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Eletrocardiograma: teste mais rápido para diagnosticar hiperpotassemia Antonio Américo Friedmann I Serviço de Eletrocardiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo A técnica do Serviço de Eletrocardiografia terminou os re- gistros dos eletrocardiogramas (ECG) dos pacientes acama- dos da enfermaria de Clínica Médica. Preocupada, deixou por cima da pilha de exames o ECG mais alterado (Figura 1) e chamou o médico responsável pelos laudos. Este, de relan- ce, murmurou “hiperpotassemia”! Foram até a enfermaria e observaram que o paciente, de 82 anos, internado na véspe- ra, prostrado, aguardava os resultados dos exames de labo- ratório. Demoraram preciosos minutos para consegui-los. O potássio estava 8,3 mEq/l, a ureia, 134 mg% e a creatinina, 2,7 mg%. O cardiologista conjecturou: “o ECG foi bem mais rápido”! Como o sangue havia sido colhido de madrugada, o nível de potássio poderia estar agora ainda mais elevado. Assim, medicamentos para reduzir a hiperpotassemia, como gluconato de cálcio endovenoso e infusão de bicarbonato de sódio, foram prontamente administrados e o doente passou para os cuidados da equipe de nefrologia. DISCUSSÃO A elevação dos níveis plasmáticos de potássio determina uma sequência de modificações no ECG: aumento da am- plitude da onda T, alargamento do QRS e esmaecimento da onda P. A presença destas três alterações é patognomônica de hiperpotassemia e permite ao médico experiente o diagnósti- co imediato pelo reconhecimento do padrão. O aumento de amplitude onda T é a primeira alteração que surge no ECG quando os níveis de potássio sérico começam a se elevar. A onda T torna-se alta, pontiaguda e simétrica, com base estreita, inferior a 0,20 s. A morfologia característica é classicamente descrita como padrão “em tenda”, por analogia ao formato da tenda do índio norte-americano. Sua eletrogê- nese parece estar relacionada ao aumento da velocidade da fase 3 do potencial transmembrana, que também acarreta di- minuição do intervalo QT na fase inicial da hiperpotassemia, antes do alargamento do QRS. 1 No caso apresentado, as on- das T são ligeiramente assimétricas devido ao encurtamento relativo do intervalo QT pela hipercalemia. O alargamento do QRS causado pela hiperpotassemia si- mula inicialmente bloqueio de ramo. Se a concentração de potássio continua subindo, o QRS se alarga ainda mais, ad- quirindo aspecto bizarro, semelhante aos QRSs de origem idioventricular, como os das extrassístoles e taquicardias ventriculares, fundindo-se com a onda T de amplitude au- mentada, configurando aberração característica. 1,2 Com o aumento dos níveis de potássio, a onda P diminui gradativamente de amplitude até desaparecer. Apesar da parada da despolarização atrial, a origem do estímulo conti- nua sendo sinusal, porque as células do nó sinusal são mais resistentes à hiperpotassemia do que as do miocárdio atrial. Neste caso, o ritmo é denominado sinoventricular, e no ECG é encontrada inscrição de complexos QRSs com intervalos I Professor livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Editor responsável por esta seção: Antonio Américo Friedmann. Professor livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: Rua Itapeva, 574 — 5 o andar — São Paulo (SP) — CEP 05403-000 E-mail: [email protected] Fonte de fomento: nenhuma declarada. Conflito de interesse: nenhum declarado. Entrada: 3 de fevereiro de 2018. Última modificação: 3 de fevereiro de 2018. Aceite: 26 de fevereiro de 2018. ELETROCARDIOGRAMA Diagn Tratamento. 2018;23(2):59-60. 59

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Eletrocardiograma: teste mais rápido para

diagnosticar hiperpotassemiaAntonio Américo FriedmannI

Serviço de Eletrocardiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

A técnica do Serviço de Eletrocardiografia terminou os re-gistros dos eletrocardiogramas (ECG) dos pacientes acama-dos da enfermaria de Clínica Médica. Preocupada, deixou por cima da pilha de exames o ECG mais alterado (Figura 1) e chamou o médico responsável pelos laudos. Este, de relan-ce, murmurou “hiperpotassemia”! Foram até a enfermaria e observaram que o paciente, de 82 anos, internado na véspe-ra, prostrado, aguardava os resultados dos exames de labo-ratório. Demoraram preciosos minutos para consegui-los. O potássio estava 8,3 mEq/l, a ureia, 134 mg% e a creatinina, 2,7 mg%. O cardiologista conjecturou: “o ECG foi bem mais rápido”! Como o sangue havia sido colhido de madrugada, o nível de potássio poderia estar agora ainda mais elevado. Assim, medicamentos para reduzir a hiperpotassemia, como gluconato de cálcio endovenoso e infusão de bicarbonato de sódio, foram prontamente administrados e o doente passou para os cuidados da equipe de nefrologia.

DISCUSSÃO

A elevação dos níveis plasmáticos de potássio determina uma sequência de modificações no ECG: aumento da am-plitude da onda T, alargamento do QRS e esmaecimento da onda P. A presença destas três alterações é patognomônica de hiperpotassemia e permite ao médico experiente o diagnósti-co imediato pelo reconhecimento do padrão.

O aumento de amplitude onda T é a primeira alteração que surge no ECG quando os níveis de potássio sérico começam a se elevar. A onda T torna-se alta, pontiaguda e simétrica, com base estreita, inferior a 0,20 s. A morfologia característica é classicamente descrita como padrão “em tenda”, por analogia ao formato da tenda do índio norte-americano. Sua eletrogê-nese parece estar relacionada ao aumento da velocidade da fase 3 do potencial transmembrana, que também acarreta di-minuição do intervalo QT na fase inicial da hiperpotassemia, antes do alargamento do QRS.1 No caso apresentado, as on-das T são ligeiramente assimétricas devido ao encurtamento relativo do intervalo QT pela hipercalemia.

O alargamento do QRS causado pela hiperpotassemia si-mula inicialmente bloqueio de ramo. Se a concentração de potássio continua subindo, o QRS se alarga ainda mais, ad-quirindo aspecto bizarro, semelhante aos QRSs de origem idioventricular, como os das extrassístoles e taquicardias ventriculares, fundindo-se com a onda T de amplitude au-mentada, configurando aberração característica.1,2

Com o aumento dos níveis de potássio, a onda P diminui gradativamente de amplitude até desaparecer. Apesar da parada da despolarização atrial, a origem do estímulo conti-nua sendo sinusal, porque as células do nó sinusal são mais resistentes à hiperpotassemia do que as do miocárdio atrial. Neste caso, o ritmo é denominado sinoventricular, e no ECG é encontrada inscrição de complexos QRSs com intervalos

IProfessor livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Editor responsável por esta seção: Antonio Américo Friedmann. Professor livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Endereço para correspondência:Rua Itapeva, 574 — 5o andar — São Paulo (SP) — CEP 05403-000E-mail: [email protected]

Fonte de fomento: nenhuma declarada. Conflito de interesse: nenhum declarado.Entrada: 3 de fevereiro de 2018. Última modificação: 3 de fevereiro de 2018. Aceite: 26 de fevereiro de 2018.

ELETROCARDIOGRAMA

Diagn Tratamento. 2018;23(2):59-60. 59

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Figura 1. Alterações típicas de hiperpotassemia: ritmo regular com frequência cardíaca de 88 bpm. Onda P com amplitude muito diminuída. QRS alargado (200 ms) com orientação para a esquerda (-30° para trás). Ondas T com voltagem muito aumentada (> 1 mV) e pontiagudas.

geralmente regulares e ausência das ondas P, algo indistinguí-vel do ritmo juncional.2

Outras alterações, como o supradesnivelamento do segmen-to ST, podem ocorrer em fase avançada de hiperpotassemia e simular outros diagnósticos, como infarto agudo do miocárdio. O desvio do segmento ST é provavelmente causado por repo-larização não homogênea em diferentes regiões do miocárdio.3

No paciente renal crônico, as bradiarritmias são frequentes, seja por bradicardia sinusal ou por bloqueio atrioventricular de variados graus. Entretanto, na insuficiência renal aguda com hi-perpotassemia, quando associada a quadros sépticos ou a ins-tabilidade hemodinâmica, verifica-se aumento da frequência

cardíaca. Nestas situações, a taquicardia com ausência de onda P e alargamento do QRS simula taquicardia ventricular.4 Quando a hiperpotassemia não é devidamente controlada, o enfermo evolui para óbito por fibrilação ventricular ou parada cardíaca.

CONCLUSÃO

A hiperpotassemia determina alterações típicas no ECG. Como este é um exame simples, rápido e de fácil interpreta-ção, é mister que médicos de diversas especialidades estejam familiarizados com essas manifestações. O pronto diagnósti-co deste distúrbio eletrolítico pode salvar vidas.

1. Friedmann AA. O ECG em doenças não cardíacas. In Pastore CA, Samesima N, Tobias N, Pereira Filho HG, editores. Eletrocardiografia atual. Curso do Serviço de Eletrocardiografia do INCOR. 3a ed. São Paulo: Atheneu; 2016. p. 289-302. ISBN: 9788538807001.

2. Friedmann AA. ECG no Hospital Geral. In: Friedmann AA, editor. Eletrocardiograma em 7 aulas. Temas avançados e outros métodos. 2a edição. Editora Manole, São Paulo, 2016. p.93-116. ISBN: 9788520451489.

REFERÊNCIAS

3. Silva APSS, Mioto BM, Grindler J, Friedmann AA. Alteração metabólica simulando infarto agudo do miocárdio. Diagn Tratamento. 2006;11(1):45-6.

4. Nishizawa WAT, Friedmann AA, Grindler J, Oliveira CAR. Alargamento do QRS simulando taquicardia ventricular. Diagn Tratamento. 2004;9(3):128-9.

Diagn Tratamento. 2018;23(2):59-60.60

Eletrocardiograma: teste mais rápido para diagnosticar hiperpotassemia