PROGRAMA DE APRIMORAMENTO PROFISSIONAL
SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE
COORDENADORIA DE RECURSOS HUMANOS
MARIA ANGELICA MANGINO CARDOSO
ESTUDO DE CASO
A construção do vínculo terapeuta-paciente-atividade na Saúde Mental da infância
RIBEIRÃO PRETO
2019
PROGRAMA DE APRIMORAMENTO PROFISSIONAL
SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE
COORDENADORIA DE RECURSOS HUMANOS
Maria Angelica Mangino Cardoso
A construção do vínculo terapeuta-paciente-atividade na Saúde Mental da infância
Monografia apresentada ao Programa de Aprimoramento Profissional/CRH/SES-SP, elaborada no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – USP/ Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento – Divisão de Terapia Ocupacional.
Área: Terapia Ocupacional em Saúde mental. Orientador(a): Prof. Dra. Adriana Sparenberg
Oliveira SUPERVISOR(A) TITULAR: Prof. Dra.
Adriana Sparenberg Oliveira
RIBEIRÃO PRETO
2019
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÂO....................................................................................................................6
2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS...........................................................................9
3. ASPECTOS TEÓRICO-PRÁTICOS DA RELAÇÃO TERAPÊUTICA OCUPACIONAL....11
4. RESULTADOS....................................................................................................................15
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................21
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................22
RESUMO
Este trabalho consiste em um estudo de caso elaborado como trabalho de
conclusão do Programa de Aprimoramento em Terapia Ocupacional em
Saúde Mental. Nele, será apresentado o caso de Bruna, atendida
semanalmente, no Ambulatório de Terapia Ocupacional em Saúde Mental da
Infância e Adolescência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto, USP. Neste estudo, serão discutidos aspectos
relacionados à vinculação e relação triádica no processo terapêutico
ocupacional vivenciado com a criança. Por meio de correlações teórico-
práticas e contextualização sobre as diversas categorias de desempenho
ocupacional e cotidiano de Bruna, serão realizadas reflexões sobre as
transformações individuais, relacionais e ocupacionais ocorridas durante o
processo terapêutico ocupacional apresentado, além de abordar a utilização
de atividades e as sutilezas que compõem o campo da Saúde Mental.
Palavras-chaves: Terapia Ocupacional, Saúde Mental, Relação
terapeuta-paciente-atividade, vínculo terapêutico.
ABSTRACT
This work consists of a case study elaborated as the conclusion work of
the Improvement Program in Occupational Therapy in Mental Health. In it, the
case of Bruna, attended weekly, at the Ambulatory of Occupational Therapy in
Mental Health of Childhood and Adolescence of Clinics Hospital of the Medical
School of Ribeirão Preto, USP.will be presented In this study, aspects related
to attachment and triadic relationship in the occupational therapeutical process
experienced with the child will be discussed. By means of theoretical-practical
correlations and contextualisation about the different categories of
occupational and daily performance of Bruna, reflections will be made on the
individual, relational and occupational transformations that occurred during the
presented occupational therapeutical process, besides addressing the use of
activities and subtleties which make up the field of Mental Health.
Keywords: Occupational Therapy, Mental Health, Therapist-patient-
activity relationship, therapeutic link.
6
1. INTRODUÇÃO
A Terapia Ocupacional Psicodinâmica, cujo nome provém de um
movimento amplo, relacionado a diversos conjuntos teóricos e discutido até a
atualidade, é uma das perspectivas para refletir e estruturar a prática dessa
profissão. O termo Psicodinâmica é utilizado para definir o “efeito das ideias
psicanalíticas sobre diferentes áreas que enfocam o funcionamento mental e
desenvolvem estratégias que lidam ou consideram o sofrimento psíquico.”
(Tedesco, 2007, p. 156).
Considera-se que, nessa perspectiva, ocorre, no processo terapêutico
ocupacional, a construção de uma associação entre os três elementos
existentes no campo transferencial da relação triádica: paciente, atividade e
terapeuta. Nesse sentido,
a atividade, na sua concepção normativa, deixa de ser o foco da intervenção, transferindo a análise para a ação do sujeito, compreendido por meio de sua história, subjetividade, expressividade e comunicabilidade (Costa et al, 2015, p. 192).
A partir de tal consideração, é importante ressaltar a ampliação da
perspectiva de atendimentos em saúde mental, nos quais,
a terapia ocupacional identifica na ação ou no fazer humano um instrumento potencializador da comunicação e expressão não verbal, da criação e produção concreta de vínculos que possam ser significativos e inéditos na vida do sujeito (Meola, 2000 apud Costa et al., 2015, p. 192).
A relação composta por paciente, atividade e terapeuta, definida então
como triádica, da qual, diversos acontecimentos emergem, com
matérias de novos sentidos existenciais que tocam tanto os terapeutas quanto os pacientes e abrem espa- ços numa multiplicidade de territórios - visíveis e invisí- veis, materiais e imateriais, objetivos e subjetivos, teóricos, técnicos, tecnológicos e metodológicos, conteúdos que inscrevem fundamentalmente a emergência do humano, e afetam todos os atores deste encontro (Castro, 2005, p. 15).
A relação terapêutica caracteriza-se, portanto, como um processo
repleto de movimentações e transformações, que proporciona afetações nos
sujeitos participantes e favorece a criação de um setting terapêutico para o
cuidado de suas demandas.
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No decorrer do processo terapêutico apresentado neste estudo, diversas
alterações no comportamento da criança, dentro e fora do contexto de
atendimento ocorreram, sendo percebidas na relação triádica e o
fortalecimento desta, a partir da vinculação entre terapeuta-paciente, refletida
também nas escolhas da criança e seu desempenho em atividades.
O trabalho terapêutico ocupacional oferece uma oportunidade ímpar para que esse processo ocorra, nele, experiências vinculares anteriores do paciente poderão ser dinamizadas pela presença e pelas intervenções do terapeuta (Stern, 1991, citado por Castro, 2005, p. 17).
No processo terapêutico ocupacional, existem funções de sustentação
que são essenciais para que tal processo seja favorecido e possa ser
vivenciado de forma aprofundada pelos sujeitos, distanciando-se de um
trabalho puramente adaptativo (Castro, 2005). Tais funções denominam-se
holding e continência. A primeira foi definida pela primeira vez por Winnicott,
em 1975. E refere-se a
Tudo que, no ambiente, fornecerá a uma pessoa a experiência de uma continuidade, de uma constância tanto física quanto psíquica, que exercida continuamente possibilitará uma integração interna facilitadora da compreensão dos acontecimentos vividos (Barreto, 2000, citado por Castro,
2005, p. 17).
Enquanto a função denominada continência, é feita a partir da
nomeação ou identificação de imagens do que se manifestam das
experiências e sentimentos vivenciados, mas que nem sempre conseguem
ser expressos, como uma forma de transformar, pela imaginação, tais
aspectos (Castro, 2005).
Tais funções componentes do processo e relação terapêutica, também
relacionam-se com a vinculação entre terapeuta-paciente, tema central deste
estudo, considerando que:
O contato entre dois seres humanos é uma experiência potente que definirá o mundo imediato no qual este contato se estabelece. É assim que cada um de nós se defronta com um outro, o vínculo com alguém é imprescindível para o acontecer humano. O outro interage conosco, responde ou não às nossas ações e, por sua vez, provoca resposta em nós (Castro, 2005, p. 17).
Evidenciando, nesse sentido, a vinculação e ligação com outros seres
como processo básico relacional, da qual depende nossa humanidade básica
(Castro, 2005). Processo que pode gerar transformações, nesse caso, nos
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sujeitos envolvidos na relação terapeuta-paciente, e no setting terapêutico
ocupacional.
O presente estudo de caso decorre de uma experiência de atendimento
em Terapia Ocupacional no contexto do Programa de Aprimoramento
Profissional Terapia Ocupacional em Saúde Mental, com duração de doze
meses.
A pertinência da apresentação e discussão do processo terapêutico
vivenciado com Bruna (nome fictício) justifica-se pelo seu percurso e
direcionamento, de certa forma espontânea, diretamente relacionada à
construção de vínculo e fortalecimento da relação entre terapeuta-paciente,
possibilitada pela potência do fazer humano e do estar junto.
Além disso, a partir deste caso, é possível perceber a relevância e
delicadeza do cuidado em Saúde Mental.
9
2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Este trabalho consiste em um estudo de caso, de caráter qualitativo em
forma de narrativa, utilizando referenciais teóricos para embasar reflexões e
correlações teórico-práticas.
2.1 OBJETIVO
Correlacionar aspectos teóricos e práticos da relação terapeuta-paciente-
atividade.
2.1.1 Objetivos específicos
Analisar os significados e implicações da utilização de atividades no
âmbito terapêutico.
Aprofundar reflexões sobre o processo de vinculação entre terapeuta-
paciente composto pela escolha e realização de atividades.
2.2. MÉTODO
Para a elaboração deste estudo de caso foram utilizadas informações
obtidas por meio da análise dos atendimentos realizados, prontuário eletrônico
do paciente, discussões do caso em supervisão e reflexões relacionadas às
ações executadas no processo terapêutico.
2.3.LOCAL
O processo de intervenção e análise deste estudo de caso ocorreu no
Ambulatório de Terapia Ocupacional em Saúde Mental da Infância e
Adolescência do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto, USP. A elaboração de Trabalho de Conclusão de Curso é requisito
10
obrigatório para conclusão do Programa de Aprimoramento Profissional de
Terapia Ocupacional em Saúde Mental.
2.4 SUJEITO
Bruna (nome fictício), onze anos de idade, atendida semanalmente no
Ambulatório de Terapia Ocupacional em Saúde Mental da Infância e
Adolescência, com devido consentimento da responsável para realização do
estudo de caso, no qual sua identidade e de seus familiares será preservada.
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3. PERCURSOS TEÓRICO-PRÁTICOS DA RELAÇÃO TERAPÊUTICA
OCUPACIONAL
Bruna é uma menina com onze anos de idade, que chegou ao serviço
por queixas da família e escola relacionadas a comportamentos agressivos,
opositores, de desatenção, autocuidado prejudicado, e baixa autoestima. Em
entrevista inicial realizada com a mãe, sua principal cuidadora, foram
coletadas informações referentes à sua história de vida e histórico de saúde.
As informações possibilitaram compreender melhor os seus contextos de
desenvolvimento e possíveis consequências dos mesmos. Nasceu de uma
gravidez complicada, necessitando ficar na Unidade de Tratamento Intensivo
por dezenove dias, local que,
Apesar da importância da UTIN para os neonatos doentes, contraditoriamente, essa unidade que deveria zelar pelo bem-estar da criança em todos os seus aspectos, é por excelência um ambiente nervoso, impessoal e até temeroso para aqueles que não estão adaptados às suas rotinas. Tal ambiente é repleto de luzes fortes e constantes, barulho, mudanças de temperatura, interrupção do ciclo do sono, visto que são necessárias repetidas avaliações e procedimentos, acarretando, muitas vezes, desconforto e dor (Reichert, Lins e Collet, 2007, p. 201).
Dessa, forma, a vivência de internação neonatal pode trazer
consequências nocivas ao bebê e à sua família, que vivência o processo de
ruptura do cotidiano e expectativas.
Seus pais se separaram poucos meses após seu nascimento, por
conflitos e agressões no relacionamento, e desde então, não teve mais
contato com o pai.
Com poucos anos de idade, Bruna começou a furtar objetos de colegas
na creche. Apesar de diversas estratégias utilizadas por sua mãe para que
parasse, continuou com os furtos. Aos oito anos, a menina foi encaminhada a
um psiquiatra por apresentar comportamentos agressivos, problemas no
autocuidado e higiene pessoal, além de desobediência.
A criança teve “duas tentativas de suicídio” aos dez anos, segundo a
mãe, e os explicou como episódios de automutilação (cortes com lâmina de
barbear). Mãe relata que após uso de medicamentos percebeu melhoras no
comportamento da filha, porém ainda oscilante.
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Outro aspecto relevante do seu contexto, é que Bruna mora com sua
mãe, uma irmã mais velha e avó materna. A menina dorme no mesmo quarto
e na mesma cama que a mãe, por falta de espaço. Segundo relatos da
cuidadora, Bruna possui relação conflituosa com a avó, com a qual briga
constantemente e da qual ouve diversas frases que a desmotivam, sendo
descritas pela mãe como bullying da avó para com Bruna.
Após entrevista inicial com a cuidadora, foi realizada avaliação
terapêutica ocupacional com a criança em três encontros. Bruna mostrou-se
tímida e introspectiva aos primeiros contatos, porém receptiva. Chamou a
terapeuta de “senhora”, sem dar nome ou tratar por “você”, mesmo quando
solicitado.
No último encontro avaliativo, foi possível perceber uma pequena
alteração no comportamento de Bruna, no qual a mesma apresentou sua
opinião e descontentamento em continuar a realizar uma determinada
atividade.
A criança apresentou comportamentos sedutores, no sentido de que
buscou convencer ou amenizar as situações alterando seu tom de voz,
postura corporal, e olhar. Bruna apresentou desejo de se comunicar, porém
ainda sem aprofundamento dos assuntos, de forma que pareceu ainda não
sentir-se confortável para expressar-se de forma mais íntima, parecendo
conter-se.
Apresentou divertimento com os jogos e com as brincadeiras da
terapeuta. Ainda mostrou-se hesitante e insegura em alguns momentos, em
outros mostrou-se mais tranquila e espontânea. Apresentou preferência por
jogos e atividades estruturadas, com dificuldades em atividades de caráter
livre e expressivo.
Bruna pareceu uma menina emocionalmente fechada, com desejo de
estar junto, mas que parece não saber como estar junto com o outro, como
quando no final de uma sessão manifestou querer continuar para “conversar
mais”, entretanto parece não ter percepção de que não apresentou falas
espontâneas. Pareceu ter receio do que e como seria recebido o que ela
poderia expor sobre si mesma.
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Em outros momentos fez perguntas pessoais à terapeuta ocupacional,
principalmente sobre idade e relacionamentos, quando a terapeuta
questionou os motivos pelos quais quer saber, responde sobre si mesma,
dentro de um contexto de senso comum, distanciando-se afetivamente de
suas vivências pessoais, como quando relatou, após questionar a terapeuta
se ela tinha filhos, não ter desejo de ter filhos “porque criança atrapalha”.
Relatou aspectos negativos em relação à sua família (mãe, irmã e avó)
por meio de uma atividade, denegrindo-os, e em seguida, fez reparação
verbal e por meio da atividade, falando de que tem bons momentos.
Pela discrepância dos comportamentos manifestados pela criança em
sessão comparados aos relatos de outros contextos, acredito que Bruna
apresente vulnerabilidade ao ambiente ao qual se encontra.
Atualmente, compreende-se que os contextos e ambientes, sendo estes
“cultural, pessoal, físico, social, temporal e virtual” (AOTA, 2015, p. 4) nos
quais a criança vive, desempenham um papel importante no seu
desenvolvimento e saúde mental (Halpern, Figueiras, 2004; Matsukura,
Fernandes, Cid, 2012).
Acrescenta-se, também, que, para a Terapia Ocupacional, tal relevância
de se compreender tais aspectos da vida do indivíduo justifica-se pois
contextos e ambientes interferem no acesso de um cliente a ocupações e influenciam na qualidade e na satisfação do desempenho (AOTA, 2015, p.9).
Entre as principais características que conferem o caráter de risco à
criança, no contexto familiar, está a baixa renda, baixa escolaridade dos pais,
pouca relação entre mãe e criança, alto estresse familiar e histórico de
doença psiquiátrica dos pais (Fleitlich, Goodman 2000: Halpern, Figueiras,
2004).
No caso de Bruna, o setting terapêutico proporcionou espaço mais
acolhedor, enquanto na escola vivencia o bullying e em casa possui relação
conflituosa e dinâmica familiar conturbada.
Observa-se que a criança apresenta volição para melhora e percepção
de problemas relacionados aos seus contextos e relações interpessoais, além
de desejos e interesses em seu cotidiano.
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Tal aspecto pode ser considerado como um dos fatores de proteção
presentes na vida de Bruna. Definidos como “recursos pessoais ou sociais
que amenizam ou inibem o impacto do risco” (Greenberg et. al, 2001, citado
por Matsukura, Fernandes e Cid, 2012, p. 123). Tais recursos atuam de forma
positiva ao desenvolvimento do indivíduo.
A partir da avaliação e demandas observadas, foram iniciados
atendimentos semanais, visando, com a oferta de atividades expressivas e
setting protegido, auxílio no processo de exploração de sua própria
subjetividade, sentimentos, emoções, pensamentos e ações, objetivando
melhor assimilação e vivência de tais conteúdos e melhora da regulação
emocional. Além da ampliação do seu repertório de interesses e atividades, a
partir de novas vivências e experimentações, assim como a valorização de
sua opinião e desejos, buscando maior segurança e escolhas pessoais,
favorecendo um desempenho em ocupações satisfatório para si, como nas
Atividades de vida diária, lazer, participação social, entre outros.
No ambulatório, foram realizadas diversas supervisões e reunião clínica
com equipe multiprofissional sobre o caso de Bruna. Nessas ocasiões, foram
discutidos constantemente os impactos da dinâmica familiar e do modo de se
relacionar dos familiares da criança, por meio de comunicações violentas,
manejo incoerente e práticas de baixa tolerância, além de vivência de bullying
na escola. Dessa forma, foi proposta a inserção da mãe, principal cuidadora,
em orientação parental, quinzenal, com outra aprimoranda do serviço.
Além disso, algumas condutas foram sendo identificadas e propostas
pela equipe no decorrer dos atendimentos, como investigação mais
aprofundada sobre rotina de sono e dinâmica da criança (como dorme,
horários, como). Discutida e proposta o encaminhamento da cuidadora em
psicoterapia, o que foi aceito pela mesma. Orientações para a mãe para
inserção de Bruna em atividades extracurriculares com outras crianças e
jovens.
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4. RESULTADOS
Foi observada alteração na postura e interação da menina com a
terapeuta no decorrer das sessões, evidenciando o processo de criação e
estabelecimento do vínculo. Inicialmente, Bruna mostrava-se emocionalmente
distante, com postura rígida e manifestando preferência por atividades
estruturadas, além de dirigir-se à terapeuta ocupacional como “senhora”.
Passou a apresentar postura espontânea e conteúdos pessoais sobre suas
vivências e relações em casa e na escola, além de escolher atividades
também de caráter expressivo e que favoreçam a interação interpessoal,
exibindo engajamento nas mesmas.
Apresenta interesse e ansiedade pelos atendimentos, chegando a
queixar-se quando os mesmos acabam. Relata diminuição na frequência de
desentendimentos em sua casa e entusiasmo pelo seu animal de estimação,
mostrando-se interessada e preocupada em seu cuidado.
Observam-se ainda dificuldades de Bruna em colocar-se em diálogos de
caráter pessoal, parecendo existir insegurança de sua parte em prejudicar o
espaço e vínculo que está sendo criado, no sentido de que, sendo uma
criança que vivencia diversos conflitos em seus ambientes (casa, escola),
parece ainda manter-se um pouco rígida e temerosa com relação ao que
pode ser feito ou abordado no espaço da terapia. Além de, pela discrepância
dos comportamentos manifestados pela criança em sessão e em comparação
aos relatos de outros contextos, Bruna mostrar-se uma criança vulnerável ao
ambiente ao qual se encontra.
Observa-se ainda que, no caso apresentado, a adesão ao tratamento,
implementação dos investimentos e práticas propostas, e seguimento das
orientações dadas à cuidadora possibilitaram o delineamento de um processo
terapêutico pautado no desenvolvimento e evolução do caso em múltiplas
esferas.
A partir dessa perspectiva, tal processo vivenciado nesse caso insere-se
no que Mattingly (1998), citada por Benetton, Marcolino (2013, p. 650),
contextualiza:
Falamos aqui de uma cadeia de significados, e não de um significado para cada atividade ou fato de forma isolada uns dos outros, que não acontece
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em um tempo cronológico, sequencial, mas sim em um tempo narrativo, atemporal, causal. Isso também nos leva a entender que realizar atividades significativas se torna muito mais um resultado da maneira de como se está nessa relação do que do pré-estabelecimento de sentidos ou significados.
No decorrer dos atendimentos, Bruna foi modificando a forma de se
referir à terapeuta, substituindo o “senhora” por “você”, ou o nome próprio.
Chegava a se divertir quando percebia que disse “senhora”, o que passou a
lhe causar estranhamento, pois fazia caretas ou se surpreendia. Ao final de
uma sessão, perguntou se seria atendida sempre pela mesma terapeuta
ocupacional, toda semana.
A terapeuta respondeu afirmativamente, até o mês em que estaria ali, e
Bruna sorriu. Ao ser questionada se tinha algum motivo para a pergunta,
respondeu que assim achava melhor, pois não gostava de mudar de pessoas
sempre em cada serviço que frequentava.
Nesse sentido, considera-se, como componente essencial de uma
relação terapêutica, a criação de vínculo entre os sujeitos, necessário para o
acontecer humano (Castro, 2005).
Tal vinculação necessita de ambientes e condições favoráveis para
acontecer. Nesse sentido, ações como a observação atenta, o olhar, como
olhar os olhos, o rosto, detalhes, o contato, escuta de qualidade, oferta de
acolhimento e a presença, caracterizam-se como ações exercidas entre
pacientes e terapeutas (Castro, 2005). “O vínculo se constrói na experiência
interpessoal do relacionamento que vai se estabelecendo, e nele um processo
de identificação ocorre [...].” (Castro, 2005, p. 17).
Em um atendimento, no qual a criança já apresentava postura mais
espontânea e interativa com a terapeuta e a atividade, questionou se a
terapeuta sabia como fazer massa de modelar comestível. Respondeu
negativamente, questionando se ela sabia. A menina disse que sim, e logo
calou-se. “Você quer me ensinar? Podemos fazer em um atendimento”, a
terapeuta ocupacional propôs. A resposta inicial foi um sorriso. Seguido pela
lista de ingredientes para a produção da massa.
Em outro atendimento, também de livre escolha, Bruna escolheu pintar
uma tela. Entre três tamanhos, escolheu o maior. Com o passar do tempo,
passou a apresentar cada vez mais interesse por atividades expressivas.
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Tela, cerâmica (vasos), madeira do tipo mdf (porta-retratos e caixas). Pintura
foi um recurso em que a criança se revelou, ou seria se descobriu? Bruna,
cujos sintomas internalizantes e baixa autoestima a levaram ao contexto de
atendimento, passou a explorar seus afetos e sua agressividade pôde ser
transformada em pinturas, questionamentos, diálogo.
Nesse âmbito, temos o que Jorge chama de séries simbólicas, em que
“o processo da terapia se desenvolve na construção da linguagem plástica,
passível de ser acompanhada pelo terapeuta através da leitura simbólica”
(Jorge, 1990, citado por Faria, 2007, p. 174).
A primeira atividade expressiva feita por Bruna, ela quis deixar no
serviço. Não chegou a mostrar nem para a mãe, com a qual encontrou-se
logo após sair da sala. Na segunda, terceira, levou para casa, mostrou de
forma orgulhosa as suas produções. Brincou sobre detalhes que poderia
melhorar. Em um atendimento, a menina escolheu fazer um porta-retrato: “é
para dar de presente de aniversário para minha tia, ela é como uma segunda
mãe pra mim”
Escolheu detalhadamente cada tinta e material que colocaria na
atividade. Planejou. “vou tirar uma foto com ela na festinha dela para depois
ela poder colocar nele”. A menina passou a, além de permitir que outros
entrassem em contato com o que ela produzia, dar o que produzia para outras
pessoas. Passou a mostrar mais confiança em si mesma. Isso também se
refletiu no seu autocuidado e aparência. Começou a utilizar penteados
diferentes no cabelo, roupas e sapatos combinando.
Nesse processo, foi possível visualizar que:
O uso de atividades artísticas ou expressivas sustentado pela particular dinâmica estabelecida na relação triádica terapeuta-paciente-atividades, amplia o espaço para a construção de caminhos associativos, no qual o constante movimento de repetição e criação de novas formas, acompanhadas de significação, torna-se elemento constitutivo do espaço de historicidade (Ferrari, 1999, p. 10).
Bruna alternava dias em que permanecia realizando a atividade de
forma introspectiva, com momentos de intenção e busca por interação com a
terapeuta. Nesses momentos, ocorre o que Winnicott (1979) discute a
respeito do brincar e fazer das crianças.
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As brincadeiras, e, nesse contexto as atividades de forma geral,
desempenham o papel de vivências para a criança. Nesse âmbito,
a brincadeira fornece uma organização para a iniciação de relações emocionais e assim propicia o desenvolvimento de contatos sociais. A brincadeira, o uso de formas e artes, e a prática religiosa, tendem, por diversos e mais aliados métodos, para uma unificação e integração geral da personalidade (Winnicott, 1979, p. 162).
Em algumas ocasiões, trazia falas gerais, sem aprofundamento sobre
suas vivências e sentimentos. Em outras, trazia falas com conteúdos
importantes sobre seu cotidiano, porém rapidamente evitava aprofundar-se no
assunto. Assim, “pode-se facilmente ver que as brincadeiras servem de elo
entre, por um lado, a relação do indivíduo com a realidade interior, e, por
outro lado, a relação do indivíduo com a realidade externa ou compartilhada”
(Winnicott, 1979, p. 163). Atuando como um provocador da comunicação em
níveis mais profundos e facilitadora no processo de autoconhecimento e
autopercepção.
Em uma sessão, Bruna trouxe relatos sobre situações conflituosas na
escola. Conseguiu descrever qual foi o seu papel, sob sua percepção, nas
situações. Em um atendimento, contou que tinha sido suspensa da escola por
três dias. Estava contente por não ter que ir à escola.
Nesse dia, Bruna fez uma atividade de criação de histórias a partir de
cartas com personagens, situações e locais. Quando uma carta sorteada
continha “escola”, a criança logo disse que era um lugar ruim. Foi um
disparador para conversar sobre o significado daquele lugar para ela. O
sentimento de conquista por não ir à escola não era apenas por poder ficar
em casa, mas também porque o ambiente escolar lhe era violento. Seus
colegas faziam bullying com ela, e quando respondia, era ela quem era
suspensa, dificilmente os outros.
A criança aceitou o seu papel de “causadora de problemas”, como
relatado em atendimentos que era assim que era vista, pela sua própria
percepção, e gostava de não estar ali. Porém naquele atendimento,
conseguiu perceber que ao mesmo tempo em que evitava os conflitos,
também perdia aspectos positivos como ver suas amigas, aprender coisas
novas e sair de casa. Foi possível vivenciar um momento reflexivo por parte
da criança, que evitava entrar em contato com seus sentimentos e
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percepções de forma mais ampla e profunda, compreendendo também que
uma mesma situação pode ter aspectos tanto positivos quanto negativos para
a mesma.
Na experiência do vínculo abre-se a possibilidade do paciente pensar em termos de si mesmo tomando iniciativa para atingir um objetivo. O paciente no interjogo do relacionamento tem a possibilidade de construir uma noção de si mesmo como autor de suas próprias ações e de suas ações tendo consequências previsíveis. Sente-se como agente numa cadeia causal de eventos. Ele experimenta repetidas vezes ações e tem respostas: o desejo, a ação, a execução, o objetivo – tudo isto acontecendo junto no vínculo forma momentos de criação mútua. Eles são a essência da convivência, do estar com outra pessoa, do estar e ser no social.” (Castro, 2005, p. 17).
Na época do Natal, a terapeuta propôs à criança confeccionar enfeites de
natal. Bruna escolheu fazer uma guirlanda com rolos de papel higiênico. Foi a
primeira vez que terapeuta e paciente fizeram juntas a mesma atividade. Foi
parte de um processo natural, do estar junto, da convivência. A criação
conjunta fez sentido no momento vivenciado pelos sujeitos pertencentes a
relação. Paciente e terapeuta escolheram juntas a atividade e os materiais.
Quando a terapeuta começou a manuseá-los, Bruna logo sorriu e perguntou
“nós vamos fazer juntas?”
No processo terapêutico vivenciado com Bruna, é possível perceber, a
partir do estabelecimento do vínculo e fortalecimento da relação terapeuta-
paciente, transformações em múltiplos aspectos de sua vida cotidiana foram se
apresentando, alguns mais sutis que outros, como em relação ao seu
autocuidado, relação interpessoal, autoconhecimento e expressividade.
Nele, independente da ordem dos acontecimentos (apesar de sua
importância no desenvolvimento gradual da relação), vê-se que a multiplicidade
tanto na escolha de atividades por Bruna, quanto nas propostas espontâneas,
um processo de apropriação de si mesma foi favorecido:
Assim, se em muitos momentos o terapêutico é um fazer conjunto – terapeuta e paciente –, em outros é o paciente fazer sozinho e ainda em outros é o paciente ensinando técnicas ao terapeuta. Trata-se de brincar de fazer e de saber. O sujeito, assim, aprende a construir seu saber. O saber sobre o fazer, sobre o seu cotidiano, sobre si (Fernandes, 2006, p. 127).
Foi vivenciado, portanto, o desabrochar de um mundo de
experimentações para Bruna, às vezes compartilhado, em outros momentos
individual. Bruna pode ter contato com outras formas de relação interpessoais e
objetais, além de colocar-se em diferentes papéis, como aprendiz, de parceria,
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de criadora e professora. Concretizou-se, também, uma horizontalidade na
relação terapeuta-paciente-atividades, entendendo que, nesses momentos, “O
vínculo terapeuta-paciente faz um intenso convite para um envolvimento mais
vigoroso com os outros e com o mundo” (Castro, 2005, p. 18). Observa-se aí,
nas sutilezas da relação terapêutica, a grande potência do estar junto.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No caso apresentado acima, foi possível observar o delineamento do
processo terapêutico de forma gradual. Bruna é uma criança com grande
potencial de desenvolvimento e volição para tal.
No âmbito da criação do vínculo terapeuta-paciente, nota-se que, por
mais que a criança não tenha passado a apresentar maior comunicação verbal
nos atendimentos, com falas espontâneas de relatos pessoais ou maior
frequência de fala, seu desenvolvimento e transformações em relação à
escolha e desempenho nas atividades foram uma das (se não a maior) formas
de comunicação e expressão e observação do crescimento e amadurecimento
psíquico de Bruna.
Bruna apresenta desejo por se expressar. Por interação. Ao ser
apresentada a novas formas de expressividade, apresentou grande
engajamento. Teve iniciativa para ensinar uma atividade à terapeuta
ocupacional. Momento que também foi potente para a vinculação entre ambas.
Além da possibilidade de vivenciar e desempenhar um novo papel. Bruna, que
é a filha, a aluna, a paciente, papéis que a colocam numa posição à primeira
vista inferior hierarquicamente, pode experimentar ser a detentora do saber,
pode ensinar.
O setting terapêutico possibilita a criação e experimentação de novos
espaços, papéis e interações. Nele, a sutileza do cuidado em saúde mental se
concretiza por meio do estar junto e do fazer humano e criativo. Bruna, além de
ter vivenciado transformações no processo terapêutico, também provocou
afetações e mudanças na terapeuta ocupacional, no sentido de que as sessões
possuem um aspecto dinâmico e provocador, que coloca o profissional em
constante questionamento em relação às suas práticas e adequação frente as
demandas do sujeito.
Estar junto, de fato, é, e deve ser, mobilizador. O processo vivenciado
com Bruna mostra que, sem o alinhamento e abertura para a vinculação entre
terapeuta-paciente (esta, única a cada dupla), o setting terapêutico poderia ter
sido uma repetição de vivências excludentes e relações frágeis que a criança
vivencia/ou em outros espaços.
22
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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