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PRODUÇÃO DE QUEIJO DE COALHO CASEIRO: ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO SOCIAL E ECONÔMICA NA AGRICULTURA FAMILIAR
DO MUNICÍPIO DE PORTO DA FOLHA/SE¹
José Natan Gonçalves da Silva Membro do GRUPAM
Universidade Federal de Sergipe (UFS) [email protected]
Sônia de Souza Mendonça Menezes
Líder do GRUPAM Universidade Federal de Sergipe (UFS)
Resumo
O presente artigo tem por objetivo analisar a produção do queijo de coalho caseiro como uma estratégia de reprodução social e econômica dos agricultores familiares no município de Porto da Folha/SE. Como procedimento metodológico iniciamos com uma revisão bibliográfica fundamentada em pesquisas realizadas sobre a temática e em seguida a pesquisa de campo junto aos atores envolvidos com essa prática. A produção queijeira representa uma estratégia de sobrevivência para esses atores sociais, que em meio às adversidades do seu ambiente, consideram-na como principal fonte de renda. Comprovamos que essa atividade na contemporaneidade ainda é transmitida pelas gerações familiares, sendo sustentada pelo sentimento de autonomia e se encontra intensamente arraigada à vida social desses indivíduos.
Palavras-chave: Queijo de coalho caseiro. Reprodução social. Agricultores familiares. Autonomia.
Introdução
O trabalho aqui realizado tem como proposta apreender o sistema de produção
agroalimentar dos derivados de leite artesanais, especialmente do queijo de coalho
caseiro no município de Porto da Folha – o qual está integrado ao Território da
Cidadania do Alto Sertão Sergipano –, como uma cultura e um modo de vida enraizado
na história local,que contribui na reprodução social e econômica dos agricultores
familiares.
O saber-fazer cultural desse gênero alimentício foi, e ainda continua sendo, transmitido
no município, cuja elaboração envolve prioritariamente a participação dos componentes
familiares e representa em alguns casos à única fonte de renda dos mesmos.
Como recursos metodológicos iniciamos com a revisão bibliográfica e em seguida a
pesquisa empírica que proporcionou o contato direto com os diversos ambientes de
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vivência dos produtores de queijo, podendo visualizar, por exemplo, a organização
espaço-temporal no cumprimento das atividades queijeiras, como também, por meio de
diálogos e posteriores reuniões, verificar o porquê da continuidade dos mesmos com
essas práticas tradicionais e qual a importância para sua reprodução social. Até o
momento, foram aplicados 47 questionários, distribuídos em 14 localidades (13
povoados e comunidades rurais e a sede municipal). Esse procedimento possibilitou a
obtenção de dados que enriqueceu a pesquisa, a partir do debate empírico-conceitual e
teórico-científico.
Como resultados, verificamos a importância dessa atividade no meio rural geradora de
renda, essencial a sustentabilidade dos agricultores familiares (produtores de queijo) e a
sua permanência no campo.
Além da introdução, o artigo está estruturado sequencialmente na fundamentação
teórica (da territorialidade a garantia da sustentabilidade econômica e social no campo),
pesquisa empírica e resultados obtidos (produção de queijo artesanal: alternativas da
agricultura familiar em Porto da Folha), considerações finais e referências.
Da territorialidade a garantia da sustentabilidade econômica e social no campo
Estudar o sistema de produção agroalimentar do queijo de coalho caseiro no município
de Porto da Folha é fazer referência às estratégias de reprodução social, adotadas
poragricultores familiares, sertanejos e sertanejas, a fim deadquirirem sustentabilidade
econômica e autonomia ante as condições históricas fundiárias as quais estão inseridos.
O processo intensivo de exploração das terras do sertão nordestino origina na segunda
metade do século XVI, quando inicia o seu povoamento promovido pelos colonizadores
de influência da corte portuguesa através do sistema de doações de sesmarias. Segundo
Andrade (1988, p.62), essa região “era considerada de boa qualidade para a pecuária
ultra-extensiva em campo aberto”, colonizada com o propósito de fornecimento de
animais (bovinos e equinos) e mantimentos alimentares para a promissora zona da mata
canavieira e constituiu nos maiores latifúndios brasileiros, tornando-se os sesmeiros
detentores de vastas extensões territoriais (ANDRADE, 2005).
Diante disso, a pecuária sobressaiu – e ainda sobressai – como a principal atividade
econômica do sertão e tem como figura emblemática o vaqueiro, responsável pelo
gerenciamento da fazenda e a lida com o gado. Esse indivíduo apesar de estar à margem
do sistema pecuarista se incluía em um trabalho livre cuja remuneração se caracterizava
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através da “quarteação”, ou seja, um quarto dos animais da propriedade lhe pertencia
(DINIZ, 1986;MENEZES, 2009). Segundo Andrade (2005, p.188) em alguns casos o
vaqueiro também poderia criar na fazenda “cabras, porcos e carneiros e tinha o direito à
produção de leite e queijo”. É nesse contexto, que surge à elaboração do queijo artesanal
no Nordeste, quando segundo Menezes (2009), aproveitava-se o leite e a produção de
seus derivados na alimentação diária dos pequenos agricultores familiares.
O trabalho livre permitiu em alguns casos o progresso de muitos vaqueiros e
consequentemente, o surgimento de pequenas propriedades agrícolas no sertão
nordestino, geridas exclusivamente pela família. Essas propriedades, no entanto, não
possuíam dimensões suficientes para manter-se através da pecuária extensiva, sendo a
produção em pequena escala de leite e seus derivados e a agricultura de subsistência
(milho, feijão, mandioca) os meios de sobrevivência familiar.
Desde já, é necessário antes de iniciarmos a abordagem da conjuntura atual do sistema
de produção do queijo de coalho, conceituar esse alimento a partir de dois processos de
produção diferenciados fundamentado por Menezes (2009), ou seja, define queijo de
coalho caseiro aquele elaborado no interior da residência do estabelecimento rural,
matéria-prima originária da própria unidade de produção, mão-de-obra exclusivamente
familiar e sem estruturação do sistema de pagamento assalariado, já o queijo de coalho
produzido em fabriquetas de derivados de leite é elaborado em um estabelecimento a
parte da propriedade rural, matéria-prima proveniente de outros estabelecimentos
agropecuários (em alguns casos adquire-se o leite também da unidade de produção),
podendo ser a mão-de-obra familiar ou contratada, mas com um sistema de pagamento
semanal.
Atualmente, a produção do queijo de coalho artesanal – saber-fazer transmitido e
referenciado pelas gerações familiares (MENEZES; CRUZ; MENASCHE, 2010) –
insere-se em um mercado local e regional e passa a portar não somente valor de uso,
mas também, valor de troca. Contudo, para Franz, Pinto e Salamoni(2011, p.335) a
manutenção e a funcionalidade da agricultura familiar “ultrapassam a dimensão
econômica da geração de renda ou de lucro [...] isto é, o objetivo da agricultura familiar
não é a acumulação de capital, mas a reprodução familiar e a manutenção da
propriedade”, visto que, “a terra não é apenas um fator de produção, mas é também
carregada de valores simbólicos” (WOORTMANN, 1995, p.47).
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Sendo assim, por mais significativa que seja a subordinação do agricultor familiar em
fase ao crescimento do agronegócio, Abramovay (2009, p.107) enfatiza que no
semiárido nordestino “uma parte muito importante da geração de renda vai depender
antes de tudo do trabalho autônomo e familiar”, configurando-se como principal meio
de sobrevivência diante das adversidades sociais vivenciadas pelos mesmos.
É por meio de práticas rotineiras alicerçadas pelo grupo familiar que os agricultores
resistem ao domínio do capitalismo agrário, tendencioso a fragmentação das atividades
tradicionais. Tais mecanismos refletem as “diversas estratégias que grupos sociais
utilizam de forma a garantir sua autonomia e dignidade em face às relações de
exploração e dominação” (MENEZES, M.; MALAGODI, 2011, p.63), além de
confrontar com o pensamento determinista de que o agricultor familiar necessita está
integrado ao agronegócio para garantir sua sustentabilidade no campo.
Franz, Pinto e Salamoni(2011) corroboram com o pensamento de multifuncionalidade
desempenhado pelos sistemas de produção agroalimentar familiares, por
proporcionarem o socioprodutivismo localizado, responsabilizando-se pela garantia da
sustentabilidade familiar e da sociedade, a partir do autoconsumo e da comercialização
do excedente da produção. Promove-se, ainda, o desenvolvimento socioeconômico ao
gerar empregos de mão-de-obra familiar e consequentemente, a manutenção do tecido
social rural, além de permitir a preservação cultural das práticas tradicionais de
produção e das relações de sociabilidade e reciprocidade estabelecidas entre os
componentes da família e desses com a comunidade.
Não podemos nos redimir somente ao fator econômico desempenhado pela pequena
propriedade rural, pois, a mesma é um espaço de reprodução social e vida do grupo
familiar. Nessa perspectiva, Krone (2009, p.112) ao analisar o sistema de produção
queijeiro de agricultores tradicionais nos Campos de Cima da Serra no Rio Grande do
Sul, reforça o nosso pensamento ao ressaltar que a terra para esses atoresé “projetada
como um patrimônio de família e pensada a partir das suas valorações simbólicas.
Assim, a posse e uso da terra são condição não apenas para a transmissão material da
terra, mas também para a transmissão e reprodução do modo de vida”.
O queijo artesanal é ainda produtor de “categorias sociais, pois o processo de trabalho,
além de ser um encadeamento de ações técnicas, é também um encadeamento de ações
simbólicas, ou seja, um processo ritual” (WOORTMANN e WOORTMANN, 1997,
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p.15), referenciado por aprendizados adquiridos e compartilhados na trajetória de vida
desses sertanejos.
É perceptível nessa abordagem, que “no mundo rural, efetivam-se relações com a terra,
na família, com os vizinhos, na comunidade e com sujeitos da cidade. Esses
indivíduosse interagem, especialmente, cultural (psicológica) e economicamente”
(SAQUET, 2010, p.49) através das relações recíprocas de convivência, o que
proporciona o fortalecimento da territorialidade.
Com base no pensamento de Haesbaert (2009), percebemos que as redes de produção do
queijo de coalho caseiro formam territórios identitários, simbolicamente apropriados
pelos atores locais, representando a identidade de um povo, construída historicamente.
“Estamos, pois, diante de um conjunto amplo de atores e de redes e grupos de atores,
que caracterizam e demarcam a paisagem social onde todos atuam” (MENEZES, M;
MALAGODI, 2011, p.54), cuja atuação cotidiana em favor da garantia de
independência é segundo Saquet (2010),o principal elemento da territorialidade que o
faz constituir seu território.
A configuração e a permanência dessas práticas no espaço vivido condicionaram a
apropriação e demarcação simbólica desse território.Valendo ressaltar, que apesar do
espaço possuir ritmos acelerados de mudanças “podem ser múltiplas também as
possibilidades [...] que o espaço social nos proporciona para a reconstrução de nossos
referentes territoriais, materiais e imateriais, funcionais e simbólicos” (HAESBAERT,
2009, p.371), ou seja, à medida que sofremos processos desterritorializantes, somos
condicionados por nossos referentes territoriais a reterritorialização do nosso espaço
vivido.
Não deve ser desconsiderado que em meio aos processos desterritorializantes e
reterritorializantes tão intensos na atual dinâmica do mundo globalizado, nãosejam
reconfiguradas as nossas práticas territoriais. Entretanto, Saquet (2010, p.114)
reconhece que “há uma relação de complementaridade entre o local e o global, sem
anular o território”, uma vez que, não é perdida a essência da identidade historicamente
construída. Eis, então, a explicação da existência atualmente de um sistema de produção
queijeiro artesanal referenciado por agricultores familiares a partir de procedimentos e
técnicas tradicionais.
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Produção de queijo artesanal: alternativas da agricultura familiar em Porto da Folha Porto da Folha localizado no Alto Sertão Sergipano possuía segundo o IBGE 27.146
habitantes no ano de 2010 com uma área de 877,297 km². Sua população é
predominantemente rural, 63,3%, residindo na zona urbana 36,7% dos seus habitantes,
esses também diretamente relacionados à dinâmica do campo.
Figura 1 – Localização do município de Porto da Folha.
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
O povoamento do município deu início no século XVII pelo colonizador
TomázBermudez que fizera amizade com os índios Romaris ou Reumirins, sendo em 19
de fevereiro de 1835 elevado a categoria de vila com o nome São Pedro do Porto da
Folha.
A sua economia está intimamente relacionada às práticas pecuaristas, tendo vários
resquícios históricos que revelam a importância dessas atividades na evolução do
município. Silva (1981 apud SOUZA, 2009, p.43) retrata que,
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Um documento de 1859 nos dá minuciosas informações sobre o volume e valor da produção do município no ano anterior. Infelizmente grande parte do documento é ilegível. Assim mesmo sabemos que Porto da Folha produzia, em 1858, mil litros de milho, possuindo aproximadamente seis mil cabeças de gado vacum e cavalar tendo produzido dois mil couros.
Além da significativa produção agropecuária para o referido período, Porto da Folha
como outras regiões ribeirinhas dosemiárido nordestino tem sua origem vinculada ao
estabelecimento de currais as margensdo Rio São Francisco e seus afluentes, onde
foram desenvolvidas as primeiras atividades de criação de gado no sertão do nordeste
(ANDRADE, 2005). A toponímia da Fazenda Curral do Buraco, fundada pelo
mencionado colonizador e que deu origem a atual sede municipal, torna evidente a
existência de práticas pastoris nos primórdios de sua povoação.
A persistência de vaquejadas de “pega de boi no mato” em Porto da Folha, consiste
segundo Menezes (2009, p.52), “em festas locais, cujos atores principais e seus
coadjuvantes são homens simples, cuja história está associada à criação ou lida com o
gado”, reforçando que os bovinos no passado eram procriados em meio à caatinga nas
“chamadas soltas, terras de uso comum, não apropriadas em caráter privado”
(WOORTMANNeWOORTMANN, 1997, p.19) e responsáveis pela sustentabilidade
dos sertanejos.
O predomínio da pecuária leiteira no município permitiu o surgimento de práticas
integradas à produção agroalimentar de derivados de leite, principalmente, quanto à
elaboração do queijo de coalho caseiro, destacando-se como maior produtor e
sobressaindo no “volume de leite processado, ocupando o segundo lugar, e ultrapassa,
em 2009, Nossa Senhora da Glória no quantitativo de fabriquetas de queijo”
(MENEZES, 2009, p.212).
Esses dados referentes ao município, conforme Silva, Santos e Menezes (2012) são
significativosdevido à conjuntura fundiária a qual estão incluídos os pequenos
agricultores de Porto da Folha, ou seja, muitos desses detentores de estabelecimentos
rurais com pequenas dimensões e reduzida criação de gado, optam pela produção e
comercialização do queijo caseiro, atividade essencial para a obtenção de renda
fundamental a sua continuidade no meio rural.
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Tabela 1: Porto da Folha Produção do Queijo de Coalho Caseiro 2011-2012 Localidades Número de
produtores pesquisados
Dimensão dos estabelecimentos
rurais pesquisados (média hectares)
Qtde. de vacas
ordenhadas (média)
Litros de leite vol/dia (média)
Qtde. de queijo
produzido (média=kg)
Campinas 4 45,2 21 165 16,5 Lagoa do Rancho 6 63,4 13 122 12,2
Lagoa Grande 2 36,5 13 120 12,0 Caatinga 1 16,6 17 110 11,0 Craibeiro 10 26,3 12 103 10,3
Linda França 3 10,4 11 103 10,3 Estado 1 45,5 16 100 10,0
Chumbinho 2 18,2 12 95 9,5 Matinha 1 9,4 8 90 9,0 Serra dos Homens
6 54,5 9 88 8,8
Linda Flor 5 13,6 7 63 6,3 Porto da Folha
(sede municipal) 3 80,9 7 33 3,3
Lagoa Redonda 1 18,9 4 30 3,0 Serra da Marreca 2 13,0 3 18 1,8
Total 47 32,3 11 88,5 8,8 Fonte: Pesquisa de campo, Porto da Folha/SE, 2011-2012.
A partir da pesquisa de campo denotamos a presença de pequenas propriedades com
uma média de 32,3 hectares de terra, onde são criadas em média 30 cabeças de gado das
quais, 11 se reduzem em vacas ordenhadas, obtendo-se 88,5 litros de leite diariamente e
são produzidos aproximadamente 9 quilos de queijo.
Diante de unidades de produção fragilizadas em decorrência das não promissoras
estruturas sociais e fundiárias as quais são submetidos esses atores, percebemos
que“vários são os cenários, alicerces e caminhos que reforçam a tradição das ações dos
agricultores no ambiente social, econômico e natural no qual estão inseridos e no qual
construíram estratégias para se estabelecer”(FONSECA et al., 2011, p.318) em uma
terra, local de trabalho e reprodução de suas vidas.
Apesar do díspar climático da região gaúcha dos Campos de Cima da Serra com o
semiárido nordestino, a produção do queijo serrano assemelha-se ao queijo de coalho
caseiro, cuja matéria-prima, segundo Cruz e Menasche (2011), provém do próprio
estabelecimento rural e é protagonizada pelos atores locais. Essa cultura queijeira
mantida por esses sujeitos, “deve ser ainda entendida como construção e
(re)construçãodas inter-relações historicamente edificadas a partir de saberes pautados e
repassados por gerações no decorrer do tempo” (MENEZES, 2009, p.121), enraizados
nos referidos territórios queijeiros.
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O queijo caseiro é produzido com em média 10 litros de leite cru e requer diversos
procedimentos para sua elaboração, como o armazenamento da matéria-prima em um
recipiente, adição do coalho no leite, corte da coalhada, separação do resíduo (soro) e a
produção de maneira artesanal, com o uso de equipamentos rudimentares como a forma
e a prensa de madeira. Contudo,
Achar que a rusticidade significa atraso é manter-se alheio à compreensão da prática do agricultor. A aparente simplicidade na prática agrícola e na vida das populações rurais guarda um conjunto de saberes que deve ser levado em conta na proposição de programas de desenvolvimento para o meio rural (FONSECA et al., 2011, p.318).
Entender as diversas estratégias organizacionais dos agricultores familiares requer o
abandono de preconceitos ante as relações de produção tradicionais que permeiam o
campo. Diniz (1986, p.121) compartilha com essa indagação, ao enfatizar quenão
podemos “se revestir do ponto de vista tecnocrático de que o agricultor desconhece
técnicas, que precisa ser “ensinado”, “doutrinado”. De fato, o agricultor possui uma
experiência e um aprendizado adquirido por observações de erros”, lhes permitindo a
sobrevivência a partir de práticas desenvolvidas e aprendidas pelos mesmos.
Em fase ao processo artesanal de produção do queijo caseiro, sobressai o papel da
mulher para a manutenção dessa atividade. Fato confirmado, quando os produtores
mencionaram que esse aprendizado advém, principalmente, de suas mães e avós. A
produtora JCS ao ser instigada com essa indagaçãorevela: “aprendi a fazer queijo a
mais de 30 anos olhando minha mãe fazer”. Sendo assim, Claval (2001), aborda o
quanto a família é importante para ensinar e conduzir os seus aprendizados. Logo,
anteriormente o queijo possuía somente valor de uso e ao portar valor de troca, através
da sua ascensão produtivista, observamos um significativo aumento de homens
exercendo essa atividade, antes exclusivamente de incumbência feminina (MENEZES,
2009).
Woortmann eWoortmann (1997) ao estudarem as relações cotidianas e de trabalho de
sitiantes em vários municípios sergipanos como Ribeirópolis, Itabi e Porto da Folha,
abordam relações de gênero no ambiente familiar, no tocante as atividades do campo
destinadas à mulher e ao homem. Enquanto a esse se designa o trabalho para fora de
casa, como: a lida com a lavoura, a criação e cuidados com o gado, ou seja, atividades
mais árduas do campo. As mulheres cabem os afazeres domésticos no interior da
residência do estabelecimento rural e nas suas cercanias. Desde então, na produção
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queijeira se incube ao homem apenas a ordenha das reses, ou seja, o leite produto do
trabalho masculino “retorna para casa, onde passa para o governo da mulher” (Idem,
1997, p.38) e se torna o principal recurso para a elaboração do queijo, esse produto do
trabalho feminino.
A continuidade dessas práticas está alicerçada pelas redes de sociabilidade entre os
atores pertencentes ao território. Portanto, para Saquet (2010, p.115) a “territorialidade é
um fenômeno social, que envolve indivíduos que fazem parte de grupos interagidos
entre si, mediados pelo território [...] o agir social é local, territorial e significa
territorialidade”. Essas redes de compartilhamento de experiências são ainda
fortalecidas, ao percebermos que os sujeitos ativos no território estão interligados por
relações de parentesco,ou seja, uma “instância particular do princípio mais geral de
“comunalidade” ou “afinidade” e seu conteúdo principal (em nosso sistema cultural)
pode ser definido como solidariedade” (WOORTMANN, K., 1987, p.150), algo
verificado na pesquisa quando é mencionado pelos produtores a existência de algum
parente que também produz o queijo, ou seja, houve a sociabilização dos aprendizados
impulsionado pelo “seio” familiar que promoveu “a construção de uma identidade
pelo/com o território” (HAESBAERT, 1999, p.178).
A produção de queijo vem sendo impulsionada nas últimas décadas pela “demanda de
um mercado consumidor, ascendente nos espaços urbanos a partir da década de 1970”
(MENEZES, 2009, p.121), refletindo a permanência dos referentes territoriais daqueles
que migraram do território simbólico-queijeiro.
Dentre os principais destinos do produto se destacam Aracaju e oestado das Alagoas,
cujo processo de comercialização está sustentado por redes de proximidade entre
produtores e comerciantes/intermediários. Para os produtores de queijo artesanal, os
atores sociais responsáveis pela rede de comercialização são propagadores de sua
produção eessencialpara a continuidade da atividade em períodos não tão favoráveis,
uma vez que, comprometem-se na compra do produto mesmo com uma lucratividade
incerta. Esse fato se dá pelas relações de parentesco então existentes.
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Fonte: Pesquisa de campo, Porto da Folha/SE, 2011-2012.
A população local também se apresenta como uma das consumidoras desse gênero
alimentício, estando o queijo sempre presente nas refeições dos habitantes do
município. Além disso, o queijo não perdeu sua valoração de uso, sendo utilizado para
presentear os que ali não residem. Tal fato, também foi verificado porKrone (2009) e
Menezes (2009)ao evidenciarem o significado de reciprocidade contido nesse produto.
As feiras-livres locais são importantes difusoras comerciais do queijo caseiro, como
também, responsáveis pela sustentabilidade econômica do grupo social, visto que, para
muitos é o único local de onde será obtida a renda familiar. Menezes, Cruz e Menasche
(2010, p.07), ao analisarem esse sistema de comercialização reforçam que o “saber-
fazer e o queijo deixa de estar geograficamente restrito aos espaços das residências,
como no passado, constituindo-se, nas duas últimas décadas, em estratégia de geração
de renda”.Estamos, portanto, diante devários atores – produtores de queijo,
comerciantes e consumidores (locais ou não) – que contribuem na permanência dessa
atividade e consequentemente, no processo de territorialidade, tendo em vista, que essa
“não depende somente do sistematerritorial local, mastambém de relações
intersubjetivas; existem redes locais de sujeitos que interligam o local com outros
lugares” (SAQUET, 2010, p.115).
No tocante ao valor do queijo, esse se alterna de acordo com a sazonalidade. No inverno
a partir das primeiras chuvas regulares, a pastagem natural brota e o rebanho é
alimentado com poucos custos para o agricultor (ANDRADE, 1988), como
28,30%
21,70%18,30%
11,70%
5%5%
3,30% 3,30%
1,70%
1,70% Aracaju
População Local
Alagoas
Feiras-livres Locais
Nossa Senhora da Glória
Monte Alegre de Sergipe
Itabaiana
Cumbe
Estância
Aquidabã
Porto da FolhaDestino do Queijo de Coalho Caseiro
2011-2012
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consequência, aumenta a produção do leite e a oferta do queijo, logo decai o preço do
produto. No verão, com a estiagem e em alguns anos a seca,os bovinos são alimentados
à base de soja, farelo de milho, silo, caroço de algodão, produtos encontrados no
mercado local. No entanto, o principal suplemento alimentar é a palma, segundo
Andrade (2005, p.206), uma cultura incentivada para “melhorar as condições de
produtividade do gado e criar outras áreas leiteiras”. Essas circunstâncias aumentam o
custo com a produtividade do leite, reduz a sua oferta e consequentemente, eleva o
preço do queijo.
Atrelada à produção do queijo, verificamos a criação de suínos nas imediações da
unidade de produção queijeira, tendo em vista, que a alimentação desses animais é feita,
com restolhos de alimentos, milho e principalmente, através do resíduo do queijo (soro).
O pouco custeio com a suinocultura permite ao produtor de queijo obter uma renda
“extra”, configurando-se no que Menezes (2009) chamou de “poupança” do produtor
queijeiro, uma vez que, é utilizada na compra de bens materiais, mas também, em
períodos de dificuldades provocados pela diminuição da renda com a elaboração do
queijo e pelas adversidades temporo-climáticas acometidas no sertão. Logo, a
“diversidade em processos sociais e econômicos se reflete em fatores que pressionam e
oportunizam à família a adaptação e diversificação de seu meio de vida e, por
consequência, de seu meio rural, do local e da própria região” (PERONDI;
SCHNEIDER, 2011, p.205). Sendo assim, a criação de suínos e, sobretudo, a produção
de queijo são práticas econômicas rurais comuns no município de Porto da Folha,
condicionantes do aumento da renda familiar de vários sujeitos que resistem
estrategicamente em seus territórios de origem e consideram como meio de reprodução
social de suas vidas.
Conclusões
O queijo artesanal representa uma estratégia de sobrevivência desses agricultores, uma
vez que, a renda familiar é obtida a partir da produção e comercialização desse alimento
e em alguns momentos da criação de suínos, algo condicionante para a reprodução
social e econômica dos mesmos.
A manutenção dessa atividade coube, sobretudo, à mulher, visto que, apesar do
significativo aumento de homens envolvidos atualmente com a produção de queijo, são
elas as principais percussoras dessa prática.
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O aumento da produção do queijo de coalho está integrado à expansão da pecuária a
partir da década de 1970 e a demanda do mercado consumidor que continua a recorrer
pelos produtos referenciados no território queijeiro.
Logo, observamos que o produtor do queijo caseiro de Porto da Folha é detentor de
aprendizados e técnicas adquiridas e compartilhadas entre seus descendentes,
procedimentos que garantem até hoje a sua sustentabilidade e permanência no seu
território de origem.
Nota
____________________ 1Este artigo foi realizado com as informações do Projeto de Pesquisa: Queijo de coalho caseiro: o saber-fazer tradicional das mulheres camponesas e a geração de renda no Território do Alto Sertão Sergipano. Edital MCT/CNPq/SPM-PR/MDA Nº 020/2010.
Referências
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