal argumento para a manutenção de uma política fiscal
restritiva é o efeito crowding out, que implica na redução dos investimentos privados
como consequência da expansão dos gastos do governo. Conforme Balcerzak e
Rogalska (2014, p.81), existe grande interesse para se compreender os mecanismos de
transmissão que acarretam a esse efeito:
The crowding out is a heterogeneous phenomenon, where the subject
of scientific discussion is not only the possibility and scope of its
existence, but also the transmission mechanisms leading to it.
Balcerzak e Rogalska (2014) afirmam que o processo mais simples de
ocorrência do crowding out é pela interação direta das atividades econômicas do Estado
com as estruturas de consumo e produção privadas, na situação em que o consumo de
bens privados é diretamente substituído pelo consumo de bens públicos. Segundo
34
Arestis e Sawyer (2003), existem quatro fatores principais abordados pela literatura do
NCM para que o efeito crowding out ocorra.
O primeiro seria devido ao aumento das taxas de juros que acompanhariam
uma expansão fiscal. Balcerzak e Rogalska (2014, p.82) denominam esse efeito de
transactional crowding out:
Effect of transactional crowding out is defined as the phenomenon of
the decrease in private investment and private consumption resulting
from an increase in the interest rates, which is the consequence of
fiscal stimulus. Transactional effect is associated with increased
volumes of transactions in the economy resulting from the fiscal
stimulus, which leads to an increase in the demand for money. In the
conditions of the growth in the demand for money, an equilibrium in
the money market is possible only if there is an appropriate interest
rate increase, which would bring the demand for money to its original
level.
Essa ideia está baseada na oferta exógena de moeda e na taxa de juro como a
variável de equilíbrio entre a oferta e a demanda por moeda – conforme o modelo IS-
LM. Dada uma oferta de moeda, uma expansão fiscal implicaria em um aumento da
demanda por moeda na economia que, por sua vez, ocasionaria uma elevação das taxas
de juros (o “preço da moeda”). Consequentemente, a elevação das taxas de juros teria
um impacto negativo sobre o investimento e o consumo privados. Nas palavras de
Balcerzak e Rogalska (2014, p.82)
Assuming that the demand for money is a growing function of the
product, fiscal expansion that is increasing aggregate demand in the
product market must also lead to an increase in the transactional
demand for real resources of money. When one assumes that supply of
money is exogenous and constant, the increase in the transactional
demand for money leads to an increase in the interest rate, which is
necessary to maintain equilibrium in the money market. In the same
time, both private investment and private consumption are negative
functions of the interest rate. It means that the increase in the interest
rate leads to decline in private investment and consumption. Thus, one
observes the phenomenon of crowding out of private consumption and
investment spending as a result of fiscal stimulus.
A segunda possibilidade de ocorrer o crowding out, descrita por Arestis e
Sawyer (2003), é em virtude do efeito que a expansão da demanda agregada tem sobre
as taxas de poupança que, por sua vez, afetam as taxas de investimento. A lógica seria,
então, que um aumento no déficit do governo provocaria um aumento da demanda,
absorvendo a poupança agregada e, consequentemente, reduzindo o investimento
(seguindo a identidade neoclássica entre poupança e investimento). Outro fenômeno
35
levantado pelos autores é o “crowding out internacional” que ocorreria pela apreciação
cambial resultante do aumento das taxas de juros (associadas à expansão fiscal). Essa
possibilidade prejudicaria setores produtivos privados nacionais pelo aumento da
concorrência com os importados.
O terceiro argumento sobre a possibilidade de crowding out está relacionado ao
já mencionado equilíbrio pelo lado da oferta (com uma taxa natural de desemprego que
não desencadearia uma aceleração inflacionária), pela qual a demanda agregada se
ajustaria. Conforme Arestis e Sawyer (2003), o crowding out ocorreria por um efeito de
“equilíbrio real”, em que mudanças nos preços provocariam mudanças no valor real do
estoque de moeda, o que afetaria a demanda agregada. Em um contexto de moeda
endógena, este fato ocorreria pelo ajuste da taxa de juros realizado pelo banco central
(que seguiria a Regra de Taylor), fazendo com que o equilíbrio do mercado se situe em
uma posição com menor oferta (e maior desemprego) pelo qual a demanda se
equilibraria.
Conforme Balcerzak e Rogalska (2014, p.83), a ocorrência do efeito crowding
out pode ser observado por um outro prisma, quando os cortes de gastos públicos
tenderiam a reduzir as taxas de juros e estimular a demanda privada, remetendo ao
efeito da “contração fiscal expansionista”:
The phenomenon of transactional crowding out leads to reduced
effectiveness of positive fiscal stimulus, but in the same time it can
also mean smaller negative consequences of fiscal consolidation in
the real economy. Along with a reduction in aggregate demand
resulting from the reduction of the budget deficit there is a decrease in
the transaction demand for real resources of money, which translates
into lower interest rates needed to maintain equilibrium in the money
market. The lower level of interest rates may be a source of positive
impulse on the side of private investment and consumer spending.
Thus, this effect may in part, or – in extreme cases – even entirely
offset the negative impact of negative fiscal adjustment on economic
activity.
Seguindo essa linha, DeLong e Summers (2012, p.3) afirmam que a estratégia
de redução do déficit público foi seguido pelos EUA ao longo do governo Clinton, e
que a estabilização dos preços e a redução das taxas de juros de longo prazo acarretaram
em efeitos positivos da oferta agregada no longo prazo, puxando o crescimento
econômico:
Indeed, a central element of the economic strategy of the Clinton
administration was the idea that deficit-reduction policy was likely to
accelerate economic growth. Front-loaded deficit reduction, even with
the unemployment rate less than a year past its recession peak, would
36
allow the Federal Reserve to maintain its price stability objective with
looser monetary policy. Moreover, front-loaded deficit reduction
would reduce risk premia in long-term interest rates. Thus reducing
the deficit would have no adverse short-term aggregate demand effect
on production, and the reduction in long-term interest rates would
have positive medium- and long-run supply-side effects by improving
business incentives to invest and so boosting private capital
formation. This strategy proved successful in both the short-term
business cycle and medium-term growth dimensions. Moreover, the
idea deficit reduction would be a source of stimulus by increasing
“confidence” has been a central part of European economic thinking
for sometime now.
O quarto contexto de ocorrência do crowding out é atribuído por Arestis e
Sawyer (2003) ao teorema da Equivalência Ricardiana (ER). Essa hipótese parte da
acepção de que os agentes têm uma racionalidade foward looking, estando cientes da
restrição intertemporal do orçamento do governo. Em vista disso, quando o governo
aumenta impostos e mantém os gastos constantes, os agentes racionais interpretam que
no futuro os impostos serão menores. Esse fato incentivaria as pessoas a despouparem
no presente, tanto pelo aumento dos gastos correntes com os impostos quanto pela
expectativa de redução dos encargos nos períodos posteriores. Existe, com isso, uma
equivalência intertemporal entre tributos e débitos. Isso implica que um aumento da
poupança do governo (resultado de um aumento de impostos) é totalmente compensado
pela redução da poupança privada, mantendo a demanda agregada constante.
Nesse sentido, a renda permanente não seria afetada pela variação nos tributos,
e o multiplicador fiscal seria igual à zero. Da mesma forma, um aumento do déficit do
governo traria uma expectativa de elevação dos tributos no futuro, fazendo com que a
percepção de riqueza dos agentes não se altere. Em vista disso, as pessoas postergariam
suas decisões de gastos, reduzindo a demanda agregada no presente. Mantendo-se as
proposições da ER, o equilíbrio orçamentário seria condizente com o pleno emprego e a
poupança se igualaria ao investimento no ponto de equilíbrio da oferta. Assim, qualquer
eventual desequilíbrio entre poupança e investimento não poderia ser compensado pelo
uso da política fiscal.
A visão teórica do NCM em relação à restrição fiscal intertemporal influenciou
a adoção de metas primárias na institucionalidade de regimes fiscais de diversos países.
Conforme salienta Rossi (2014), o objetivo principal desta política é a sustentabilidade
da dívida pública no longo prazo. A equação de Domar (1944) que expressa essa
relação é demonstrada por Rossi (2014, p.209) da seguinte forma:
37
s=(r-g)*d
Onde “s é o superávit primário necessário para estabilizar a dívida, r é a taxa de
juros real implícita na dívida líquida, g é a taxa de crescimento econômico real e d é a
dívida pública líquida sobre o produto”. Ainda nas palavras de Rossi (2014, p.209):
Quanto maior o crescimento econômico e menor a taxa de juros real,
menor será o superávit necessário para estabilizar a dívida pública. E
quanto maior a dívida pública, maior o superávit necessário para
estabilizá-la. Nessa equação, o conceito de sustentabilidade da dívida
se traduz em uma meta quantitativa de superávit fiscal que se aplica
aos modelos de longo prazo em que um superávit menor que o
necessário pode levar a uma trajetória explosiva da dívida pública.
No entanto, para a análise de curto e médio prazo, o conceito de
sustentabilidade da dívida assume uma forma mais subjetiva.
Primeiramente, porque a solvência do Estado não depende apenas de
seu patamar de endividamento, mas de sua capacidade de honrar
sistematicamente os seus pagamentos. Um determinado patamar de
dívida pode ser considerado bom para um país e ruim para outro,
dependendo de seus aspectos institucionais, da confiança dos
investidores, do compromisso público em honrar a dívida etc.
Outras questões levantadas por Rossi (2014) são de grande relevância para
analisar a sustentabilidade da dívida pública, como as variações patrimoniais ao longo
do tempo. Nesse sentindo, o autor destaca o impacto da taxa de câmbio sobre o estoque
da dívida pública (o valor da dívida líquida) e a variação das taxas de juros
(remunerações dos passivos e ativos públicos). Dessa forma, é importante observar não
somente um nível quantitativo do superávit primário para sustentar a dívida pública,
mas também a taxa de crescimento econômico e a composição da dívida. Contudo, a
execução do superávit primário é a forma da política ortodoxa de sinalizar aos agentes a
estabilidade do sistema no longo prazo.
Conforme Schaechter et al (2012), as regras fiscais, que impõem uma restrição
intertemporal ao orçamento do governo (com metas numéricas), buscam inibir impulsos
ao excesso de gastos, assegurando a responsabilidade fiscal e a sustentabilidade da
dívida pública. Segundo essa visão, o viés deficitário seria um resultado da “miopia” do
governo e de disputa de privilégios de grupos de interesses, que resultaria em um “efeito
voraz” sobre os recursos públicos, principalmente em fases de crescimento econômico.
Esse fato não deixaria espaços para execução de políticas anticíclicas em períodos de
recessão. Contudo, Schaechter et al (2012) afirmam que as regras fiscais, além de
poderem deixar pouco espaço para ajustar a política econômica à choques, existe o risco
de se perder o foco de gastos prioritários e de prejudicar a transparência devido a um
38
incentivo à realização de “contabilidade criativa”.
Outro argumento do NCM é de que os agentes econômicos internacionais
poderiam ser incentivados a investir em países periféricos que mantêm políticas
“responsáveis” e “prudentes”. Haveria, então, uma tendência de os capitais fluírem de
países centrais (onde há excesso) para países periféricos (onde há escassez e maior
rentabilidade), tendendo, dessa forma, a um ponto de equilíbrio internacional. As
principais ações econômicas seriam dadas pela livre ação do mercado que tenderia ao
seu ponto ótimo (tanto em um contexto doméstico quanto em âmbito global).
Diversas instituições financeiras internacionais reforçavam esse ponto de vista,
como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e as agências de
rating. Esse fato ficou evidente ao longo das décadas de 1980 e 1990 com acordos
bilaterais realizados entre o FMI e países da América Latina, em que as condições de
ajuda financeira requeriam reformas estruturais na condução das políticas
macroeconômicas. Sob a argumentação teórica de que as ações do Estado deveriam
permanecer limitadas, diversos países emergentes perderam graus de liberdade para a
realização de política econômica ao se submeterem às rígidas condições impostas por
esses acordos.
Já as agências de rating exercem um poder velado sobre a condução da política
econômica (principalmente dos países emergentes) ao atribuir uma nota que classifica a
capacidade de solvência do país, levando em consideração, dentre diversos fatores, a
institucionalidade e a condução da política macroeconômica. Esse fato inibe a
capacidade do governo de regular o seu mercado financeiro e expõe o país aos abruptos
movimentos de capitais que impactam variáveis internas de extrema relevância.
Em vista desses fatos, se faz necessário desenvolver algumas observações
críticas em relação a alguns pressupostos utilizados pelo NCM. Posteriormente, busca-
se discutir algumas mudanças teóricas importantes de autores mainstream, vinculados
ao NCM, após a crise de 2008. Essas importantes questões irão convergindo, de certa
forma, para uma linha teórica que interpreta a dinâmica capitalista sob outra
perspectiva, em que o Estado desempenha um importante papel por meio de uma
política fiscal ativa.
39
1.3. Algumas críticas ao NCM:
Em face do que foi tratado ao longo desse primeiro capítulo, cabe algumas
reflexões críticas em relação a alguns pressupostos e recomendações do NCM. Indaga-
se, em primeiro lugar, sobre a forma como os modelos do NCM lidam com o
crescimento econômico. Blanchard (2012) afirma que um dos grandes desafios desses
modelos era de medir o produto potencial, exatamente para tentar observar o impacto da
inflação sobre o hiato do produto. Percebe-se, contudo, que a complexidade dessa tarefa
gera divergências entre os próprios teóricos do mainstream. Lavoie (2006) adverte que a
economia segue uma evolução path dependence e que a própria trajetória dos ciclos
econômicos impacta o produto potencial. Esse fato implicaria que o comportamento da
demanda apresenta importantes resultados no desenvolvimento de longo prazo,
contrariando os pressupostos do NCM. Infere-se que a política monetária, por si só, não
é capaz de evitar graves recessões nem de estimular a economia para a volta de um
crescimento sustentável.
Arestis e Sawyer (2002) criticam a realidade e as implicações de política
econômica advindos do modelo do NCM – que seria estático e com informações
perfeitas. Mesmo que se pudesse assumir que existe uma taxa de juros real ótima que
equilibraria o mercado em um ponto em que o hiato do produto seja igual à zero, os
autores apontam que o banco central possui informações imperfeitas e que a própria
dinâmica da economia (como mudanças na confiança de investidores ou nas condições
do mercado internacional, por exemplo) trazem incertezas sobre qual seria essa taxa de
equilíbrio. Além disso, as informações que estão disponíveis levam tempo para serem
processadas e compreendidas pela autoridade monetária.
Assim, presume-se pelos modelos do NCM que o banco central teria total
conhecimento sobre o nível de juros reais que resultariam em um equilíbrio econômico
de longo prazo, com hiato do produto igual à zero, equilíbrio entre a demanda agregada
e a oferta agregada e uma taxa de desemprego considerada ótima18
. Existe, com isso,
uma grande possibilidade de o banco central perseguir uma taxa real de juros que não
seria compatível com uma redução do hiato do produto, ou seja, o ponto de equilíbrio
buscado pelos modelos do NCM seria apenas uma ilusão teórica.
18
Essa taxa de juros representaria a variável de equilíbrio entre poupança (ex-ante) e investimento (ex-
post), ou seja, a taxa natural de juros a la Wicksell.
40
Arestis e Sawyer (2008, p.633) frisam que as grandes margens de erro das
previsões inflacionárias podem prejudicar a reputação e a credibilidade dos bancos
centrais, ao passo que o próprio poder de controle da inflação apenas pela política
monetária é questionável. Os autores argumentam que variações nos preços do petróleo,
nas taxas de câmbio, nos salários ou nos tributos, podem ter forte impacto sobre a
inflação e são variáveis que fogem do escopo do banco central. A ação de um banco
central que persegue uma meta para a inflação frente a essas situações só poderia ser
feita pela desaceleração da atividade econômica ou aprofundamento de recessões. A
simplicidade e a clareza na utilização dos instrumentos de política monetária, que
seriam um dos pontos positivos das metas de inflação, na realidade desconsideram as
fontes de pressões inflacionárias que não são diretamente sensíveis à variação das taxas
de juros, tornando-se, em certas situações, contraproducente.
Na realidade, ao serem incorporados nos custos de produção, as taxas de juros
poderiam apresentar uma correlação positiva com o nível de preços. Esse fato é
facilmente conjecturado ao se constatar que as empresas necessitam tomar empréstimos
com bancos comerciais e, portanto, o custo com as taxas de juros desses empréstimos
seria repassado aos preços finais dos produtos. Assim, a recomendação de
institucionalizar uma regra de metas de inflação cujo único instrumento é a taxa
nominal de juros poderia ter impactos contraditórios sobre o nível de preços, além de
limitar a ação do governo, potencializar a ocorrência de recessões econômicas e elevar o
desemprego. Assim, a efetividade das metas de inflação com a intenção de provocar um
lock in para o nível de preços, funcionando como uma âncora nominal pelas
expectativas dos agentes, deve ser problematizada.
Além do mais, a Regra de Taylor trata a taxa juros apenas como uma questão
doméstica sem considerar aspectos de uma economia aberta, em que a taxa de câmbio e
as taxas de juros de outros países exercem grande influência sobre a economia interna.
Em um contexto de globalização financeira, perceber a influência das taxas de juros
sobre os preços dos ativos, sobre o movimento de capitais e sobre as taxas de câmbio, é
crucial para compreender as políticas monetárias praticadas pelos bancos centrais
(ARESTIS & SAWYER, 2002).
Ao tratar sobre um “banco central independente”, Siscú (1996) ressalta a
possibilidade de um conflito institucional entre a política monetária do banco central e a
política fiscal do governo, com resultados deletérios para a gestão macroeconômica.
Nas palavras do autor, “quanto mais coordenados estiverem os instrumentos monetários
41
e fiscais mais eficiente, provavelmente, será a política econômica” (SISCÚ, 1996,
p.135). Mendonça (2000) coloca ainda que não existe um viés inerentemente
inflacionário à condução da política monetária por bancos centrais “não independentes”.
Essa seria uma ilação baseada em pressupostos teóricos frágeis (como o conhecimento
pleno sobre a estrutura da economia e as formas de se alcançar o equilíbrio)19
. Siscú
(1996) afirma, ainda, que um banco central “não independente” não implica em uma
subordinação da política monetária à fiscal, mas que ambas devem ser coordenadas
estrategicamente pelo governo.
A hipótese de elevação das taxas de juros como consequência de expansões
fiscais, que remete à hipótese de que contrações fiscais poderiam ser expansionistas, é
questionada por Serrano e Braga (2006). Os autores colocam em xeque o principal fato
empírico que sustentaria essa ideia, a experiência estadunidense da década de 1990 do
governo Clinton, quando se observou uma queda dos gastos do governo com um
respectivo crescimento dos gastos privados e das exportações, acompanhados de
crescimento econômico expressivo. Lembrando-se que a ideia do NCM é de que uma
contração fiscal (ou o simples anúncio crível dessa medida) seria capaz de reduzir, no
curto prazo, as taxas de juros de longo prazo, o que elevaria os componentes da
demanda agregada mais do que proporcionalmente a redução ocasionada pelo aperto
fiscal. Esse fato poderia, então, ampliar o produto potencial com um crescimento do
investimento privado.
Serrano e Braga (2006) demonstram, em primeiro lugar, que não existe relação
entre a política fiscal do governo Clinton e a queda das taxas de juros de longo prazo.
Os autores explicitam que as taxas de juros de longo prazo acompanham, com uma certa
defasagem, os movimentos das taxas de juros de curto prazo, que é determinada de
forma independente pelo banco central. Uma prova interessante deste fato é que o
presidente Clinton só se elegeu em novembro de 1992 (e a aprovação da nova política
fiscal só ocorreu em fevereiro de 1993), enquanto o movimento de queda da taxa de
juros de longo prazo e a recuperação do crescimento econômico já eram visíveis no
início de 1991. Os autores ratificam, também, a forte correlação entre as taxas de juros
de curto e de longo prazo, demonstrando o caráter arbitrário e exclusivamente
19
Outras críticas podem ser dirigidas à teoria de Bancos Centrais Independentes. Inclusive Friedman
(1985) salienta o risco de dar a poucas pessoas que não passaram pelo crivo político o poder de um
instrumento de tamanha importância econômica. Erros de análise desse pequeno grupo seriam de difícil
cobrança política.
42
monetário destas variáveis. Assim, percebe-se que a defesa da teoria de “contração
fiscal expansionista” é de difícil sustentação empírica e evidencia a visão ideológica de
seus defensores de que o gasto privado seria de “melhor qualidade” do que o gasto
público.
Mesmo economistas do FMI, uma instituição que historicamente prega o
neoliberalismo, em um curto artigo de junho de 2016 elaborado por Ostry, Loungani e
Furceri, reconhecem que as contrações fiscais apresentam resultados contracionistas
tanto no produto, quanto no emprego e na distribuição de renda:
(…) in practice, episodes of fiscal consolidation have been followed,
on average, by drops rather than by expansions in output. On
average, a consolidation of 1 percent of GDP increases the long-term
unemployment rate by 0.6 percentage point and raises by 1.5 percent
within five years the Gini measure of income inequality (OSTRY,
LOUNGANI & FURCERI, 2016, p.40).
Arestis e Sawyer (2003) apontam que se a oferta de moeda for considerada
endógena, o aumento das taxas de juros só ocorreria por uma decisão deliberada do
Banco Central, ou seja, o efeito crowding out dependeria da resposta da autoridade
monetária e não da resposta do mercado à expansão dos gastos públicos. Além disso, o
tamanho desse efeito ainda dependeria do grau de ajuste do Banco Central às pressões
inflacionárias, além da elasticidade do investimento privado às variações na taxa de
juros, não podendo ser auferida nenhuma conclusão precipitada sobre esses fatos.
Destaca-se, por exemplo, que as decisões de investimento privado podem responder
mais à fase do ciclo econômico e às expectativas de crescimento do produto (e pelo
crescimento da demanda) do que à variação das taxas de juros.
Ademais, Arestis e Sawyer (2003) arrazoam que é improvável que o crowding
out ocorra por uma queda da poupança agregada ou por uma apreciação cambial
decorrente de uma elevação das taxas de juros (em um efeito “crowding out
internacional”). Os autores deduzem que um estímulo fiscal poderia afetar
positivamente a atividade econômica, e mesmo que haja um transbordamento da
demanda para produtos importados, isso não implicaria em crowding out, pois não se
espera um arrefecimento dos investimentos privados nacionais nessas conjunturas.
Além disso, tanto os efeitos sobre a conta capital quanto sobre a balança comercial são
incertos. Os fluxos de capitais dependem, em grande medida, de fatores externos e da
forma como os operadores do mercado financeiro avaliam o país. Ademais, os gastos do
43
governo poderiam melhorar as condições de produção e investimentos privados,
afetando positivamente os setores exportadores.
Arestis e Sawyer (2003) questionam, também, a ocorrência de um equilíbrio
automático da demanda agregada (seja por uma força do mercado, seja pelo efeito da
política monetária) consistente com o equilíbrio de oferta. Os autores entendem que a
própria trajetória da demanda agregada tem influência sobre a oferta, uma vez que o
estoque de capital (que dita o equilíbrio pelo lado da oferta) está associado ao nível de
produto e emprego. Nesse sentido, o nível da demanda agregada (que depende da
atividade econômica e da lucratividade) teria um impacto sobre os gastos com
investimentos e, assim, sobre o próprio estoque de capital (ARESTIS & SAWYER,
2003, p.6).
Outro ponto criticado por Arestis e Sawyer (2003) se refere à validade da
hipótese da Equivalência Ricardiana (ER). Pode-se, em primeiro lugar, contestar a
racionalidade foward looking dos agentes. Argumenta-se que as pessoas não “vivem
para sempre” e a preocupação com impostos futuros pode ser relativizada,
principalmente após certo período de suas vidas. Além disso, o próprio comportamento
dos tributos é incerto (o governo não se comporta via restrição orçamentária
intertemporal). A arrecadação do governo depende do ciclo econômico e da produção,
podendo ser afetada por fatores exógenos. Com isso, se uma política fiscal
expansionista for acompanhada de crescimento econômico, a arrecadação do governo
aumentará, fazendo com que o argumento da restrição orçamentária intertemporal perca
força. Nesse sentido, a taxa de crescimento da dívida do governo pelo PIB dependerá,
em boa medida, das taxas de juros e do crescimento econômico.
Ademais, faz sentido que uma redução da tributação no período presente faça
com que as pessoas se sintam mais ricas, incentivando-as a gastar mais e, assim,
impactando positivamente a renda. Caso uma expansão fiscal resultasse em efeitos
adversos nas expectativas dos agentes (com uma queda nos gastos dos consumidores e
nos investimentos), então poderia se pensar em um multiplicador fiscal zero (ou até
negativo). Contudo, essa não parece ser a lógica dos movimentos econômicos ou da
racionalidade dos agentes.
Pode-se pensar ainda que, se houver a possibilidade de a variação da posição
orçamentária do governo ocorrer pela variação da demanda do setor privado (o que
justifica a utilização de estabilizadores automáticos), então é evidente que a política
fiscal apresenta um papel importante não só para a demanda agregada, mas para a
44
própria arrecadação do governo. Nota-se, por fim, que o déficit público pode ser
realizado para compensar a diferença entre a poupança e o investimento em um nível de
renda desejável, mantendo a atividade econômica sem necessariamente pressionar as
taxas de juros (ARESTIS, 2003).
Por fim, Arestis e Sawyer (2003) afirmam que os déficits do governo devem
ser analisados frente às condições econômicas vigentes e às demandas da sociedade. Se
houver um alto nível de desemprego ou uma alta necessidade de investimentos em
infraestrutura, por exemplo, os estímulos fiscais ou expansões do gasto do governo
seriam necessários, independente da fase do ciclo econômico medido pelo PIB.
Ademais, não se pode medir o gasto do governo apenas de forma quantitativa, já que
diferentes formas de gasto apresentam diferentes propósitos e impactam de forma
diversa a economia.
É preciso compreender, assim, o papel estratégico do dispêndio do Estado, não
podendo incluir este fator sob a inflexibilidade de regras rígidas que não incorporam
análises qualitativas. O investimento público, por exemplo, é uma variável que pode
apresentar tanto uma função anticíclica (mantendo o nível do investimento agregado na
economia em fases de recessão) quanto uma função estratégica (se induzir o
desenvolvimento de setores com maior multiplicador sobre o produto, com maior valor
agregado, com maiores índices de encadeamento ou com maiores impactos
socioeconômicos de longo prazo). É perceptível que alguns autores do mainstream
reconheceram algumas falhas analíticas do NCM após a crise de 2008, e passaram a
legitimar a importância da política fiscal como um mecanismo anticíclico. Constata-se,
com isso, a superação de regras fiscais muito rígidas que desconsideravam a função de
estabilização econômica da política fiscal.
1.4. O NCM pós-crise de 2008
Com a crise econômica internacional de 2008, importantes economistas do
mainstream passaram a levantar questionamentos sobre algumas asserções teóricas do
NCM. Blanchard, Dell'Ariccia e Mauro (2010) afirmam que o longo período de relativa
estabilidade econômica desde a década de 1980 foi uma tentação para que economistas
pensassem que já haviam compreendido a melhor forma de se conduzir a política
macroeconômica. Para Romer (2012), o equívoco da visão pré-crise foi acreditar que
45
situações de taxas de juros próximas a zero seriam muito raras e não tenderiam a
permanecer por um longo período.
Dessa forma, é importante observar alguns insights de autores considerados
mainstream sobre possíveis mudanças na condução da política macroeconômica de uma
maneira geral. Percebe-se que uma política macroeconômica mais ativa, com estratégias
de desenvolvimento, gastos anticíclicos, regulação financeira e controle cambial
retomam importância no debate. Uma importante constatação realizada por Blanchard
(2012) é que a condução da política macroeconômica não pode ter apenas uma meta e
um instrumento, mas tende a se tornar complexa e abarcar diversos objetivos
simultaneamente. A coincidência entre a estabilidade da inflação e a estabilidade do
hiato do produto, defendida nos modelos do NCM, se mostrou uma acepção
improvável. A relação entre essas duas variáveis é de difícil percepção e não se mostra
tão forte quanto alguns economistas imaginavam.
Um fator que passou a ganhar importância são as “medidas macroprudenciais”,
que teriam como meta a estabilização financeira e a atenuação de riscos sistêmicos. Nas
palavras de Ortiz (2012, p.19), “a crise demonstrou que a estabilidade de preços,
sozinha, não implica em estabilidade financeira”. Apesar de existir a ideia de uma
instituição independente (separada do banco central) para realizar essas medidas,
Blanchard (2012) afirma que o sistema financeiro é muito complexo e manter a
estabilidade desse setor requer a interação entre instituições. Nas palavras do autor:
Macroprudential policy has to be about many aspects of the financial
system, and the notion that we can find one sufficient statistic for
systemic risk that we can then target is probably an illusion. We are
going to have to look all the time at the balance sheets of the various
financial institutions to identify the risks that are building up
(BANCHARD 2012, p.9).
Seguindo a linha de Blanchard (2012), seria possível observar uma forte
relação entre os instrumentos macroprudenciais e a taxa de juros, fazendo com que esses
dois mecanismos se tornem complementares. Assim, uma baixa taxa de juros tenderia a
aumentar os riscos tomados pelos agentes, fazendo-se necessário o uso de medidas
macroprudenciais. Por outro lado, essas medidas também teriam efeitos
macroeconômicos, já que a taxa de crédito pelo risco, por exemplo, poderia afetar
investimentos imobiliários que, por sua vez, impactariam o PIB. Dessa forma,
Blanchard (2012) observa a política monetária de uma forma mais ampla, em que vários
instrumentos podem interagir para alcançar mais de um objetivo (principalmente em
46
relação à inflação, ao produto e ao risco). Ortiz (2012) afirma, ainda, que os próprios
bancos centrais devem se responsabilizar pela estabilidade financeira, regulando e
supervisionando as instituições envolvidas.
Contudo, os pressupostos básicos do NCM parecem não terem sido superados.
A preocupação em relação à estabilidade de preços e à relação dívida/PIB permanecem
centrais. As ações anticíclicas seriam cabíveis apenas aos países com relativo “espaço
fiscal”, baixo endividamento e, principalmente, àqueles que sofrem com pressões
deflacionárias e baixas taxas de juros. Assim, as políticas ditas “responsáveis” ainda são
priorizadas na visão de diversos autores. Issing (2012) afirma que algumas acepções das
metas de inflação devem continuar consensuais entre os bancos centrais, como o
comprometimento com a estabilidade de preços, a adoção de uma política foward
looking, a explicitação das estratégias perseguidas e a manutenção da clareza na
comunicação com o público.
Segundo Ortiz (2012), a adoção de metas de inflação em países emergentes
teria sido um importante fator para ancorar as expectativas ao longo da crise. Além
disso, os países emergentes teriam construindo uma base macroeconômica para
combater as hiperinflações da década de 1980-1990, com posições fiscais sólidas,
mercados de capitais desenvolvidos, elevadas reservas internacionais e políticas
monetárias e cambiais consistentes (ORTIZ, 2012; INDRAWATI, 2012). Outros
autores afirmam que os países emergentes não experimentaram a restrição de uma taxa
de juros próxima a zero e um risco de deflação, tornando as recomendações pré-crise do
NCM ainda pertinentes. Dessa forma, as políticas monetárias desses países ainda se
mostrariam eficientes, a despeito da simplicidade como lidam com o setor financeiro.
Indrawati (2012) ressalta que, diferentemente das décadas de 1980 e 1990, em
2008 a crise penetrou os países emergentes pelo vínculo com o sistema financeiro
global. A fonte de instabilidade não estaria relacionada à fragilidade institucional de
políticas macroeconômicas, mas sim a choques externos provocados pela crise do
sistema financeiro de países centrais. Dessa forma, a queda da liquidez internacional e o
acirramento das incertezas no mercado financeiro global acabaram reverberando nos
sistemas bancários internos dos países emergentes, afetando não só o lado financeiro,
mas também o lado “real” (com queda na demanda agregada).
47
1.4.1. Questão Fiscal: sustentabilidade da dívida pública e crescimento econômico
Um dos temas centrais no debate mainstream é a volta da política fiscal como
um instrumento ativo da política macroeconômica. Dentro dessa análise, a política fiscal
deixa de ser apenas um instrumento secundário à manutenção da estabilidade de preços
e passa a orientar a recuperação de economias em profundas recessões. Romer (2012)
afirma que a crise explicitou a necessidade de se utilizar a política fiscal como um
estabilizador de curto prazo. Em momentos de queda da demanda agregada e queda da
confiança de empresários (quando passam a não responder à queda das taxas de juros
para realização de investimentos) a alternativa imediata à política monetária deveria ser
a política fiscal.
Segundo Romer (2012) as medidas fiscais discricionárias – como a redução de
impostos, o crescimento das transferências diretas, o consumo e os investimentos do
Estado – se mostraram uma alternativa viável e eficaz contra a grave crise de 2008.
Conforme Indrawati (2012), a expansão fiscal se tornou a principal medida adotada
pelos países emergentes para lidar com a crise, tanto pela redução de impostos quanto
pela expansão de gastos públicos. Segundo o autor, seria importante a utilização de
políticas que afetassem a economia de forma imediata, sem a necessidade de envolver
processos administrativos ou políticos e que impactassem rapidamente a demanda. Uma
medida ressaltada por Indrawati (2012) é a transferência direta de renda, que além do
grande impacto social, daria poder de compra para as pessoas com maior propensão a
consumir. Indrawati (2012) lembra, ainda, que muitos países emergentes apresentam
grande necessidade de investimentos em infraestrutura. Esse tipo de gasto, além do
impacto imediato com a criação de empregos, traria melhores condições para os
investimentos privados e, consequentemente, para um crescimento mais sustentável no
futuro.
A efetividade dos gastos públicos para estimular a economia pode ser
sintetizada em um indicador teórico, o “multiplicador fiscal”. Conforme Chinn (2013),
o multiplicador fiscal, em sua versão mais simples, é a mudança ocorrida no produto
devido a uma mudança no instrumento de política fiscal. Chinn (2013) ressalta que
existe um lag temporal entre a mudança da política fiscal e o impacto sobre o produto,
podendo ser preferível analisar um “multiplicador cumulativo”. Um efeito multiplicador
próximo à zero implicaria que os gastos do governo impactariam de forma
insignificante o crescimento econômico. Assim, o resultado da política expansionista
48
seria o crescimento da inflação e o efeito crowding out. O caso extremo seria um
multiplicador negativo, em que a expansão fiscal implicaria em contração econômica. Já
um multiplicador fiscal próxima à unidade significa que a quantia desprendida pelos
gastos públicos acarretaria um crescimento econômico de proporções semelhantes. Um
multiplicador maior do que a unidade consiste em um efeito mais do que proporcional
dos gastos públicos sobre o crescimento econômico.
Shome (2012, p.50) cita Ilzetzki, Mendoza e Végh (2010) para afirmar que os
efeitos de estímulos fiscais dependem das características particulares da economia.
Segundo os autores, maiores multiplicadores fiscais são observados em países de alta
renda, de economias menos abertas, regimes cambiais rígidos, baixo déficit público e
uma taxa de investimento maior do que a de consumo. No mesmo sentido, Solow (2012,
p.74) afirma que o valor do multiplicador fiscal depende do estado da economia e das
características das políticas que estão sendo implementadas.
Woodford (2011) e Chinn (2013) observam que os efeitos dos estímulos fiscais
dependem da reação da política monetária. Se houver elevada capacidade ociosa e se for
viável a manutenção das taxas de juros constantes, então será factível um multiplicador
igual a 1. Mas caso se observe um aumento das taxas de juros em decorrência da
expansão fiscal, então o multiplicador será menor do que 1. Em última instância, essa
análise depende do impacto da política fiscal sobre a taxa de inflação. Se o nível de
preços for relativamente rígido, maior será o impacto da política fiscal sobre o produto.
Chinn (2013) afirma que, nos modelos da Síntese Neoclássica, quanto maior a
sensibilidade dos preços ao hiato do produto, menor será a sensibilidade da renda às
mudanças nos gastos do governo. Já nos modelos Keynesianos, o autor afirma que o
multiplicador é uma função positiva da propensão marginal a consumir.
Diversos autores argumentam, ainda, que um multiplicador fiscal maior do que
1 está relacionado a um contexto de crise econômica e taxas de juros próximas a zero.
Nesta conjuntura específica, a política monetária se torna ineficaz para estimular a
demanda. A desaceleração da economia tenderia à deflação, elevando a taxa real de
juros e desestimulando ainda mais as decisões de investimentos. Essa é a situação da
“armadilha da liquidez” do modelo IS-LM de Hicks (1937) e, portanto, apenas uma
política fiscal expansionista apresentaria efeitos sobre o produto e evitaria o
agravamento da deflação. Nessas circunstâncias, se a política fiscal gerar expectativas
de elevação de preços, então as taxas reais de juros tenderão a cair, havendo um
incentivo aos investimentos e aos gastos privados, o que levaria a recuperação da
49
atividade econômica (KRUGMAN, 2012). Outro argumento interessante de Auerbach e
Gorodnichenko (2010) é de que em momentos de crise econômica (não importando o
nível das taxas de juros) as pressões inflacionárias e o crowding out teriam menores
chances de ocorrer (LOPREATO 2014).
Blanchard et al (2012) separa a questão fiscal em dois eixos: um que trata a sua
utilização como estabilizador de curto prazo e outro sobre seus impactos no longo
prazo. Sem dúvida, a própria relação entre o curto e o longo prazo faz parte da
discussão. Os efeitos de gastos discricionários sobre a sustentabilidade da dívida pública
no longo prazo, por exemplo, é um tema importante. Existem diversas questões que
emergem e que geram divergências entre os economistas, como: qual o tamanho do
multiplicador fiscal (em quais conjunturas seria maior do que 1); por quanto tempo
poderia se manter uma política fiscal expansionista sem prejudicar indicadores de
endividamento; qual seria a institucionalidade ótima para política macroeconômica
(qual seria o mix entre política monetária, fiscal e regulação financeira); qual seria o
efeito de uma consolidação fiscal sobre o desempenho da economia e sobre as
expectativas dos agentes; o que seria mais eficiente, os estabilizadores automáticos, os
gastos discricionários, as isenções fiscais, os investimentos públicos ou os incentivos à
demanda; qual seria o lag temporal para os impactos da política fiscal; dentre outros
grandes temas do debate acadêmico.
Lopreato (2014, p.3) adverte, contudo, que existe um consenso entre os
economistas do NCM em torno de se “elevar o espaço fiscal” na fase de expansão
econômica, ou seja, para se executar uma política fiscal ativa em momentos de crise,
necessariamente deveria se manter a austeridade no período de crescimento. Essa seria,
segundo Romer (2012), uma das lições deixadas pela crise. O autor destaca a evidência
empírica de que países com uma menor taxa de endividamento/PIB tiveram a
capacidade de executar ações fiscais mais agressivas ao longo da crise.
Indrawati (2012) afirma que diversos países emergentes possuem uma base
tributária estreita, sendo necessária uma reforma estrutural para ampliar as receitas e
abrir espaço para a utilização de estabilizadores automáticos. O autor também salienta a
necessidade de se restringir os gastos discricionários para melhorar a disciplina fiscal,
evitando a politização dos gastos públicos. Além disso, Indrawati (2012) coloca que os
gastos públicos devem se concentrar em setores prioritários (infraestrutura e áreas
sociais) com o intuito de melhorar a qualidade das ações fiscais.
50
Deve-se ressaltar, ainda, que a importância da consolidação fiscal não saiu da
pauta de alguns teóricos do mainstream. Muitos autores ainda defendem a ideia de que a
contração fiscal poderia provocar uma expansão do produto. Alesina e Ardagna (2012)
afirmam que se o ajuste ocorrer pelo corte de gastos (ao invés de aumento das receitas)
a queda da relação dívida/PIB teria um efeito mais prolongado e os efeitos sobre o PIB
seriam mais benéficos (tanto evitando recessões profundas quanto recuperando de forma
ágil o crescimento econômico). Alesina e Ardagna (2012) afirma, ainda, que a
liberalização do mercado de trabalho e de bens poderia contribuir para alterar as
expectativas dos investidores, instigando o crescimento econômico (LOPREATO,
2014).
Outro fator importante no debate acadêmico é o possível impacto que um
elevado nível da dívida pública teria sobre a taxa de crescimento do produto e sobre as
taxas de juros. O argumento de Reinhart e Rogoff (2010) é de que uma taxa de dívida
interna/PIB maior do que 90% teria impactos significativos sobre o crescimento
econômico – esse limite seria tanto para países emergentes quanto para países
desenvolvidos. Em países emergentes, contudo, a dívida externa apresentaria maiores
impactos sobre o produto e não poderia passar de 60% do PIB. Segundo o estudo dos
autores, o impacto da dívida pública sobre a inflação também seria mais significativo
para os países emergentes. Esse trabalho teve grande impacto no debate acadêmico e
político, sendo utilizado como base científica para o corte de gastos públicos em
diversos países no pós-crise de 2008.
Contudo, diversos autores contestaram o estudo de Reinhart e Rogoff (2010),
afirmando que erros estatísticos graves comprometeram os resultados da pesquisa
(IRONS & BIVENS, 2010; HERNDON et al., 2014, HERDON, POLIN & ASH, 2013).
Em primeiro lugar, percebe-se que a relação causal está invertida, ou seja, é intuitivo
pensar que um baixo crescimento econômico provocará um maior nível de
endividamento (já que é perceptível a relação direta entre crescimento econômico e
arrecadação tributária do Estado, além de maiores gastos com estabilizadores
automáticos como o seguro desemprego). Além disso, seria necessário um melhor
tratamento temporal para relacionar o estoque da dívida à taxa de crescimento
econômico. Novos trabalhos empíricos, como os de Herndon et al. (2014), refutam um
parâmetro ideal para dívida pública, pois constatam que sua relação com o crescimento
do PIB não mantém um padrão.
51
Herdon, Polin e Ash (2013) reforçam essa crítica ao refazer o esforço empírico
de Reinhart e Rogoff (2010) e concluir que aqueles autores manipularam os dados para
obterem resultados que privilegiassem uma política macroeconômica austera. Herdon,
Polin e Ash (2013) acusam Reinhart e Rogoff (2010) de omitirem alguns dados e
colocarem um peso inapropriado em outros, alterando de forma significativa os
resultados. Assim como em Herndon (2014), Herdon, Polin e Ash (2013) concluem que
a relação entre déficit público e crescimento econômico varia substancialmente entre
países e ao longo do tempo. Sobre períodos mais recentes – entre 2000 e 2009 – os
autores argumentam que não há nenhuma evidência para que um aumento da dívida
pública acima do patamar de 90% do PIB provoque uma queda do crescimento
econômico.
Cabe frisar, por fim, que existe uma tendência de alguns autores mainstream e
algumas instituições internacionais de reverem alguns conceitos teóricos que
embasaram a visão neoliberal – e que sustentou a condução da política econômica na
maioria dos países da América Latina a partir da década de 1990. O FMI, uma
instituição historicamente promotora do neoliberalismo no mundo, passou a incluir
sistematicamente em seus relatórios a partir de 2014 a importância do investimento
público para o crescimento econômico e para a distribuição de renda. No World
Economic Outlook (WEO) de 2014, a instituição é clara em afirmar que uma elevação
nos investimentos públicos em infraestrutura teria importantes efeitos dinamizadores na
economia, servindo para reduzir a relação dívida/PIB mesmo quando esses gastos são
financiados com dívida. Nesse sentido, caso os multiplicadores fiscais forem
significativos, os investimentos públicos forem eficientes e a elasticidade do produto ao
capital público for elevada, o crescimento do investimento público poderia se tornar
autofinanciável, já que provocaria uma redução da relação dívida/PIB. (WEO, FMI,
2014)20
.
(…) public infrastructure investment raises output in both the short
and long term, particularly during periods of economic slack and
when investment efficiency is high. This suggests that in countries with
infrastructure needs, the time is right for an infrastructure push:
borrowing costs are low and demand is weak in advanced economies,
20
O WEO (2014) faz uma advertência sobre a baixa eficiência dos investimentos públicos em países
emergentes, onde o aumento dos gastos públicos poderiam não ter os resultados esperados. Contudo, o texto salienta a importância de se observar os gargalos de infraestrutura que poderiam estar restringindo o
crescimento econômico, sendo necessária a execução de políticas voltadas para a eficiência e, assim,
aliviar tais deficiências.
52
and there are infrastructure bottlenecks in many emerging market and
developing economies. Debt-financed projects could have large output
effects without increasing the debt-to-GDP ratio, if clearly identified
infrastructure needs are met through efficient investment (WORLD
ECONOMIC OUTLOOK, FMI, 2014, p.75)
Whether debt rises as a share of GDP in the short term depends on the
size of the fiscal multiplier and the elasticity of revenues to output.
GDP may rise by more than debt initially, and the resulting higher tax
revenue may offset some of the increased spending on public
investment (WORLD ECONOMIC OUTLOOK, FMI, 2014, p.78).
Conforme o FMI (2014), a participação estatal nos investimentos em
infraestrutura é historicamente relevante por diversos fatores, como o elevado custo
inicial dos projetos (geralmente intensivos em capital), o longo período de maturação e
os longos períodos de retorno (que dificultam o horizonte das taxas internas de retorno e
aumentam as incertezas). Além disso, as externalidades positivas amplas são de difícil
mensuração, fazendo com que os retornos sociais excedam os retornos privados do
operador. Outrossim, o FMI (2014) salienta que o crescimento do investimento público
afeta positivamente a demanda agregada no curto prazo através do efeito multiplicador
fiscal, provocando um efeito “crowding in”21
.
Ostry, Loungani e Furceri (2016), em artigo lançado pelo FMI, explicitam
críticas a importantes pressupostos do arsenal teórico neoliberal: a liberalização aos
movimentos de capital e a austeridade fiscal (OSTRY, LOUNGANI & FURCERI,
2016). Os autores afirmam que a busca pela sustentabilidade da dívida pública por meio
da redução de déficits fiscais pode ser contraproducente, já que podem afetar
negativamente a distribuição de renda, aumentando da desigualdade social e
arrefecendo o próprio crescimento. O texto reconhece que não existe um nível de
endividamento público ótimo que poderia servir como uma meta de política econômica.
Não obstante, Ostry, Loungani e Furceri (2016) afirmam que os custos de um
ajuste fiscal podem ser grandes. O aumento de tributos poderia distorcer o lado da oferta
enquanto o corte de gastos poderia deprimir o lado da demanda, tendendo a elevar o
nível do desemprego e colaborar para a eclosão de crises econômicas22
. A liberalização
21
O efeito ”crowding in”, ao contrário do “crowding out”, consiste no aumento dos investimentos
privados em decorrência de uma expansão fiscal, tanto pela complementaridade de projetos público-
privados quanto pelo aumento da demanda agregada.
22 De forma contraditória o World Economic Outlook (2016), elaborado pelo FMI, faz recomendações
para que o Brasil “persevere” em seu esforço de consolidação fiscal para promover uma reversão no
pessimismo e no baixo nível de investimento.
53
dos fluxos de capitais apresenta resultados contraditórios, principalmente para países
emergentes. Por um lado, o investimento direto estrangeiro, que pode se referir a
transferências tecnológicas, teria impactos benéficos sobre a produtividade. Por outro,
investimentos em portfólio e capitais especulativos, além de aumentarem o risco a crises
financeiras, impelem grande volatilidade de variáveis macroeconômicas chave, o que
prejudica a previsibilidade dos agentes produtivos e o desenvolvimento econômico.
1.4.2. Nova Geração de Regras Fiscais pós-crise de 2008
Cabe destacar, ademais, uma mudança de percepção das regras fiscais que
objetivam, de forma geral, disciplinar às ações do Estado. Orair (2016) aponta duas
gerações de regras fiscais, sendo a primeira implementada principalmente na década de
1990. Essas regras eram mais rígidas, baseadas em fluxos de caixa de curto prazo e
deixavam pouca margem para ações anticíclicas, com “válvulas de escape” muito
limitadas. A segunda geração de regras fiscais iniciou em meados dos anos 2000 e se
fortaleceu no pós-crise de 2008, quando se tornou clara a necessidade de atuação estatal
para lidar com as crises econômicas. Segundo Orair (2016, p.11)
O ponto central é que vários países promoveram reformas
institucionais nos últimos anos para introduzir uma “nova geração de
regras fiscais” mais flexíveis e com âncora fiscal de médio prazo,
diante da visão de que se deve buscar a sustentabilidade da dívida
pública, mas sem atuar contrariamente ao crescimento econômico.
No mesmo sentido, Schaechter et al (2012) alegam que reformas fiscais em
diversos países no pós-crise de 2008 buscaram conciliar os objetivos de sustentabilidade
(com a preocupação do nível da dívida pública) e de flexibilidade (capacitando o Estado
para responder a choques). Essa “nova geração” de regras fiscais criaria novos desafios
de implementação, comunicação e monitoramento, buscando enfrentar a complexidade
da conjuntura que se impôs. Contudo, os autores argumentam que a simplicidade das
regras fiscais não é considerada um definidor de eficiência nem implica em maior
transparência.
Após a crise de 2008, as metas numéricas e as regras processuais se
fortaleceram e diversos países adotaram uma combinação de diferentes tipos de regras
fiscais para institucionalizar ações do Estado visando à sustentabilidade da dívida
pública e a capacidade de enfrentamento de crises econômicas. Schaechter et al (2012)
defendem a hipótese de que um melhor desempenho fiscal está relacionado a regras
54
fiscais mais abrangentes (em geral, uma combinação de regras) que teriam se tornado
uma tendência tanto nos países desenvolvidos quanto nos emergentes23
. Distingue-se,
também, as regras fiscais nacionais das supranacionais (instituídas em uniões
monetárias, visando restringir as ações individuais dos países membros de executarem
políticas fiscais inconsistentes com as necessidades do acordo monetário).
Schaechter et al (2012) destacam quatro regras fiscais mais conhecidas e
apontam seus respectivos pontos positivos e negativos. A regra sobre a dívida pública24
teria como pontos positivos a relação direta sobre a sustentabilidade da dívida pública e
a fácil comunicação e monitoramento, sendo a regra mais utilizada. Contudo essa regra
não apresenta um guia operacional claro (já que não especifica quais políticas devem ser
utilizadas no curto prazo). Além disso, não possui mecanismos de estabilização
(podendo exercer uma pressão pró-cíclica). Ademais, o alcance de metas de
endividamento poderia ser casual, influenciado por forças externas às políticas do
governo e que não garantiria sua sustentabilidade no longo prazo.
A regra de equilíbrio orçamentário25
possui, segundo os autores, a vantagem de
ser um guia operacional fácil de comunicar e monitorar, estando diretamente
relacionada com a sustentabilidade da dívida pública. Contudo, além de exercer
pressões pró-cíclicas, essa regra também é afetada por fatores exógenos à política
econômica – as receitas e despesas do governo dependem de fatores como crescimento
econômico e nível de desemprego, por exemplo. Segundo Schaechter et al (2012), a
partir dessa regra, evoluiu-se para outra de equilíbrio orçamentário estrutural, que
pretende incluir a função de estabilização econômica, agindo de forma contracíclica.
Não obstante, Schaechter et al (2012) argumentam que a correção pelo ciclo econômico
é complicada, principalmente em países que passam por mudanças estruturais. Assim, a
complexidade dessa ferramenta torna mais difícil a comunicação e o monitoramento,
23
Schaechter et al (2012) demonstram que em 1990 apenas 5 países utilizavam algum tipo de regra fiscal
(Alemanha, Indonésia, Luxemburgo, Japão e Estados Unidos). Em março de 2012 já eram contabilizados
76 países que utilizavam regras fiscais em níveis nacionais ou supranacionais. Os países emergentes
passaram a adotar as regras fiscais após a reestruturação macroeconômica pós-crises financeiras na
década de 1990.
24 No Brasil, a Resolução do Senado Federal nº 40 de 2001 criou um limite para a dívida corrente líquida
(DCL) em relação à receita corrente líquida (RCL) para os estados (de 2 vezes a RCL) e para os
municípios (de 1,2 vezes a RCL) (PASSOS & CASTRO, 2009).
25 No Brasil é utilizada a regra de superávit primário, que corresponde a poupança que o governo deve
realizar sem considerar os gastos com juros e amortização da dívida.
55
além de poderem ser utilizadas de forma discricionária caso suas regras não forem bem
definidas.
As regras sobre os gastos do governo teriam a vantagem, conforme Schaechter
et al (2012), de serem um guia operacional fácil de comunicar e monitorar que
permitiria a estabilização econômica e “orientaria o tamanho do governo”26
. Contudo,
os autores afirmam que poderiam ocorrer mudanças não desejadas na distribuição dos
gastos – caso o governo mude a composição dos gastos para cumprir o teto da meta – e
esse componente não implicaria sozinho em sustentabilidade da dívida. Para isso, seria
necessária uma regra sobre as receitas do governo, que poderia implicar em melhorar
eficiência na administração pública, prevenir gastos pró-cíclicos (ao limitar o uso de
receitas extraordinárias), e reforçar a “orientação do tamanho do governo”.
A combinação de regras mais utilizadas, segundo Schaechter et al (2012), é a
de controle da dívida e a de equilíbrio orçamentário. Uma regra sobre os gastos públicos
também é utilizada em combinação com uma dessas duas regras por países que estariam
buscando o compromisso com a sustentabilidade da dívida. Esses autores sustentam que
as regras sobre nível da dívida são predominantes em países de baixa renda, o que
refletiria uma possível fraqueza institucional que complicaria a utilização de regras
sobre os gastos. Já as regras sobre o equilíbrio orçamentário que incluem o ciclo
econômico são mais comuns em países desenvolvidos do que nos emergentes, o que,
segundo o autor, também seria resultado de evoluções institucionais.
Em relação às regras fiscais, Gobetti (2014) compara os casos de países da
União Europeia (UE) que seguem a regra de “orçamento equilibrado” com o Reino
Unido (que segue a “regra de ouro”). Conforme já mencionado, diversos países foram
ajustando suas regras fiscais com a finalidade de compatibilizar sustentabilidade com
crescimento econômico. Esse autor também ressalta a tendência de evolução dessas
regras para incorporar os efeitos que os ciclos econômicos provocavam sobre o
orçamento, bem como o efeito dos gastos públicos sobre o próprio ciclo.
A regra de “orçamento equilibrado” (ou déficit nominal próximo à zero) foi
incorporada no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), de 1997, com o objetivo de
26
Ao mencionar como ponto positivo a orientação do “tamanho do governo” os autores deixam claro o
seu posicionamento ideológico de que o Estado deve ser limitado, ou seja, parte-se da premissa de que o
sistema econômico ótimo deveria convergir para a competição privada, reduzindo-se a participação
estatal.
56
controlar as finanças públicas e reduzir déficits excessivos dos países membros da UE27
.
Mantiveram-se as metas introduzidas pelo Tratado de Maastricht tanto para o déficit
nominal (3% do PIB) quanto para dívida bruta (60% do PIB). Mesmo em sua primeira
versão, o pacto já incorporava “cláusulas de escape” que dependiam das circunstâncias
cíclicas da econômica – caso houvesse uma queda real do PIB de 2%. Em 2005, um
novo regulamento foi estabelecido (Regulamento nº 1.055/2005) visando integrar as
flutuações cíclicas da economia para o cumprimento das metas. Além dos limites já
impostos pelo Tratado de Maastricht, foram instituídos limites para o déficit nominal
ajustado ao ciclo econômico (de 1% do PIB). Gobetti (2014, p.17) observa essa questão
da seguinte forma:
Uma vez que os dois limites (com e sem ajuste) devem ser
respeitados, infere-se implicitamente que o componente cíclico dos
resultados fiscais nos momentos em que o produto está abaixo do seu
nível potencial não pode superar 2% do PIB quando, em termos
estruturais, o país estiver apresentando um deficit de 1% do PIB. Em
geral, essa margem de manobra parece razoável, mas isso depende do
grau de flutuação da economia e da sensibilidade dos resultados
fiscais a essas flutuações. Para países com alta flutuação e alta
sensibilidade, uma meta de deficit estrutural de 1% do PIB pode
implicar a violação da meta de Maastricht em alguns momentos, o que
o obrigaria a perseguir uma meta estrutural mais rigorosa.
Em 2011 os países membros da UE passaram a discutir uma nova reforma do
PEC visando contornar o aprofundamento da crise econômica. De forma geral, buscou-
se “melhorar a governança econômica”, tornando mais rígidas as regras para
endividamento de países com dívida superiores a 60% do PIB e aprimorando os
mecanismos de sanções para países que não se comprometiam com medidas corretivas
dos déficits excessivos. Além disso, estabeleceu-se “um teto para o crescimento das
despesas públicas, baseada na estimativa de taxa de crescimento do PIB potencial de
cada Estado-membro, com o objetivo de auxiliar no atingimento dos objetivos de médio
prazo em termos de resultado fiscal estrutural” (GOBETTI, 2014, p.18). Em 2012 os
países membros celebraram um Pacto Fiscal com o intuito de incorporar o “orçamento
equilibrado” nas legislações nacionais. Embora a UE tenha incorporado regras que se
27
Nas palavras de Gobetti (2014, p.15): “Estes objetivos são traduzidos em metas de deficit e dívida e em programas de ajuste que garantam a manutenção ou a convergência em direção ao “equilíbrio orçamentário”. O objetivo explícito do pacto era criar as condições de estabilidade macroeconômica necessária à introdução da moeda única, que viria a ocorrer em 1998.”
57
ajustam ao ciclo econômico, percebe-se que os constrangimentos permaneceram
bastante rígidos.
No caso do Reino Unido, a Regra de Ouro foi instituída em 1997
conjuntamente com uma regra de investimento sustentável. O objetivo é manter a
Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) em um patamar sustentável ao longo do ciclo,
sem prejudicar as taxas de investimento público. Nas palavras de Gobetti (2014, p.22):
No caso do Reino Unido, portanto, a regra fiscal não restringe a
expansão dos investimentos públicos a menos que a dívida líquida
(não muito diferente da dívida bruta, ao contrário do Brasil) esteja
abaixo de 40% do PIB, situação que era verificada até a crise de 2008-
2009, quando tal limite foi ultrapassado. Na prática, sob uma situação
de alto endividamento, como a atual (dívida líquida acima de 60% do
PIB), a regra de ouro deveria implicar uma situação de orçamento
equilibrado, tal como a prevista no arcabouço institucional da UE.
Gobetti (2014) salienta, contudo, que tanto a UE quanto o Reino Unido não
conseguiram colocar em prática tais regras fiscais. Em 2009 e 2010, no auge da crise, o
déficit fiscal britânico chegou a 11% do PIB, à medida que os gastos públicos cresciam
de 41% para 47% do PIB. Com a vitória do Partido Conservador nas eleições de 2010, o
governo editou uma Lei de Responsabilidade Fiscal para reduzir o déficit e a dívida
líquida, e criou um conselho econômico independente para monitorar as autoridades do
Tesouro e do Parlamento. Esse conselho independente tem, entre as suas funções, a
incumbência de estimar o PIB potencial e o hiato do produto, essenciais para o cálculo
do resultado fiscal ajustado ao ciclo econômico.
Shome (2012) afirma que a estratégia do Reino Unido foi a consolidação fiscal
pelo corte de gastos, seguindo os estudos acadêmicos de Alesina e Ardagna (2009).
Apesar das projeções de baixo crescimento econômico, o partido conservador ganhou as
eleições de 2010 com o discurso da “disciplina fiscal”. Shome (2012) também cita o
caso da Índia, que em 2011 iniciou um processo de consolidação fiscal, recompondo o
orçamento com a retirada de subsídios (sobre fertilizantes, alimentos e petróleo) e a
reestruturação de impostos sobre a renda e o consumo. A conclusão do autor é de que as
ações anticíclicas devem ocorrer apenas em momentos específicos de aprofundamento
de crises. Posteriormente, a consolidação fiscal deveria prevalecer, o que evitaria
distorções no desenvolvimento de longo prazo da economia e melhoraria as
expectativas dos agentes. O autor defende a hipótese de que a austeridade do governo
não afetaria negativamente sua reputação frente aos eleitores (conforme teriam
mostrado os casos do Reindo Unido e da Índia).
58
Considerações Finais
Esse capítulo buscou organizar as ideias do NCM sobre a questão fiscal,
partindo de suas influências teóricas e de seus pilares de confluência que caracterizam
essa linha de pensamento. Fez-se necessário discorrer sobre aspectos amplos – como a
política monetária, a racionalidade dos agentes, a dinâmica dos mercados no sistema
capitalista – para posteriormente compreender o papel secundário (ou subordinado) da
política fiscal nessa vertente teórica. De forma geral, constata-se que o principal
objetivo da política macroeconômica, para o NCM, é manter a estabilidade da inflação
em nível baixo, o que abriria espaço para a redução das taxas de juros e, assim,
estimular o investimento privado.
Em vista disso, as regras de superávit primário se encaixam em uma visão que
prega a restrição intertemporal dos gastos públicos. Uma política fiscal restrita, com
regras rígidas e claras de funcionamento, colaborariam para melhorar as expectativas
dos agentes privados, diminuir o risco sobre a sustentabilidade da dívida público, além
de contribuir para evitar pressões inflacionárias. Já as expansões dos gastos públicos,
por outro lado, tenderiam a provocar o efeito crowding out, arrefecendo investimentos
privados e provocando resultados deletérios sobre as variáveis macroeconômicas –
como o produto, a inflação, as taxas de juros e a dívida pública. Indica-se, assim, a visão
sobre o papel limitado que o Estado deve desempenhar na economia.
Após a crise de 2008, percebe-se um reacendimento do debate, dentro do
NCM, acerca da condução da política macroeconômica. Diversos autores questionaram
as rígidas regras fiscais que limitavam a capacidade do Estado de agir de forma
contracíclica, além dos resultados deletérios que a liberalização financeira poderia
provocar na economia.
Constata-se que os estímulos fiscais, por intermédio da expansão de gastos do
governo, passaram a ganhar importância dentro do mainstream, principalmente em
momentos de recessão, quando o multiplicador fiscal passou a ser interpretado como
significativo. Contudo, diversos autores não se desprenderam do núcleo teórico do
NCM, e as mudanças na condução da política fiscal deveriam ser executadas apenas em
momentos específicos de crise econômico e taxas de juros baixas, quando a política
monetária não teria espaço para atuação. Em vista disso, se faz necessário levantar uma
59
outra forma de interpretar o papel do Estado na dinâmica capitalista, que compreende
outro entendimento acerca do regime fiscal – o que será realizado no próximo capítulo.
60
2. O DEBATE TEÓRICO SOBRE O REGIME FISCAL: A POLÍTICA FISCAL
COMO MECANISMO ESTRATÉGICO DO ESTADO
Apresentação:
Esse capítulo tem o objetivo de apresentar a política fiscal sob uma perspectiva
divergente daquela do NCM exposta no capítulo anterior, apresentando-se uma outra
interpretação sobre a lógica de funcionamento das economias capitalistas. Essa
abordagem se faz necessária para compreender as razões de se pensar em um regime
fiscal que atribua ao Estado a responsabilidade de intervir na economia, seja para a
atuação anticíclica, como para o direcionamento de investimentos para setores
estratégicos.
Em vista disso, o capítulo se divide em três partes. Na seção 2.1, recorre-se a
interpretação de Keynes e Kalecki, dois autores seminais que colocam os gastos do
Estado como uma variável estratégica para sustentar a demanda efetiva nas fases de
queda do ciclo econômico. A seção 2.1 discorre sobre aspectos gerais da visão teórica
de Keynes e Kalecki, fundamentais para o entendimento dos ciclos econômicos e a
necessidade da ação estatal para a recuperação e o desenvolvimento das economias
capitalistas.
A seção 2.2 aborda a teoria da Modern Money Theory (MMT), que considera
que o Estado não possui nenhuma restrição real à expansão dos seus gastos. Essa visão
teórica é relevante para se extrair insights em relação aos limites e as funções da política
fiscal. Não obstante, algumas críticas serão levantadas, contribuindo para o debate e as
reflexões que se pretendem levantar a respeito de um regime fiscal mais benéfico para o
desenvolvimento econômico.
De forma complementar, a seção 2.3 busca apontar a importância e os desafios
das políticas econômicas voltadas para o desenvolvimento. Nesse contexto, a política
fiscal apresenta papel crucial, por implicar no formato de tributação (que visa tanto a
arrecadação do governo quanto a distribuição de renda) e de gastos (que inserem um
componente estratégico, capacitando o Estado a alavancar setores estratégicos).
2.1. A Dinâmica Capitalista e a Política Fiscal em Keynes e Kalecki
Para iniciar a crítica ao modelo teórico do NCM, optou-se por explicitar
conceitos desenvolvidos por Keynes (1996) e Kalecki (1977) negligenciados pela
61
vertente neoclássica. Em linhas gerais, destaca-se a importância da moeda para a
dinâmica capitalista, a teoria da decisão de investimento e alocação de recursos, o papel
da demanda efetiva e da distribuição de renda para o crescimento econômico. Busca-se,
assim, trazer uma base teórica que atribui ao Estado uma posição de destaque, como
uma variável estratégica na dinâmica capitalista, visando suavizar crises e promover o
desenvolvimento econômico.
2.1.1. A economia monetária de produção e os ciclos econômicos em Keynes
Uma das grandes contribuições de Keynes, com a Teoria Geral do Emprego, do
Juro e da Moeda (TG)28
, foi a definição de moeda e suas características que a diferencia
de outros ativos. Essa interpretação é fundamental para a compreensão dos ciclos
econômicos inerentes às economias capitalistas, conforme esse autor.
No capítulo 17 da TG, Keynes define a moeda como um ativo, e caracteriza
todos os ativos por três atributos básicos que se manifestam em diferentes graus. O
primeiro é o rendimento (q), medido em termos do próprio ativo. O segundo é o custo
de manutenção (c), medido em termos de si mesmo, que poderia ocorrer por desgaste ou
depreciação do ativo ao longo do tempo. O terceiro é o prêmio de liquidez (l) que
implica na segurança potencial ou conveniência proporcionada pelo ativo – que não
inclui o seu rendimento. Esse atributo está relacionado ao grau de liquidez, que consiste
na capacidade de converter o ativo em qualquer outro no menor tempo e com a menor
perda possível. Outra característica importante é a valorização do capital em termos
monetários (a). Essa valorização não se refere à capacidade do ativo de se expandir em
termos de si mesmo, mas sobre a capacidade de converter essa expansão em lucro
monetário – tornando o ativo apreciado aos olhos dos investidores. Tendo isso em vista,
os agentes levarão em consideração as características de cada ativo (a + q – c + l)29
para
montar o seu portfólio.
Ao compreender a moeda como um ativo, Keynes se distancia da hipótese de
neutralidade da moeda e da Teoria Quantitativa da Moeda (TQM). A moeda, então, é
28 Livro original de 1936. A versão utilizada nessa dissertação é a da coleção “Os Economistas”, editora
Nova Cultura, 1996.
29 Keynes afirma que cada ativo possui uma taxa de juro própria, medida em termos de si mesmo, que é
dado pela soma (q – c + l). O ativo que apresenta maior rendimento marginal terá maior demanda para
sua produção, fazendo com que sua taxa de juro própria tenda a cair.
62
um ativo que possui um rendimento nulo, um custo de manutenção insignificante, mas o
prêmio de liquidez máximo (a moeda representa a liquidez por natureza). Como ela se
torna uma opção de alocação de recursos, significa que existe uma motivação
econômica para os agentes demandarem moeda que não apenas para fins transacionais.
Keynes ressalta que as pessoas agem de acordo com suas “preferências
psicológicas temporais” para decidirem quanto de sua renda irão gastar no presente e
quanto irão reservar para o futuro. Na realidade, são dois conjuntos de decisões que
serão tomadas. A primeira está relacionada à propensão a consumir, que implica quanto
da renda será consumida no presente. A segunda, em relação ao modo como o indivíduo
manterá a sua poupança (incluindo a parcela que foi poupada da renda passada e a da
renda presente). O indivíduo pode manter moeda (mantendo poder de compra imediato)
ou ativos com algum rendimento (mas que se tornam imobilizados por certo período de
tempo). Como a propensão a consumir é relativamente estável, o segundo conjunto de
decisões é que irá explicitar a preferência pela liquidez dos agentes, sendo esse fator de
maior influência sobre as taxas monetárias de juros.
Desse modo, sendo a taxa de juros, a qualquer momento, a
recompensa da renúncia à liquidez, é uma medida de relutância dos
que possuem dinheiro alienar o seu direito de dispor do mesmo. A
taxa de juros não é o “preço” que equilibra a demanda de recursos
para investir e a propensão de abster-se do consumo imediato. É o
“preço” mediante o qual o desejo de manter a riqueza em forma
líquida se concilia com a quantidade de moeda disponível.
(...)
A preferência pela liquidez é uma potencialidade ou tendência
funcional que fixa a quantidade de moeda que o público reterá quando
a taxa de juros for dada (KEYNES, 1996, p.174-175)
Assim, Keynes salienta alguns motivos que levam os agentes econômicos a
preferirem manter ativos líquidos, como o dinheiro, mesmo que não apresentem um
rendimento. O motivo transação seria para satisfazer as necessidades correntes de
compra; o motivo precaução seria pela segurança que esse ativo possui de manter poder
de compra no futuro; o motivo especulação seria pelo conhecimento e expectativa do
agente em relação à variação dos preços dos outros ativos, com o propósito de obter
melhores taxas de retorno. Enquanto os dois primeiros motivos seriam mais sensíveis à
variação da renda, o motivo especulação teria grande sensibilidade às variações na taxa
de juros. Assim, o prêmio de liquidez da moeda (l) pode se tornar maior do que os
rendimentos líquidos de outros ativos (q – c).
63
Ademais, Keynes frisa outras características especiais da moeda que as tornam
um ativo crucial dentro do sistema capitalista. A moeda possui elasticidade de produção
e de substituição nulas, além de sua taxa de juros ser inelástica (possuir uma resistência
à queda). Isso implica que a moeda não pode ser produzida privadamente e nenhum
outro ativo possui as suas características. Por não apresentar custo de carregamento e
por ser o ativo de maior liquidez, a eficiência marginal da moeda cai mais lentamente
quando aumenta sua oferta. Dessa forma, mesmo que o valor da moeda aumente, sua
oferta só poderia aumentar por uma decisão do governo e, se a sua demanda cair, a sua
taxa de juros irá cair mais lentamente ao se comparar com outros ativos. Por possuir
essas qualidades, a taxa de juros monetária se torna a referência para a eficiência
marginal de todos os outros ativos. Uma importante reflexão desses pressupostos é
sobre a possibilidade de uma queda da taxa monetária de juros não impactar
positivamente o investimento, já que a eficiência marginal do capital poderia cair mais
rapidamente do que a da moeda.
Vemos assim que as várias características que se combinam para
tornar significativa a taxa monetária de juros interagem de forma
cumulativa. O fato de ter a moeda baixas elasticidades de produção e
substituição e baixos custos de manutenção tende a criar a expectativa
de certa estabilidade de salários expressos em moeda; essa expectativa
aumenta o prêmio de liquidez do dinheiro e evita a correlação
excepcional entre a taxa monetária de juros e as eficiências marginais
de outros bens, que poderia, se existisse, privar esta taxa monetária de
juros de seu predomínio (KEYNES, 1996, p.231).
Keynes descreve o ambiente de decisões econômicas como incerto, não
podendo ser atribuída uma distribuição de probabilidade ao risco de alocação de
recursos. Esse argumento traz implicações fundamentais para a interpretação da
dinâmica capitalista. A decisão do empresário em imobilizar capital é movida pelo seu
“espírito empreendedor” de acumular mais capital, pesando sua perspectiva sobre as
incertezas que é, geralmente, muito subjetiva. A decisão fundamental de investir implica
em abrir mão da segurança do ativo de liquidez universal para adquirir um ativo com
maior custo de carregamento, menor liquidez e uma valorização incerta (a+q). Dessa
forma, a expectativa dos agentes em relação aos acontecimentos futuros e o grau de
confiança desse prognóstico são fatores cruciais para a decisão de investir. Nas palavras
de Keynes (1996, p.161):
O fato de maior importância é a extrema precariedade da base do
conhecimento sobre o qual temos que fazer os nossos cálculos das
rendas esperadas. O nosso conhecimento dos fatores que regularão a
64
renda de um investimento alguns anos mais tarde é, em geral, muito
limitado e, com frequência, desprezível.
(…)
Os homens de negócio fazem um jogo que é uma mescla de habilidade
e de sorte, cujos resultados médios são desconhecidos pelos jogadores
que dele participam. Se a natureza humana não sentisse a tentação de
arriscar a sorte, nem de sentir a satisfação (excluindo-se o lucro) de
construir uma fábrica, uma estrada de ferro, de explorar uma mina ou
uma fazenda, provavelmente não haveria muitos investimentos como
mero resultado de cálculos frios.
Keynes acentua que os empresários seguem certas convenções para se sentirem
seguros quanto suas escolhas. Uma importante convenção é assumir a mesma posição
da maioria (ou dos agentes mais influentes), o que configura os “efeitos-manada”. Sobre
esse fato, Keynes destaca a importância dos mercados financeiros organizados e as
bolsas de valores, que reavaliam diariamente os preços de ativos e acabam
influenciando a tomada de decisão dos “investidores comuns”. Mesmo que exista a
perspectiva individual de que um ativo é promissor, o mercado poderá avaliá-lo como
um mau investimento fazendo com que seu preço caia. Assim, os agentes passam a se
preocupar mais sobre a forma como o mercado irá avaliar o preço do ativo no curto
prazo do que a sua própria percepção acerca daquele investimento, o que caracteriza um
componente de especulação sobre as decisões de alocação de recursos. Além disso, ao
passo que grandes players decidem investir e que o nível de emprego e as perspectivas
de demanda se elevem, os empresários se sentem mais confiantes para imobilizar
capital, pois existe a percepção de que a eficiência marginal do capital aumentou.
(…) a eficiência marginal do capital depende não apenas da
abundância ou da escassez existente de bens de capital e do custo
corrente da produção dos bens de capital, mas também das
expectativas correntes relativas ao futuro rendimento dos bens de
capital. Consequentemente, no caso dos bens duráveis, é natural e
razoável que as expectativas do futuro desempenhem um papel
preponderante na determinação da escala em que se julguem
recomendáveis novos investimentos. Como vimos, porém, as bases
para tais expectativas são muito precárias. Fundadas em indícios
variáveis e incertos, estão sujeitas a variações repentinas e violentas
(KEYNES, 1996, p.294).
É importante salientar a distinção da teoria keynesiana e da teoria ortodoxa em
relação ao binômio poupança-investimento. Para Keynes uma elevação na poupança
não resultará em elevação do nível de investimento, já que recursos que poderiam ser
utilizados com o investimento estão sendo mantidos de forma líquida. Por outro lado,
uma elevação na renda provocará uma elevação na poupança, já que existe uma
65
propensão dos agentes de manterem uma parcela de suas rendas em ativos líquidos30
.
Portanto, a realização de investimentos que geram elevação da renda é que resultarão
em elevação da poupança agregada (como parcela da renda que não foi utilizada para
consumo).
É preciso frisar, então, o papel crucial que as expectativas apresentam sobre as
decisões de investimento e, portanto, sobre os ciclos econômicos. Conforme Keynes
(1996, p.63), a quantidade de mão-de-obra que os empresários decidem empregar
depende da demanda efetiva (o montante que se espera que a comunidade consuma e o
montante que se espera que seja gasto em novos investimentos). Assim, uma queda de
salários ou uma elevação do nível de desemprego pode deprimir as perspectivas de
lucro pela queda da demanda, provocando uma queda de investimentos e da renda
agregada que culminará com uma queda na poupança.
Ao tratar sobre os ciclos econômicos, Keynes afirma que as fases de recessão
ocorrem de maneira repentina e violenta, enquanto que a recuperação para fases
ascendentes é mais lenta. As crises, segundo keynes (1996, p.295), estão geralmente
relacionadas a momentos de elevação da taxa de juros – devido a uma maior demanda
por moeda, seja pelo motivo especulação ou precaução. Os últimos movimentos de
ascensão antes de crises são marcados por otimismo em relação aos rendimentos futuros
que compensem a elevação dos custos de produção, da abundância de capital e da
provável elevação das taxas de juros. Esse otimismo em demasia é marcado mais pela
perspectiva de como o mercado avalia o ambiente de negócios do que pela
racionalidade de estimativas de rendimentos futuros dos bens de capital.
O boom é uma situação em que o excesso de otimismo triunfa sobre
uma taxa de juros que, julgada a sangue-frio, seria considerada alta
demais (KEYNES, 1996, p.300).
A reversão das expectativas provoca uma paralisação abrupta na taxa de
investimento refletindo o colapso da eficiência marginal do capital e a fuga para
liquidez. Esse fato torna a taxa de juros monetária a mais elevada do sistema, o que
agrava o nível de investimento e reforça o pessimismo do mercado. O aumento do
desemprego, a queda de salários reais e a debilidade da demanda efetiva colaboram para
exacerbação das incertezas, elevando a preferência pela liquidez. Seguindo a lei
30
A propensão marginal a consumir (e a poupar) depende, segundo Keynes (1996, p.62), de fatores
psicológicos da comunidade. “A psicologia da comunidade é tal que, quando a renda real agregada
aumenta, o consumo de agregado também aumenta, porém não tanto quanto a renda”.
66
psicológica dos agentes, que apresenta uma tendência de grupo, a crise é agravada pelo
fato do único ativo que gera segurança não ser produzido privadamente, não empregar
mão de obra e, assim, não colaborar para melhorar as expectativas em relação à
demanda.
A desilusão chega porque, de repente, surgem dúvidas quanto à
confiança que se pode ter no rendimento esperado, talvez porque o
rendimento atual dê sinais de baixa à medida que os estoques de bens
duráveis produzidos recentemente aumentem regularmente. Se se crê
que os custos correntes de produção são mais elevados do que poderão
vir a ser futuramente, esta será mais uma razão para a baixa da
eficiência marginal do capital. Uma vez surgida, a dúvida propaga-se
rapidamente (KEYNES, 1996, p.296).
A recuperação do crescimento econômico é algo complexo que dificilmente
seria observada como um resultado de política monetária. Apesar de contribuir para a
retomada de investimentos, a estratégia de reduzir a taxa nominal de juros não seria
suficiente para reverter o colapso da eficiência marginal do capital, já que não consegue,
por si só, afetar as expectativas dos agentes em relação à lucratividade dos
investimentos.
Se a redução da taxa de juros constituísse por si mesma um remédio
efetivo, a recuperação poderia ser conseguida num lapso de tempo
relativamente curto, e por meios mais ou menos diretamente sob
controle da autoridade monetária. Isso, porém, não costuma acontecer,
não sendo fácil reanimar a eficiência marginal do capital, tal como a
determina a psicologia caprichosa e indisciplinada do mundo dos
negócios. É a volta da confiança, para empregar a linguagem comum,
que se afigura tão difícil de controlar numa economia de capitalismo
individualista (KEYNES, 1996, p.295-296).
O sistema capitalista de livre-mercado é, então, inerentemente instável.
Compreendendo a lógica da teoria monetária de produção exposta por Keynes, fica
imanente o papel crucial que o Estado deve desempenhar para evitar a queda do nível de
investimento e do consumo. É importante ressaltar, também, que os momentos de boom,
quando há uma percepção de sobreinvestimento, raramente coincidem com o pleno
emprego (geralmente não há escassez de mão de obra) ou com um excesso de capital.
Ademais, uma solução via aumento das taxas de juros para evitar esse
sobreinvestimento especulativo também deprimiria investimentos razoáveis, sendo, nas
palavras de Keynes (1996, p.301) um “antídoto (…) pertence à categoria dos remédios
que curam a doença matando o paciente”. Seria preferível a realização de investimentos
67
mal orientados (e até mesmo especulativos) do que a não realização de qualquer
investimento, pois algum efeito sobre a demanda ainda poderia ser esperado.
Portanto, em condições de laissez-faire, talvez seja impossível evitar
grandes flutuações no emprego sem uma profunda mudança na
psicologia do mercado de investimentos, mudança essa que não há
razão para esperar que ocorra. Em conclusão, acho que não se pode,
com segurança, abandonar à iniciativa privada o cuidado de regular o
volume corrente de investimento (KEYNES, 1996, p.298).
Assim, Keynes atenta para a importância que o investimento e o nível de
consumo apresentam sobre a dinâmica do capitalismo. O nível da demanda efetiva é um
fator crucial para as movimentações cíclicas da economia, cabendo ao governo
amenizar essa variação. Nesse sentido, pode-se advogar em favor da melhor distribuição
da renda na economia, dado que as classes mais ricas tendem a uma menor propensão
marginal ao consumo.
Embora procurando conseguir um fluxo de investimento controlado
socialmente com vista à baixa progressiva da eficiência marginal do
capital, estou disposto a apoiar, ao mesmo tempo, toda sorte de
medidas para aumentar a propensão a consumir. Como é improvável
que o pleno emprego possa ser mantido com a propensão a consumir
existente, façamos o que fizemos com relação ao investimento. Há
condições, portanto, para que ambas as políticas funcionem juntas;
promover o investimento e ao mesmo tempo o consumo, não apenas
até o nível que corresponderia ao acréscimo do investimento com a
propensão a consumir existente, mas também a um nível ainda maior
(KEYNES, 1996, p.302).
O investimento estatal seria, de certo modo, complementar à iniciativa privada,
podendo aumentar sua participação em momentos de crise quando a eficiência marginal
do capital decai e as incertezas se amplificam. Keynes atribui grande relevância à
“socialização do investimento”, por considerar esta variável importante demais para ser
deixada sob responsabilidade apenas do setor privado. Ao manter o nível de emprego e
de demanda agregada em virtude do investimento estatal, o governo criaria um
ambiente favorável às expectativas do setor privado e à retomada do crescimento,
minimizando os impactos negativos sobre a sociedade em momentos de recessão.
O Estado deverá exercer uma influência orientadora sobre a propensão
a consumir, em parte através de seu sistema de tributação, em parte
por meio da fixação da taxa de juros e, em parte, talvez, recorrendo a
outras medidas. Por outro lado, parece improvável que a influência da
política bancária sobre a taxa de juros seja suficiente por si mesma
para determinar um volume de investimento ótimo. Eu entendo,
portanto, que uma socialização algo ampla dos investimentos será o
único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego,
68
embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e fórmulas
de toda a espécie que permitam ao Estado cooperar com a iniciativa
privada (KEYNES, 1996, p.345).
2.1.2. O investimento e os ciclos econômicos em Kalecki
Kalecki, em sua obra Teoria da Dinâmica Econômica31
(TDE), também aborda
a importância crucial da variável investimento para o crescimento econômico. Mesmo
partindo de pontos diferentes, o autor chega a conclusões semelhantes às de Keynes,
enfatizando as variações da demanda efetiva como grande causa dos ciclos econômicos.
Kalecki parte das assimetrias de poder dentro do sistema capitalista, demonstrando que
o crescimento econômico depende de decisões da classe empresarial, que tem o poder
de decidir de que forma alocar seus recursos. A classe assalariada é vista como passiva,
já que responde apenas pela variável “consumo”.
Kalecki (1977) utiliza um esquema de reprodução marxista, fazendo algumas
simplificações, para explicar a lógica do sistema capitalista. De forma geral, a economia
parte de três setores: o departamento de produção de bens de capital (D1); o
departamento de produção de bens de consumo para os capitalistas (D2); e o
departamento de produção de bens de consumo para os trabalhadores (D3).
Partindo de outras simplificações, de que os trabalhadores não poupam, de uma
economia fechada e sem considerar os gastos do governo, Kalecki demonstra que os
capitalistas de D3 vendem para os trabalhadores desse departamento uma produção
correspondente aos salários pagos a esses trabalhadores (W3), que pagaria os custos
para a produção. A venda para os trabalhadores dos outros dois departamentos (que
corresponde aos salários W1 e W2) é o lucro dos capitalistas de D3. O lucro total dessa
economia simplificada é a soma do lucro dos capitalistas de D1, D2 e os salários pagos
aos trabalhadores desses dois departamentos (W1 e W2). Claramente a produção de D3
dependerá da produção de D1 e D2, que por sua vez dependem do consumo e do
investimento dos capitalistas. Conforme Kalecki (1977, p.65), então:
Equação 1: Lucros Brutos = Investimento Bruto + Consumo dos Capitalistas
Essa equação explicita que os lucros dependem das decisões de gastos do
capitalista que, por sua vez, dependem de decisões que foram tomadas no passado. Caso
os capitalistas não poupassem e alocassem sempre a mesma proporção da renda entre
31
Obra original publicada em 1954, utilizamos a edição de 1977 da coleção Os Economistas, Editora
Nova Cultura.
69
consumo e investimento, os lucros permaneceriam constantes e não seria necessário
interpretar qual seria a variável de influência na equação 1. Contudo, Kalecki (1977,
p.66) adverte:
Apesar de os lucros do período anterior serem um dos determinantes
importantes do consumo e do investimento dos capitalistas, os
capitalistas em geral não decidem consumir e investir num dado
período precisamente o que ganharam no anterior. Isso explica por
que os lucros não permanecem estacionários, mas flutuam com o
tempo.
A poupança privada nesse modelo consiste na parcela da renda dos capitalistas
que não é gasta com investimento ou consumo. Assim como em Keynes, a taxa de juros
não é o fator de equilíbrio entre poupança e investimento. Nas palavras de Kalecki
(1977, p.70), “o investimento, uma vez realizado, automaticamente fornece poupança
necessária para financiá-lo”. Esse fato implica que, não interessa o nível da taxa de
juros, o investimento cria uma poupança de igual valor.
Para Kalecki (1977, p.93) a taxa de juros de curto prazo é determinada pela
relação dos bancos com o público (valor de transações na economia e a oferta monetária
dos bancos). Já a taxa de juros de longo prazo depende de previsões do comportamento
das taxas de curto prazo, que dependem das experiências passadas e da estimativa de
risco quanto à depreciação de ativos. Da equação 1 pode-se tirar que:
Equação 2: Lucros Bruto – Consumo dos Capitalistas = Investimento Bruto
Equação 3: Poupança Bruta dos Capitalistas = Investimento Bruto
No caso em que se considera o governo e as relações internacionais, a
poupança será igual ao investimento mais o déficit orçamentário e o saldo da balança
comercial. Dessa forma, mantendo-se as outras variáveis constantes, um déficit do
orçamento do governo ou um superávit na balança comercial permitem elevar os lucros
acima do limite que seria observado apenas pelo investimento privado e o consumo dos
capitalistas. No caso do déficit orçamentário do governo, o setor privado estaria
recebendo mais com os gastos do governo do que pagando em impostos. Já os
superávits comerciais com o exterior implica que os capitalistas domésticos estão
conquistando mercados em outros países, aumentando lucros à custa dos capitalistas
desses outros países.
A ligação entre os lucros “externos” e o imperialismo é óbvia. A luta
pela divisão dos mercados externos existentes e a expansão dos
impérios coloniais, que propicia novas oportunidades para a
exportação de capital ligada à exportação de bens, pode ser vista como
um esforço para se obter um saldo positivo na balança comercial, a
70
fonte clássica de lucros “externos”. Os armamentos e as guerras, em
geral financiados pelos déficits orçamentários, são também uma fonte
dessa espécie de lucros (KALECKI, 1977, p.72).
Cabe enfatizar, então, que para Kalecki as decisões de gastos dos capitalistas
são fatores fundamentais para o crescimento da renda na economia. O consumo dos
capitalistas é influenciado por um componente autônomo e um componente
proporcional ao lucro passado. O investimento depende de decisões ainda mais antigas,
num fator cumulativo, que ao gerarem lucros criam a oportunidade de novos
investimentos. Assim, os lucros seguem o investimento com um hiato temporal,
dependendo do investimento corrente e do investimento passado. Outra importante
afirmação de Kalecki é que um aumento no investimento provoca um aumento mais do
que proporcional na renda bruta, pois tem um efeito multiplicador sobre o consumo dos
capitalistas e sobre o consumo dos trabalhadores.
Já a poupança possui uma relevância microeconômica importante na visão
teórica de Kalecki. A poupança bruta das empresas (o lucro líquido não distribuído) são
recursos disponíveis para investimentos sem a necessidade de se recorrer ao mercado de
capitais, fazendo com que essas variáveis possuam uma relação direta. Os capitalistas
tenderiam a não deixar recursos ociosos, o que contribuiria para converter essa
poupança em investimentos. Ademais, a poupança aumenta o capital próprio da
empresa, facilitando o acesso ao mercado de capitais. Quanto maior o patrimônio
líquido da empresa, menor o risco percebido pelo mercado financeiro à tomada de
novos empréstimos.
Segundo Kalecki (1977), o risco é um fator determinante da eficiência
marginal do capital, e quanto maior o investimento realizado pela empresa, maior é o
volume de capital desprendido pelo capitalista às incertezas de retorno. Esse é o
“princípio do risco crescente”, pelo qual Kalecki (1977) explica a existência de um
limite para o investimento privado. As decisões de investimento de um empresário
dependem, então, de sua acumulação de capital no passado e da forma como a
rentabilidade marginal do capital varia (que pode ocorrer por mudanças tecnológicos,
pela percepção de endividamento da empresa ou pelas condições de concorrência no
mercado). Em um sentido parecido ao de Keynes, Kalecki (1944) afirma que tanto a
redução da taxa de juros quanto os benefícios fiscais concedidos ao setor privado podem
não ser eficientes para instigar empresários a alavancar investimentos se não houver
perspectivas de demanda:
71
Se a depressão é forte, eles podem ter uma visão pessimista do
futuro, e a redução da taxa de juro ou do imposto de renda pode
então, por um longo período, não exercer qualquer influência
sobre o investimento e, portanto, sobre o nível de produção e de
emprego (KALECKI, 1944, p.6).
Resumidamente, o investimento seria afetado positivamente pela poupança
interna das firmas e pela taxa de elevação da lucratividade, e negativamente pela taxa de
elevação do volume de capital fixo. Se o investimento em capital fixo se igualar a
depreciação, então o sistema será estático – as flutuações cíclicas ocorrem em torno de
uma média constante. Outro fator importante que contribui negativamente para o
desenvolvimento econômico de longo prazo é a poupança externa às firmas, que implica
na parcela da poupança que é destinada às rendas financeiras. Conforme Kalecki (1977,
p.185) “se a poupança externa aumentar com relação ao capital, a tendência negativa se
acelerará”. Contudo, as inovações tecnológicas afetam a dinâmica de crescimento
econômico de longo prazo, tendendo a aumentar a lucratividade do capital e criando
uma tendência para que os investimentos se mantenham acima do nível de depreciação.
A tendência de longo prazo do crescimento econômico dependerá, então, do resultado
líquido entre poupança externa às firmas e as inovações tecnológicas.
Kalecki (1977) discute a possibilidade da fonte de desenvolvimento econômico
como consequência do crescimento populacional. Segundo o autor, esse fato ampliaria
as potencialidades de crescimento econômico pelo efeito do aumento da mão-de-obra
disponível e pelo possível aumento da demanda agregada. Contudo, um aumento
populacional não acompanhado de crescimento dos investimentos acarreta em aumento
do desemprego e queda de salários, deprimido a demanda agregada. Teoricamente, uma
queda dos salários poderia reduzir os preços e, mantendo-se o nível de produção
constante, reduzir-se-ia o volume de dinheiro dos negócios, tendendo a reduzir a taxa de
juros. Hipoteticamente, esse fator poderia impactar positivamente os investimentos e os
lucros, o que contribuiria para aumentar a produção.
Essa dinâmica é contestada por Kalecki (1977), que afirma que o efeito de uma
queda das taxas de juros sobre o investimento é incerta a longo prazo. Além disso, o
efeito sobre o desemprego é maior, fazendo com que qualquer efeito ascendente sobre o
crescimento via redução da taxa de juros desapareça. A expectativa de elevação da
demanda pelo aumento populacional também é colocada em xeque, já que, segundo
Kalecki (1977, p.187), o que importa para esse contexto é a elevação do poder
aquisitivo. “Uma elevação do número de miseráveis não amplia o mercado”. Cabe
72
salientar, então, o efeito da distribuição de renda na dinâmica de crescimento
econômico.
Assim, pode-se destacar, na análise de Kalecki, a importância dos “fatores de
distribuição” e do grau de monopólio do sistema produtivo para a determinação da
renda na economia. Caso haja um aumento do grau de monopólio, a parcela dos lucros
na renda bruta aumentará. Contudo, esse efeito ocorreria com uma queda do produto – e
dos salários reais – não implicando em aumento dos lucros brutos – que são fortemente
impactados por decisões passadas. Ao longo do ciclo econômico a margem de lucro
varia menos do que os investimentos, já que o poder de monopólio e os estoques
permitem que os capitalistas ajustem a produção e o investimento sem reduzir suas
margens de lucro. Já as decisões de investimento podem variar de forma significativa
pelo efeito de encadeamento com o emprego e o consumo. Nesse sentido, uma
economia com uma distribuição de renda mais equitativa, com baixo nível de
desemprego, terá um maior efeito multiplicador do investimento desencadeado pela
demanda efetiva.
2.1.3. A política fiscal em Keynes
Essa seção discorre especificamente acerca das recomendações de Keynes para
a condução da política econômica, na qual a política fiscal ganha grande destaque. Dada
a dinâmica inerentemente instável das economias capitalistas, Keynes atribui ao Estado
a responsabilidade de amenizar as flutuações cíclicas do produto e do emprego.
Conforme Carvalho (1999), a política fiscal para Keynes deve ser ativa, ou seja, o
Estado deve atuar deliberadamente para influenciar a demanda e evitar recessões.
A teoria econômica de John Maynard Keynes propõe uma deliberada
atuação estatal no intento de prevenir a ocorrência dos ciclos
econômicos inerentes à dinâmica de economias monetárias de
produção (FERRARI FILHO & TERRA, 2010, p.1).
Keynes infere que um dos grandes problemas do capitalismo é a concentração
excessiva de renda. Já que as classes mais ricas da sociedade utilizam apenas pequena
parcela de sua renda para o consumo, a demanda agregada permanece fraca,
desestimulando a produção de bens de consumo e, indiretamente, a de bens de capital
(CARVALHO, 2008). O outro grande problema do capitalismo, então, “era sua
incapacidade de gerar continuamente o nível de demanda agregada capaz de alcançar,
73
ou, mais adequadamente, de sustentar o pleno emprego e a plena utilização da
capacidade produtiva existente” (CARVALHO, 2008, p.10).
Nesse sentido, Tcherneva (2008) afirma que para se compreender as
recomendações de política econômica de Keynes, é preciso ter em mente que uma de
suas grandes preocupações era com o nível de emprego. Tcherneva (2008) argumenta
que para Keynes não bastariam políticas de incentivo à demanda agregada se estas não
forem capazes de elevar o nível de emprego. Tcherneva (2008) assevera que,
diferentemente de algumas interpretações da teoria de Keynes, as ações fiscais não
poderiam ser tidas como importantes apenas em momentos de recessão com a finalidade
de se reduzir o hiato do produto. Na realidade, Keynes buscava evitar momentos de
recessões, mantendo estável o nível de investimento e de emprego na economia no
longo prazo.
The main task should be to prevent large fluctuations by a stable long-
term programme. If this is successful it should not be too difficult to
offset small fluctuations by expediting or retarding some item in this
long-term programme” (KEYNES, CWJMK, 27, p.322).
Tcherneva (2008) ressalta as diferenças entre os conceitos teóricos da
“demanda efetiva” e da “demanda agregada”, que segundo ele, resultam em
recomendações de políticas econômicas divergentes. Para Keynes, a curva da demanda
agregada é uma curva na qual as expectativas sobre os “gastos futuros esperados”
validam as decisões dos empresários em produzir e empregar no período corrente.
Assim, aumentar os gastos correntes pode afetar ou não as expectativas dos empresários
em relação ao consumo futuro, ou seja, não garante qualquer resultado sobre a demanda
efetiva32
.
Keynes wanted to stabilize investment, but he also did not believe that
stabilizing private investment could do the job. Boosting aggregate
demand to encourage private investment had serious limitations,
which were well understood by his contemporaries (see, for example,
Kaldor [1938] and Kalecki [1945]), limitations which could easily be
overcome by public investment (TCHERNEVA, 2008, p.5).
The theory of effective demand is a theory about the factors that
determine investment in a monetary production economy, while the
theory of aggregate demand is a theory of boosting the various
components of current expenditure (private or public) to secure some
numerical measure of potential output (TCHERNEVA, 2008, p.6).
32
Esse ponto também está no centro da discussão que Kalecki realiza em seu texto “Aspectos Políticos do
Pleno Emprego”, de 1944.
74
Conforme já explicitado na seção 2.1.1 e 2.1.2, tanto Kalecki quanto Keynes
atribuem grande importância a variável “investimento” para a dinâmica capitalista. Não
obstante, políticas de incentivo ao consumo privado também são relevantes, o que
justifica uma política tributária que apresenta a finalidade de distribuir renda e, assim,
aumentar o poder de compra da parcela da população com maior propensão marginal a
consumir. Nas palavras de Carvalho (1999, p.273), “a política fiscal também
contribuiria para aumentar a demanda através de medidas redistributivas que
aqueceriam o consumo”. Na visão de Keynes, uma política de tributar heranças, por
exemplo, claramente contribuiria para elevar a propensão a consumir da sociedade
(FERRARI FILHO & TERRA, 2010). Contudo, as mudanças sobre essa propensão a
consumir só iriam afetar o nível de investimentos de forma indireta e, portanto, não
garantem a elevação do nível de investimento e emprego33
.
O ponto crucial, então, é incentivar a demanda que apresenta elevada
elasticidade com o emprego. Tcherneva (2008) afirma que a promoção de emprego
público seria um importante mecanismo para se alcançar o pleno emprego na teoria de
Keynes, mesmo em períodos expansionistas. Para lidar com o desemprego estrutural, o
governo deveria redirecionar a oferta de empregos públicos para setores com o maior
número de desempregados. Assim, seria muito difícil fixar um ponto em que a demanda
efetiva coincida com o pleno emprego, e seria necessário ajustes constantes do governo
para manter esse nível de pleno emprego, principalmente se o setor privado estiver
operando com uma baixa capacidade ociosa. Isso implica que, quanto mais próximo do
pleno emprego, mais difícil é alcançá-lo. Mas ao contrário das teorias ortodoxas, que
preveem uma taxa natural de desemprego que evitará pressões inflacionárias, para
Keynes esse conceito não existe, e é papel do Estado manter o esforço de promover o
pleno emprego via política fiscal ativa. Nas palavras de Carvalho (2008, p.12):
O desemprego que preocupava Keynes não era o concebido por
economistas como Lucas, para quem ele nada mais representa que
uma antecipação para o presente do lazer que os trabalhadores
estariam usufruindo no futuro. Os desempregados de Lucas (e de
Milton Friedman) abandonam os seus empregos porque preferem o
lazer. Os desempregados de Keynes são demitidos pelos
empregadores e para enfatizar este aspecto, Keynes denominou o
fenômeno de desemprego involuntário.
33
Carvalho (1999, p.272) ressalta que uma política de gastos pode afetar diretamente a demanda por
ativos reais de capital se aumentar os preços de demanda – quando o maior nível de demanda agregada
iria melhorar a perspectiva de risco de todos os investidores – ou se melhorar a posição de liquidez dos
que têm dívidas – o que é denominado “efeito Minsky”.
75
Uma das recomendações inovadoras de Keynes à administração pública,
abordada em seus Collected Writings (CWJMK), é a gestão de dois orçamentos: o
corrente (para funções ordinárias do governo) e o de capital (para despesas
discricionárias do governo) (CARVALHO, 1999). Nas palavras de Ferrari Filho e Terra
(2010, p. 4 e 5):
O orçamento corrente diz respeito ao fundo de recursos necessários à
manutenção dos serviços básicos fornecidos pelo Estado à população
sob sua guarda, tais como saúde pública, educação, infra-estrutura
urbana, defesa nacional, segurança pública e previdência social.
Embora, como aponta Kregel (1985)34
, Keynes acreditasse na
importância destes gastos correntes, mormente as transferências da
previdência social, como estabilizadores automáticos dos ciclos
econômicos, o orçamento corrente deveria ser sempre superavitário,
no limite equilibrado, ou seja, com saldo nulo (p.4).
(…) o orçamento de capital, é aquele em que se discriminam as
despesas públicas referentes a investimentos produtivos levados a
cabo pelo Estado para a manutenção da estabilidade no sistema
econômico. Estes investimentos devem ser realizados por órgãos
públicos ou semi-públicos, desde que com objetivos claros de
regulação do ciclo econômico e não com fins escusos de
engrandecimento particular, político ou partidário (p.5).
O orçamento de capital, então, poderia ser deficitário, financiado pelos
superávits do orçamento corrente. Esse fato implica que o Estado evitaria tomar
empréstimos no mercado financeiro (considerado por Keynes uma “dívida de peso
morto”), e buscaria recursos em atividades “produtivas ou semiprodutivas” (FERRARI
FILHO & TERRA, 2010). Caso necessário recorrer ao mercado financeiro (como em
momentos de recessão), o governo deveria colocar no mercado papéis de curto prazo –
ou para recolher recursos ociosos mantidos pelo público em reservas líquidas ou
trocando por reservas monetárias dos bancos – que, segundo Carvalho (2008), teriam
impacto reduzido sobre as taxas de juros. Nesse sentido, Carvalho (2008) afirma que,
seguindo a visão de Keynes, nas fases de recessão o governo deveria evitar o aumento
de impostos ou políticas que resultem na elevação das taxas de juros, para que o efeito
da expansão fiscal acarrete em um maior efeito multiplicador nas fases recessivas.
Carvalho (1999, p.273) salienta que, como poderia haver um longo período
entre a decisão do governo investir e a efetivação desse gasto, o governo deveria manter
34
KREGEL, J. Budget deficits, stabilisation policy and liquidity preference: Keynes’s Post-War policy
proposals. In: VICARELLI, F. (ed.). Keynes’s Relevance Today. London: Macmillan, p. 28-50, 1985.
76
“planos reserva de investimentos” sempre prontos a serem executados em momentos
que a economia dê sinais de desaquecimento. Carvalho (1999) afirma, ainda, que
Keynes estaria ciente das dificuldades técnicas de se colocar em prática um projeto de
investimento de forma ágil, mas que este seria um importante fator para sustentar a
demanda agregada antes que o pessimismo abarque o setor privado.
O orçamento de capital poderia ser deficitário, porém, o déficit em si
não é um instrumento, mas sim um resultado dependente do
comportamento das receitas de impostos, sendo estas função da
velocidade com a qual a sociedade reage ao estímulo representado
pelo incremento dado pelo governo aos investimentos. Em princípio, é
o gasto, não o déficit, o que realmente importa. Uma iniciativa bem-
sucedida convenceria os agentes privados de que o nível de renda
agregada seria sustentado, reduzindo suas incertezas e induzindo-os a
executar os investimentos planejados por eles mesmos. Um plano
absolutamente bem-sucedido poderia, de fato, nunca vir a ser
implementado! Ademais, se implementado, geraria receita suficiente
para se financiar sem gerar déficits. O déficit seria apenas um último
recurso (CARVALHO, 1999, p.274).
Ademais, cabe uma breve observação em relação à política monetária. Keynes
defendia a ideia de uma política monetária “comedida”, na qual as taxas de juros
nominais seguem um padrão convencional, compreendido pela sociedade, e devem
gravitar em torno dessa taxa esperada. Assim, Keynes afirma que o governo deve buscar
taxas de juros baixas e estáveis, para que o público perceba esse nível como sendo o
“normal”.
Para Keynes, a taxa normal não tem, logicamente, nenhuma relação
com a taxa “natural” ou com qualquer outro conceito desse tipo. O
conceito de normalidade é subjetivo e está relacionado com as
experiências dos indivíduos. Divergência de opinião sobre o que é
normal para as taxas de juros é um elemento essencial da teoria da
preferência pela liquidez de Keynes
(...)
(…) uma política monetária de estabilização do emprego deveria
informar ao público que a taxa normal está baixa e assim permanecerá
no futuro. De outro modo, quando houvesse necessidade de captar
recursos a custos baixos, as autoridades monetárias poderiam
encontrar dificuldades para manter as taxas atuais baixas, porque o
público anteciparia seu aumento ao nível esperado como sendo
normal, isto é, taxas baixas não seriam consideradas normais, mas
desvios de um patamar normalmente mais elevado (CARVALHO,
1999, p.275).
Com o que foi exposto ao longo das três partes da seção 2.1, pode-se
vislumbrar uma acepção teórica que compreende a dinâmica capitalista como
“instável”, e que cabe ao Estado intervir, por meio da política fiscal, para manter os
níveis de investimento e emprego na sociedade. Conforme salientado, isso não implica
77
que o governo deve se submeter a déficits recorrentes, mas sim, utilizar um “orçamento
de capital” para estabilizar os níveis de investimento e buscar o pleno emprego. O efeito
multiplicador do investimento sobre a economia, ao manter os níveis de emprego e de
demanda elevados, contribuiria para elevar as receitas tributárias do governo, o que
facilitaria o manejo da política fiscal ante a pequenas flutuações cíclicas.
Os déficits fiscais, porém, não são “condenáveis” e podem ser simplesmente
uma consequência do agravamento de recessões, quando as expectativas do setor
privado se deterioram. Nesse sentido, é preferível incorrer em déficits do governo do
que permitir estagnação econômica e elevados níveis de desemprego por um longo
período.
Déficits públicos seriam, de fato, a solução de default quanto tudo o
mais tivesse falhado. Déficits fiscais só emergiriam em valor
significativo se o gasto público por si falhasse em expandir o nível de
atividades, como no caso de uma economia em depressão, por
exemplo. Nessas circunstâncias, o déficit poderia resultar da
combinação de um amplo programa de gasto público com um
multiplicador relativamente reduzido (que pode ocorrer se os agentes
privados estão assolados por tal incerteza sobre o futuro que não se
animam sequer a gastar a proporção normal de sua renda acrescida
pelo gasto público). Um gasto público elevado, com baixo
multiplicador e baixa sensibilidade das receitas de impostos a
variações da renda agregada (se, por exemplo, uma expansão dos
gastos for acoplada a uma redução de impostos) poderia conduzir a
um déficit público mais amplo. Este não seria um instrumento
“normal” de política fiscal, contudo, mas o resultado do uso dessa
política em condições especialmente adversas (CARVALHO, 2008,
p.17).
Para complementar uma visão teórica que coloca a manutenção do pleno
emprego como tarefa primordial das políticas macroeconômicas, cabe uma breve
análise da Modern Money Theory, na próxima seção. Posteriormente caberão algumas
notas críticas à essa visão teórica, mas que não invalidam a extração de alguns insights
importantes.
2.2. A Visão da Modern Money Theory (MMT)
Segundo a Modern Money Theory (MMT), as principais dificuldades
orçamentárias que qualquer país enfrenta são, na realidade, colocadas pelos próprios
governos que seguem a visão ortodoxa de “finanças saudáveis”. Busca-se, nesta seção,
abordar os principais insights da MMT, porém problematizando algumas simplificações
78
teóricas feitas por essa linha de pensamento. Ao discorrer sobre a visão da MMT,
baseia-se primordialmente nas ideias de Randal Wray (1998, 2014), o principal
expoente desta linha de pensamento. A MMT tem como base teórica as Finanças
Funcionais de Abba Lerner (1943) e a noção cartalista da moeda de Knapp (1924).
Ambas as teorias colocam em xeque a visão convencional e hegemônica acerca da
condução das políticas macroeconômicas. Em vista disso, propõem-se levantar as
principais críticas da MMT à visão ortodoxa de “finanças saudáveis”, defendida pelo
Novo Consenso Macroeconômico (NCM). A MMT aponta importantes insights que
permitem compreender a necessidade de um regime fiscal mais flexível, que permite
espaço para a atuação estratégica do governo, com a principal finalidade de manter o
pleno emprego.
2.2.1. Aspectos Gerais da MMT
A MMT parte da teoria cartalista da moeda, segundo a qual o Estado tem a
prerrogativa de emitir a moeda e, por meio da cobrança de tributos denominados nessa
moeda, impor sua demanda à sociedade. A moeda fiduciária é vista como uma “carta”
que representa para o público a capacidade de cumprir encargos com o Estado. Para
circular na sociedade, o próprio Estado deve emitir e trocar essas notas por bens e
serviços através de gastos com setores privados. Ao utilizar essas notas, tanto para
realizar pagamentos quanto para receber tributos, os governos acabam impondo a
circulação desses “símbolos” (papel-moeda) com suas funções de moeda. A sociedade
passa a aceitar esses “pedaços de papel” como meios de troca, unidade de conta e
reserva de valor.
Isso implica que a moeda não possui um valor intrínseco pelas suas
características físicas, e sim um valor extrínseco dado pelas relações da sociedade com o
Estado. A percepção da origem da moeda fiduciária confere a necessidade da ação fiscal
como a prerrogativa para se atribuir valor e demanda por moeda. Em vista disso, o
Estado não apresenta as mesmas restrições orçamentárias de outros agentes, já que deve
realizar gastos antes de realizar a arrecadação. Assim, a ordem cronológica da criação
da moeda apresenta uma interpretação importante: os déficits do governo são tidos
como a situação normal, e o valor da moeda é dado pela sua capacidade de cumprir
obrigações com o Estado (mormente o pagamento de impostos). Este é o ponto de
partida para compreender a teoria da moeda estatal, que resultará em uma visão oposta à
defendida pela ortodoxia do NCM.
79
Destarte, a relação do Estado com os bancos privados é de extrema importância
e traz implicações teóricas relevantes para a MMT. O governo, ao aceitar depósitos
bancários como pagamentos de tributos, acaba conferindo aos bancos a capacidade de
emitir uma moeda “acessória” (a “moeda bancária”). A população utiliza, então,
depósitos bancários (conta corrente) como meios de pagamentos, sem que seja
necessária a conversão em papel-moeda, o que é validado pelo Estado.
Knapp argues that banknotes do not derive their value from the
reserves (whether gold or government fiat money) held for conversion,
but rather from their use in the “private pay community” and “public
pay community”; this, in turn, is a function of “acceptation” at the
bank and public pay offices. Within the “private pay community” (or
“giro”), bank money is the primary money used in payments;
however, payments in the “public pay community” require state
money. This can include bank money, but note that generally, delivery
of bank money to the state is not final, or definitive, because the state
will present it to banks for “redemption” (for valuta reserves). Bank
money, when used in the public pay community is not “definitive”
unless the state also uses it in its own purchases.
What can make banknotes state money? “Banknotes are not
automatically money of the state, but they become so as soon as the
State announces that it will receive them in epicentric payments
[payments to the state]” (Knapp [1924] 1973, p. 135)35
. If the state
accepts notes in payment to the state, then the banknotes become
“accessory” and the business of the bank is enhanced, “for now
everybody is glad to take its bank-notes since all inhabitants of the
State have occasion to make epicentric payments (e.g. for taxes)”
(Ibid., 137). The banknotes then become “valuta” money if the state
takes the next step and makes “apocentric payments [payments by the
State] in banknotes” (Ibid., 138). However, states often required that
banks make their notes convertible to state-issued money: “one of the
measures by means of which the State assures a superior position to
the money which it issues itself” (Ibid., 140), and thus maintained
banknotes in the role of accessory money (rather than allowing them
to become valuta money). If the state accepts banknotes in payment,
but does not make payments in these banknotes, then the notes will be
redeemed – leading to a drain of “reserves” (indeed, governments
and central banks used redemption or threat of redemption to
“discipline” banks) (WRAY, 2014, p.7).
Isto implica que a oferta de moeda é endógena, não controlável pelo
governo36
. As reservas que os bancos mantêm para fazer frente à demanda por moeda
do público podem variar e, portanto, o multiplicador monetário varia sem que o Banco
35
KNAPP, G.F., [1924]1973. “The State Theory of Money,” Clifton, NY: Augustus M. Kelley.
36 Assim, a MMT segue a tradição “horizontalista” de moeda endógena. Contudo, Wray (1998) afirma
que a oferta de moeda fiduciária (fiat money) é verticalmente determinada pelo governo pela política
fiscal – pela relação do Estado com o público.
80
Central consiga controlá-lo automaticamente. Conforme a MMT, a variável de controle
do Estado são as taxas de juros de curto prazo do mercado interbancário (overnight) que
são ajustadas pela compra ou venda de títulos públicos para drenar ou suprir desajustes
das reservas bancárias. Dessa forma, a política de open market e a dívida pública não
seriam utilizadas para financiar déficits do governo e sim, seriam parte da política
monetária, tendo a finalidade de controlar taxas de juros de curto prazo.
While the state defines money, it does not control the quantity. The
state is able to control its initial emission of currency, but this is
through fiscal policy rather than through monetary policy. That is, the
quantity of currency created is determined by purchases of the state
(including goods, services and assets purchased by the Treasury and
the central bank); much of this currency will then be removed from
circulation as taxes are paid. The rest ends up in desired hoards, or
flows to banks to be accumulated as bank reserves. Monetary policy
then drains excess reserves, removing them from member bank
accounts, and replacing them with bonds voluntarily purchased
(WRAY, 2014, p.18).
Essa noção acerca da moeda e da política monetária resulta na visão de Lerner
(1943) sobre as finanças funcionais. Conforme Wray (2014, p.22) “because the state
spends by emitting its own liability, it does not need tax revenue or the proceeds from
borrowing in order to spend”. O primeiro princípio das finanças funcionais de Lerner,
então, é que o governo só deveria aumentar impostos se constatasse que a renda da
sociedade estivesse muito elevada, ameaçando a inflação. Nesse sentido, a tributação
funcionaria para retirar poder de compra do público e “manter o valor da moeda”. O
segundo princípio é que o Estado só deveria vender títulos se fosse desejável que o
público possuísse menor quantidade de moeda (WRAY, 2014).
(…) the important point here is that Lerner argued that government
finance should be functional, that is, formulated with a view to
accomplishing the government’s goals, including full employment and
low inflation. He opposed this to the notion of sound finance, which is
the view that the government’s budget should be set to “balance” tax
revenues against spending. Few supporters of sound finance argue for
a continuously balanced national government budget. They accept
deficits in recession but typically argue that these should be largely
offset by surpluses in expansions. Some allow for deficits so long as
these are undertaken for “investment” type purposes (this would be
analogous to a private firm’s separation of its current account from
its capital account, with its current account in balance but a deficit
allowed on its capital account). Lerner insisted that all versions of
sound finance should not be applied to the national government that
issues its own currency. Government should never raise taxes to
reduce its budget deficit, but rather should increase taxes only if
inflation threatens. And, in line with the second principle, government
should never sell bonds (what most economists call “borrowing”)
81
simply because it finds itself with a budget deficit. Rather, bonds
should be sold only if there is downward pressure on interest rates,
pushing them below the central bank’s target rate (WRAY, 2014,
p.22-23).
2.2.2. Os objetivos da política macroeconômica e a política fiscal na MMT
Após explicitar a lógica da economia monetária para MMT, é preciso destacar
os seus dois grandes objetivos de políticas macroeconômicas: manter o pleno emprego e
manter a estabilidade de preços. Como será observado, esses dois objetivos estão
interligados, e apresentam estreita relação com um regime fiscal flexível. Nas palavras
de Wray (1998, p.122), “stable prices and truly full employment are possible and,
indeed, are complements”. Deve-se salientar, portanto, que os déficits fiscais não são
considerados um problema para essa vertente.
(…) it is necessary to admit that our proposed policy could lead to an
increase of government spending; indeed, a persistent government
deficit could result. However, it should be clear (…) that we do not
view this result with horror - as would many economists. Some
'liberal' economists and policymakers would be willing to accept more
government spending and larger deficits if these could achieve full
employment without causing accelerating inflation - even while they
believe that bigger government and larger deficits necessarily
negatively affect the private economy, they would be willing to accept
this 'trade-off if full employment could be achieved. Others would
reject this argument, arguing that the negative impacts of larger
deficits outweigh any benefits of full employment. Our line of
argument is different. We take the position that there is nothing
inherently wrong with big deficits - these do not necessarily cause
'crowding out', they do not 'burden' future generations, and they
cannot lead to 'financial ruin' of the government (WRAY, 1998,
p.123).
Dado que o governo não teria, então, limites orçamentários aos seus gastos, a
MMT propõe que o Estado deve executar a função de “empregador de última instância”
(ELR37
). Este seria o ponto central de políticas recomendadas pela MMT, que
contribuiria também para a manutenção da estabilidade de preços (ao contrário do que
indica a Curva de Phillips com a relação direta entre nível de emprego e inflação).
A proposta seria a criação de um “banco de empregos”, no qual todas as
pessoas que estão procurando trabalho e não encontram no setor privado poderiam se
cadastrar. O Estado faria, então, a alocação de cada indivíduo a um emprego adequado
dependendo de suas qualificações. As pessoas empregadas no ELR receberiam um
37
A sigla se refere ao termo em inglês “Employer of Last Resort”.
82
salário-base (mínimo), que seria menor do que um salário pago pelo setor privado.
Contudo, essas pessoas receberiam treinamento e qualificação para estarem aptas a
entrar no mercado de trabalho privado. Essa política serviria como uma “rede de
proteção” aos desempregados que estivessem dispostos a conseguir um emprego, tendo,
portanto, uma preocupação social38
(WRAY, 1998).
Segundo a MMT, os empresários não precisariam se preocupar com uma perda
de poder de barganha por um possível fortalecimento de sindicatos (devido à redução do
desemprego). Na realidade, com o ELR os empresários teriam a possibilidade de
substituir um funcionário ineficiente por um do ELR, que criaria uma espécie de
“exército industrial reserva” de alta qualificação. Assim, essa medida vincularia um
aumento da produtividade (capacitando a mão de obra) com impactos sociais positivos
(pela oferta de oportunidades às pessoas de baixa renda). Ademais, o ELR executaria
uma função de estabilizador automático, já que manteria o pleno emprego (e
consequentemente, a demanda) em momentos de instabilidade econômica, amenizando
a tendência de queda dos investimentos privados. Ao manter a demanda em momentos
de crise econômica, o Estado estaria suavizando os impactos do ciclo, proporcionando
ao setor privado melhores perspectivas de lucro e menores incertezas.
Conforme Wray (1998), uma das formas do governo manter a estabilidade de
preços seria utilizar um insumo base para a produção como uma âncora nominal,
mantendo seu preço fixo. Dessa forma, os outros preços da economia tenderiam a tomar
o preço desse insumo como referência, fazendo com que a inflação permaneça
estabilizada. Wray (1998) propõe que o emprego funcione como este insumo
estratégico, já que toda a produção da economia depende das relações de trabalho. Isso
implica que o Estado, ao fixar exogenamente o “preço marginal do trabalho”, estaria
contribuindo para controlar os preços da economia e evitar pressões inflacionárias.
With a fixed price, the government's BPSW39
is perfectly stable and
sets a benchmark price for labour. However, low-wage jobs which pay
at or below the BPSW before the ELR is implemented will experience
a one-time increase of wages (or will disappear altogether).
Employers will then be forced to cover these higher costs through a
combination of higher product prices, greater labour productivity and
38
Cabe enfatizar que o ELR não pretende solucionar todos os problemas relacionados ao emprego, dado
que este se relaciona com outros problemas sociais (desigualdades no acesso à educação de qualidade, por
exemplo)
39 Sigla para o termo “basic public sector wage” (BPSW), referente ao salário base para o emprego do
programa do ELR.
83
lower realized profits. Thus some product prices should also
experience a one-time jump as the ELR programme is implemented. If
the BPSW is set at the statutory minimum wage, and if this minimum
wage had universal coverage before ELR, then low-wage private
sector jobs will experience only minimal impacts - private wages need
rise only sufficiently to make private sector employment preferable to
BPSE40
. In short, at the low end of the wage scale, implementation of
ELR might cause wages and the prices of products produced by these
workers to experience a one-time increase. However, this one-time
jump - no matter how large it is - is not inflation nor can it be
accelerating inflation as these terms are normally defined by
economists (since inflation is defined as a continuously rising price
level) (WRAY, 1998, p.131).
Outra importante observação da MMT é de que as políticas macroeconômicas
devem ser analisadas pela sua efetividade em alcançar seus objetivos. Assim, as metas
de políticas econômicas devem ter claros objetivos de longo prazo para que não se
confundam com os meios que, no curto prazo, apenas auxiliam o alcance de tais fins.
Essa observação, a priori óbvia, levanta importantes críticas à visão ortodoxa que
frequentemente coloca as regras macroeconômicas como um fim em si mesmas.
A avaliação deve se dar, então, pelo impacto geral que uma ferramenta de
política econômica pode ter sobre outras variáveis e como ela pode ser afetada pela
conjuntura econômica. Nesse sentido, regras muito rígidas, como as metas de inflação e
de superávit primário, podem ser contraproducentes se não levarem em consideração os
ciclos econômicos, por exemplo. Ao perseguir tais metas sem considerar a factibilidade
imposta pela conjuntura, os agentes políticos poderiam agravar crises econômicas e
prejudicar o alcance de objetivos de longo prazo. Para a MMT, o regime
macroeconômico deve estar alinhado como um todo, ou seja, as políticas fiscais e
monetárias devem se complementar para determinadas estratégias perseguidas pelo
Estado, como o pleno emprego e a estabilidade de preços.
A MMT afirma, também, que políticas tidas como “fiscais”, como as de open
market e colocação de títulos no mercado, são ferramentas para controlar a taxa de
juros, e não fontes de financiamento de gastos. Wray (1998) afirma, ainda, que o Estado
tem o poder de determinar preços através da política fiscal, quando interage diretamente
com o setor privado. Nesse sentido, uma política fiscal expansionista somente seria
40
Sigla para o termo “basic public sector employment” (BPSE), referente ao emprego do programa do
ELR.
84
inflacionária se a elevação de preços for sancionada pelo governo. Nas palavras de
Wray (1998, p.172):
Government spending can thus be 'inflationary' but not necessarily
due to any simple 'supply' or 'demand' effect as conventional wisdom
suggests - rather, by determining the value of the currency through its
fiscal policy. A government might not realize that it has the power to
set prices exogenously; in this case, it might pay the market-
determined price. If prices are rising, the government might believe
that it must also increase the price it pays. However, as our analysis
makes clear, government always has the alternative of refusing to
increase the price it pays, although it is a bit more difficult for
government to impose deflationary prices on the system if it accepts
bank money in payment of taxes than if it were to accept only fiat
money.
Assim, a MMT coloca que as principais restrições às políticas
macroeconômicas dos países são, na realidade, autoimpostas pelos próprios governos
que seguem a visão de “finanças saudáveis”. Conforme foi indicado, os governos não
apresentam restrições à oferta de títulos públicos ou criação de moeda, não incorrendo
em problemas para financiar déficits. Os limites a essa ação se dariam pelo lado da
demanda, ou seja, pela aceitabilidade do público aos títulos do governo ou à moeda
estatal, o que, em geral, não seria um problema. Enquanto a dívida pública estiver
denominada em moeda emitida pelo próprio Estado, o próprio nível da dívida e a sua
sustentabilidade não restringiriam a capacidade de ação estatal. Não obstante, é
importante salientar algumas críticas à visão teórica da MMT.
2.2.3. Notas Críticas à MMT
Esta seção introduz algumas críticas, partindo de uma visão pós-keynesiana, a
algumas simplificações realizadas pela MMT e que não podem ser desconsideradas.
Alguns pontos principais devem ser problematizados, como em relação: ao conflito
pleno emprego e inflação; à forma como o governo financia os gastos; às questões
envolvendo uma economia aberta em um contexto de globalização financeira; às
dificuldades políticas envolvendo as proposições da MMT. Outras questões levantadas
por autores como Paley (2014), que afirma que os pontos teóricos positivos da MMT já
eram conhecidos41
, não serão abordadas por não estarem no foco do trabalho. Lavoie
41
Nas palavras de Paley (2014, p.2): “The charge is that MMT is a mix of old and new, the old is correct
and well understood, while the new is substantially wrong. The sleight of hand is to claim the old as
MMT’s new contribution”.
85
(2011), apesar de concordar com a MMT em algumas questões (como sobre aspectos
gerais da política fiscal), critica alguns recursos retóricos e analíticos da MMT42
. Nas
palavras de Lavoie (2011, p.25)
In trying to convince economists and the public that there are no
financial constraints to expansionary fiscal policies, besides artificial
constraints erected by politicians or bureaucrats that believe in
mainstream theories and in the principles of sound finance, neo-
chartalists end up using arguments that become counter-productive.
There is nothing or very little to be gained in arguing that government
can spend by simply crediting a bank account; that government
expenditures must precede tax collection; that the creation of high
powered money requires government deficits in the long run; that
central bank advances can be assimilated to a government
expenditure; or that taxes and issues of securities do not finance
government expenditures. All these counter-intuitive claims are mostly
based on a logic that relies on the consolidation of the financial
activities of the government with the operations of the central bank,
thus modifying standard terminology. I believe that such a
consolidation leads to the avoidance of crucial steps in the analysis of
the nexus between the government activities and the clearing and
settlement system to which the central bank partakes, and hence leads
to confusion and misunderstandings.
Inflação e Pleno Emprego:
Inicia-se levantando as críticas feitas por Paley (2014) em relação à falta de
rigor teórico da MMT acerca do paradoxo inflação-emprego, tradicionalmente colocado
no debate econômico pela Curva de Phillips. Segundo Paley (2014), para anunciar
questões inovadoras que colocam o poder financeiro do governo à capacidade de buscar
o pleno emprego sem pressões inflacionárias, é necessário a estruturação clara de uma
teoria bem modelada que explicite tais pontos43
. Paley (2014) afirma que alcançar o
pleno emprego sem que ocorra pressões inflacionárias só seria possível com um
equilíbrio orçamentário do governo, contrariando as acepções da MMT em relação aos
“déficits contínuos”.
It is true an economy can reach full employment with either a budget
deficit or surplus, depending on the state of the private sector’s
investment - saving balance. However, in a static economy such as I
explicitly modeled, persistent money financed budget deficits or
surpluses would lead to inflation or deflation, absent very special and
implausible conditions about money demand
42
Não obstante, sejam contribuições novas ou não, a MMT levanta um importante debate, que permitem
extrair insights relevantes sobre a atuação estatal e a questão do déficit público.
43 Nas palavras de Paley (2014, p.10): “Whether government can use the financial powers implicit in the
budget restraint to deliver non-inflationary full employment requires a theory. MMT fails to provide that
theory (…)”
86
Contudo, Paley (2014) arrazoa que alcançar um ponto em que a demanda
agregada atinja o produto de pleno emprego, com um equilíbrio orçamentário,
implicaria em um nível de gasto mínimo do governo que não seria compatível com um
nível de carga tributária máxima suportada pelo público no longo prazo. Ademais, Paley
(2014) lembra de outros fatores que tornam essa questão ainda mais complexa, como a
balança comercial e a estabilidade financeira, nas quais poderiam sofrer efeitos
deletérios pelas taxas nominais de juros próximas a zero – que, segundo Paley (2014),
são defendidas pela MMT.
Assim, Paley (2014) afirma que não se pode desconsiderar a teoria da Curva de
Phillips, principalmente em relação à literatura keynesiana sobre economias com multi-
setores, em que choques de demanda provocados pela redução do desemprego em
alguns setores poderiam impactar os preços de outros que estão funcionando em plena
capacidade. Palley (2014, p.14) assevera que não há
(…) an economic explanation of how ELR neutralizes the inflationary
consequences of aggregate demand shocks and sector shifts of
demand in a multi-sector economy. In my view, ELR would marginally
aggravate the problem since wage spending by ELR workers would
generate multiplier effects that ripple across sectors, including those
at full employment.
Paley (2013) lembra ainda que a MMT ignora outras questões significativas
para as dinâmicas inflacionárias, como a influência das expectativas e a importância dos
mercados externos. Nesse sentido, uma desvalorização cambial poderia ter fortes
impactos no nível de preços pela importância dos importados na economia interna.
Além disso, um aumento de preços internacionais de commodities poderiam impactar os
preços de toda uma cadeia produtiva, mesmo quando esses insumos são produzidos
internamente44
. Por fim, as expectativas dos agentes podem gerar pressões inflacionárias
de forma autônoma45
, fato não discutido pela MMT.
Existem, assim, diversos fatores que podem impactar a marcação de preços que
não são necessariamente influenciados pelo “preço de um insumo base”, fazendo com
44
Como exemplo, pode-se citar a quebra da safra de milho nos EUA em 2012, que alavancou o seu preço
no mercado internacional e impactou o preço de outros alimentos, como a carne, no mercado doméstico,
já que o milho é insumo para a produção desses outros bens.
45 Esse fato também conhecido como “inflação inercial”, ocorre quando os indivíduos buscam antecipar
os processos inflacionários nos reajustes de preços para minimizar perdas reais
87
que a política da ELR não seja eficaz em controlar pressões inflacionárias. Indaga-se,
então, qual seria o real impacto social de uma âncora de salário mínimo, já que existem
outras fontes de pressões inflacionárias. Percebe-se que essa medida poderia resultar em
queda de salários reais para a população de baixa renda atendida pelo ELR, que se não
for contornada por outras políticas sociais, pode implicar em supressão de direitos a
esses trabalhadores.
A “rede de proteção” aos desempregados parece estar vinculada a uma
percepção moral de que é necessário trabalhar, não importando exatamente sob quais
condições, para se obter acesso a benefícios. Ademais, Paley (2014) adverte que poderia
ocorrer uma pressão de redução do salário mínimo pago no setor privado em
decorrência dos baixos salários do programa ELR.
The minimum wage is a critical element of fair and well functioning
labor markets. The ELR wage must be below the minimum wage to
ensure that the minimum wage is binding and that the ELR scheme
does not draw labor away from the private sector. That introduces a
political tension as to why government should employ workers at less
than the minimum wage, and that tension is likely to create pressure
to lower the minimum wage to the ELR wage. That would hurt
minimum wage workers; hurt all workers by under-cutting the
market’s wage floor; and contract private sector output by putting
minimum wage employment in competition with ELR jobs.
Políticas macroeconômicas e o financiamento do gasto do governo:
Uma questão relevante levantada por Lavoie (2011) abrange a relação entre o
Banco Central (BC) e o Tesouro, e que traz implicações sobre o financiamento dos
gastos do governo. Lavoie (2011) afirma que é um equívoco da MMT afirmar que a
política fiscal teria a prerrogativa de ofertar moeda fiduciária na economia através de
déficits.
While I would certainly agree that government deficits in a growing
environment are appropriate, as it provides the private sector with
safe assets, which can grow in line with private, presumably less safe,
assets, it is an entirely different matter that government deficits are
needed because there is a need for cash. Even if the government keeps
running balanced budgets, central bank money can be provided
whenever the central bank makes advances to the private sector
(LAVOIE, 2011, p.11).
Lavoie (2011) ressalta, com isso, que a MMT embute as operações do BC e do
Tesouro como uma única entidade, o “Estado”. Assim, as operações do BC com bancos
privados, por exemplo, entram no conceito “gastos do governo”.
88
These statements are at best misleading. They skip one fundamental
step that makes incomprehensible the (…) sentence that “government
spends first”. Any agent must have funds in a banking account. Before
being able to spend, the Treasury must somehow replenish its deposit
account at the central bank (or at private banks).
This step is often skipped because neo-chartalists prefer to
consolidate the central bank and the federal government into one
entity, the State. Now, in itself, such a consolidation is not illogical.
(...) But such an integration may not be appropriate for the purpose at
hand, as it adds to confusion to a reader who is already having a hard
time understanding the mechanics of the clearing and settlement
system, and who has been accustomed to distinguish the government
and its central bank. (LAVOIE, 2011, p.11).
Concebendo-se que a MMT consolida o BC e o Tesouro em uma única
entidade, se torna mais fácil compreender a polêmica proposição de que nem os tributos
nem os empréstimos financiam os gastos do governo, já que se poderia auferir que o
governo vende títulos do tesouro para o seu BC.
Nesse sentido, Lavoie (2011) concorda com a assertiva de que empréstimos do
BC para o governo tende a aumentar a quantidade de dinheiro em poder de bancos
comerciais (assim como ocorreria com uma compra de títulos públicos), o que
pressionaria para baixo as taxas de juros. Seguindo essa lógica, ao recolher impostos, o
governo estaria escoando saldos líquidos detidos pelos bancos para a conta do governo
no banco central. Essa perda de reservas dos bancos comerciais acarretaria em pressões
para elevação das taxas de juros de curto prazo. Contudo, Lavoie (2011) assevera ser
importante explicitar as relações entre o Tesouro e o BC, bem como manter a clareza
dos conceitos para não gerar confusões.
Já Paley (2014) afirma que é inócuo o esforço de teorizar sobre a ordem
cronológica de fatores entre gastos e arrecadação do governo – conforme feito pela
MMT para discorrer sobre as origens da moeda estatal e a importância dos déficits do
governo.
(…) government spending and taxation occur simultaneously so
creation of money via money financed deficits and destruction of
money via taxation also occur simultaneously. It is a pointless
exercise to try and determine which comes first. All that matters is
that spending, taxes, new money issue, and the monetary operations of
the central bank be properly accounted for in tracking the evolution of
the high-powered money supply.
Tanto Paley (2013, 2014) quanto Lavoie (2011) concordam com a alegação da
MMT de que o Estado tem a capacidade de cobrir quaisquer déficits se suas obrigações
89
ocorrerem em moeda própria. Assim como na MMT, os autores não concordam com
uma independência entre a condução das políticas fiscais e monetárias. Além disso,
concordam com políticas fiscais expansionistas, principalmente em fases de recessão,
agindo de forma contracíclica. Contudo, os autores criticam a forma de argumentação
da MMT (que agrupa totalmente as duas instituições na análise) e questionam as
possíveis implicações macroeconômicas de financiar quaisquer déficits com
empréstimos do BC para o governo.
A soberania monetária e o contexto internacional:
Conforme Lavoie (2011), a relação entre as transações do governo e o sistema
monetário na lógica das finanças funcionais caberia em países que possuam soberania
monetária. Nesse sentido, o conceito de “soberania monetária” deve ser melhor
examinado.
It is important to point that neo-chartalists don’t claim that their
proposals are valid everywhere at all times. They claim is that it
applies for nations with a “sovereign currency” (LAVOIE, 2011,
p.9).
A soberania monetária pode ser compreendida como uma questão doméstica,
quando o país apresenta autonomia para ofertar a sua própria moeda, na qual todos os
compromissos financeiros domésticos serão executados. Contudo, em âmbito global, a
análise deve ser mais cuidadosa.
A MMT afirma que a única restrição fiscal que um país realmente enfrenta
seria devido à necessidade de demandar serviços ou bens que não seriam ofertados em
moeda local. Mesmo aceitando esta hipótese, é perceptível que este caso de “restrição
externa” não seria uma exceção, e sim o caso mais geral, dado que a maioria dos países
precisam de moedas internacionais para realizar transações com outros países.
É perceptível que países que não têm a capacidade de emitir uma moeda com
liquidez em âmbito internacional46
, possuem uma importante restrição na dinâmica
capitalista globalizada. Uma importante constatação acerca da organização do Sistema
Financeiro Internacional (SFI), é que os países centrais que emitem “moedas
conversíveis”, o fazem em consequência de poderes geopolíticos historicamente
46
Conforme Conti, Prates e Plihon (2014, p.7), “liquidez internacional é a capacidade de um ativo de ser
trocado (...) contra um meio de pagamento aceito em âmbito internacional”, sem perda de valor, sem
custo de transação e sem perda de tempo. As moedas mais líquidas são aquelas que, nas relações
internacionais, apresentam de forma mais evidente as três características tradicionais da moeda: meio de
troca, unidade de conta e reserva de valor.
90
condicionados47
. Esse fato traz implicações tanto econômicas quanto políticas, dado que
países emergentes buscam ajustar suas políticas macroeconômicas frente à lógica do
liberalismo econômico preconizado pelo SFI48
. Conforme lembra Vergnhanini (2015,
p.14):
(…) international private capitals may impose strict market discipline
over government budget, requiring full commitment with decreasing
government deficits. If the government decides to abandon primary
surpluses targets and increases its public deficits, the market will
perceive it as a lower commitment to debt retirement and expect some
depreciation tendency of the exchange rate. Not much is needed to
cause the “flight to liquidity” movement, considering that financial
investments in peripheral countries follow a speculative logic. Any
actions that go against “market discipline” and the so called “sound
finance” will lead to self-fulfilling prophecy of currency depreciation.
Outras dificuldades políticas às proposições da MMT:
As dificuldades políticas de implementação das propostas da MMT são, assim,
outro ponto que merece destaque. Além de consequências práticas questionáveis, como
já apontadas, as restrições de ordem política podem inviabilizar as proposições da
MMT. Em relação às dificuldades políticas de se atingir o pleno emprego, cabe lembrar
Kalecki (1944, p.1):
É falsa a suposição de que um Governo manterá o pleno emprego numa
economia capitalista se ele sabe como fazê-Io. Com relação a isso é de
crucial importância a desconfiança dos grandes empresários acerca da
manutenção do pleno emprego por meio do gasto governamental.
A argumentação de Kalecki (1944) é de extrema relevância para se perceber
outras formas de restrições às ações do Estado que não são simplesmente autoimpostas,
mas são resultados de conflitos distributivos e de poder sobre as decisões na economia.
Dessa forma, mesmo que uma redução no desemprego via ação estatal colabore para
47
A vertente teórica pós-keynesiana da Hierarquia de Moedas traz importantes contribuições a esse tema
(CARNEIRO, 1999; CONTI, PRATES & PLIHON, 2014; PRATES, 2002).
48 Dentro desse contexto, deve-se ressaltar o papel proeminente das agências de classificação de risco que
conseguem influenciar a direção dos ciclos de liquidez internacional. A função dessas agências é informar
aos players internacionais sobre as condições de risco de empresas e países que, por sua vez, buscam
melhorar sua classificação para atrair investidores e obter créditos com menores custos. Ao atingir o
investment grade das maiores agências de rating (Fitch, Moody’s e Standard and Poor’s), empresas e
países se tornam aptos a receberem recursos de grandes instituições financeiras internacionais (fundos de
pensão, bancos, corretoras, etc). Conforme Prates e Farhi (2009), os acordos de Basileia II aderiram as
notas dessas três agências nas regras de determinação de riscos de bancos, o que acaba fortalecendo a
importância dessas classificações em âmbito global. É notório, também, que a institucionalidade das
políticas macroeconômicas dos países são levadas em consideração para o estabelecimento de tais notas.
91
aumentar os lucros dos empresários, esse fato poderá ser reprovado pelos próprios
empresários que perderiam poder em definir os rumos da economia.
Conforme Kalecki (1944), os homens de negócio prezam mais pelo poder
político e pela capacidade de ditar a ordem econômica do que pelos próprios lucros.
Assim, ao manter um sistema de laissez faire, o nível de emprego dependeria apenas do
nível de confiança do setor privado, mantendo as ações do Estado subordinadas às
preferências dos empresários. Em vista disso, seria necessária uma grande articulação
política para que, em um sistema capitalista, o Estado consiga manter uma política fiscal
ativa, contrariando interesses de agentes com grandes poderes econômicos (e portanto,
políticos) da sociedade.
2.3. Política Fiscal e Estratégias de Desenvolvimento
Essa seção busca apontar a importância e algumas dificuldades da
implementação de uma política econômica voltada para o desenvolvimento,
principalmente em países emergentes em um contexto de globalização. O objetivo da
seção é ilustrar a necessidade de um regime fiscal que permita a intervenção do Estado
que vise à sustentação do crescimento e o desenvolvimento de setores estratégicos. Esse
fato implicaria na condução de uma “política fiscal ativa” – seguindo as linhas de
Keynes e Kalecki – que contrariam as recomendações convencionais do NCM. Através
das estratégias de arrecadação e gastos o governo teria a capacidade de orientar o
desenvolvimento de setores estratégicos, o que permitiria a redução de vulnerabilidades
e gargalos produtivos.
Aponta-se que, dentro das restrições colocadas por regras fiscais rígidas, seria
muito difícil a execução de políticas industriais, de fomento a setores estratégicos, de
investimentos públicos ou de atuação contracíclica nas fases de recessão. As
recomendações de políticas econômicas do NCM – em que se observa uma “dominância
monetária” – coloca as estratégias de desenvolvimento em um segundo plano. Serão
expostos, brevemente, alguns exemplos de países que não seguiram a cartilha das
políticas macroeconômicas defendidas pelas escolas ortodoxas e, não obstante,
considera-se que obtiveram sucesso em obter significativas taxas de crescimento
econômico (lideradas por setores industriais dinâmicos).
Priewe (2015, p.27) discorre sobre a importância das estratégias de
desenvolvimento para mudanças estruturais ambicionadas pelos países. Segundo o
92
autor, “estratégia de desenvolvimento” é um conceito econômico que define objetivos
prioritários, explicações coerentes de como alcançar tais objetivos, identificação de
instrumentos de política econômica e observação de possíveis trade-offs e do espaço
temporal de implementação. A ausência de uma estratégia de desenvolvimento
provavelmente faria com que os policy makers mantivessem o status quo e o percurso
histórico, simplesmente focando em questões de curto prazo sem nenhuma relação com
um desenvolvimento de longo prazo.
Calcagno (2015) afirma que fortalecer a demanda doméstica – principalmente
das classes de renda mais baixas – é uma condição necessária, mas não suficiente para o
desenvolvimento econômico. Uma capacidade produtiva inadequada poderia levar a
uma restrição no balanço de pagamentos49
. Para o autor, os países emergentes que
conseguiram incorporar grande parte de suas populações dentro da classe média
observaram uma mudança estrutural importante no padrão de consumo. Contudo, para
que se observe uma expansão significativa do nível de investimentos, as firmas nesses
países precisam ter, além de uma boa perspectiva de demanda, um suporte
macroeconômico, políticas industriais, infraestrutura básica e financiamento de longo
prazo adequado.
As políticas industriais nos países em desenvolvimento da América Latina
foram deixadas de lado ao longo do período de liberalização comercial e movimentação
de capitais. Grande parte dos incentivos foi dada a setores exportadores de commodities,
com a estratégia de inserção na cadeia global de produção via vantagens comparativas
estáticas. Esses países se submeteram a maiores restrições de políticas econômicas pelas
disciplinas impostas pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e por acordos
realizados com instituições financeiras internacionais e países desenvolvidos. A
promessa de acessar novos mercados e de receber influxos de capitais estrangeiros não
parece ter compensado a manutenção da pauta produtiva desses países em setores de
baixo valor agregado e com baixo encadeamento com a indústria doméstica. Com isso,
acordos bilaterais de livre comércio ou acordos financeiros que restringem o espaço de
políticas devem ser cuidadosamente pensados em termos de custos de longo prazo ao
desenvolvimento do país. (CALCAGNO, 2015).
49
Essa restrição seria via desequilíbrio na balança comercial, já que parte da demanda doméstica
“vazaria” para os importados enquanto o aumento das exportações dependeria da expansão da demanda
doméstica de outros países.
93
Seguindo essa linha, Priewe (2015) tece algumas críticas sobre estratégias
convencionais de políticas econômicas baseadas em teorias ortodoxas. A mais famosa é
a do Consenso de Washington (CW), de 1989, que passou a ser interpretada como uma
estratégia puramente neoliberal. Conforme o autor, caso seja analisada atentamente, o
CW não era claramente em favor de uma plena liberdade comercial ou de
movimentação de capital, nem defendia claramente um Estado mínimo, mas deixava
margem para essas interpretações. Essa estratégia, que visava à superação das crises
econômicas na América Latina, tinha dentre as principais medidas: a redução do déficit
orçamentário (para níveis não inflacionários); a reorientação dos gastos governamentais
para áreas estratégicas (como educação e infraestrutura); a liberalização doméstica do
mercado financeiro para que as taxas de juros fossem determinadas pelas forças do
mercado (não implica necessariamente uma liberalização aos fluxos de capitais); a
privatização de empresas estatais (e liberalização do investimento direto estrangeiro,
incentivando a entrada de capitais); a elevação da competição da produção doméstica
(uma pressão pelo aumento da eficiência).
A ambiguidade do CW permitiu uma interpretação puramente neoliberal, que
defendia a liberalização completa dos mercados produtivos, financeiros e de trabalho,
reduzindo ao máximo as regulações burocráticas e o “tamanho do Estado”. As ações de
políticas econômicas deveriam focar apenas na estabilização da inflação em um patamar
baixo, afastando-se, então, de possíveis medidas anticíclicas ou que visassem objetivos
de crescimento econômico e elevação do nível de emprego. Utilizando um índice que
mede o grau de liberalização econômica, o Fraser Economic Freedom Index (FEFI)50
,
Priewe (2015) afirma não há evidências empíricas de que as estratégias ortodoxas
contribuem para o desenvolvimento econômico. Analisando 71 países de renda baixa e
média, a correlação entre o FEFI e o crescimento per capto do PIB não é significativo
entre o período de 1990 a 2011.
A hipótese ortodoxa de que esta fraca correlação entre liberalização e
desenvolvimento seria provocada por uma “má governança” também é rechaçada pelo
autor. Um indicador do Banco Mundial denominado Country Policy and Institutional
Assessment (CPIA), que busca medir a qualidade institucional e a “boa governança” de
50
Conforme Priewe (2015, p.29), o FEFI é composto por 50 indicadores que se referem à regulação do
mercado, proteção de direitos de propriedade, baixa inflação, livre comércio, Estado pequeno e boa
governança.
94
países, é criticada por Priewe (2015) pelo seu caráter viesado, pela sua fraca base
conceitual e pela metodologia one-size-fits-all, que não considera nenhuma
especificação qualitativa dos países. O autor destaca, ainda, que os países emergentes
com maiores taxas de crescimento não são os que apresentam melhores resultados nos
indicadores da CPIA (que, assim como o FEFI, também não correlaciona com o
crescimento per capto do PIB).
(…) the original “Washington Consensus” and even more so the
neoliberal interpretation that followed has shown that theses visions
are far too narrow, neglect important points, especially active
macroeconomic policies, have no sound theoretical base or are rooted
in abstract neoclassical thinking that does not stand up to the
challenges of reality. The successful developing countries “de facto”
do not follow this line and rank relatively poorly on the “Fraser
Economic Freedom Index”. Similar applies to the “good governance”
approach to development (…)” (PRIEWE, 2015, p.41).
Sobre as reformas neoliberais ocorridas na América Latina ao longo das
décadas de 1980 e 1990, Calcagno (2015, p.20) afirma que a abertura comercial e
financeira, a regressiva distribuição de renda e o desmantelamento do Estado afetaram
de forma perversa os setores de tradables (principalmente aqueles dependentes do
mercado doméstico) e não foi compensado pela evolução de outros setores. As perdas
tanto do lado da demanda quanto do lado da oferta criaram uma espiral negativa que
deprimiram o investimento, apesar dos influxos de capitais. Além disso, a abertura aos
movimentos de capitais apreciaram significativamente as moedas domésticas,
debilitando as exportações, gerando déficits excessivos e desencadeando graves crises
financeiras.
To be successful, structural change must be driven by the expansion of
new sectors, whereby the decline of other sectors (in relative or
absolute terms) should be the result of that expansion, and not the
other way around (CALCAGNO, 2015, p.20).
Calcagno (2015) aponta que conquistar espaços fiscais que permitam uma
ação estratégica de políticas públicas não implica necessariamente na prerrogativa de
austeridade fiscal ex-ante, mas sim melhorar a capacidade de arrecadação e orientar a
tributação de forma mais justa. O autor enfatiza a possibilidade de se elevar as receitas
públicas sem prejudicar as classes sociais de renda mais baixas. Normalmente essas
receitas crescem ao longo de períodos de desenvolvimento econômico, refletindo a
expansão da renda tributável e a redução da informalidade. Por outro lado, destaca-se a
crescente demanda por serviços sociais, investimentos públicos e transferências de
95
renda. As formas como os governos gerenciam o aumento da renda pública dependem
de características do país e de escolhas políticas.
Contudo, a economia mundial globalizada coloca alguns empecilhos à
elevação das receitas dos governos, já que diversos países competem (através de
“guerras fiscais”) pela atração de capitais estrangeiros. Nas palavras de Calcagno (2015,
p.22), essa seria uma “corrida para o fundo” (race to the botton) na cobrança de
impostos, em que os países que competem por esses capitais vão, cada vez mais,
aumentando benefícios fiscais e corroendo a capacidade de arrecadação tributária.
Ademais, a globalização financeira cria canais para que parte da renda de grandes
empresas e das pessoas mais ricas escoe para paraísos fiscais e países com tributações
insignificantes sobre lucros e dividendos. Calcagno (2015) conclui que os países em
desenvolvimento são os que mais perdem com rendas não tributáveis. Essas brechas
deixadas pela fraca regulação financeira, além de amplificar os movimentos de capitais
especulativos que impactam diretamente variáveis macroeconômicas chave de países
emergentes, contribuem para um sistema tributário regressivo que aprofunda a
concentração de renda e as desigualdades sociais.
Dessa forma, haveria um ganho potencial significativo caso uma mudança
estrutural ocorra e caso essa “corrida para o fundo” seja revertida em receitas estatais e
espaço para políticas de desenvolvimento. Esse seria um desafio que países emergentes
devem enfrentar para minimizar impactos sociais de crises e auxiliar as recuperações
econômicas. Contudo, Calcagno (2015) afirma que seria necessário grande vontade
política para colocar limites à globalização financeira e para otimizar a renda pública.
Esses são empecilhos que devem ser enfrentados e que poderia apontar para uma nova
estratégia de desenvolvimento.
Developing countries need to adapt their development strategies to
the new, less conducive, international conditions. This would not only
require applying supportive macroeconomic policies, but more
generally reinstating a developmental state and enlarging its policy
space. Public action should sustain domestic demand through incomes
policies and expand the production capacities, particularly through
public investment and industrial policies. Reorienting the financial
system and mobilizing resources to finance development policies are
challenging tasks, whose success critically depends upon the
willingness and ability to tame the globalized financial system and
strengthen governments' fiscal space. This ambitious programme
would address the roots of the “big crises” and contribute to
generating social and political support for new development strategy
(CALCAGNO, 2015, p.23).
96
Outra dificuldade colocada pela lógica global de produção é em relação à
forma como empresas transnacionais influenciam a dinâmica produtiva e limitam a
capacidade de políticas industriais eficientes por países que buscam um catching up.
Nesse sentido, Hiratuka e Sarti (2015) trazem para o centro da discussão a interação de
grandes oligopólios globais com as políticas de Estados Nacionais para compreender a
forma complexa que se dá a produção e o investimento industrial em um contexto de
globalização. É preciso compreender como se movem as estratégias de grandes
empresas transnacionais (que concentram o domínio tecnológico) para se ter a real
dimensão das dificuldades que países emergentes devem enfrentar para executar um
planejamento de desenvolvimento industrial.
Com a estratégia de desverticalização (transferindo internacionalmente etapas
produtivas) realizada por empresas estadunidenses ao longo das décadas de 1980 e
199051
, novos desafios foram inseridos aos países que buscavam avançar suas matrizes
industriais. Conforme já mencionado, os países em desenvolvimento passaram a
concorrer pela atração de investimentos estrangeiros através de baixos custos de
produção e se inseriram nas redes globais de produção em etapas com menores efeitos
de encadeamento, com menor valor agregado, concentrado em mão de obra menos
qualificada, enquanto os setores mais dinâmicos se concentravam nos países
desenvolvidos52
. Os desafios para superar atrasos estruturais (como gaps tecnológicos)
se tornam mais complexos à medida que esses oligopólios se tornam mais concentrados.
É importante ressaltar que o poder de decisão de alocação de recursos quando
concentrados em empresas transnacionais não respondem apenas a lógicas locais, mas
sim a estratégias globais dessas empresas53
.
51
Conforme Hiratuka e Sarti (2015), as empresas estadunidenses aderiram uma estratégia de
racionalização e flexibilidade para enfrentar a concorrência de empresas europeias e japonesas que
haviam se fortalecido a partir do pós-Segunda Guerra. Essa forma de gestão corporativa visava interesses
de acionistas respeitando uma lógica cada vez mais financeirizada da globalização.
52 Esse processo só foi possível a partir das “redes globais de produção”, quando há uma redução de
barreiras à exportação e às atividades manufatureiras, sendo possível incorporar apenas etapas específicas
da cadeia de valor. Antes seria necessário incorporar cadeias produtivas inteiras, com grande mobilização
de recursos, para internalizar a produção de um setor (HIRATUKA e SARTI, 2015).
53 A China foi um país que aproveitou o processo de desverticalização de grandes corporações ocorridos das décadas de 1980 e 1990 para inicialmente se inserir em etapas industriais simples, que demandava mão de obra barata e baixos custos de produção. Contudo, a forte participação estatal alavancou rapidamente processos industriais cada vez mais avançados, desencadeando um longo período de industrialização no país. O “efeito China”, com escalas de investimentos, produção, urbanização e consumo muito elevadas, desencadeou uma elevação nos preços internacionais de commodities (pelos elevados níveis de importação de insumos e
97
É preciso ter em mente a dificuldade de se desenvolver setores de elevada
capacidade tecnológica e promover ativos baseados no conhecimento frente à
concorrência e à supremacia dos países desenvolvidos. Os ativos baseados no
conhecimento podem se referir a capacidades de produção, capacidades de execução de
projetos e a capacidades de inovação, ou seja, refere-se a aspectos administrativos ou
tecnológicos. Em geral, esses ativos apresentam qualidades intangíveis, não
documentadas e de difícil replicação (ou imitação), sendo resultados de um processo de
desenvolvimento (path dependence) que confere um poder de monopólio – maiores
poderes de mercado e lucros acima da média do mercado (AMSDEN, 2009).
Chesnais (2013) afirma que o padrão e o nível dos Investimentos Diretos
Estrangeiros (IDE) observados entre as décadas de 1950 e 1970 ocorreram por fatores
historicamente condicionados e não pode se esperar que se repitam. Conforme esse
autor, os setores industriais estão, cada vez mais, se tornando intensivos em
conhecimento e requisitando a interação de diferentes áreas da ciência. O papel dos
setores de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) se tornou crucial em diversas áreas, em
que a interconectividade, a simultaneidade e a complexidade dos desenvolvimentos
tecnológicos passaram a ditar o desenvolvimento industrial. Como resultado da nova
onda de desenvolvimento tecnológico, os investimentos “tangíveis” (como os bens de
capital) estão mais interdependentes de investimentos intangíveis (P&D, educação,
interação entre instituições de pesquisas, desenvolvimento de softwares, marketing,
etc.). Esse processo coloca novas barreiras à entrada e dificulta o alcance da fronteira do
desenvolvimento industrial por “países atrasados”. Esse fato evidencia a importância da
participação estatal, já que não se pode esperar que dentro dessas condicionalidades
esses setores se desenvolvam “espontaneamente” pelo “livre mercado”.
Chesnais (2013, p.407) argumenta que por um lado, os países em processo de
industrialização devem buscar tecnologias através de alianças e cooperações com países
avançados, mesmo que isso implique certo papel de subordinação, a fim de acessar
determinados conhecimentos que seriam difíceis de desenvolver autonomamente. Por
matérias-primas) e uma redução nos preços de manufaturados (pela escala e pela redução dos custos de produção). Conforme Hiratuka e Sarti (2015, p.12), entre 1994 e 2012 “os preços de importações de bens de capital tiveram uma redução de 20%, os equipamentos de telecomunicações 30% e os computadores e semicondutores 70%”. É de extrema relevância, então, observar de que forma a inserção de um grande player internacional pode modificar a capacidade de inserção produtiva de países emergentes, como o Brasil.
98
outro lado, deve-se fazer o maior esforço possível para desenvolver internamente esses
processos, já que não se pode esperar que o capital estrangeiro crie condições para que
indústrias nacionais se tornem suas próprias concorrentes. Ademais, os investimentos
físicos e humanos, além de desenvolvimentos institucionais requeridos para um
processo de industrialização sustentável, só poderão ocorrer por esforços dos próprios
países (CHESNAIS, 2013, p.407).
Conforme Kanchoochat (2015), países que obtiveram sucesso em alcançar um
nível de industrialização avançada priorizaram as políticas industriais em detrimento de
políticas macroeconômicas convencionais. Nas palavras do autor:
Another shortcoming of the proponents of proactive State
intervention is the downplaying of macroeconomic policy in
relation to industrial upgrading. East Asia reminds us that the
stability of macroeconomy was instrumental in gearing a
country toward successful catching-up. However, it is worth
noting that for the first-tier NIEs54
, macroeconomic policies
were considered part of, and subordinated to, the overriding
goal of structural transformation and enhancing export
performance (KANCHOOCHAT, 2015, p.61).
Na realidade, as políticas macroeconômicas eram tidas como parte do
instrumental para promover o desenvolvimento. Na Coreia do Sul, por exemplo, as
políticas fiscais e monetárias eram utilizadas para sustentar um alto nível de
investimento, o que criaria um ambiente de crescimento mesmo que isso significasse
maiores níveis de inflação. Segundo o autor, ao longo dos anos 1960 e 1970 o
crescimento anual médio da renda per capita na Coreia do Sul foi de 9,5%, enquanto a
taxa de inflação média foi de 15,5%. O governo incorreu em déficits orçamentários para
financiar investimentos estatais e privados, visando setores estratégicos. O suporte fiscal
dado pelo Estado às firmas e às indústrias era maior do que o oficialmente divulgado
pelos gastos orçamentários – como, por exemplo, a “política de empréstimos” que
direcionou 57,9% dos empréstimos bancários entre 1962 e 1987 (KANCHOOCHAT,
2015, p.61).
Não cabe aqui pormenorizar os desafios de políticas industriais que devem ser
enfrentados, mas apenas ressaltar a complexidade do tema e o papel fundamental do
Estado para coordenar e direcionar o desenvolvimento de setores estratégicos e
dinâmicos, que dificilmente é vislumbrado dentro de um regime fiscal rígido. O fato a
54
Sigla refere-se às Novas Economias Industrializadas, do termo em inglês, Newly Industrializing
Economies.
99
ser ressaltado é que essas complexidades não são consideradas pelas escolas de
pensamento ortodoxas que tem influenciado mudanças macroeconômicas estruturais em
diversos países em desenvolvimento, como o Brasil. O ponto central que se coloca em
pauta, então, é a necessidade de formatar um arranjo macroeconômico que permita ao
Estado priorizar o desenvolvimento econômico, sustentando investimentos estratégicos
principalmente nas fases recessivas, quando desempenhariam um papel anticíclico
crucial.
Com isso, um regime fiscal capaz de amenizar crises econômicas e sustentar
elevados níveis de investimentos públicos convergiria para uma estratégia exitosa em
perspectivas históricas. Sem dúvida, é preciso ponderar sobre as possibilidades
permitidas pelo contexto de concorrência global comandada por grandes oligopólios
internacionais e quais possibilidades de desenvolver setores mais dinâmicos. A despeito
de tais condições microeconômicas setoriais, que não são o foco desse trabalho, é
fundamental criar condições macroeconômicas para que tais medidas se tornem
possíveis.
Considerações Finais:
Esse capítulo buscou levantar uma visão teórica que atribui ao Estado uma
função estratégica dentro da dinâmica capitalista, diferentemente do que se percebe
pelas teorias de cunho ortodoxo, como a do NCM, apresentada no capítulo 1. Ao
explicitar a característica instável do capitalismo, exposta por Keynes e Kalecki,
percebe-se a importância crucial da variável investimento para a determinação dos
ciclos econômicos. Com isso, se vislumbra uma abordagem teórica que coloca o
investimento Estatal como uma peça chave para a sustentação da demanda efetiva e de
um elevado nível de emprego. Esse fato é crucial principalmente nas fases de baixa do
ciclo econômico, quando as incertezas se acirram e os setores empresariais tendem a
preferir a segurança da liquidez ao risco do investimento. Seguindo essa lógica, o
Estado seria o principal agente capaz de manter a demanda autônoma, que teria
impactos benéficos sobre o nível de emprego e sobre as expectativas dos agentes.
Nessa perspectiva, a teoria da MMT levanta importantes insights acerca da
capacidade orçamentária do governo. Essa vertente coloca que os governos, ao terem a
prerrogativa de emitirem moeda (e dívida cunhada em moeda própria) não teriam as
mesmas restrições orçamentárias do que os agentes privados. Pelo contrário, o governo
não teria, para a MMT, quaisquer limitações aos gastos se estes forem executados em
100
moeda doméstica.
Não obstante, explicitou-se algumas críticas levantadas por autores pós-
keynesianos sobre algumas simplificações realizadas pela MMT, que não podem ser
desconsideradas. Dentre os principais pontos críticos estão: a análise simplista em
relação à inflação; a condensação das relações do BC e do Tesouro em um único
elemento (o Estado); a desconsideração da importância dos mercados comerciais e
financeiros globais sobre a dinâmica das economias emergentes; e as dificuldades
políticas movidas por disputas de interesse (de classes) dentro do sistema capitalista.
Assim, apesar de contribuir para o debate, explicitando que o governo não apresenta as
mesmas restrições orçamentárias do que os agentes privados e que os déficits públicos
não podem ser considerados “anomalias” ou “irresponsabilidades”, existem algumas
simplificações realizadas pela MMT que devem guardar maiores cuidados.
Complementando o ponto anterior, a seção 2.3 apresentou a importância de um
arranjo macroeconômico voltado para o desenvolvimento como uma estratégia a ser
perseguida por países emergentes. Após se levantar algumas dificuldades impostas pela
própria organização dos mercados globalizados, aprofunda-se à percepção da
necessidade de ação estratégica do Estado, que seria vislumbrada por um regime fiscal
flexível (que não restringisse a capacidade de investimentos públicos). Aponta-se alguns
exemplos de países que obtiveram sucesso em manter elevados níveis de crescimento (e
desenvolvimento de setores estratégicos) e que seguiram estratégias de política
econômica divergentes daquelas apregoadas pelo NCM.
Em suma, o capítulo 2 buscou contrapor a visão teórica exposta no primeiro
capítulo a partir das ideias de Keynes, Kalecki e seus interpretes contemporâneos.
Compreender os conceitos desses dois autores sobre a dinâmica capitalista é
fundamental para explicitar as fragilidades teóricas do NCM. Por fim, mostrou-se
relevante apontar insights teóricos que buscam seguir essa linha teórica, bem como
apontar a necessidade (e algumas dificuldades) de se implementar um regime fiscal que
vislumbre o desenvolvimento econômico.
101
3. O REGIME FISCAL BRASILEIRO: CONTEXTUALIZAÇÃO,
INSTITUCIONALIDADE E ANÁLISE DO ASPECTO PRÓ-CÍCLICO
Apresentação:
Como pôde ser constatado na discussão dos dois primeiros capítulos, as questões
envolvendo o arranjo fiscal são amplas e complexas, perpassando embates teóricos e
ideológicos que refletem diferentes interpretações quanto à dinâmica capitalista, à importância
de determinadas instituições e ao papel que o Estado deve desempenhar na sociedade. Dessa
forma, essas questões devem ser colocadas para a interpretação do regime fiscal brasileiro
institucionalizado após a reforma macroeconômica de 1999. Deve-se se compreender o papel da
política fiscal no Brasil em um contexto mais amplo, dentro de um arranjo macroeconômico
alicerçado pela teoria do NCM.
O objetivo desse capítulo é inserir o tema do regime fiscal de metas primárias no
Brasil no debate teórico realizado nos dois primeiros capítulos. Esse ponto é crucial para para a
defesa da hipótese de que esta formatação fiscal suscita em limitações institucionais para a
realização de políticas anticíclicas pelo governo.
Para isso, a seção 3.1 realiza uma contextualização histórica pós década de 1990,
focalizando a reforma macroeconômica realizada no Brasil após a crise cambial de 1999 quando
se introduziu o “tripé macroeconômico” – as metas de inflação, as metas fiscais e o câmbio
flutuante. Esse ponto faz referência direta ao primeiro capítulo da dissertação, fazendo-se alusão
ao viés teórico do regime macroeconômico institucionalizado no Brasil.
Já a seção 3.2 busca analisar a institucionalidade e operacionalidade do regime fiscal
no Brasil. Discute-se algumas questões colocadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF),
que oficializou o formato da gestão do orçamento público. Pretende-se demonstrar como o
regime de metas primárias condiciona a institucionalidade do planejamento fiscal. Esse
argumento é fundamental para a defesa da hipótese central do trabalho de que o regime fiscal
brasileiro é pró-cíclico e dificulta a realização de investimentos públicos.
Na seção 3.3 essa hipótese é desenvolvida por intermédio de uma análise dos
principais dados fiscais do governo central, onde pretende-se investigar a correlação das receitas
e despesas do governo com os ciclos econômicos. Essa institucionalidade é particularmente
problemática ao se observar que em períodos de queda do ciclo econômico o governo tende a
cortar os gastos discricionários (que incluem grande parte dos investimentos) para cumprir as
metas fiscais. Como esses gastos apresentam elevado efeito multiplicador ao longo desses
períodos, esses contingenciamentos reforçariam a queda da atividade econômica, contribuindo
para deprimir as receitas do governo e induzir a novos cortes de gastos, tendendo a uma espiral
recessiva na economia
102
3.1. Contextualização histórica: o tripé macroeconômico e a introdução do regime
de metas primárias
3.1.1.Notas sobre a política macroeconômica brasileira na década de 1990: uma breve
contextualização
Pode-se afirmar que, desde o início da década de 1990, o Brasil passou por
“reformas liberais”, que buscaram reduzir tanto a participação do Estado na economia
quanto as barreiras comerciais e financeiras com o exterior. O Brasil, assim como
diversos outros países da América Latina, seguia as recomendações do Consenso de
Washington e das escolas econômicas dominantes – monetaristas e novos clássicos. O
discurso teórico e político de instituições internacionais – como o FMI e o Banco
Mundial – lideradas por países hegemônicos – como a Inglaterra e os Estados Unidos –
colaboravam para disseminar e legitimar essas ideias como as mais prudentes. É
evidente, também, que essas recomendações divergiam das estratégias adotadas pelo
Brasil ao longo do seu processo de industrialização, via políticas “desenvolvimentistas”
de substituir importações. Nas palavras de Bresser-Pereira (2007, p.29-30):
O desenvolvimentismo foi o nome da estratégia nacional que os países
da América Latina, e particularmente o Brasil, adotaram entre 1930 e
1980. Nesse período (…) muitos países latino-americanos estavam
firmemente construindo suas nações, estavam afinal provendo seus
Estados formalmente independentes de sociedades nacionais dotadas
de uma solidariedade básica, quando se trata de competir
internacionalmente. Entretanto, o enfraquecimento provocado pela
grande crise dos anos 1980, combinado com a força hegemônica da
onda ideológica que teve início nos Estados Unidos nos anos 1970
(…), fizeram com que a revolução nacional dos países latino-
americanos fosse interrompida e regredisse. As elites locais deixaram
de pensar com a própria cabeça, aceitaram os conselhos e as pressões
vindas do Norte e, sem uma estratégia nacional de desenvolvimento,
esses países viram seu desenvolvimento estancar. A ortodoxia
convencional, que então substitui o nacional-desenvolvimento, não
havia sido formulada internamente, não refletia as preocupações e os
interesses nacionais, mas as visões e os objetivos dos países ricos.
Além disso, como é próprio da ideologia neoliberal, era uma proposta
que supunha a possibilidade de os mercados coordenarem tudo
automaticamente, e que propunha que o Estado deixasse de realizar o
papel econômico que sempre desempenhou nos países desenvolvidos:
o de complementar a coordenação do mercado para promover o
desenvolvimento econômico e a equidade.
Tanto os governos Collor (1990-1992), Itamar Franco (1993-1994) e Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002) seguiram um viés ortodoxo, com destaque para as
privatizações de empresas e liberalização dos mercados financeiros e comerciais. A
103
estratégia adotada para controlar o problema crônico da inflação era melhorar as
relações com o sistema financeiro internacional e abrir o mercado brasileiro para a
concorrência com os produtos importados.
O Plano Real, formulado no governo Itamar Franco, visava sanear as contas do
governo, dado que o diagnóstico da inflação era o elevado déficit público55
, para
posteriormente instituir uma nova moeda que estaria atrelada ao dólar56
. É interessante
notar que os déficits operacionais antes da implementação do Plano Real eram
relativamente baixos (em média, menos de 1% entre 1991 e 1993). Esse fato era
explicado pelo conceito de “déficits potenciais”, que implicariam uma aprovação de
recursos para o orçamento da União muito superiores aos gastos realmente realizados no
encerramento do ano fiscal (CASTRO, 2011).
A inflação ajuda de duas formas na redução do déficit orçamentário
aos valores efetivamente observados no fim do ano fiscal. Primeira, o
orçamento embute uma previsão inflacionária bem menor do que a
inflação efetivamente observada. Isso reduz o valor real das despesas
executadas, mesmo sem controle do caixa. Já as receitas, por estarem
indexadas, pouco sofrem com a inflação maior do que a orçada.
Segunda, através do controle do caixa, o Ministério da Fazenda adia a
liberação das verbas orçamentárias para o final do ano ou mesmo para
os restos a pagar no ano seguinte, desse modo fazendo com que o
valor real dessas despesas seja adicionalmente reduzido pela inflação.
Todo o processo é eventualmente legalizado por um decreto de
contingenciamento, uma lei de reprogramação orçamentária
(BACHA, 1994, p.9).
Segundo essa interpretação, a redução da inflação sem uma mudança estrutural
no orçamento iria ressaltar o problema, explicitando os déficits (que deixariam de ser
potenciais e se tornariam consolidados) e que serviriam para a volta de pressões
inflacionárias. Percebe-se que, de fato, as contas fiscais pioraram com a redução da
inflação pós-1995. Contudo, é notório também que “o ajuste fiscal proposto pelo Plano
Real, em suma, não foi eficaz e sua ausência não impediu a queda da inflação no
período” (CASTRO, 2011, p.146).
55
Através do Programa de Ação Imediata (PAI) e do Fundo Social de Emergência (FSE), o governo
buscava: reduzir gastos da União, elevar receita tributária, equacionar as dívidas dos entes federativos
com a União, controlar de forma mais rígida os bancos estaduais, avançar as privatizações e desvincular
receitas do governo federal.
56 Cabe lembrar que a instituição da nova moeda foi implementada em duas fases: a primeira com a
Unidade Real de Valor, que era apenas uma unidade de conta que captaria a inflação diária e serviria
como um “superindexador” da economia, a fim de eliminar o componente inercial da inflação.
Posteriormente, se introduziu o Real, que permaneceria ancorado ao dólar.
104
Verificou-se, com isso, que não foi a situação fiscal do governo o principal
fator para a redução da inflação brasileira. Outros fatores, como a abertura comercial e
financeira, e a sobrevalorização do câmbio, parecem ter tido maiores impactos sobre a
redução do nível de preços. O déficit operacional57
acabou se deteriorando, inclusive,
pelas despesas com juros necessárias para a manutenção da âncora cambial até 1999.
Conforme o BCB, o déficit operacional do setor público consolidado chegou a 4,57%
do PIB em 1995 e 6,75% do PIB em 199858
.
Cabe lembrar, aqui, da hipótese ortodoxa apresentada no ponto 1.1 acerca da
restrição intertemporal das ações fiscais, que parte de um pressuposto sobre o papel
limitado que o Estado deve desempenhar na economia. Ao instituir uma maior rigidez
para a condução do regime fiscal (tanto em termos de fluxo, com metas primárias,
quanto de estoque, com limites para a dívida) o Estado pressiona a sua própria
capacidade se manter solvente, elevando pressões políticas cada vez que tais indicadores
se aproximem de seus limites. Conforme a crítica levantada pela MMT na seção 2.2,
esse fato tende a prejudicar as condições de manutenção da dívida (que se for
denominada em moeda própria, não correriam o risco de se tornarem insolventes).
Assim, as rígidas regras fiscais contribuiriam para exacerbar as incertezas quanto à
capacidade de solvência do Estado. Nas palavras de Carneiro (2002, p.364):
O equilíbrio intertemporal das contas públicas é (…) um dos
sustentáculos da confiança na moeda nacional. A definição dessa
consistência, do ponto de vista corrente e patrimonial, é bastante
complexa e problemática. Antes de tudo, ela supõe uma postura acerca
do tamanho e do papel do Estado na economia, expresso, por
exemplo, no montante da carga tributária e na sua distribuição. Não
prescinde tampouco de uma definição dos gastos prioritários, ou
melhor, de uma hierarquia desses gastos.
Em contrapartida, pela óptica patrimonial, não é possível definir
abstratamente níveis de déficit e dívida ideais, porque as condições de
financiamento e rolagem podem modificar-se substancialmente ao
longo do tempo. Concretamente, o que se pode estabelecer é que a
prevalência da ordem liberal torna mais estreitos os limites para o
déficit e eleva os custos de rolagem da dívida. Em última instância,
define um padrão mais restrito para o equilíbrio fiscal.
57
O resultado operacional inclui o pagamento dos juros reais (descontando a inflação, a atualização
moentária). O resultado nominal é o conceito mais amplo, que inclui o pagamento de juros nominais. O
resultado nominal reflete a Necessidade de Financiamento do Setor Público (NFSP), sendo a diferença
entre o fluxo agregado de receitas totais e de despesas totais (incluindo contas financeiras). O resultado
primário, por sua vez, não inclui a despesas com os juros nominais (BCB, 2015).
58 Dados disponibilizados pelo Sistema de Séries Temporais do BCB, sob o código 6871.
105
É curioso notar que, se por um lado o governo demonstrava preocupação em
melhorar a situação fiscal (via aumento da carga tributária, principalmente sobre o
consumo, como o ICMS), por outro abria mão de receitas que teriam caráter
distributivo. Orair (2016) salienta que, em 1995, o governo brasileiro isentou de
Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) os dividendos distribuídos a acionistas de
empresas. Orair (2016) assevera, ainda, que se abriu a possibilidade de se abater do
Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) uma “despesa fictícia” (juros sobre o
capital próprio).
Essas isenções sobre o Imposto de Renda, que ainda permanecem vigentes59
,
contribuem para a regressividade da estrutura tributária. Ou seja, esse fato beneficiaria,
claramente, uma pequena parcela da população brasileira (a mais rica) que possui
grande parte de sua renda proveniente de dividendos, e não de salários. Conforme
discorrido no segundo capítulo, a visão keynesiana atribui grande importância à
tributação como um mecanismo de distribuição de renda, com grande relevância para
fomentar a demanda agregada.
Ademais, percebe-se que os esforços do governo para reduzir gastos primários
eram contrabalanceados com o aumento dos gastos financeiros, que apresentam baixo
efeito multiplicador – por não afetarem a demanda agregada. Esse fato implica, ainda,
que a estratégia de eliminar “déficits potenciais” não seria suficientes para a
sustentabilidade da dívida pública. Além disso, a baixa taxa de investimentos e a
relativa estagnação da economia contribuíam para a baixa arrecadação do governo.
Entre 1995 e 1998 o governo manteve, em média, um pequeno déficit primário do setor
público consolidado. Carneiro (2002, p.391-392) analisa a situação da seguinte forma:
É importante frisar (…) que o déficit que aparece após 1995 se deve,
sobretudo, à estagnação das receitas por conta da maior
informalização do mercado de trabalho e da ampliação do
desemprego.
(…) uma parcela relevante da queda do superávit primário deveu-se às
esferas subnacionais de governo. Apesar de as transferências para
estados e municípios terem crescido 0,5% do PIB entre 1994 e 1998, o
superávit primário declinou 1% no mesmo período. Além dos
aumentos das despesas por conta da perda do mecanismo da repressão
fiscal, a deterioração das finanças dessas entidades explica-se,
sobretudo, pela perda de receitas próprias em razão da guerra fiscal.
Ilustra a afirmativa o fato de as receitas totais de Imposto sobre
59
Conforme Orair (2016), dentre os países da OCDE apenas o Brasil e a Estônia isentam do IR os
dividendos distribuídos aos acionistas. Segundo o autor, a Estônia se tornou um dos países mais liberais
do mundo após o fim do domínio soviético no início da década de 1990.
106
Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS estarem estagnadas em
termos nominais, portanto declinantes em termos reais, desde 1995.
Cabe frisar que a política monetária contracionista, com elevação das taxas
reais de juros e depósitos compulsórios dos bancos comerciais, visava conter a
“explosão” de consumo, típica em momentos de rápida redução de preços em
economias com uma demanda reprimida devida a longos períodos de elevadas taxas de
inflação. Essa política serviria, também, para ancorar a taxa de câmbio em torno de um
Real por um dólar. A âncora cambial foi um dos elementos centrais da estratégia do
Plano Real.
Em estudos empíricos de Kiguel e Liviatan (1992), indicou-se que os países
com um longo histórico de inflação crônica (como ocorrido em diversos países da
América Latina) que utilizam o câmbio como âncora nominal, apresentariam um
crescimento econômico inicial (com expansão do consumo de duráveis) e,
posteriormente, tenderiam à estagnação ou à crise econômica, ficando vulneráveis às
fugas de capitais e aos ataques especulativos60
.
Esse fato estilizado foi semelhante ao que veio a ocorrer com o Brasil, que
apresentou crescimento inicial do PIB (com redução do desemprego e ganhos reais de
salários), posterior estagnação e crescimento do desemprego e, por fim, a crise cambial
em 1998. Ademais, as altas taxas reais de juros se tornaram uma marca (e como será
visto na seção 3.3, uma herança) do Plano Real. Em um contexto de abertura financeira,
os juros elevados serviam para a manutenção dos influxos de capitais ao passo que, no
mercado interno, freavam o crescimento da demanda. Nesse sentido os juros atuaram
como uma “segunda âncora” para a inflação (CASTRO, 2011).61
62
60
Nas palavras dos autores (p.4): After a small initial recessionary effect, or even with no effect of this
kind, the reduction of inflation was associated with an initial expansion of output above the historical
trend, and with a drop in unemployment. The expansionary phase could go on for a number of years
ending in a recession. It should be pointed out, however, that this pattern was characteristic of programs
which made use of exchange rate as anchor for disinflation.
61 Cabe ressaltar que outros fatores contribuíram para o sucesso do Plano Real em controlar a inflação via
estratégia de âncora cambial e liberalização dos mercados. Conforme Carneiro (2002), caso o Brasil não
houvesse acumulado grande volume de reservas internacionais ao longo dos primeiros anos da década de
1990 e caso não houvesse uma conjuntura internacional favorável (em uma “fase de cheia” do ciclo de
liquidez internacional), dificilmente o Plano Real lograria sucesso para a estabilização da inflação. Além
disso, a situação fiscal em 1994 era relativamente confortável.
62 Nas palavras de Carneiro (2002, p.363): “A dívida líquida do setor público atingiu em 1994 o valor
mais baixo da década, menos de 30% do PIB. O patamar reduzido da dívida interna deveu-se ao confisco
de ativos financeiros oriundo do Plano Collor em 1990, que a diminuiu em 1991 para cerca do 15% do
PIB. Já a dívida externa pública reduziu-se por duas razões: a bruta, por causa do deságio permitido pela
renegociação do Plano Brady; a líquida, por conta do acúmulo de reservas internacionais. Em princípio,
107
Contudo, devido à característica essencialmente especulativa dos fluxos de
capitais, a vulnerabilidade externa do Brasil crescia rapidamente63
. A exacerbação do
desequilíbrio externo do país ocorreu em 1998 quando sucedeu a reversão do ciclo de
liquidez internacional após a crise financeira russa. O Brasil já havia sofrido dois
ataques especulativos, em 1995 e em 1997, após as crises mexicana e asiática,
respectivamente. Esses fatos explicitaram o caráter instável e especulativo dos fluxos de
capitais dentro do Sistema Financeiro Internacional (SFI) globalizado. O pessimismo
dos agentes financeiros globais acarretava um “efeito manada” em busca de segurança
nos ativos denominados em moedas hierarquicamente superiores dentro do SFI e “o
instrumento clássico de combate a esses ataques – a alta da taxa de juros – não mais se
mostrava suficiente para debelar o problema, além de agravar seriamente a situação
fiscal”64
(CASTRO, 2011, p.175). Após conseguir sustentar, inicialmente, o ataque
especulativo com um acordo financeiro frente ao FMI, o governo FHC precisou montar
uma estratégia para permitir a desvalorização cambial.
3.1.2. O tripé macroeconômico, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e o novo
regime fiscal
Conforme já colocado no primeiro capítulo, as reformas institucionais de
política macroeconômica realizadas em 1999 – e que ainda seguem vigentes em 2017 –
foram fundamentadas em ideais novoclássico e novokeynesianas – o Novo Consenso
Macroeconômico. De acordo com o que foi discutido na seção 1.3, esse viés teórico
apresenta pressupostos questionáveis – como as expectativas racionais, o efeito
crowding out, a Equivalência Ricardiana e a contração fiscal expansionista – que
mantêm uma visão limitada sobre o papel que o Estado deve desempenhar na economia.
Conforme defendido pela hipótese desse trabalho, esse fato trouxe consequências
negativas sobre o comportamento da atuação estatal ao longo dos ciclos econômicos,
dificultando a manutenção de níveis desejáveis de investimentos e colocando o regime
fiscal sob uma lógica pró-cíclica.
Mantendo, então, a linha ortodoxa em seu segundo mandato, FHC implementa
nada fazia crer que a dívida pública e seu crescimento prospectivo pudessem ameaçar a confiança na nova
moeda”.
63 Esse fato remete à teoria da Hierarquia de Moedas, apontada na seção 2.2.3.
64 O aumento do diferencial de juros, ou seja, da promessa de maior rentabilidade de ativos em Reais, não
compensavam o risco de se manter ativos em uma moeda com baixa liquidez internacional.
108
o tripé macroeconômico: as metas de inflação, as metas fiscais e o câmbio flutuante. A
estratégia de inserção econômica na globalização produtiva e financeira seguiu o caráter
“liberal”, permanecendo a dependência por capitais voláteis. A política monetária, com
as metas de inflação, serviria para ancorar as expectativas dos agentes em relação à
estabilidade nominal dos preços. Conforme já explicitado no ponto 1.1, o principal
instrumento de política macroeconômica dentro dessa institucionalidade são as taxas
nominais de juros (a meta Selic), conduzidas por um Banco Central (Bacen)
independente. Seguindo essa linha, percebe-se que a tônica de aumento das taxas de
juros foi observada de imediato – a meta Selic chegou a ser fixada em 45% a.a. em
março de 199965
.
Mesmo com a desvalorização cambial, a inflação não se acelerou,
permanecendo dentro da meta em 1999 e em 200066
. Segundo Castro (2011, p.177-
178), alguns fatores contribuíram para essa situação. Destaca-se a queda da produção
industrial que “no primeiro trimestre de 1999, estava 3% abaixo do primeiro trimestre
de 1998 que, por sua vez, era 3% inferior ao primeiro trimestre de 1995”.
Paralelamente, a queda do salário mínimo real e a rigidez na política monetária
colaboraram para a queda da demanda agregada, minimizando o repasse do câmbio para
os preços finais. Isso implica que o mau desempenho econômico contribuiu para
arrefecer a taxa de inflação.
Retomando, novamente, a exposição da seção 1.2, lembra-se que a política
fiscal dentro desse aparato teórico serviria tanto para auxiliar a política monetária na
manutenção da estabilidade de preços, como para sinalizar aos agentes privados
(principalmente investidores internacionais e instituições financeiras) a disposição do
governo em sustentar os encargos da dívida pública. Recorda-se, também, que esse viés
embute um papel limitado que o Estado deve desempenhar na economia.
Carneiro (2002) salienta que entre os períodos de 1998 e 2000, a política fiscal
foi certamente restritiva, em que os superávits primários pelo aumento da carga
tributária e cortes de gastos compensavam os déficits operacionais. Orair (2016)
classifica, de uma forma geral, a história recente da política fiscal em dois períodos: o
primeiro, de 1999 a 2005, caracterizou uma fase contracionista; o segundo, de 2006 a
65
Conforme dados disponibilizado pelo Banco Central do Brasil em: <> Acessado em dezembro de 2015.
66 A inflação (IPCA) em 1999 foi de 9%, quando o centro da meta era de 8%, podendo variar entre 6 e
10%; em 2000, o IPCA ficou em 6%, exatamente o centro da meta estipulada para aquele ano.
109
2014, por um período expansionista (apesar de alguns momentos de maior restrição
fiscal, como em 2011)67
.
Segundo os economistas que influenciaram essa mudança estrutural, a
credibilidade do governo e do banco central abriria espaço para a redução da taxa básica
de juros, incentivando investimentos e deixando a responsabilidade de crescimento
econômico unicamente ao setor privado. Alude-se, dessa forma, a noção teórica da
contração fiscal expansionista, que, conforme debatido na seção 1.3, é de difícil
sustentação empírica. Não obstante ao esforço do governo, a dívida pública se acelerou
continuamente ao longo de todo governo FHC (1995-2002)68
.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000, somou-se as medidas
adotadas no início do Plano Real para institucionalizar legalmente a nova forma de
atuação estatal, tornando suas mudanças mais complexas e de caráter mais permanente.
Segundo o artigo 69 da Constituição Federal, para alterar uma Lei Complementar, como
a LRF, é necessária a aprovação absoluta nas duas casas legislativas. Além disso, a Lei
nº10.028 (Lei de Crimes Fiscais) de 2000, passou a considerar o descumprimento da
LRF como crime.
Cabe uma nota sobre o grande peso que a LRF colocou sobre os estados da
federação, com a opção do governo federal de conciliar descentralização fiscal e rígido
controle das contas públicas. Conforme Rezende (2009), a descentralização fiscal estava
prevista na Constituição de 1988 para restaurar a capacidade de planejamento dos entes
subnacionais que havia sido limitada durante a ditadura militar. Assim, as transferências
de recursos federais foram substancialmente elevadas. Essa medida visava elevar a
eficiência dos recursos públicos para suprir demandas locais. Contudo, a estratégia de
ajuste fiscal adotada pelo governo federal tornou inócua a pretensão de aprimorar a
eficiência das intervenções estaduais. Grande parte dos recursos repassados aos estados
eram de despesas vinculadas. Assim, como as transferências para aplicações livres
foram muito limitadas a autonomia das Unidades Federativas foram restringidas
dramaticamente.
Ademais, a renegociação das dívidas obrigou os estados a privatizarem
67
Essa questão será desenvolvida na seção 3.3, quando será avaliado a evolução dos principais agregados
do orçamento do governo central.
68 Conforme Carneiro (2002), após a reformulação macroeconômica de 1999, a dívida pública líquida
saltou de 45% para 50% do PIB, resultado de dois fatores principais: do impacto da desvalorização da
dívida interna (“dolarizada”) utilizada como hedge ao setor privado; e do aumento da dívida externa
contratada ante ao FMI e órgãos multilaterais para fazer frente à fuga de capitais.
110
empresas e bancos, além de cumprirem parâmetros limitados de endividamento e forte
restrição ao acesso a créditos. Conforme Lopreato (2014), as resoluções nº40/2001 e
nº43/2001 definiram que as UFs com Dívida Consolidada/Receita Corrente Líquida
maior ou igual a 2 para os estados (ou 1,2 para os municípios), eram obrigados a
atingirem essas metas em 15 anos, sendo 1/15 (6,6%) ao ano. Esse novo pacto
federativo alterou de forma drástica as relações intergovernamentais. O primeiro
objetivo dos orçamentos estaduais se tornou o pagamento dos encargos da dívida. Na
realidade, provocou-se uma centralização de poder na União ao retirar dos entes
subnacionais a autonomia financeira sob essas rígidas regras fiscais. Assim, os governos
estaduais sofreram restrições intertemporais importantes, tendo que assumir gastos e
reduzir suas dívidas. Esse fato é resumido nas palavras de Lopreato (2014, p.232) da
seguinte forma:
Primeiro, o fim das holdings nacionais eliminou as conexões das
grandes empresas federais com as congêneres estaduais, mexeu no
modelo de intervenção em importantes áreas de infraestrutura e
acabou com elementos da costura do pacto de poder. Segundo, deixou
de existir a articulação das agências de crédito federais com os bancos
estaduais, de modo que se perdeu a capacidade destas instituições
apoiarem as políticas públicas de estados e municípios. Terceiro, o
processo de descentralização repassou as políticas ligadas ao
desenvolvimento urbano e os serviços nas áreas de saúde e assistência
social às outras esferas de governo e deixou a cargo da esfera federal
as funções técnicas e financeiras. Finalmente, o novo modelo (...)
limitou a liberdade de estados e municípios terem acesso a crédito e
manipularem as próprias contas fiscais, autorizou a União a bloquear
recursos fiscais de Unidades da Federação (UFs) inadimplentes com o
pagamento das prestações à esfera federal e vetou a prática usual de o
governo federal socorrer a administração direta ou indireta de outras
esferas de governo (LRF, Art. 35).
Outro fator de extrema relevância institucionalizado pela LRF foi a forma de
organização do orçamento público e a incorporação das metas primárias. O resultado
primário é o saldo das receitas e despesas do governo sem incluir os gastos com
pagamentos de juros. Com isso, os únicos gastos que não seriam “manipuláveis” pelo
governo seriam aqueles com os juros, que implicariam em quebras contratuais com os
credores do país. Caso as metas fiscais fossem sobre os resultados nominais, os gastos
com juros entrariam no “esforço” do governo para o cumprimento da lei. Conforme o
artigo quarto da LRF:
§ 1o Integrará o projeto de lei de diretrizes orçamentárias Anexo de
Metas Fiscais, em que serão estabelecidas metas anuais, em valores
correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados
111
nominal e primário e montante da dívida pública, para o exercício a
que se referirem e para os dois seguintes.
§ 2o O Anexo conterá, ainda:
I - avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior;
II - demonstrativo das metas anuais, instruído com memória e
metodologia de cálculo que justifiquem os resultados pretendidos,
comparando-as com as fixadas nos três exercícios anteriores, e
evidenciando a consistência delas com as premissas e os objetivos da
política econômica nacional;
III - evolução do patrimônio líquido, também nos últimos três
exercícios, destacando a origem e a aplicação dos recursos obtidos
com a alienação de ativos;
Nesse sentido, percebe-se a necessidade de uma boa capacidade de previsão da
equipe econômica para antever os movimentos das principais variáveis
macroeconômicas (como a inflação, a taxa de juros, o PIB, etc.) que impactam o
cômputo fiscal do governo69
.
Nas palavras de Lopreato (2007, p.4), “o superávit primário ganhou caráter de
despesa obrigatória e as despesas discricionárias assumiram o papel de resíduo, sempre
passível de ser ajustado em nome do cumprimento da meta fiscal”. Uma das
consequências desse modo de operar a política fiscal é exatamente a segunda hipótese
dessa dissertação: a institucionalização de um regime pró-cíclico, que força o corte de
gastos com elevado efeito multiplicador em momentos de queda do ciclo econômico,
quando as receitas do governo declinam, provocando um efeito recessivo sobre a
economia70
. Dessa forma, nos termos da visão teórica da MMT (demonstrados na seção
2.2), o Estado “autoimpôs” uma restrição que tiveram consequências danosas para sua
capacidade de planejar o desenvolvimento econômico em longo prazo.
3.1.3. Governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2015)
O início do governo Lula (2003) não marcou uma mudança de rumo das
políticas macroeconômicas, como esperava boa parte de seus eleitores. Ao contrário, a
nomeação de ministros sabidamente ortodoxos para o ministério da Fazenda (Antônio
Palocci) e para a direção do Banco Central (Henrique Meirelles) seguia a estratégia de
“reduzir as incertezas” e “conquistar credibilidade” frente aos mercados. Assim, os
69
As questões envolvendo o planejamento do orçamento público, que também estão vinculados à LRF,
serão desenvolvidas na seção 3.2.
70 A institucionalidade e operacionalidade do regime fiscal delineada pela LRF será desenvolvida na
seção 3.2.
112
primeiros anos do governo Lula foram de continuidade e aprofundamento de políticas
conhecidas como liberais. Conforme Lopreato (2014, p.236):
O foco central da estratégia delineada por Antonio Palocci,
teoricamente, próxima aos defensores da ideia de “contração fiscal
expansionista”, era garantir o ajuste fiscal com a adoção de um
superavit primário de 4,25% e a realização de reformas estruturais
capazes de assegurar o equilíbrio orçamentário de longo prazo. Os
adeptos desta visão davam como certo o fato de o ajuste fiscal
permanente influenciar as expectativas dos agentes e criar as
condições para a retomada da atividade econômica.
No mesmo sentido, o governo Lula aprofundou a abertura financeiro,
extinguindo os “limites para que pessoas físicas e jurídicas convertam reais em dólar e
os remetam ao exterior” (PRATES, 2006, p.122). Além disso, o governo ampliou o
prazo para que exportadores mantivessem dólares no exterior, o que significa ampliar a
conversibilidade da conta corrente do balanço de pagamentos. Esse fato acaba
contribuindo para dispor os recursos provenientes da balança comercial à mesma lógica
dos fluxos de capitais especulativos, movidos pela expectativa de rentabilidade
financeira – diferencial de juros, variação cambial e análise de risco do mercado
financeiro (PRATES, 2006).
Com um novo ciclo de liquidez internacional, a partir de 2003, observou-se
uma grande entrada de investimentos em porta-fólio71
. O governo brasileiro aproveitou
a valorização cambial e a grande aceitabilidade de títulos denominados em Reais para
recomprar os bônus bradies. Isso significou a utilização de reservas internacionais para
reduzir de forma significativa a dívida externa. Em relação ao mercado externo, deve-se
ressaltar o papel fundamental que o crescimento econômico dos Estados Unidos e,
principalmente, da China, exerceram sobre os preços das commodities exportadas pelo
Brasil. Esse fato acarretou na melhora do saldo comercial concomitante com a
valorização cambial. Em suma, o governo Lula se beneficiou de um contexto
internacional extraordinário, o que contribuiu para o crescimento do PIB, o acúmulo de
reservas internacionais, a melhora qualitativa da composição da dívida pública e a
estabilidade do nível de preços.
71
Conforme Prates (2006), de 2003 a 2005 observou-se uma entrada mais significativa na Bolsa de
Valores, principalmente em 2005, devido à apreciação do Real e à perspectiva de valorização das ações
brasileiras. Somente a partir de 2006 os títulos de renda fixa se tornam importantes para a entrada de
investimento estrangeiro, motivados pelos incentivos tributários dados pelo governo para essa
modalidade.
113
Alguns economistas defendem que o paradigma ortodoxo para a política fiscal
foi mantido até 2006, quando o ministro Antonio Palocci deixou a pasta da Fazenda,
sendo substituído por Guido Mantega. A partir de então, teria sido aberto um espaço
para ampliação dos gastos do Governo, mesmo que o tripé macroeconômico não tenha
sido alterado. Cabe enfatizar a grande dificuldade de se modificar uma política já
institucionalizada e consolidada (inclusive de forma jurídica), e que a tentativa de
mudanças implicaria em grande resistência e desgaste político. Entende-se que o
governo Lula evitou esse desgaste, andando pelo caminho de menor resistência e
buscando espaços dentro do regime econômico vigente para expandir a participação
estatal. Conforme Lopreato (2014, p.236), o que se deve analisar não são os aspectos de
continuidade, mas sim as diferenças que foram se tornando visíveis:
O posicionamento de corte keynesiano transformou a prática do
segundo mandato e defendeu a expansão dos investimentos das
empresas públicas, a presença estatal na articulação e no financiamento
de projetos de investimento privado, o uso de incentivos fiscais e
financeiros em favor do capital privado, a definição de uma política
industrial, ao lado da maior presença dos bancos públicos na oferta de
crédito e de medidas de caráter social, como a política de defesa do
aumento do salário mínimo e de ampliação dos gastos sociais.
Dessa forma, o governo Lula passou a demonstrar alguns elementos de
descontinuidade com o viés liberal que havia dominado a estratégia de governo desde o
início da década de 1990. O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), de 2007, e a
Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP)72
, de 2008, retomaram a ideia de
planejamento do Estado para o desenvolvimento econômico. A articulação do BNDES
com setores estratégicos foi expressiva, garantindo financiamento e capacitando
empresas privadas nacionais a concorrer no mercado externo. O governo buscou,
também, meios para expandir o investimento público, e conforme Lopreato (2014,
p.239)
(...) passou a descontar da meta de superávit primário o montante dos
gastos com os investimentos – Projeto Piloto de Investimentos (PPI) –
e retirou do cálculo das Necessidades de Financiamento do Setor
Público (NFSP) os resultados da Petrobras e da Eletrobrás.
Nesse sentido, o governo Lula teria aproveitado uma conjuntura econômica
favorável para flexibilizar, em certa medida, o rígido regime macroeconômico. Percebe-
72
Conforme a CNI (2009) o PDP foi implementada através MP 428/08 e transformada na Lei 11.774/08.
114
se que o Estado passou a assumir responsabilidades mais complexas do que apenas a
estabilidade de preços – como os diversos programas bem sucedidos para reduzir as
desigualdades sociais73
. Além disso, o governo encontrou meios para manter uma
política fiscal anticíclica ao longo da crise de 2008-2009. Esse fato é de extrema
relevância, pois quebra uma tendência de um longo período em que o regime fiscal se
comportou de forma pró-cíclica, conforme será observado na seção 3.3.
O fato de que parte da dívida mobiliária interna é indexada à meta Selic faz
com que esse seja um importante mecanismo de valorização do capital financeiro. O
discurso de que a política fiscal deve prezar pela sustentabilidade da dívida pública é,
então, contraditório à elevada taxa de juros praticada no Brasil. Mesmo ajustes fiscais
que promoveram elevados superávits primários podem não ser suficientes para cobrir as
despesas com juros, implicando em aumento do déficit nominal. O fato da estrutura
tributária ser extremamente regressiva e de parte significativa do orçamento público
estar vinculado ao pagamento de juros é um forte indício de que o Regime Fiscal atua
de forma concentradora de renda, além de ser contracionista. Nas palavras de Carneiro
(2006):
Um aspecto decisivo da política fiscal na sua relação com o
crescimento refere-se ao seu caráter contracionista. A realização
sistemática de superávits primários em torno de 4,5% do PIB
representa uma esterilização de cerca de 15% dos gastos públicos. De
um lado retira-se poder de compra – via carga tributária – de
segmentos com alta propensão a consumir, de outro, transfere-se esses
recursos, sob forma de pagamento de juros, aos detentores da dívida
pública, pertencentes a segmentos sociais de menor inclinação ao
gasto em consumo que certamente transformarão essa renda recebida
em ativos financeiros.
Ressalta-se, com isso, que tanto a estrutura tributária regressiva quanto a
política de superávits primários não foram alteradas. Conforme será colocado na seção
3.3, ao longo dos 8 anos de governo Lula o superávit primário do governo central variou
entre 1,24% do PIB (em 2009) e 2,80% do PIB em 2004. Assim, não se pode afirmar
que governo negligenciou as metas para o superávit primário ou para a inflação, nem
que tenha abandonado medidas restritivas em seu arsenal de políticas macroeconômicas.
Percebe-se que, ao não modificar estruturalmente as regras de condução da política
macroeconômica, o governo se manteve, ao longo do tempo, preso a mesma lógica
73
O aumento contínuo do salário mínimo acima da inflação, o Programa Bolsa Família e o Programa
Minha Casa Minha Vida demonstram um novo viés de política com o esforço de inclusão social.
115
ortodoxa institucionalizada previamente.
No final do segundo governo Lula e início do governo Dilma, medidas
restritivas foram reforçadas para frear pressões inflacionárias. No primeiro semestre de
2011 a política fiscal foi contracionista. Esse fato é explicitado pelo aumento do
superávit primário (no acumulado de 12 meses) de 2,77% em dezembro de 2010 para
3,74% do PIB em julho de 2011.
O fato novo é que, ao conter a demanda agregada pelo lado fiscal, o governo
buscava espaço para atuação do Banco Central em reduzir de forma significativa a meta
Selic. Percebe-se que com a manutenção de Mantega na pasta da Fazenda e a
substituição Meirelles por Tombini na direção do Banco Central do Brasil (BCB) no
início do governo Dilma, tornou-se possível uma maior interação e cooperação entre a
política monetária e a fiscal, facilitando a coordenação da política macroeconômica.
Contudo, não se abandonou a percepção ortodoxa que condicionava a queda das taxas
de juros a medidas fiscais contracionistas.
Com o bom resultado fiscal do primeiro semestre, o governo divulgou um
aumento de R$10 bilhões na meta para o superávit primário de 2011, firmando o
compromisso com a sustentabilidade da dívida pública e buscando credibilidade com o
mercado. Ao longo do primeiro semestre do governo Dilma Rousseff, lançou-se mão de
medidas macroprudenciais (controle de crédito bancário) e de regulação no mercado
financeiro, para conter as pressões inflacionárias e a valorização cambial. Dessa forma,
o Estado apresentou uma alternativa importante à institucionalidade macroeconômica
vigente, que de forma simplista sobrecarregava a taxa de juros.
A introdução do Imposto sobre Operações Financeiras (com uma alíquota
máxima de 25%) sobre operações com derivativos conteve o ímpeto da especulação no
mercado futuro de câmbio (que por ser muito líquido, acaba impactando a taxa de
câmbio corrente)74
. Essa medida implicou na estabilização da variação cambial (que se
manteve acima de 2 reais por dólar) para conter os déficits em conta corrente. Cabe
frisar, com isso, que o governo acenou para medidas alternativas que se mostraram
eficientes, fugindo da concepção de “instrumento único” para a gestão da política
macroeconômica.
Essas ações do governo refletem algumas proposições teóricas levantadas após
74
Para saber mais sobre a institucionalidade e operacionalidade do regime cambial brasileiro, ver Rossi
(2012, 2016).
116
a crise de 2008, discutidas na seção 1.4 dessa dissertação. É notável que importantes
economistas do mainstream reconhecem a necessidade de se utilizar diversas
ferramentas macroeconômicas para atingir diversos objetivos. A política monetária,
então, não foi sobrecarregada para combater as pressões inflacionárias, podendo ser
mantido um ajuste gradual das taxas de juros (um aumento de 1,75 p.p. entre janeiro e
julho de 2011), na espera de que os efeitos defasados das restrições de crédito fizessem
efeito (CAGNIN et al, 2013).
A partir do segundo semestre de 2011, em vista da queda da inflação e do
agravamento da crise na Europa, o BCB passou a reduzir sistematicamente as taxas de
juros e a política fiscal atuou de forma anticíclica através de isenções fiscais. Orair
(2016) frisa que, enquanto o período de 2005 a 2010 a estratégia foi de elevar os
investimentos públicos, o período de 2011 a 2014 a expansão fiscal é marcada pelas
desonerações e incentivos tributários às empresas privadas. Conforme Cagnin et al
(2013, p.180):
A desoneração tributária de diversos setores foi o principal instrumento
utilizado nesse período, aliando os objetivos de reaquecimento
econômico ao aumento da competitividade da indústria nacional,
prejudicada, então, pela apreciação cambial e pelo acirramento da
concorrência nos mercados externo e doméstico após a crise financeira
global de 2008-2009.
A queda acentuada na taxa Selic, chegando a 7,25% em outubro de 2012,
buscou melhorar as condições de financiamento do crédito e colaborou para a queda da
dívida líquida do setor público (de 39% no início de 2011 para 35% no final de 2012).
Conforme Lopreato (2014), esse fato contrariou diversos interesses privados, pois a
rentabilidade de títulos públicos indexadas à Selic (as LFT’s) foi prejudicada. A própria
intervenção no mercado financeiro pode ser interpretada como uma confrontação a
esses mesmos interesses.
A dívida bruta do governo geral75
, que em 2006 era de 55,5% do PIB, em 2011
foi de 51,3% do PIB e em 2013 de 51,7% do PIB – mostrando-se claramente que a
tendência foi de estabilização da dívida bruta. Apenas em 2014 a dívida bruta se elevou
para 57,2% do PIB, chegando a 66,5% em 2015 e 70,7% em Setembro de 201676
.
Contudo, as desonerações fiscais não surtiram o efeito esperado sobre a
75
Governo geral abrange governos Federal, Estadual e Municipal, excluindo-se o Banco Central e as
empresas estatais.
76 Dados disponíveis no sistema de séries temporais do Banco Central do Brasil.
117
dinâmica da economia em virtude das grandes incertezas provocadas pelo cenário
internacional que arrefeceu o investimento privado. Conforme discorrido na seção 2.3, é
preciso compreender que as estratégias das grandes empresas transnacionais não são
movidas apenas pelo contexto doméstico, e o fato de matrizes em outras regiões do
mundo estarem atuando com elevada capacidade ociosa frente ao fraco desempenho
econômico de países centrais inibi a disposição de elevação de investimentos.
Em vista disso, a partir do segundo semestre de 2012 o governo passou a
intervir de forma mais direta, utilizando gastos tidos como necessários para a execução
do PAC. O Programa de Compras Governamentais, que beneficiava setores de
máquinas e equipamentos, veículos, medicamentos, dentre outros, foi um importante
mecanismo utilizado pelo governo (CAGNIN et al, 2013).
Contudo, as grandes renúncias fiscais realizadas colocaram o governo em
dificuldades para atingir a meta do superávit primário, sendo necessárias antecipações
de dividendos ao governo bem como trocas de ativos financeiros públicos e privados
entre Secretaria do Tesouro Nacional, BNDES, Caixa Econômica Federal e Fundo
Soberano do Brasil, a fim de manter contabilmente a meta – o que é conhecido como
“contabilidade criativa” (CAGNIN et al, 2013). Além disso, a grande dificuldade do
governo de executar investimentos ancorados no Orçamento Geral da União e de
alavancar o setor industrial conforme o esperado, manteve o crescimento econômico do
país em níveis baixos: 1,92% em 2012, 3,00% em 2013 e 0,50% em 2014.
Novamente, em 2014, as isenções fiscais para indústria e o baixo crescimento
econômico acabaram comprometendo a arrecadação do governo, que precisou mudar no
final do ano o cálculo do superávit primário (ampliando o limite de abatimento com
investimentos do PAC), aumentando as críticas de economistas ortodoxos sobre a
condução da economia e sobre as incertezas que essas ações do governo geravam para o
mercado. Além disso, o governo atrasou o repasse de recursos do Tesouro Nacional
para instituições financeiras que financiam despesas do governo no intuito de cumprir
artificialmente as metas fiscais – através das “pedaladas fiscais”. Apesar dessa prática
ter sido recorrente nos governos anteriores (tanto FHC quanto Lula executaram
manobras semelhantes) a conjuntura política/econômica acirrou as pressões sobre a
presidente, que passou a sofrer, ao longo de 2015, forte pressão da oposição política
para o processo de impeachment.
118
3.2. Institucionalidade e Operacionalidade do Regime Fiscal no Brasil
Com a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988, o Estado brasileiro
passou a assumir institucionalmente grandes responsabilidades sociais, colocando o
arranjo do orçamento público em uma posição estratégica importante. A reforma da
organização orçamentária prevista na CF buscou dar maior transparência e maior
independência entre os poderes da União, devolvendo ao Legislativo a capacidade de
modificar as propostas do Executivo caso fossem observadas divergências quanto aos
objetivos e à capacidade de se manter o equilíbrio fiscal. Ademais, a CF passou a prever
um ciclo de planejamento do orçamento com o intuito de explicitar ao público suas
estratégias para o desenvolvimento do país, especificando os critérios adotados para se
estimar as receitas e as prioridades de gastos. O decurso dessa organização passa pela
elaboração do Plano Plurianual (PPA), da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da
Lei Orçamentária Anual (LOA).
O Plano Plurianual (PPA) foi regulamentado em 1998 com o compromisso de
planejar, em médio prazo, os gastos do governo. Com a vigência de quatro anos, do
segundo ano de um mandato presidencial até o primeiro ano do mandato seguinte, o
PPA se torna a diretriz mais ampla para o planejamento do orçamento, que pretende
minimizar ciclos políticos e sustentar projetos de mais longo prazo. A Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO) estabelece os projetos prioritários do orçamento que devem ser
executados no ano posterior. Além disso, após a implementação da Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF), a LDO englobou a incumbência de fixar as metas
fiscais e os limites para expansão de gastos do governo. A Lei Orçamentária Anual
(LOA) é a lei que resulta da apreciação da LDO. Através da LOA, aponta-se as formas
de financiamento dos gastos do governo, estima-se as receitas e fixam-se as despesas
para o ano posterior. Assim, o governo clarifica o seu planejamento orçamentário,
conjecturando a evolução de suas receitas para fixar seus gastos. O quadro esquemático
abaixo apresenta de forma simples o ciclo orçamentário do PPA77
de 2012-2015, com
vigência do segundo ano do primeiro mandato de Dilma até o final do primeiro ano de
77
Conforme a Cartilha do Orçamento elaborada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira
(CONOF) da Câmara dos Deputados: “O projeto de PPA é encaminhado pelo Executivo ao Congresso até
31 de agosto do primeiro ano de cada governo, mas ele só começa a valer no ano seguinte”. Acesso online
em Agosto de 2016: < http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/orcamentobrasil/entenda/cartilha/cartilha.pdf >.
119
seu segundo mandato. Ao longo de cada ano são estabelecidas a LDO e a LOA78
que
regulamentam os gastos do governo para o ano seguinte.
Cabe enfatizar que esse formato de planejamento deve ser cumprido em todas
as esferas de governo (federal, estadual e municipal). Conforme o artigo 166 da
Constituição Federal de 1988, a Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e
Fiscalização (CMO), formada por senadores e deputados, é o órgão legislativo do
Congresso que avalia programas nacionais, regionais e setoriais e fiscaliza as ações
orçamentárias do poder executivo. A CMO aprecia os projetos de lei referentes à PPA, à
LDO e à LOA, além de créditos adicionais e leis de contingenciamento.
Quadro 1: Quadro esquemático do planejamento orçamentário, PPA (2012-2015)
Fonte: Elaborado pelo autor.
A execução orçamentária é realizada em três etapas: o empenho, a liquidação e
o pagamento. O empenho da despesa implica em reservar um crédito ao credor por
intermédio de um contrato ou uma nota de empenho. O poder público, após constatar o
cumprimento das obrigações legais do credor, poderá encaminhar a liquidação do
contrato. Na segunda fase da despesa, então, se verifica o desempenho do serviço
prestado (se está de acordo com as especificações contratuais da nota de empenho) e se
atesta o seu recebimento (por nota fiscal ou recibo), gerando um direito líquido ao
credor para o pagamento de contraprestação. Na terceira etapa a administração pública
quita suas obrigações com o credor através da emissão de ordem bancária de pagamento
e recolhimento de encargos retidos (DARF, GPS, DAR, GFIP)79
.
Orair (2011) distingue duas formas de se analisar a contabilidade pública: o
enfoque orçamentário e o enfoque patrimonial. O enfoque orçamentário contabiliza as
despesas e as receitas do governo de acordo com as especificações da LOA, destacando-
se as despesas empenhadas e seus respectivos créditos vigentes no orçamento, as
78
O prazo legal para a votação da LDO no Congresso Nacional é 30 de junho, enquanto a LOA deve ser
votada até 15 de dezembro de cada ano.
79 Informações disponíveis no site do Tesouro Nacional do Brasil em agosto de 2016.
LDO (2013) LOA (2013) LDO (2014) LOA (2014) LDO (2015) LOA (2015) LDO(2016) LOA (2016)
2015 2016
PPA (2012-2015)...PPA (2009-2011) PPA (2016-2019)...
1º Mandato de Dilma 2º Mandato de Dilma...
2011 2012 2013 2014
120
despesas realizadas e as dotações disponíveis. A despesa orçamentária é, então, “o fluxo
que deriva da utilização de crédito consignado no orçamento da entidade, podendo ou
não diminuir a situação fiscal patrimonial” (ORAIR, 2011, p.11).
Já o enfoque patrimonial se assenta em uma análise mais ampla das transações,
privilegiando a observação de mudanças patrimoniais entre os entes envolvidos. Com
isso, as despesas implicariam em reduções no patrimônio líquido. Essa análise se torna
especialmente relevante quando se aprecia os investimentos públicos, já que sob esse
enfoque devem ser contabilizados como aquisição de ativos não financeiros (não
modificando o patrimônio líquido) e não apenas despesas orçamentárias80
. Segundo
Orair (2011), essa análise busca modernizar as normas e as práticas contábeis de acordo
com modelos internacionais, padronizando critérios para determinação de receitas e
despesas, além da melhor apreciação patrimonial (ativos e passivos) do governo. Nesse
sentido, o enfoque patrimonial vale-se da integração da análise de fluxos e de estoques.
Percebe-se, contudo, que o enfoque orçamentário ainda prevalece nas análises contábeis
do governo brasileiro e que, crescentemente, distorções entre recursos empenhados e
executados são constatadas.
Sob o enfoque orçamentário, no final do ano (no encerramento do exercício
contábil) normalmente haverão despesas empenhadas que não foram pagas, sendo
incorporadas na conta “restos a pagar” para serem quitadas nos exercícios seguintes. Se
essas despesas se encontram no primeiro estágio da execução orçamentária (empenho),
são classificadas como “restos a pagar não processados” (RAPsNP). Caso já estiverem
sido empenhadas e liquidadas, essas despesas são categorizadas como “restos a pagar
processados” - de serviços já prestados que estariam esperando apenas a realização da
terceira etapa da execução orçamentária.81
Orair (2011) assevera que o empenho, em si, não assegura a realização do
pagamento ou da prestação do serviço, ou seja, a inclusão de despesas em RAPsNP se
torna um artifício meramente contábil, já que não representa o momento econômico de
variações patrimoniais. Na prática, esse procedimento acaba considerando os RAPsNP
como despesas liquidadas, o que distancia as apreciações sob o enfoque orçamentário
80
Sob a ótica orçamentária, os investimentos são considerados despesas orçamentárias, já que implicam
em saídas de caixa autorizadas na LOA e vinculadas a créditos orçamentários (receitas) (ORAIR, 2011).
81 O reconhecimento de “despesas de exercícios anteriores” (após o encerramento do exercício financeiro)
não se enquadra em restos a pagar, pois são empenhadas no ano corrente, mesmo que o fato gerador tenha
ocorrido em períodos passados.
121
daquelas realizadas sob o enfoque patrimonial. Essas distorções se tornam ainda mais
relevantes se as inscrições em RAPsNP não forem liquidadas no exercício orçamentário
seguinte (elas podem ser canceladas ou postergadas). De acordo com Orair (2011),
grande parte do estoque da conta restos a pagar se refere a gastos com investimento que
são empenhados na esperança (ou promessa) de serem executados futuramente, mas
podem nunca sair da etapa de planejamento.
Ao longo do exercício financeiro é possível, também, que haja a necessidade
de efetuação de gastos públicos não planejados, ou seja, não previstos pela LOA.
Nessas situações o poder executivo expede a necessidade de “créditos adicionais”
através de uma Medida Provisória (MP). Os créditos adicionais podem ser classificados
como “suplementares” (para reforçar o orçamento existente), “especiais” (alocados para
despesas que não haviam orçamento específico) e “extraordinários” (para responder a
necessidades urgentes e imprevisíveis).
Por outro lado, os “contingenciamentos” implicam na execução de MP's para
reduzir gastos que estavam planejados na LOA. Esse fato pode ocorrer por frustrações
de receitas ou elevação de gastos devido a erros na estimação na fixação do orçamento
na LOA82
. O contingenciamento pode ser uma limitação de empenho ou de pagamento,
dependendo da fase em que ocorrer: a diferença entre a dotação autorizada e o limite
disponível para empenho será o contingenciamento que ocorrerá na primeira fase da
execução orçamentária; já a “diferença entre o montante das autorizações legais para
que se efetuem pagamentos (na forma de dotações autorizadas pela LOA ou por créditos
adicionais, inclusive quando as despesas correspondentes estiverem inscritas em restos a
pagar) e o limite de pagamento” serão os contingenciamentos que ocorrem na última
fase da execução orçamentária (SENADO FEDERAL, Nota Técnica Nº127/2013, p.2).
Conforme o artigo 9º da LRF83
:
Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita
poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário
ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o
Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes
necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e
movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de
82
MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO - SECRETARIA DE
ORÇAMENTO FEDERAL, Manual Técnico de Orçamento, 2016.
83 Lei de Responsabilidade Fiscal, disponível no site do governo federal em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp101.htm> Acessado em janeiro de 2017.
122
diretrizes orçamentárias.
O capítulo 2º do artigo 9º da LRF afirma que “não serão objeto de limitação as
despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas
destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes
orçamentárias”. O capítulo 4º do referido artigo infere que o poder executivo deve demonstrar e
avaliar o cumprimento das metas fiscais de cada quadrimestre em audiência pública na CMO ou
nas instituições equivalentes para as esferas estaduais e municipais.
Conforme Tavares et al (2008), o estabelecimento de uma lei que obriga o
governo anunciar e cumprir uma meta anual de superávit primário modificou a forma
como se elabora e se executa o orçamento público, em que os contingenciamentos
passaram a ganhar importância como medidas de ajuste. O contingenciamento de gastos
possui como principal objetivo assegurar o cumprimento das metas de superávit
primário estabelecidas na LDO, sendo expedido por um Decreto de Contingenciamento
que limita a utilização de recursos que estavam previamente autorizados pela LOA. Em
consonância com o artigo 9º da LRF, as despesas contingenciáveis se referem aos gastos
discricionários ou não legalmente obrigatórios (investimentos e custeio). Quando o uso
desse mecanismo se tornou corriqueiro, os gestores do orçamento público passaram a
lidar com grandes incertezas quanto aos recursos disponíveis para realização de
investimentos, tornando-se um obstáculo para a execução de programas que visam o
desenvolvimento econômico no longo prazo. Ademais, esse fato cria incertezas também
ao setor privado que busca coordenar projetos com as diretrizes orçamentárias do
governo. Nas palavras de Rezende (2009, p.7):
A despeito de o contingenciamento ser uma medida necessária para
sustentar o ajuste fiscal, o uso renovado desse expediente e o volume
que ele tem alcançado criam grandes dificuldades para a gestão
pública. Com ele perde-se duas das principais virtudes do orçamento:
ser instrumento de um planejamento governamental inserido em uma
visão estratégica dos objetivos perseguidos pelas políticas públicas; e
fornecer orientação para decisões privadas que deveriam operar em
sintonia com o governo para potencializar o aproveitamento das
oportunidades de desenvolvimento do país.
(…) Dentre os vícios decorrentes do uso do contingenciamento,
destaca-se o encurtamento do horizonte sob o qual atuam as
organizações públicas encarregadas da gestão das políticas e
programas governamentais. Em face dele, os gestores encarregados
dessas políticas convivem com grandes incertezas com respeito à real
dimensão dos recursos com que irão contar para desempenhar suas
responsabilidades, e também quanto ao momento em que tais recursos
estarão disponíveis.
Essas incertezas afetam particularmente os investimentos, pois estes
dependem do cumprimento de exigências legais que levam tempo para
123
serem concluídas e que acabam por inviabilizar sua concretização
quando o cronograma de liberação das respectivas verbas
orçamentárias concentra essas liberações nos últimos meses do
exercício fiscal (REZENDE, 2009, p.7).
Outro fator destacado por Rezende (2009) é a crescente rigidez do orçamento
do governo que induz os ajustes fiscais pelos cortes de investimentos. Conforme o
autor, esse fato ocorre por um “efeito cremalheira”, que decorre, por um lado, das
necessidades de se elevar as receitas para cumprir as metas fiscais e, por outro, por esse
aumento ocorrer via contribuições sociais que são vinculadas constitucionalmente ao
financiamento da seguridade social. Embora o governo tenha conseguido desvincular
20% desses recursos para serem utilizados livremente, 80% de cada aumento das
contribuições sociais já teriam um destino definido, impelindo a um crescente
enrijecimento do orçamento. Outrossim, a necessidade de ajustar os gastos para cumprir
as metas fiscais provoca, nas palavras de Rezende (2009), um “efeito boomerang”. Os
contingenciamentos, os controles às liberações de recursos e as transferências de
pagamentos para os exercícios financeiros seguintes colaboram para a ineficiência da
gestão pública e dificultam a realização de maiores ajustes via corte de gastos,
demandando novos aumentos de receitas que reforçam o “efeito cremalheira”.
Os créditos adicionais e os contingenciamentos serviriam ao governo como um
sistema de ajuste à realidade fiscal corrente. Percebe-se que esses sistemas apresentam
um caráter curto-prazista, em que o cumprimento de metas temporárias (anuais) se torna
o objetivo último do governo. Dentro das amarras dessa institucionalidade o governo
criou outras alternativas para manter gastos e incentivos fiscais, como o empenho de
despesas no final do exercício contábil para serem pagas no exercício seguinte
(utilização crescente da conta “restos a pagar”), a antecipação de receitas e o atraso de
repasse de verbas para instituições financeiras públicas. Conforme já mencionado, os
mecanismos que buscam flexibilizar o regime fiscal por essas vias reduzem a
transparência da política econômica, podendo prejudicar a credibilidade do governo.
Para além das questões institucionais que contribuem para a ineficiência da
gestão orçamentária, deve-se compreender o impacto que os cortes de investimentos
públicos ocasionam no desenvolvimento econômico e, principalmente, as implicações
de se realizar esses contingenciamentos em momentos de queda das receitas do governo
– que estão correlacionadas com a queda da produção e da renda nacional. É possível
constatar que os investimentos públicos possuem um multiplicador elevado, ou seja,
124
impactam de forma positiva a renda e o crescimento econômico (REIS, 2008; MOURA,
2015; PIRES, 2009). Conforme desprendido no segundo capítulo, existem pelo menos
dois aspectos importantes para se considerar ao manter programas de investimentos
públicos: a sua capacidade de direcionar estrategicamente o desenvolvimento
econômico e a sua possibilidade de agir de forma anticíclica, sustentando o nível de
investimento ao longo de crises econômicas e acelerando a recuperação da economia.
No caso brasileiro, assevera-se a grande participação do Estado como um
propulsor do investimento industrial, que ficou caracterizado pela política de
substituição de importações que vigorou de forma intensa entre as décadas de 1950 e
1980. Contudo, a partir da década de 1990 é notória a incapacidade do governo de
impulsionar o desenvolvimento econômico. Em certa medida, esse fato se deu por uma
espécie de “restrição autoimposta” (nos termos da MMT, exposto na seção 2.2) via as
rígidas regras fiscais, que ainda acarretaram na institucionalização de um regime fiscal
pró-cíclico. À medida que as expectativas de crescimento econômico malogram, a
queda das receitas do governo impõe a redução de investimentos que tendem a agravar a
crise econômica, resultando em uma espiral recessiva na qual novos cortes de
investimentos serão necessários para contrapor novas quedas das receitas. Tendo isso
em vista, a partir de 2006 o governo brasileiro buscou meios para flexibilizar o regime
fiscal sem mudar, contudo, estruturalmente as regras e a organização do orçamento.
Pires (2009) afirma que as empresas estatais apresentam grande importância
para o crescimento da formação de capital fixo. Nesse sentido, a retirada de grandes
estatais do cálculo do superávit primário é um mecanismo importante para atenuar a
queda do nível de investimento no Brasil. Esse fato foi observado em 2009 com a
Petrobras e em 2010 com a Eletrobrás (através da Lei Nº12.377), abrindo margem para
o governo manter investimentos em setores estratégicos (de energia) e reduzir o esforço
fiscal para cumprir a meta de superávit primário. Nota-se, assim, o esforço para se criar
mecanismos de flexibilização da política fiscal. Não obstante, conforme demonstrado na
seção 3.1.3, esse fato acarretou forte desgaste ao governo pela pressão política pautada
por uma visão econômica ortodoxa que ganhou grande poder de influência ao longo da
década de 1990.
125
3.3. Desempenho do Regime de Metas Primárias e o seu Comportamento Frente
aos Ciclos Econômicos
3.3.1. Análise geral do desempenho do regime de metas primárias no Brasil
Após discorrer brevemente sobre a condução e mudanças estruturais do regime
macroeconômico ao longo da década de 1990 – alicerçada sob uma vertente ortodoxa –
e apontar as principais características da institucionalidade do regime fiscal brasileiro –
no qual as metas primárias anuais se sobressaem na organização do orçamento público –
cabe analisar o comportamento do regime fiscal de metas primárias frente aos seus
objetivos. Como a principal justificativa teórica da regra de superávit primário é a
sustentabilidade da dívida pública, busca-se analisar, brevemente, como foi esse
desempenho. Cabe enfatizar, em primeiro lugar, algumas diferenças conceituais, como
entre a Dívida Líquida e a Dívida Bruta do governo. Conforme o documento
“Austeridade e Retrocesso” (2016, p.35):
A dívida bruta é o total das dívidas do governo, principalmente os
títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional. A dívida líquida
corresponde à diferença entre a dívida bruta e os ativos que o governo
possui, como as reservas internacionais e os créditos junto às
instituições financeiras, ou seja, o dinheiro que o BNDES, o BB e a
Caixa devem ao Tesouro.
O quadro 2 apresenta os fatores condicionantes da Dívida Líquida do Setor
Público Consolidado (DLSP) de 2002 à 2016. O que se pretende apontar é a relevância
dos resultados primários para o comportamento dessa variável. Deve-se lembrar que
essa dívida é impactada pelo pagamento de juros e pela variação dos ativos (como as
reservas internacionais) e, com isso, também sofre grande influência das variações
cambiais.
A primeira observação que se pode fazer pela tabela é que a DLSP caiu de
forma significativa de 2002 (59,9% do PIB) até 2013 (30,5% do PIB). Ao longo desses
12 anos, o resultado primário do setor público apresentou uma média de 2,9% do PIB ao
ano, variando entre 3,7% (em 2004 e 2005) e 1,7% do PIB em 2013. O componente
crescimento do PIB colaborou para a redução da DLSP, em média 5% do PIB ao ano
nesse período (chegando a 8% em 2003). Já os juros nominais contribuíram para o
crescimento da DLSP em média 6% do PIB, entre 2002 e 2013. Percebe-se, com isso,
que o superávit primário e o crescimento do PIB contribuíram para a queda da DLSP,
126
mas não explicam a magnitude desse decréscimo.
Ressalta-se que a dívida externa foi reduzida de forma significativa e, em 2006,
o país se tornou “credor líquido”, devido à política de acúmulo de reservas cambiais
acima dos compromissos de curto prazo. Esse fato implica que, quando há uma pressão
para desvalorização cambial do Real, o governo brasileiro obtém ganhos patrimoniais.
Esse fato é observado na tabela em “ajuste cambial”. Enquanto em 2002 a
desvalorização cambial impactou para o crescimento da DLSP (em 9,8% do PIB), em
2008 e entre 2011 e 2015, a desvalorização cambial colaborou para a queda da DLSP.
Entre 2014 e 2016, percebe-se uma queda concomitante da contribuição do PIB
(com uma média de 1,8% ao ano, e apenas 1,2% em 2015) e dos resultados primários
(que, em média, apresentaram um déficit de 1,6% do PIB ao ano, portanto elevando a
dívida). Além disso, o pagamento de juros se elevaram de forma significativa, com uma
média de 6,7% nesses três anos. Deve-se lembrar que, em 2015, o governo realizou um
forte ajuste fiscal, apesar dos níveis da DLSP terem terminado o ano de 2014 em um
patamar relativamente baixo para os níveis históricos do país. Enquanto em 2014 a
DLSP ficou em 32,6% do PIB, a média entre 2002 e 2016 foi de 42,1% do PIB ao ano).
Nesse sentido, pode-se argumentar que haveria um espaço para a execução de políticas
fiscais anticíclicas diante da recessão que começava a se apresentar.
Quadro 2: Fatores Condicionantes da Dívida Líquida do Setor Público Consolidado, em
% PIB (2002-2016)
Fonte: BCB;
Elaborado pelo autor.
O quadro 3 apresenta os fatores condicionantes da dívida bruta do governo
geral – incluindo unidades federativas e municípios. O que é importante notar, nessa
tabela, é o elevado peso dos juros nominais para determinar o comportamento da dívida
%PIB / Ano 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
1.Dívida líquida total 59,9 54,3 50,2 47,9 46,5 44,5 37,6 40,9 38,0 34,5 32,2 30,5 32,6 35,6 45,9
1.1. variação acumulada no ano 8,4 -5,7 -4,1 -2,3 -1,4 -1,9 -7,0 3,3 -2,9 -3,5 -2,3 -1,7 2,1 3,0 10,3
2.Fatores condicionantes: 14,4 2,3 2,6 2,7 3,3 3,4 -1,4 5,8 2,9 0,7 0,9 1,4 4,4 4,2 12,0
2.1. NFSP 4,4 5,2 2,9 3,5 3,6 2,7 2,0 3,2 2,4 2,5 2,3 3,0 6,0 10,2 8,9
2.1.1. Primário -3,2 -3,2 -3,7 -3,7 -3,2 -3,2 -3,3 -1,9 -2,6 -2,9 -2,2 -1,7 0,6 1,9 2,5
2.1.2. Juros nominais 7,6 8,4 6,6 7,3 6,7 6,0 5,3 5,1 5,0 5,4 4,4 4,7 5,4 8,4 6,5
2.2. Ajuste cambial 9,8 -3,8 -0,9 -0,9 -0,3 0,8 -2,5 2,4 0,5 -1,5 -1,2 -1,8 -1,7 -6,4 3,2
2.2.1. Dívida interna indexada ao câmbio 5,1 -1,3 -0,2 -0,2 -0,1 -0,1 0,1 -0,1 0,0 -0,1 -0,1 -0,1 0,0 -0,3 0,1
2.2.2. Dívida externa - metodológico 4,7 -2,5 -0,7 -0,7 -0,2 0,9 -2,6 2,5 0,4 -1,4 -1,1 -1,7 -1,6 -6,2 3,1
2.3 Dívida externa - outros ajustes2/ 0,0 0,9 0,3 -0,1 0,1 -0,1 -0,8 0,3 0,0 -0,2 -0,1 0,3 0,2 0,4 0,0
2.4. Reconhecimento de dívidas 0,4 0,0 0,3 0,2 0,0 0,0 0,0 0,0 0,1 0,0 -0,1 0,0 -0,1 0,1 0,0
2.5. Privatizações -0,2 0,0 0,0 0,0 -0,1 0,0 0,0 -0,1 -0,1 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0
3. Efeito do crescimento do PIB sobre a dívida -6,0 -8,0 -6,6 -4,9 -4,8 -5,3 -5,6 -2,5 -5,8 -4,3 -3,1 -3,1 -2,4 -1,2 -1,7
127
bruta, compensando em quase todos os períodos o efeito do crescimento do PIB.
Apenas em 3 anos, dos 10 da série, o efeito do crescimento do PIB foi superior ao efeito
dos juros nominais (2008, 2010 e2013), momentos em que a dívida bruta se reduziu.
Isso reflete em um resultado nominal de elevado déficit, saindo de 3,0% do PIB em
2013 para 10,3% do PIB em 2015 Percebe-se, assim, que para sustentar a dívida bruta
com o elevado peso dos juros nominais, seria necessária uma média de crescimento
econômico muito elevada.
Deve-se salientar, também, que a dívida bruta é impactada pela gestão de
outros instrumentos da política macroeconômica, como a monetária e cambial. Por
exemplo, o banco central coloca títulos no mercado (com as operações
compromissadas) para enxugar liquidez e influenciar as taxas de juros de curto prazo.
Esse fato implica que, quando o governo busca acumular reservas ou fortalecer bancos
públicos, a contrapartida será a colocação de títulos no mercado para enxugar liquidez.
Esse mecanismo acaba impactando a dívida pública, apesar da contrapartida de acúmulo
de ativos pelo governo.
Por fim, o que se pretende apontar, é que o resultado primário não é o principal
fator que determina o comportamento da dívida pública brasileira. Esse argumento
divergiria da sustentação teórica das metas fiscais, que não conseguem abarcar a
complexidade dos fatores que incutiriam na sustentação da dívida pública no longo
prazo.
Quadro 3: Fatores Condicionantes da Dívida Bruta do Governo Geral, em % PIB (2007 -
2016)
Ano - %PIB 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
1. Dívida bruta do governo geral - saldo 56,7 56,0 59,2 51,8 51,3 53,7 51,5 56,3 65,5 69,5
1.1. Variação acumulada no ano 1,4 -0,7 3,2 -7,4 -0,5 2,4 -2,1 4,7 9,2 4,0
2. Fatores condicionantes: 7,6 6,4 7,0 1,0 5,3 7,1 3,1 8,7 11,3 7,2
2.2. Emissões líquidas 1,6 -1,3 2,2 -4,7 -0,9 1,6 -2,5 2,9 2,3 -0,3
2.3. Juros nominais 6,6 6,5 5,7 5,6 5,8 5,2 5,1 5,4 7,4 8,1
2.4. Ajuste cambial -1,0 1,2 -1,2 -0,1 0,3 0,2 0,4 0,4 1,5 -0,8
2.5. Outros 0,3 0,1 0,1 0,2 0,1 0,1 0,1 0,0 0,1 0,0
3. Efeito do crescimento do PIB sobre a
dívida -6,2 -7,1 -3,7 -8,4 -5,8 -4,7 -5,2 -4,0 -2,1 -3,1
Fonte: BCB
Elaborado pelo autor.
128
3.3.2. Notas metodológicas para a análise do aspecto cíclico do regime fiscal
Para compreender a crítica realizada ao regime fiscal brasileiro, convém
analisar especificamente a evolução de alguns dados das receitas e das despesas do
governo em comparação com a evolução do PIB. A ideia geral é compreender como se
comportam essas variáveis ao longo dos ciclos econômicos e deduzir os impactos que
alguns desses comportamentos têm no próprio ciclo. Utiliza-se dois tipos de gráficos:
um que analisa o comportamento das variações dos termos estudados ao longo do
tempo; e um gráfico de dispersão, que analisa as mesmas variações em analisa possíveis
correlações e tendências.
Em primeiro lugar, observa-se, através de gráficos teóricos, qual o
comportamento esperado de regimes fiscais pró-cíclicos e contracíclicos para,
posteriormente, compará-los aos dados referentes ao Brasil. Dessa forma, pode-se
visualizar como o regime fiscal se comportou em relação às variações do PIB e tecer
algumas conclusões relacionadas ao comportamento do regime fiscal brasileiro ao longo
dos ciclos econômicos.
O primeiro gráfico teórico (Figura 1) se refere ao comportamento pró-cíclico
do regime fiscal, ou seja, os itens analisados variam no mesmo sentido do ciclo
econômico – uma variação positiva do PIB é acompanhada por uma variação positiva
do termo analisado. Para alguns fatores esse comportamento pode ser considerado
normal e esperado, como é o caso de grande parte das receitas e dos gastos obrigatórios.
Sem dúvida, o comportamento da produção e do consumo (que determinam o PIB)
impactam diretamente as receitas tributárias do governo. Contudo, pode-se pensar em
outras receitas que não estão diretamente correlacionadas com a variação da produção
nacional, como as privatizações de empresas e as receitas de operações financeiras.
Já os gastos obrigatórios do orçamento estão, geralmente, vinculados
legalmente ao comportamento do PIB ou da arrecadação e, com isso, também
apresentam forte vinculação com o ciclo econômico84
. Percebe-se, também, que a
84
Como por exemplo, os gastos com educação estão vinculados a 18% da receita líquida dos impostos e
25% do orçamento estadual e municipal, além da contribuição ao Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) que
também é proporcional à arrecadação. A área da saúde é outra contemplada com vinculação de receitas –
com um gasto mínimo de 13,2% da receita líquida.
129
amplitude da variação das despesas e receitas é geralmente maior do que a da variação
do PIB, ou seja, pequenas variações no PIB podem provocar grandes variações nas
receitas e despesas do governo. Sem dúvida, existem diversos fatores que impactam as
receitas e despesas do governo central além do desempenho do PIB, e estimar a
elasticidade desses componentes requer um tratamento estatístico e econométrico
elaborado, o que não é a intenção deste trabalho. O que se propõem em análise é
observar tendências de comportamento conforme os dados disponibilizados pelo
governo e interpretá-las seguindo a visão teórica pós-keynesiana.
Figura 1: Gráfico Teórico Pró-Cíclico
Fonte: Elaborado pelo autor.
O gráfico de dispersão (Figura 2) explicita a correlação entre a variação dos
dois termos em análise. Quando os valores se encontram no segundo e terceiro
quadrantes, com uma linha de tendência positivamente inclinada, significa que os
termos variam no mesmo sentido, ou seja, trata-se de uma correlação positiva. Nesse
caso, indica-se um comportamento pró-cíclico. Quanto mais próxima a linha de
tendência estiver do ângulo de 45º, e caso os eixos estejam na mesma proporção, mais
nítida é a correlação: por exemplo, uma variação de 1% de um dado coincidiria com a
variação de 1% do outro, e o ponto se localizaria no segundo quadrante. Assim, para a
interpretação desse gráfico, deve-se atentar não só para a inclinação da linha de
tendência, mas também para a proporção dos eixos x e y.
t-2 t-1 t t+1 t+2
PIB - Ciclo Gastos Pró-Cíclicos
130
Figura 2: Gráfico Teórico de Dispersão – Pró-Cíclico
Fonte: Elaborado pelo autor.
O gráfico teórico da Figura 3 alude ao comportamento contracíclico de
variáveis do orçamento. Conforme mencionado anteriormente, é improvável que os
gastos obrigatórios e as receitas tributárias procedam dessa maneira. Contudo, em
consonância com uma visão pós-keynesiana, defende-se que o Estado deveria ampliar
deliberadamente outras despesas públicas em momentos de queda do produto, com o
intuito de retomar o crescimento econômico e a estabilidade fiscal. Nesse sentindo, a
reação esperada está nos gastos não vinculados, que deveriam, conforme o gráfico,
movimentar-se em sentido oposto à tendência do PIB. Esse fato poderia ser vislumbrado
pelos “estabilizadores automáticos” (como gastos com seguro-desemprego e outros
gastos sociais) e despesas discricionárias, principalmente os investimentos públicos.
Essa concepção segue uma interpretação keynesiana de que em momentos de
exacerbação das incertezas, quando o setor empresarial prefere a segurança da liquidez
ao risco de imobilização do capital, caberia ao Estado elevar os seus níveis de
investimento para sustentar a demanda efetiva e o nível de emprego. Conforme
discutido no capítulo 2, única fonte de demanda autônoma ao longo das recessões seria
o Estado, que seria o único agente capaz de elevar o dispêndio em momentos de
exacerbação das incertezas econômicas.
Ao manter o nível de emprego e de renda, juntamente com uma melhoria na
infraestrutura (e em bens públicos, em geral), o Estado estaria amenizando a queda do
crescimento econômico e abrindo espaço para a recuperação mais rápida das
expectativas dos empresários nacionais. Além disso, essa perspectiva implica na
possibilidade de se manter projetos estratégicos que visam direcionar o
desenvolvimento para setores que reduzam as vulnerabilidades econômicas do país,
131
elevando o encadeamento e a complexidade da estrutura produtiva. Não obstante, em
momentos de maior crescimento econômico o Estado teria condições de realizar
maiores superávits primários, mantendo o equilíbrio fiscal no longo prazo.
Figura 3: Gráfico Teórico Contracíclico
Fonte: Elaborado pelo autor.
No mesmo sentido do gráfico da Figura 2, o gráfico da Figura 4 apresenta a
dispersão, porém agora para o caso contracíclico. As mesmas ressalvas devem ser
mantidas em relação à proporção dos eixos e a inclinação da linha de tendência. Caso os
dados estejam localizados no primeiro e quarto quadrantes, implicaria que os termos das
duas séries variam em sentidos opostos: por exemplo, uma variação negativa do PIB
coincidiria com uma variação positiva dos gastos primários do governo central.
Outra ressalva de extrema relevância para a interpretação do gráfico de
dispersão é a necessidade de avaliar, separadamente, as tendências e inclinações das
variações, ou seja, o comportamento de aceleração da variação de um período em
relação ao anterior (o sinal da segunda derivada):
∆𝑋𝑡 > ∆𝑋𝑡−1, aceleração; ∆𝑋𝑡 < ∆𝑋𝑡−1, desaceleração.
Esse fato é importante pois em alguns casos o sinal da variação dos termos
analisados e a tendência de evolução dessas variações acarretam em interpretações
contraditórias do gráfico de dispersão. Além disso, é necessário uma análise qualitativa
do comportamento de alguns períodos da série que, tanto pela tendência quanto pelo
sinal de variação, podem distorcer a análise. Um exemplo é quando o PIB desacelera,
porém continua com uma variação positiva (variando de 5% para 1%, por exemplo), e
as despesas variam negativamente, porém com tendências de redução da queda
(variando de -5% para -1%); nesse caso não poderia se afirmar que as variáveis evoluem
t-2 t-1 t t+1 t+2
PIB - Ciclo Gastos Contracíclicos
132
de forma contracíclica, apesar de os pontos se encontrarem no quarto quadrante,
distorcendo a angulação da linha de tendência. Em vista disso, deve-se atentar para o
comportamento da segunda derivada e avaliar de forma qualitativa o modo como a série
reagiu.
Figura 4: Gráfico Teórico de Dispersão – Contracíclico
Fonte: Elaborado pelo autor.
Uma terceira alternativa é a manutenção do dispêndio do governo em
patamares relativamente estáveis ao longo de todo o ciclo econômico. Denomina-se esse
arranjo de gastos acíclicos (Figura 5). Algumas variáveis podem se elevar ou cair
continuamente ao longo do tempo independentemente da variação do PIB. Um
exemplo, no caso brasileiro, são os gastos com a previdência pública, que tendem a se
elevar continuamente por fatores a parte do crescimento econômico, muito influenciada
por questões demográficas. Ao se tratar de investimentos públicos, a evolução acíclica
poderia ser interessante para oportunizar projetos de longo prazo que necessitam de
recursos de forma continuada, como por exemplo, investimentos de infraestrutura que
tendem a melhorar a capacidade produtiva, com elevado grau de encadeamento com a
produção privada e, com isso, elevado efeito multiplicador.
Contudo, os gastos acíclicos poderiam seguir uma tendência inversa, sendo
reduzidos de forma sistemática ao longo do tempo. Esse fato poderia resultar de regras
que impõe limites aos gastos, como o Projeto de Emenda Constitucional proposto pelo
governo Temer (2016), que impõe um teto aos gastos primários reais do governo federal
ao nível de 2016. Assim, dependendo da institucionalidade do regime fiscal as despesas
acíclicas pode apresentar tendências de crescimento (uma característica expansionista)
ou de decrescimento (com caráter contracionista). Já um gráfico de dispersão desse
modelo tenderia a uma inclinação vertical, caso o PIB esteja representado no eixo x e os
133
gastos do eixo y. No caso de um regime acíclico expansionista, os dados estariam
concentrados nos quadrantes 1 e 2, e no caso contracionista, nos quadrantes 3 e 4.
Figura 5: Gráfico Teórico Acíclico
Fonte: Elaborado pelo autor.
Antes de iniciar a análise dos indicadores fiscais brasileiros, cabe uma breve
observação sobre a sazonalidade e o ciclo orçamentário. Em primeiro lugar, destaca-se
uma tendência de se acelerar os dispêndios com investimentos no final do ano,
principalmente nos meses de dezembro. Conforme Orair, Gouvêa e Leal (2014) esse
fato reflete o padrão de execução orçamentária em que as despesas discricionárias
apresentam uma defasagem em relação à arrecadação, além da liberação de recursos
tender a uma maior flexibilidade no final do exercício financeiro.
Esses autores captaram ainda a influência de um ciclo eleitoral sobre os gastos
com investimentos públicos. Seguindo essa análise, existe uma tendência de se
aumentar os gastos diretos com investimentos pelo governo federal em anos de eleições
presidenciais (ciclo quadrienal) e uma tendência de elevação das transferências para os
entes subnacionais em anos de eleições estaduais e municipais (ciclo bienal). Referindo-
se a um mandato presidencial, então, existe uma propensão para se executar uma
política austera no primeiro ano de governo, aumento das transferências para os
municípios no segundo ano e elevação de gastos diretos do governo federal e de
transferências para os estados no último ano. Dessa forma, ao se analisar a influência
dos ciclos econômicos sobre a gestão orçamentária, deve-se ter a ciência de que,
concomitantemente, essas questões políticas também atuam.
Orair, Siqueira e Gobetti (2016) destacam as dificuldades de realização de
estudos empíricos para o Brasil devido à limitação dos dados fiscais divulgados pelo
governo – tanto pela periodicidade (não sendo longas suficientes para estimar resultados
t-2 t-1 t t+1 t+2
PIB - Ciclo Gastos Acíclicos Expansionistas Gastos Acíclicos Contracionistas
134
mais robustos), pela cobertura das três esferas de governo ou por distorções de
divulgação (como por exemplo, devido à contabilidade criativa). Outra limitação de
diversos estudos empíricos é a não captação das variáveis fiscais dos entes subnacionais
(estados e municípios), que, conforme Orair, Siqueira e Gobetti (2016), são
responsáveis por parte significativa dos gastos públicos primários. Nesse sentido, essa
dissertação apresenta a mesma limitação, por tratar apenas das variáveis de gastos do
governo central e não realizar os tratamentos estatísticos utilizadas por esses autores.
Deve-se reconhecer, assim, que este trabalho optou pela utilização simples dos dados
disponibilizados pelo governo e, atenta-se na análise qualitativa sobre especificidades
destacadas por outros estudos.
Para amenizar a influência da sazonalidade das séries, optou-se por utilizar
dados trimestrais acumulados em 4 trimestre e compará-los ao mesmo período do ano
anterior: por exemplo, compare-se a soma do terceiro trimestre de 2016 ao quarto
trimestre de 2015 com a soma do terceiro trimestre de 2015 ao quarto trimestre de 2014.
Ao acumular em 4 trimestres o fator sazonal é suavizado ao longo da série histórica, e
ao comparar com o agregado do mesmo período do ano anterior – e não com o agregado
dos 4 trimestres exatamente anteriores – evita que apenas a evolução do último trimestre
influencie na variação. Essa metodologia também é utilizada pelo IBGE na divulgação
das contas nacionais trimestrais85
.
A vantagem de utilizar dados trimestrais é o aumento da amostra: uma série
anual teria a vantagem de eliminar a sazonalidade que ocorre ao longo do ano, mas teria
poucas observações e dificultaria a extração de insights mais robustos. Além disso, a
série trimestral permite certa acomodação da influência de lags que não seria
contemplada em uma série mensal. Isso porque o impacto da variação do PIB, das
receitas e das despesas podem não ocorrer no mesmo mês, o que poderia distorcer a
análise. Uma série mensal teria a vantagem de fornecer maior número de dados,
contudo seria distorcida pelo provável lag temporal que há entre as correlações das
variáveis analisadas. Para observar com maior cuidado os períodos de interesse que
serão destacados, convém analisar não só a variação trimestral, mas a tendência de
aceleração ou desaceleração (a segunda derivada) de mudanças entre um trimestre e
outro.
85
Divulgação disponível no site do IBGE em “indicadores” // “contas nacionais trimestrais” // “tabelas
completas”: <>. Acessado em janeiro de 2017.
135
Os dados utilizados foram a série da variação trimestral do PIB
(dessazonalizada, disponibilizada pelo IBGE, metodologia nova revisada em 2015), das
Receitas Primárias Totais do Governo Central, das Despesas Primárias Totais do
Governo Central e das Despesas Discricionárias do Governo Central (disponibilizados
pela STN) de 1999 até 2015 (ou até o terceiro trimestre de 2016). Os dados da STN
foram deflacionados pelo IPCA de novembro de 2016, conforme metodologia utilizada
pela própria STN.
Um fator crucial para compreender a pró-ciclicidade do regime fiscal brasileiro
é observar o comportamento do efeito multiplicador dos diferentes componentes do
orçamento público. Nesse sentido, Orair, Siqueira e Gobetti (2016) realizam uma
análise econométrica para estimar os efeitos multiplicadores de diferentes tipos de
gastos públicos ao longo dos ciclos econômicos. Os autores utilizam a metodologia
STVAR (smooth transition vector autoregression). Ao utilizar a abordagem VAR por
modelos não lineares com mudança de regime é possível captar variações do efeito
multiplicador em diferentes fases do ciclo econômico.
Os resultados de Orair, Siqueira e Gobetti (2016) converge com o de outros
estudos que utilizam a mesma metodologia para captar o impacto fiscal ao longo das
flutuações do produto da economia, concluindo que os investimentos públicos
impactam de forma significativa o crescimento econômico nas fases de baixa do ciclo.
Esse fato converge com o que foi colocado no capítulo 2, ao se discorrer sobre a visão
teórica de Keynes e Kalecki acerca da importância fundamental da variável
investimento na dinâmica capitalista, bem como a grande relevância do Estado para
sustentar os níveis de crescimento e emprego. Em vista disso, cabe uma breve análise
sobre a variável investimento no Brasil.
3.3.3. Notas sobre a variável “investimento” no Brasil
Ao se tratar dos investimentos públicos, Orair e Siqueira (2016) esclarecem
que não é trivial elaborar uma série que represente de forma fidedigna os investimentos
do governo. Os gastos discricionários do governo incluem despesas com custeio e,
portanto, incluem diversos gastos além de investimentos. Até os dispêndios com o PAC
136
não podem ser seguidos como proxy de investimentos, já que passaram a incluir outros
gastos em sua conta. Segundo os autores, o melhor é observar a Formação Bruta de
Capital Fixo (FBCF), contudo essa série também não é trivialmente elaborada, sendo
necessário acesso ao Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo
Federal (SIAFI). Devido à dificuldade de acesso a essas séries, esse trabalho se ateve
aos dados disponibilizados por Orair e Siqueira (2016) ao abordar a FBCF do governo.
O IBGE disponibiliza a série de FBCF das contas nacionais, o que inclui
sistema privado e público, e que são úteis para compreender a lógica da taxa de
investimentos ao longo dos ciclos econômicos. Ao analisar essa série (no acumulado de
4 trimestres em relação ao mesmo período do ano anterior), pode-se indicar, através dos
gráficos das Figuras 6 e 7, um viés pró-cíclico, o que reforça a visão teórica de Keynes e
Kalecki quanto à importância do investimento para a dinâmica econômica. Por ser uma
variável de extrema relevância para a sustentação do crescimento, a FBCF do governo
possui uma importância estratégica para a atuação anticíclica, já que, conforme Orair e
Siqueira (2016), apresenta elevado efeito multiplicador nas fases descendentes do ciclo
econômico.
Figura 6: Variação do PIB e da FBCF acumulados em 4 trimestres em relação ao mesmo
período do ano anterior (1998.IV - 2016.III)
Fonte: IBGE. Elaborado pelo autor.
-20%
-15%
-10%
-5%
0%
5%
10%
15%
20%
25%
PIB
Formação Bruta de Capital Fixo
137
Figura 7: Dispersão entre PIB e FBCF - taxa acumulada em 4 trimestres em relação ao
mesmo período do ano anterior (1998.IV - 2016.III)
Fonte: IBGE. Elaborado pelo autor.
Através da tabela 3 se pode analisar a aceleração da variação de um período e
relação ao anterior, ou seja, a análise do sinal da segunda derivada para a série da FBCF
em relação ao PIB. Percebe-se que em 85% dos casos essa variável se comportou de
forma pró-cíclica (tanto o PIB e a FBCF se aceleram ou desaceleraram no mesmo
sentido em relação ao período anterior) e em apenas 5% a FBCF acelerou (teve um
crescimento maior em relação ao período anterior) enquanto o PIB decaiu.
Quadro 4:Tendências de variação do PIB e da FBCF, dados trimestrais acumulados nos
últimos 4 trimestres em relação ao mesmo ao mesmo período (1998.IV - 2016.III)
Fonte: IBGE; Elaborado pelo autor.
Os gráficos das Figuras 8 e 9 ilustram a variação anual do investimento público
do governo central. Utiliza-se os dados estimados por Orair e Siqueira (2016, p.16) que,
conforme já mencionado, captou a FBCF do governo como proxy para os investimentos
públicos. Embora a série anual disponibilize um menor número de dados, ainda pode-se
perceber uma tendência pró-cíclica na evolução dos gastos com investimento público. A
exceção só teria ocorrido em 2009, quando o PIB sofre uma queda e os investimentos
-20%
-15%
-10%
-5%
0%
5%
10%
15%
20%
25%
-6% -4% -2% 0% 2% 4% 6% 8% 10%
∆FBCF
∆PIB
Unid. Amostra % Amostra Unid. Amostra % Amostra
Crescente
(PIBt > PIBt-1)28 38% 7 10%
Decrescente
(PIBt < PIB t-1)4 5% 34 47%
Crescente (FBCFt > FBCFt-1) Decrescente (FBCFt < FBCFt-1)
FBCF
PIB
Amostra Total = 73
138
do governo central se elevam. Como será observado, até 2003 os investimentos
mantiveram maior correlação com as receitas primárias do que com o PIB, dado o
período de crescimento das receitas tributárias.
Figura 8: Variação anual do PIB e do Investimento do Governo Central (1999 - 2015)
Fonte: Orair e Siqueira (2016, p.16). Elaborado pelo autor.
Figura 9: Dispersão entre a variação anual do PIB e do Investimento do Governo Central
(1999 – 2015)
Fonte: Orair e Siqueira (2016, p.16). Elaborado pelo autor.
Observando-se a evolução da variação do investimento e das receitas primárias
do governo central (Figura 10), o fator pró-cíclico fica mais nítido, principalmente no
início da série (de 1999 a 2003) onde o gráfico 8 não apresentou uma tendência clara.
Percebe-se, com isso, a característica “curto-prazista” da realização dos investimentos,
que tendem a variar com o as receitas, seguindo um viés de “finanças saudáveis”
(criticado pela MMT na seção 2.2). O gráfico de dispersão (Figura 11) corrobora a
139
tendência de os investimentos do governo central variarem no mesmo sentido das suas
receitas primárias.
Figura 10: Variação anual do Investimento e das Receitas Primárias do Governo Central
(1999 - 2015)
Fonte: Orair e Siqueira (2016, p.16); STN. Elaborado pelo autor.
Figura 11: Dispersão entre a variação anual do Investimento e das Receitas Primárias do
Governo Central (1999 – 2015)
Fonte: Orair e Siqueira (2016); STN. Elaborado pelo autor.
Seguindo o quadro 4, extraída de Orair e Siqueira (2016, p.16), alude-se que o
investimento público no Brasil teve apenas uma fase claramente expansionista desde a
década de 1990, o período entre 2006 e 2010. Conforme Orair e Siqueira (2016), a
política fiscal brasileira foi restritiva até 2005 e expansionista entre 2006 e 2014.
Contudo, entre 2006 e 2010, a expansão ocorreu com predominância da expansão dos
investimentos públicos, enquanto a partir de 2011 a estratégia prevalente foi a de
140
desonerações e incentivos fiscais ao setor privado. Conforme já discutido na seção
3.1.3, a expansão dos investimentos do governo, a partir de 2006, refletiram a mudança
de visão da equipe econômica acerca do papel que o Estado deve desempenhar na
economia. Conforme a tabela 5, esse período também coincidiu com a maior taxa de
crescimento econômico da série. Conforme Orair e Siqueira (2016, p.17):
A ascensão dos investimentos no quinquênio 2006-2010 reflete não
somente a flexibilização da política fiscal, que removeu
temporariamente entraves orçamentários, mas também uma mudança
de posicionamento do governo, no sentido de reassumir seu papel no
planejamento estratégico. Essa mudança foi consubstanciada na
formulação de programas estratégicos e na retomada de grandes
projetos de investimentos.
Quadro 5: Investimento do Governo Central e do Governo Geral – Taxa de Crescimento
ao ano
Período Gov.
central
Gov.
geral PIB
1994- 1998 -5,1% -2,7% 2,6%
1998- 2002 -1,2% -2,0% 2,3%
2002- 2006 -0,6% 0,6% 3,5%
2006- 2010 25,4% 13,5% 4,6%
2010- 2014 -0,4% -0,1% 2,2%
2011- 2015 -6,2% -4,0% 0,3% Fonte: Orair e Siqueira (2016, p.16).
3.3.4. O regime fiscal e os ciclos econômicos no Brasil
Após tratar da variável “investimento”, considerada “chave” para a
interpretação da dinâmica dos ciclos econômicos, busca-se nessa seção discorrer sobre
outros agregados do orçamento do governo central, enfatizando as receitas e despesas
primárias totais e os gastos discricionários. Seguindo essa análise, observa-se o
comportamento dessas variáveis ao longo dos ciclos econômicos a fim de se estabelecer
as relações levantadas pelas hipóteses defendidas nesse trabalho.
O gráfico da Figura 12 analisa a variação trimestral das Receitas Primárias
Totais do Governo Central e do PIB, acumulados nos últimos 4 trimestres, em relação
ao mesmo período do ano anterior. Conforme já mencionado na seção 3.3.2, nota-se a
maior volatilidade das receitas, ou seja, variações no PIB tendem a provocar oscilações
de maior magnitude nas receitas. É perceptível que o comportamento das receitas flutua
ao redor do comportamento do PIB em praticamente toda a série histórica a partir de
141
2003, e mais explícito nos momentos de vale (2009, 2014 e 2015) e de pico (2004, 2008
e 2010) do ciclo.
Contudo, alguns subperíodos podem ser ressaltados, evidenciando diferentes
estratégias de política econômica em cada governo e aspectos conjunturais relevantes. O
período entre 1998 e 2002, quando se realizou as mudanças estruturais na condução da
política macroeconômica, também foi um momento de elevação da carga tributária e de
busca por receitas extraordinárias86
. Em vista disso, a base de comparação das receitas
no início da série analisada, no quarto trimestre de 1998, era elevada (11,92%),
enquanto o PIB se mantinha praticamente estagnado (0,34%). Com isso, se observa um
movimento contracíclico das receitas em relação ao PIB no início da série.
A partir de 2003 percebe-se uma maior aderência das Receitas ao
comportamento do PIB. O período de maior crescimento econômico, a partir de 2004,
com a breve interrupção pela crise de 2009, indicam essa tendência – com destaque para
o pico da variação das receitas no terceiro e quarto trimestres de 2010 (21,58% e
18,44%), coincidindo com o período de maior crescimento econômico (7,46% e 7,53%)
da série. A utilização das políticas de desonerações fiscais a partir de 2011 estariam
indicadas no gráfico, quando se observa uma variação negativa de 2,98% das receitas no
segundo trimestre de 2012. A partir do quarto trimestre de 2014 aponta-se que o baixo
crescimento econômico colaborou para a queda continuada das receitas primárias totais
do governo central.
86
Conforme Orair et al (2013), a carga tributária em 1998 era de 27,7% do PIB, passando para 32,3% do
PIB em 2002.
142
Figura 12: Variação do PIB e da Receita Total do Gov. Central – taxa acumulada em 4
trimestres em relação ao mesmo período do ano anterior (1998.IV – 2016.III)
Fonte: IBGE; STN. Elaborado pelo autor.
O gráfico da Figura 13, de dispersão, busca evidenciar que as variações entre o
PIB e as Receitas Primárias mantiveram o mesmo sinal. Cabe enfatizar a diferença de
escala entre os dois eixos: enquanto o eixo x (que mede a variação trimestral do PIB)
está em escala de 2, o eixo y (da variação trimestral das receitas) está em escala de 5.
Esse fato ocorre porque a amplitude da variação dos dados da receita é muito maior do
que as do PIB, sendo necessário expandir a escala para captar todos os dados. Isso
implica que para a linha de tendência apresentar um ângulo de 45º, que representaria
uma correlação perfeita, para uma variação de dois pontos percentuais do PIB as
receitas deveriam variar 5 pontos percentuais, o que poderia distorcer a interpretação da
inclinação da linha de tendência. Nesse sentido, o fato da linha de tendência estar mais
horizontal, deve ser analisado com cuidado, já que as variações estão em escalas
diferentes.
143
Figura 13: Dispersão entre PIB e Receita Total do Gov.Central - taxa acumulada em 4
trimestres em relação ao mesmo período do ano anterior (1998.IV – 2016.III)
Fonte: IBGE; STN. Elaborado pelo autor.
Deve-se ressaltar, ainda, que em apenas 7 períodos da série (que possui 73
trimestres) as receitas totais do governo central apresentaram sinal de variação oposta à
do PIB, e em apenas 5 as receitas tiveram variação negativa, ou seja, os dados se
encontraram no quarto quadrante do gráfico 13. Assim, apenas em dois trimestres o
sinal de variação do PIB foi negativo enquanto o das Receitas foi positivo – primeiro
quadrante do gráfico 13.
Além de analisar o sinal das variações, convém explicitar a tendência de
aceleração (sinal da segunda derivada) das variações das receitas primárias totais do
governo central em relação ao PIB (quadro 6). Percebe-se que em 67% dos casos da
amostra as receitas se comportaram com tendência pró-cíclica, ou seja, quando a
variação das receitas de um período se acelerou (ou desacelerou) em relação ao anterior,
o PIB se comportou da mesma maneira, se acelerando (ou desacelerando). Em apenas
18% da amostra as receitas primárias mantiveram tendência de elevação enquanto o PIB
decaiu, e dentre esses, apenas no segundo trimestre de 1999 o PIB apresentou sinal de
variação negativo (-0,19%) e as Receitas positivo (10,15%).
144
Quadro 6: Tendências de variação do PIB e da Receitas Primárias, dados trimestrais
acumulados nos últimos 4 trimestres em relação ao mesmo ao mesmo período (1998.IV -
2016.III)
Fonte: IBGE; STN. Elaborado pelo autor.
Os gráficos das Figuras 14 e 15 analisam a correlação entre a variação das
Despesas Primárias Totais do Governo Central e do PIB. Da mesma forma que as
receitas, percebe-se que as despesas flutuaram ao redor do comportamento da variação
do PIB após 2004. Cabem, brevemente, algumas notas sobre alguns diferentes períodos.
O primeiro período que se observa um descolamento das tendências entre as
duas variáveis é o ano de 2001. Contudo, como será observado no gráfico 16, o
crescimento das despesas primárias totais acompanhou a tendência das receitas nesse
ano, mesmo com a queda do PIB. Já em 2009, o descolamento entre o comportamento
do PIB e das Despesas Totais indica a ação de políticas fiscais anticíclicas, em que tanto
as receitas quando o PIB decaíram. O terceiro momento em que as Despesas Totais não
acompanham a tendência do PIB é em 2016, como resultado do pagamento das
“pedaladas fiscais” (conta reordenamento de passivos) que começaram a ser realizadas
em 2015.
Com uma breve desaceleração no quarto trimestre de 2009, as despesas
primárias voltam a se elevar e atingem um pico no quarto trimestre de 2010 (16,3%)
acompanhando o pico de maior crescimento do PIB de toda a série (de 7,53%). No
terceiro trimestre de 2011 aponta-se o ajuste fiscal do início do governo Dilma, com
uma queda de 2,72% das despesas primárias totais em relação ao mesmo período de
2010.
Unid. Amostra % Amostra Unid. Amostra % Amostra
Crescente
(PIBt > PIBt-1)24 33% 11 15%
Decrescente
(PIBt < PIB t-1)13 18% 25 34%
PIB
Receitas Primárias (RP)
Decrescente (RPt < RPt-1)Crescente (RPt > RPt-1)Amostra Total = 73
145
Figura 14: Variação trimestral do PIB e das Despesas Primárias Totais do Governo
Central – acumulado em 4 trimestre em relação ao mesmo período do ano anterior
(1998.IV - 2016.III)
Fonte: IBGE; STN. Elaborado pelo autor.
O gráfico da Figura 15, de dispersão, também apresenta escalas diferentes entre
os eixos, do mesmo modo como o gráfico 13. Em 16 períodos as despesas primárias
totais variaram com sinal oposto ao do PIB, porém dentre estes, apenas 7 trimestres
apresentaram tendências de aceleração opostas analisadas pela segunda derivada. Esse
fato acaba influenciando a inclinação da linha de tendência, já que diversos dados que
se encontram nos quadrantes 1 e 4 não apresentaram comportamento contracíclico de
fato. Um exemplo é o ano de 2003, em que o PIB desacelerou ao longo do ano (saindo
de um crescimento de 3,59% no primeiro trimestre para 1,14% no quarto trimestre) e as
despesas primárias saíram de um crescimento de 2,21% para -3,87%. Apesar de se
compreender um comportamento pró-cíclico, o quarto trimestre de 2003 se encontra no
quarto quadrante, distorcendo a sua interpretação. Outro fator relevante é que dos 12
trimestres em que o PIB apresentou variação negativa, em 9 as despesas variaram de
forma positiva87
, e apenas no terceiro e quarto trimestres de 2009 esse fato indicaria
uma política anticíclica deliberada.
Cabe ressaltar, ademais, que ao analisar o comportamento da aceleração em
relação ao período anterior, através do quadro 7, em 58% dos casos da amostra as
despesas primárias apresentam tendências pró-cíclicas. Em 18 trimestre as despesas se
aceleraram enquanto o PIB desacelerou, contudo, deve-se considerar que em alguns
87
Nesse caso, os dados se encontram no primeiro quadrante do gráfico da Figura 15.
146
períodos isso não representou uma estratégia de política fiscal (como a partir de 2015,
quando esse fato foi uma consequência dos pagamentos das “pedaladas fiscais”)88
.
Assim, é perceptível que alguns fatores influenciaram para que a linha de tendência
apresente uma inclinação mais horizontal, porém ao analisar mais atentamente, percebe-
se que foram raros os momentos que o governo central realizou uma estratégia
deliberada de ação anticíclica dos gastos primários.
Figura 15: Dispersão entre a Variação Trimestral do PIB e das Despesas Primárias Totais
do Governo Central – acumulado em 4 trimestres em relação ao mesmo período do ano
anterior (1998.IV - 2016.III)
Fonte: IBGE; STN. Elaborado pelo autor.
Quadro 7: Tendências de variação do PIB e das Despesas Primárias, dados trimestrais
acumulados nos últimos 4 trimestres em relação ao mesmo ao mesmo período (1998.IV -
2016.III)
Fonte: IBGE; STN. Elaborado pelo autor.
O gráfico da Figura 16 estuda a correlação entre as Receitas e Despesas
Primárias do Governo Central, onde se aponta a tendência do orçamento do governo se
88
Dos 18 trimestres em que as despesas primárias se aceleraram enquanto o PIB desacelerou, em 11 o
sinal de variação foi o mesmo, e em 7 períodos o sinal foi inverso.
Unid. Amostra % Amostra Unid. Amostra % Amostra
Crescente
(PIBt > PIBt-1)22 30% 13 18%
Decrescente
(PIBt < PIB t-1)18 25% 20 27%
Amostra Total = 73
PIB
Despesas Primárias (DP)
Crescente (DPt > DPt-1) Decrescente (DPt < DPt-1)
147
ajustar no curto prazo para cumprir as metas primárias. Somente em 2009 e 2015-2016
é nítido o descolamento das tendências das duas séries – por motivos já mencionados. O
gráfico 16 indicaria um comportamento de curto-prazo, de controle das despesas em
relação às receitas, em quase toda a série histórica.
Figura 16: Variação Trimestral das Receitas Primárias Totais e Despesas Primárias Totais
do Governo Central – Acumulado em 4 trimestres em relação ao mesmo período do ano
anterior (1998.IV – 2016.III)
Fonte: STN. Elaborado pelo autor.
Um dos componentes de maior interesse para analisar o caráter cíclico do
regime fiscal são os gastos não vinculados legalmente, ou seja, as despesas
discricionárias do governo. Esse é um fator central para compreender a
institucionalidade do regime fiscal brasileiro. Com a finalidade de cumprir as metas
fiscais anuais estipuladas pela LDO, essas despesas se tornam o fator de ajuste e, por
isso, embute um caráter de curto-prazo. A pró-ciclicidade dessa variável é
especialmente problemática, já que incluem despesas com elevado efeito multiplicador,
como parte dos investimentos públicos. Nesse sentido, a institucionalidade de
contingenciar gastos discricionários para cumprir as metas fiscais acabaria prejudicando
o crescimento econômico, ao mesmo tempo em que a queda do crescimento do PIB
impacta negativamente as receitas, forçando a novos cortes de despesas para o
cumprimento das metas fiscais. As despesas discricionárias, por não possuírem nenhum
vínculo legal, são as que apresentam maior facilidade de manejo e, assim, as primeiras a
serem contingenciadas.
O gráfico da Figura 17 aponta, então, a tendência pró-cíclico das despesas
discricionárias do governo central. Cabe enfatizar a grande volatilidade dessa variável
148
(eixo da direita) que teve um pico de 45,96% no terceiro trimestre de 2010, e um vale de
-26,17% no quarto trimestre de 2003. Chama a atenção, também, os períodos em que a
política fiscal foi mais rígida, do primeiro trimestre de 2003 ao segundo trimestre de
2004 (com uma média de -14,25% de variação das despesas discricionárias) e do
terceiro trimestre de 2011 ao segundo trimestre de 2012 (quando a variação média
dessas despesas foram de -16,34%). A partir de 2014 as despesas discricionárias voltam
a cair de forma significativa, acompanhando a queda do PIB.
Cabe destacar, ainda, a ação de política anticíclica do governo central entre o
primeiro trimestre de 2009 e primeiro trimestre de 2010, quando a média de crescimento
econômico foi de 1,02% e a expansão das despesas discricionárias foi de 12,62%. A
partir do terceiro trimestre de 2010 até o segundo trimestre de 2011, a variação das
despesas discricionárias se acelerou de forma significativa (com uma média de
crescimento de 39,93%) acompanhando o expressivo crescimento do PIB (com uma
média de 6,79%).
O gráfico da Figura 18, de dispersão, também sofre distorções ao observarmos
as relações da aceleração de um período em relação ao anterior (sinal da segunda
derivada). Em 15 períodos os dados se localizam ou no primeiro quadrante (3) ou no
quarto (12), o que indicaria um comportamento contracíclico. Contudo, apenas em 4
trimestres a aceleração das despesas discricionárias e do PIB apresentaram tendências
opostas.
Figura 17: Variação Trimestral do PIB e das Despesas Discricionárias do Governo
Central – Acumulado em 4 trimestres, em relação ao mesmo período do ano anterior
(1998.IV – 2016.III)
Fonte: IBGE; STN. Elaborado pelo autor.
149
Figura 18: Dispersão entre PIB e Despesas Discricionárias do Governo Central –
Acumulado em 4 trimestres, em relação ao mesmo período do ano anterior (1998.IV –
2016.III)
Fonte: IBGE; STN. Elaborado pelo autor.
Atentando-se para o quadro 8 que observa a aceleração em relação ao período
anterior, aponta-se que em 60% dos casos as despesas discricionárias mantiveram
tendências pró-cíclicas, e em 21% as despesas discricionárias se aceleraram enquanto o
PIB desacelerou. Ao observar mais atentamente para o caso em que as despesas
discricionárias se elevaram enquanto o PIB decaiu, percebe-se que dos 15 trimestres em
que isso ocorreu, em 12 as duas séries mantiveram o mesmo sinal de variação (em 10
períodos ambas variaram com sinal positivo, estando no segundo quadrante do gráfico
de dispersão, apesar de terem apresentado tendências contrárias de crescimento
conforme o sinal da segunda derivada).
Esse fato pode ser explicado tanto por períodos como o primeiro trimestre de
2009 (quando o PIB saiu de um crescimento de 5,09% no quarto trimestre de 2008, para
2,97%, enquanto as despesas discricionárias variaram de 9,06% para 13,17%); quanto
por períodos como o segundo trimestre de 2008 (quando o PIB apresentou leve queda
em relação ao primeiro trimestre de 2008, de 6,30% passou para 6,25%, e as despesas
discricionárias apresentaram leve crescimento, de 10,08% para 10,09%).
Percebe-se que enquanto o período de 2009 se apreende que o governo agiu de
forma contracíclica – pela magnitude da queda do crescimento econômico e da elevação
dos gastos discricionários, o período de 2008 as flutuações foram muito pequenas, não
podendo caracterizar uma reação de política econômica. Mesmo assim, em ambos os
casos os dados se encontram no segundo quadrante, que indicaria um comportamento
150
pró-cíclico e, assim, distorcendo a análise.
Entre o terceiro trimestre de 2011 até o segundo trimestre de 2012 o PIB decaiu
de forma continuada (de 4,76% para 2,20%) e as despesas discricionárias apresentaram
tendência de elevação, porém com variações negativas (de -19,75% para -13,65%).
Assim, os trimestres de 2011.IV, 2012.I e 2012.II se encontram no quarto quadrante
(com sinal positivo para as variações do PIB e negativo para as despesas
discricionárias), contudo não se pode afirmar que se trata de um período contracíclico.
No quarto quadrante se encontram 12 períodos – em que o PIB apresentou sinal de
variação positivo e as despesas discricionárias negativas que, conforme exposto, não
podem ser consideradas ações contracíclicas.
Quadro 8: Tendências de variação do PIB e das Despesas Discricionárias, dados
trimestrais acumulados nos últimos 4 trimestres em relação ao mesmo ao mesmo período
(1998.IV - 2016.III)
Fonte: IBGE; STN. Elaborado pelo autor.
Assim, apesar de alguns dados das amostras distorcerem a interpretação dos
gráficos de dispersão, percebe-se que, em conjunto com a análise do gráfico de
evolução no tempo e com o auxílio das observações de tendências de aceleração em
relação ao período anterior (pelo sinal da segunda derivada) pode-se extrair insights que
fortalecem a hipótese do trabalho de que o regime fiscal brasileiro apresenta uma
tendência pró-cíclica. Apesar dos ensejos contracíclicos, como no período de 2009, o
governo não realizou mudanças estruturais no regime macroeconômico que permitissem
institucionalizar um formato de política fiscal contracíclico.
Conforme Lopreato (2014) e Orair e Siqueira (2016), o governo buscou alterar
a estratégia de intervenção estatal na economia, utilizando-se de uma flexibilização do
regime fiscal. Porém, parece que a flexibilização fiscal se mostrou possível pela
conjuntura econômica favorável, e questiona-se até que ponto se pode sustentar tais
Unid. Amostra % Amostra Unid. Amostra % Amostra
Crescente
(PIBt > PIBt-1)21 29% 14 19%
Decrescente
(PIBt < PIB t-1)15 21% 23 32%
Amostra Total = 73
PIB
Crescente (DDt > DDt-1) Decrescente (DDt < DDt-1)
Despesas Discricionárias (DD)
151
medidas sem mudanças estruturais que apontem outra lógica de interpretação dos ciclos
econômicos, divergente da visão ortodoxa do mainstream.
Considerações Finais:
Esse capitulo buscou integrar a discussão teórica realizada nos dois primeiros
capítulos com o contexto histórico-institucional brasileiro. Nesse sentido, a seção 3.1
visou levantar argumentos para defender a hipótese de que o regime fiscal brasileiro
seguiu o conduto teórico do NCM.
Percebe-se que a reforma macroeconômica de 1999 trilhou uma linha ortodoxa,
já difundida desde o início da década de 1990 no Brasil. O arranjo macroeconômico
vislumbrado nesse período relegou a política fiscal um papel passivo, pesando a ideia
acerca do papel limitado que o Estado deve desempenhar na economia. Nesse sentido, o
regime fiscal imbuiu regras rígidas sobre o orçamento primário do governo, atribuindo
um caráter “curto-prazista”, em que a gestão das despesas tenderia ao objetivo primeiro
de cumprir a regra de superávit primário.
Uma das consequências desse fato seria a característica pró-cíclica do regime
fiscal de metas primárias, que tende a comprometer a capacidade do Estado de sustentar
os níveis de investimento na economia. Essa é a principal hipótese defendida ao longo
do trabalho. Para tanto, as seções 3.2 e 3.3, discutem a lógica do regime fiscal brasileiro
institucionalizado com a LRF, apresentando alguns dados do orçamento do governo
central que buscam ilustrar o argumento. Verifica-se que os momentos de maior
crescimento econômico coincidiram com os momentos de expansão dos investimentos
públicos, e que esses fatores poderiam se condicionar: tanto o efeito multiplicado dos
investimentos tenderia a impactar o crescimento do PIB, quanto o crescimento do PIB
tenderia a aumentar as receitas primárias e, assim, abrir espaço para elevação de gastos
primários. Contudo, em momentos de reversão do ciclo, essa dinâmica se inverte, e a
queda das receitas orienta à política de contingenciamentos de gastos, que tenderia a
reforçar a queda do PIB.
Percebe-se que, mesmo em períodos de maior flexibilização do regime fiscal,
quando o governo passou a assumir maiores responsabilidades para o desenvolvimento
econômico, a estrutura macroeconômica não foi alterada. Isso implica que, mesmo ao
longo do período de expansionismo fiscal, a institucionalidade macroeconômica seguiu
a mesma lógica do NCM, que justificam a adoção de metas rígidas e curto-prazistas.
Conforme a análise de dados proposta neste capítulo, a política fiscal se mostrou
contracíclica apenas em 2009, embora o período de expansão fiscal, conforme Orair
152
(2015), tenha ocorrido desde 2006 até 2014. Percebe-se, contudo, que a partir de 2011
as isenções e benefícios fiscais se tornaram a estratégia dominante.
Infere-se, assim, que o governo se empenhou em retomar os investimentos
públicos no Brasil entre os anos de 2005 e 2010, mas que a partir de 2011 há uma
inflexão para a queda, revertendo, já em 2015, quase todo o avanço do período de
expansão (ORAIR & SIQUEIRA, 2016). Esse fato indicaria que o governo teria
aproveitado maiores espaços fiscais entre 2005 e 2010, decorrentes do bom desempenho
econômico, para realizar investimentos. Com a desaceleração econômica e a expansão
da política de desonerações para a indústria a partir de 2011, as receitas primárias do
governo ficaram comprometidas, e os graus de liberdade dentro do rígido arranjo fiscal,
que haviam sido observadas no período pretérito, acabaram se extinguindo.
Em suma, o capítulo 3 buscou assimilar o debate teórico dos capítulos 1 e 2
para realizar uma análise crítica do regime fiscal de metas primárias no Brasil. No
intuito de reforçar os argumentos para a defesa da hipótese do trabalho, apontou-se o
comportamento de algumas variáveis do orçamento do governo central em relação aos
ciclos econômicos. Através da ilustração de gráficos (de variação ao longo do tempo e
de dispersão) apontou-se uma tendência das receitas e despesas primárias (bem como as
despesas discricionárias) de flutuarem no mesmo sentido do PIB. Esse fato se torna
especialmente preocupante em momentos de recessão econômica, quando cresce o
pessimismo do setor privado e os níveis de investimento da economia se deprimem.
153
CONCLUSÕES
O debate político e econômico em torno do tema da política fiscal se
intensificou ao longo dos últimos anos, com grande polarização de ideias que explicitam
as visões teóricas e ideológicas por traz de cada interlocutor. Nesse sentido, esse
trabalho buscou ponderar que o regime fiscal brasileiro, que institucionalizou as metas
primárias, seguiu um arsenal teórico baseado no NCM, que implica em um papel
limitado desempenhado pelo Estado na economia.
Apoiando-se em um viés teórico que se baseia em conceitos de Keynes e
Kalecki, essa dissertação apontou algumas fragilidades do arranjo do NCM e que
trazem consequências danosas para o desenvolvimento econômico do país. Conforme a
interpretação desses dois autores sobre a lógica instável das economias capitalistas, a
variável “investimento” apresenta importância central para a determinação dos ciclos
econômicos. Em momentos de exacerbação das incertezas, quando os empresários se
tornam pessimistas em relação aos retornos de investimentos produtivos, a demanda
efetiva tende a cair bruscamente, deprimindo o produto e os níveis de emprego.
Conforme Keynes, dificilmente a política monetária seria eficiente para restabelecer a
confiança e a percepção dos agentes privados quando à eficiência marginal do capital.
Caberia, então, ao Estado manter os níveis de investimento através da elevação dos
gastos – utilizando um orçamento de capital, específico para as ações discricionárias do
governo.
A principal crítica levantada, e que configura a hipótese defendida no trabalho,
é de que a institucionalidade do regime de metas primárias atribuiu um caráter pró-
cíclico ao regime fiscal brasileiro, prejudicando a capacidade de manutenção de
investimentos a longo prazo. Apresentou-se a lógica de que, em momentos de queda do
PIB, há uma tendência de frustrações de receitas, fazendo-se necessário o corte de
gastos para o cumprimento das metas fiscais. Além disso, os contingenciamentos de
gastos são realizados sobre as despesas discricionárias – que incluem parte dos
investimentos públicos, que apresentariam um efeito multiplicador significativo.
Seguindo essa lógica, coloca-se a possibilidade de aprofundamento da queda do PIB,
que poderia provocar maiores frustrações de receitas. Aponta-se, com isso, que essa
institucionalidade seria contraproducente aos seus próprios objetivos, de
sustentabilidade da dívida pública no longo prazo.
Em torno dessa controvérsia a dissertação analisou a questão fiscal brasileira
154
em termos mais estruturais, apontando algumas questões teóricas, históricas e
institucionais, abordando mudanças importantes na condução do regime fiscal a partir
das reformas macroeconômicas ocorridas no final da década de 1990. Com isso,
buscou-se remeter a análise sobre a economia brasileira – realizada no terceiro capítulo
– com a discussão teórica feita nos dois primeiros capítulos. A contraposição de ideias
entre o NCM (desenvolvida no capítulo 1), com uma visão baseada em Keynes e
Kalecki (explicitada no capítulo 2), se mostrou crucial para a defesa da hipótese do
trabalho. O capítulo 3 buscou evidências de que as críticas levantadas ao alicerce teórico
do regime fiscal brasileiro são, de fato, relevantes.
Não obstante, outras questões permearam o desenvolvimento do trabalho para
reforçar um ponto central: a institucionalidade fiscal deveria ser flexível o suficiente
para permitir a atuação estratégica do Estado. Esse ponto é levantado tanto por autores
do mainstream após a crise econômica de 2008 (discutida na seção 1.4) quanto por
autores pós-keynesianos (desenvolvida nas seções 2.2 e 2.3). Sem dúvida, existem
discordâncias relevantes na abordagem das diferentes visões teóricas: enquanto autores
de cunho mais ortodoxos colocam que o Estado deveria agir de forma anticíclica apenas
em situações específicas de crise econômica (em um ponto de “armadilha de liquidez”),
alguns autores pós-keynesianos inferem que o Estado não teria restrições à realização de
déficits (como foi colocado no debate teórico sobre a MMT, na seção 2.2).
Ademais, o capítulo 3 buscou ilustrar a crítica realizada ao regime de metas
primárias no país. É interessante notar a conjuntura em que o “tripé macroeconômico”89
foi implementado, após uma década de hegemonia de políticas econômicas
consideradas ortodoxas (ou neoliberais). Cabe enfatizar, também, que a formatação da
organização orçamentária, através do PPA, da LDO e da LOA, tem sua efetividade
restringida pela incerteza que a regra de superávit primário imbui aos gastos que serão
realizados pelo governo. A seção 3.3 buscou analisar alguns dados do cômputo fiscal
para se extrair insights sobre o desempenho do regime de metas primárias no Brasil.
Por fim, reitera-se que os caminhos trilhados por um regime fiscal rígido não
seriam o mais adequado para o desenvolvimento econômico do país, sendo
contraproducente à própria finalidade de sustentabilidade da dívida pública. Comumente
o orçamento público é comparado ao de um agente privado (uma família ou uma
89
Lembrando-se que o “tripé macroeconômico” se refere às metas de inflação, ao câmbio flutuante e às
metas de superávit primário, discutidos na seção 3.1.2.
155
empresa) pela linha teórica convencional, desconsiderando a dinâmica diferenciada que
as despesas do Estado possuem sobre o crescimento econômico e sobre a própria
arrecadação pública. Caso o Estado se comporte sob a mesma lógica privada, estaria
reforçando a queda da demanda efetiva em momentos de exacerbação das incertezas,
culminando com a queda de sua própria arrecadação. Essa confusão teórica, que iguala
as características do orçamento público e privado, é um fator que contribui para a
formulação de políticas públicas pró-cíclicas.
Indica-se, portanto, que medidas que visam limitar a capacidade de gastos
primários do governo, como as propostas pelo governo Temer (2016), reforçariam a
institucionalidade já imposta, seguindo o mesmo viés teórico convencional que limita a
ação anticíclica e prejudica a execução de projetos de investimentos estatais de longo
prazo. Assim, essa dissertação corrobora a importância de se evoluir o regime fiscal
para abarcar os ciclos econômicos dentro das regras de políticas econômicas. Além de
se institucionalizar as ações anticíclicas, se mostra necessário evoluir normas que
assegurem a manutenção de projetos de investimentos estratégicos de longo prazo.
156
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