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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.424

RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DA COMUNIDADE NEGRA Adelaide Maria Trindade Batista – Palmas/PR

Dayanne Cristina Paetzold 1, Talita Boareto Pereira2, Júlia Machado Souza3,

Denize Refatti4, Maycon Jefferson Pereira5,

Antonio P. Pontes Filho6

O município de Palmas, localizado na região sudoeste do Paraná foi elevado à

condição de cidade no ano de 1896, tendo hoje uma população estimada em 40.485 habitantes

(IBGE 2007), com economia baseada na agricultura, extração de madeira, fruticultura e

pecuária.

No bairro São Sebastião do Rocio, moram 4.200 habitantes (segundo dados

fornecidos a nós pela Prefeitura Municipal), onde localizamos aproximadamente 80 famílias

as quais se auto-identificam como “remanescentes de quilombo” e se organizam na

“Associação Quilombola Adelaide Maria Trindade Batista”, fundada no ano de 2007. O

trabalho de campo se deu entre os meses de Março e contínua sendo desenvolvido, já que

nesse espaço de tempo estivemos três períodos em Palmas somando aproximadamente trinta

dias de trabalho de campo, onde pesquisamos a organização interna da comunidade, a relação

com seu entorno (fronteiras étnicas e território) bem como a história da colonização de

Palmas e da região.

O nome da Associação é, segundo eles, uma homenagem a uma ex-escrava a qual

seria a primeira moradora do local. Contudo até hoje, nomenclatura de identificação destas

pessoas e deste local já há décadas é feita por “Rocio dos Pretos”, “Rocio dos Pobres”, e ainda

“Rocio de São Sebastião”. Agora esta referência identitária vem sendo estigmatizada por

alguns membros da Associação, bem como de alguns membros de órgãos públicos estaduais e

federais, afora ONG’s ligadas à temática quilombola.

A narrativa (mito de fundação) de origem produzida por eles conta sua história a

partir da chegada dos primeiros colonizadores da cidade de Palmas, em meados do século

XIX. As datas se confundem, conforme os entrevistados, mas em síntese a personagem da ex-

escrava Adelaide Maria Trindade Batista teria chegado juntamente com outros ex-escravos no

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Rocio (aqui também há várias divergências por parte dos entrevistados), que abrangia o

entorno da Freguesia de Palmas, no período após a Revolução Farroupilha7, vindos do Rio

Grande do Sul e passando por Guarapuava/PR. A partir daí, estas pessoas se consideraram os

primeiros moradores dessas terras, onde construiriam suas casas, uma forma de sustento e

sociabilidade. Nesta época, conforme os relatos de campo, neste núcleo habitacional moraram

apenas seus ancestrais, descendentes de escravos da região sul do Brasil, que se relacionaram

e se casaram internamente, inclusive entre parentes próximos. As famílias viveriam, ainda

segundo nossos entrevistados, da agricultura de subsistência e da criação de animais, alguns

homens teriam trabalhado em fazendas da região e as mulheres como empregadas nas casas,

diaristas e lavadeiras.

Com o passar dos anos e a urbanização do município, o bairro, se constituiu como

urbano/rural e seria o bairro mais antigo da cidade. Dado serem estas informações todas elas

ditas pelos nossos pesquisados, é preciso checar essas informações. Segundo diferentes

moradores entrevistados, por muito tempo o bairro foi habitado apenas por pretos

(negros)2descendentes de escravos e a primeira “invasão” de outros moradores no bairro teria

acontecido no ano de 1952, data da construção do Aeroporto Municipal de Palmas. Depois

disso, o bairro teria passado por outras transformações, sendo que eles destacam que, há

poucos anos, um prefeito8 do município teria transferido várias das famílias que invadiram as

margens da estrada, bem como outras famílias pobres (sem moradia certa), para as terras do

Bairro São Sebastião, e, particularmente, os membros da Associação atribuem aos novos

moradores a violência e maior pobreza que se instalou no bairro, até mesmo à má fama atual

do bairro.

Constatamos que hoje quase não existem plantações nas casas (há pequenas hortas

em algumas); seus moradores vivem basicamente de trabalhos temporários na colheita da

maça e da “batatinha”; outros tantos trabalham em fábricas de compensado9; como

funcionários públicos; diaristas; e outros prestam serviços a prefeitura. Outro fator importante

na renda dessas famílias são as bolsas de auxilio (dos diversos tipos fornecidos seja pela

federação, estado ou município), pensões e aposentadorias em decorrência de problemas de

saúde.

Conforme a população local, nas entrevistas feitas, a infra-estrutura do bairro já não

seria suficiente para o número de moradores, contando com um pequeno posto de saúde que

atende os bairros: São Sebastião, Fortunato, Santuário e Aeroporto10. Observamos durante o

trabalho de campo que ali não há saneamento básico significativo; e que pouquíssimas ruas

são de asfalto, várias outras são de calçamento de pedra irregular e outras tantas de chão de

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terra. Contam com três escolas que também atendem alunos de outros bairros: Escola

Municipal Tia Dalva, Escola Municipal São Sebastião e Escola Estadual Quilombola Maria

Joana Ferreira.11

Segundo informações que recebemos de uma assistente social do município, as

famílias “quilombolas” se encaixam nos programas de assistência social do município da

mesma forma que as demais famílias palmenses, exceto no programa bolsa família, onde são

diferenciadas e identificadas como quilombolas12. A prefeitura não tem nenhum programa

especial para essas famílias que, quando procuram a prefeitura, buscam cestas básicas, leite

especial e/ou remédios.

Algumas práticas ocorrem há anos como a Festa de São Sebastião do Rocio,

comemorada no final de semana mais próximo ao dia 20 de janeiro, data em que se celebra o

dia de São Sebastião. A festa, que é considerada típica no município, adquiriu novas

características com a chegada dos novos moradores no bairro. Hoje em dia é realizada uma

novena e um dia de festa (anteriormente eram três dias de festa) diminuição por conta do

aumento da violência no bairro13.

Diferente das gerações anteriores que apresentariam um sistema de casamento

endogâmico14, hoje, as pessoas ali se casam também com pessoas de fora da comunidade, do

bairro. Nesses casos, o casal pode ficar morando no bairro, seja perto ou afastado da família,

ou pode mudar para outras regiões da cidade. Segundo nos contaram, eles procuram ensinar

aos filhos “as tradições e costumes do seu povo”, para que possam “ter orgulho de suas

raízes”. Também, valorizam a educação, porque é por meio dela que poderão “deixar de ser

enganados15 e poderão garantir seus direitos”.

Por meio das entrevistas com membros da comunidade, do seu entorno e mesmo

completamente alheias a eles, pudemos perceber que a “identidade quilombola” é algo recente

na vida deles e de todos os palmenses. Quando perguntada sobre o que é ser quilombola, uma

das moradoras nos respondeu que desde pequena conhece a historia do “Rocio dos Negros,

dos pretos, e escravos” que habitavam esse local, mas que só conheceram a palavra

Quilombola recentemente e de pessoas de fora da comunidade. Assim, para ela “ser

quilombola” não é apenas ser negro, mas pessoas com raízes e descendência de escravos, “um

quilombo é um lugar onde se encontram negros fugidos, e a comunidade Adelaide Maria

Trindade Batista ainda é um quilombo e sempre será”.

Possíveis fatos e memórias são preservados pela comunidade e são utilizadas

freqüentemente no discurso de alguns dos moradores mais articulados (política e

culturalmente) como exemplo da herança do tempo de seus antepassados que foram escravos.

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No Parque Estadual de Palmas, encontramos uma taipa – muro construído com pedras

encaixadas – que, segundo estes mesmos moradores da comunidade, teria servido para dividir

suas terras do que era uma fazenda.

Outras representações, ou construções destas, muito importantes para os moradores

são: os três santos trazidos por Dona Adelaide Maria Trindade Batista e preservados nos

altares da capela do bairro; e as árvores de “jaracatiá”, que descenderiam da árvore que teria

sido plantada por Dona Adelaide Maria Trindade Batista.

A respeito das crenças, a religião predominante na cidade, no bairro e entre eles, é a

católica. Porém há a introdução nos últimos anos das igrejas neopentecostais (pudemos anotar

mais de sete igrejas diferentes ali presentes), sendo que dentro do universo das assim

chamadas “igrejas evangélicas”, a de maior visibilidade é a Igreja Evangélica Assembléia de

Deus. Os moradores afirmaram para nós que essas igrejas são mais freqüentadas por pessoas

que moram na comunidade, mas que não são “quilombolas”16. Quando perguntadas sobre o

Candomblé ou a Umbanda, ficaram visivelmente constrangidos, negando a presença de

qualquer elemento destas religiões na comunidade evidenciando a marginalização dessas

religiões no contexto local.

Dessa forma, percebemos como a identidade dessa comunidade vem sendo

construída, ou melhor, reconstruída por meio da preservação de alguns dos seus traços

culturais concomitante à incorporação de novos elementos (considerados como sendo

elementos diacríticos da cultura afra), como a capoeira, que há pouco tempo foi inserida num

outro bairro do município17, e que esporadicamente se apresenta no local, mas é um elemento

de diferenciação, que mesclada com outros, advindos desse processo de ocupação e

manutenção do seu território, aos poucos, passam a fazer parte do cotidiano dessas pessoas.

Notas:

1Graduanda em Ciências Sociais, estudante do Nimuendajú Grupo de Pesquisa em Antropologia Social. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Toledo. e-mail: [email protected] 2 Graduanda em Ciências Sociais, estudante do Nimuendajú Grupo de Pesquisa em Antropologia Social. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Toledo. e-mail: [email protected] 3 Graduanda em Ciências Sociais, estudante do Nimuendajú Grupo de Pesquisa em Antropologia Social. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Toledo. e-mail: [email protected] 4 Cientista Social. Assistente de Pesquisa do Nimuendajú Grupo de Pesquisa em Antropologia Social. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Toledo. e-mail: [email protected] 5 Cientista Social. Assistente de Pesquisa do Nimuendajú Grupo de Pesquisa em Antropologia Social. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Toledo. e-mail: [email protected] 6 Antropólogo; Docente; Líder e Pesquisador do Nimuendajú Grupo de Pesquisa em Antropologia Social; Coordenador do Núcleo de Documentação, Informação e Pesquisa / NDP. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Toledo. e-mail: [email protected] 7 Ocorrida entre 1835 e 1845, durante o II Império.

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8 Neste ponto como em outros há variações, as quais dão conta de que teria sido mais outros prefeitos, desde então. 9 Um dos setores industriais mais fortes atualmente no município. 10 Os três últimos bairros limítrofes ao de São Sebastião do Rocio. 11 Esta última inaugurada no dia 6 de fevereiro de 2009. 12 Da mesma forma que acontece com as famílias de índios Kaingang, também moradores do município. 13 Ficou evidenciada para nós, em suas falas, a desclassificação destes “outros”, aqueles que foram postos no bairro e/ou que para ali foram, como dizem, “sem ser convidados”. Também notamos que eles e outros expressam que ali há muito vive um ambiente de violências. Houve nativos que nos contaram a respeito de assassinato de irmãos e outros parentes há poucos anos. 14 Isto é, os relacionamentos matrimoniais ocorrem com pessoas de dentro da mesma família extensa ou comunidade familiar, 15 Pelos outros, em referência a pessoas externas ao grupo, as quais quereriam se aproveitar ou já se aproveitaram deles. 16 Contudo dois membros importantes da comunidade, em termos de pertencimento familiar e papel político na Associação, primos entre si, são membros da IEAD. 17 O bairro citado refere-se ao bairro Lagoão, onde há outro grupo de pessoas que se auto identifica como remanescentes de quilombo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros. Ed. Brasiliense.1985

MARTINS, Cristian Farias. “As fronteiras da Liberdade: O Campo Negro como Entre-Lugar da Identidade Quilombola”. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais na Universidade de Brasília. Brasília, março de 2006.

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OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Caminhos da identidade: Ensaios sobre etnicidade e multiculturalismo. São Paulo: Editora da Unesp: 2006.

PEREIRA, Carmela Morena Zigoni. Conflitos e identidades do passado e do presente: política e tradição em um quilombo na Amazônia. Brasília: Março de 2008

POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. Seguido de Grupos Étnicos e suas Fronteiras de Fredrick Barth. Trad. Elcio Fernandes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

SALES, Lea Rocchi. Aprendendo a ser negro: reinterpretações acerca da identidade étnica em São Cristóvão-MA. 2007. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Departamento de Antropologia Social, Universidade de Brasília, Brasília, 2007.


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