Download - Pessoa Ortónimo2
Escola Secundária c/ 3.º Ciclo EB Joaquim de Araújo, Penafiel
Ano Lectivo 2009/2010
NOME ____________________________________________ Nº ______ Turma _____
PESSOA ORTÓNIMO
O fingimento poético
Fernando Pessoa considera que a criação artística implica a concepção de novas
relações significativas, graças à distanciação que faz do real, o que pode ser entendido como
acto de fingimento ou de mentira. O poeta parte da realidade, mas distancia-se, graças à
interacção entre a razão e a sensibilidade, para elaborar mentalmente a obra de arte.
Interessa-lhe a capacidade do Eu poético em estabelecer novas relações do Ser com o
Mundo e de dizer o que efectiva e intelectualmente sente. Daí que o fingimento seja a mais
autêntica sinceridade intelectual, pois “fingir é conhecer-se”.
A voz do poeta fingidor é a voz do poeta da modernidade. Recorre à ironia para pôr
tudo em causa, inclusive a própria sinceridade que, com o fingimento, possibilita a construção
da arte.
O acto poético apenas pode comunicar uma dor fingida, inventada, pois a dor real
continua no sujeito e os leitores tendem a considerar uma dor que não é a sua, mas que
apreendem de acordo com a sua experiência de dor. Daí que o conceito de fingimento seja o
de transfigurar, pela imaginação e pela inteligência, aquilo que sente naquilo que escreve.
Fingir é inventar, elaborar mentalmente conceitos que exprimem as emoções ou o que quer
comunicar.
Análise do poema “Autopsicografia”
Este poema constitui uma síntese do que Pessoa pensava sobre a génese e a
natureza da poesia.
O assunto desenvolve-se em três partes lógicas, correspondentes a cada uma das
estrofes.
O primeiro verso contém a ideia fundamental do poema - O poeta é um fingidor, que,
logo a seguir, é explicada por meio de uma particularização centrada na dor: Finge tão
completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.
Isto quer dizer que a poesia está no fingimento da dor e não na dor sentida,
experimentada. A dor real, para se elevar ao plano da arte, tem de ser fingida, imaginada,
expressa em linguagem poética, embora o poeta tenha de partir da dor real, A dor que
deveras sente.
Para haver poesia não basta a expressão espontânea da dor real. Isso seria o que um
doente faria ao relatar a sua dor ao médico. Para haver poesia, arte, tem de haver imaginação,
o real tem de ser expresso artisticamente para se concretizar em arte.
A concretização da dor no poema opera na memória do poeta o retorno à sua dor
inicial, parecendo-lhe a dor imaginada mais autêntica do que a dor real, sobrepondo-se o
objecto artístico à realidade concreta que lhe serviu de base.
Na segunda parte do poema (2ª estrofe), o sujeito poético alude à fruição artística por
parte do leitor. Este não sente a dor real que o sujeito poético sentiu, nem a dor imaginada que
este imaginou, nem mesmo a dor que o leitor tem, mas só a que ele não tem, isto é, o que o
leitor sente é uma quarta dor, que se liberta do poema ao ser interpretado à maneira de cada
um.
Nesta segunda estrofe há a referência a quatro dores: a dor sentida realmente pelo
sujeito poético; a dor fingida por ele; a dor real do leitor e a dor lida (dor que provém da
interpretação do leitor e que é fruto da sua percepção).
A terceira parte do poema (3ª estrofe), tal como anuncia a expressão e assim, constitui
uma espécie de conclusão: o coração, que simboliza a sensibilidade, é um comboio de corda,
que gira nas calhas de roda para entreter a razão. Aqui referencia-se a função lúdica da
poesia, que se inicia com a fruição do poeta quando cria algo. Mas também são aqui marcados
os dois pólos em que se processa a criação poética: o coração, onde o poema nasce, e a
razão, onde o poema é inventado, imaginado.
No aspecto morfossintáctico ressalta a ligação por meio do síndeto (coordenativa e)
das três estrofes do poema, impondo não só a divisão do texto, mas sugerindo também uma
sequência lógica no desenvolvimento do assunto.
Os verbos, com excepção da forma teve, encontram-se no presente do indicativo, em
concordância com a natureza teórica do poema, anunciada no título, o qual significa o estudo
que o sujeito poético faz do fenómeno psicológico que nele se opera aquando da criação
artística.
O acto de fingir é tão importante que o verbo é empregue várias vezes e é ainda
superlativizado pela expressão adverbial tão completamente, e também por meio da
subordinada consecutiva… que chega a fingir.
Significativas são as duas metáforas de valor simbólico que se encontram na última
estrofe: calhas de roda e comboio de corda. A primeira aponta para a função lúdica da
poesia e a segunda remete simbolicamente para o destino, para as fatalidades da vida (a roda
da vida).
Por meio do título, o sujeito poético quis expor a teoria da criação poética, de valor
universal, por se poder aplicar a todo o verdadeiro poeta.
Análise do poema “Isto”
O tema deste poema, tal como o anterior, é o da teoria da criação literária, da criação
poética. Parece até uma resposta a críticas nascidas de interpretações de Autopsicografia.
Na primeira estrofe (1ª parte), o poeta diz que o seu fingimento não é propriamente
mentira, mas uma síntese da sensação e da imaginação. O poeta não usa o coração porque
lhe basta a imaginação que concentra o sensível e o inteligível.
Em Autopsicografia o poeta fala na 3ª pessoa, dando a entender que a teoria
exposta tem aplicação universal. Aqui fala na 1ª pessoa e não há nenhuma frase de aplicação
universal.
Na segunda parte do texto (2ª estrofe), temos a confirmação do conteúdo da primeira,
baseada na experiência vivida do poeta. Aquilo que considera como a coisa mais linda são os
dados da imaginação. É de realçar a expressividade da comparação (“como um terraço”) a
simbolizar as aparências que escondem a realidade mais bela. Mas o “terraço” não é separado
da beleza que esconde, por isso parece sugerir-se que, no poeta, a inteligência/ imaginação
são um único acto de síntese que abarca simultaneamente as esperanças e os fracassos da
sua vida (o “terraço” – as aparências) e as belas realidades poéticas.
Enquanto em Autopsicografia o poeta distinguia dois momentos (o da sensação e o
da imaginação), aqui tudo se processa num só momento: as realidades (belas) subjacentes ao
“terraço” (aparências) são vistas por ele, poeta Pessoa, automática e simultaneamente.
Torna-se evidente aqui a doutrina platónica da reminiscência: olhar para as aparências
(as coisas deste mundo) e ver logo as realidades puras de um mundo mais elevado.
Na terceira parte (3ª estrofe), em jeito de conclusão, o sujeito poético afirma que
escreve “em meio do que não está ao pé”. O que está ao pé são as sensações, é o mundo das
aparências; “o que não está ao pé” é o mundo da inteligência, o mundo das realidades puras,
da imaginação que transforma, que eleva as sensações ao nível da literatura, ao nível da
poesia. Só quando o poeta está “livre do seu enleio” e “sério do que não é” é que pode dar-se o
milagre da poesia, porque liberto não usa o coração. Este penúltimo verso (sério do que não é)
reitera a ideia do anterior.
O poeta fecha o poema com uma interrogação retórica e uma exclamação de sentido
irónico – depreciativo (“Sentir?”) que funciona como resposta ao “Dizem que finjo e minto” do
princípio do poema. O poeta não sente, deixa isso para os que lêem, para quem não é poeta e
brinca com o sensível, porque para ele tudo se passa no mundo das essências, da inteligência
– imaginação.
Apesar do vocabulário utilizado ser simples e estar dentro da norma, há divergências
de interpretação em passos do poema, uma vez que certas palavras de sentidos denotativos
vulgaríssimos, se carregam, no contexto, de conotações imprevistas. É o caso do fingimento do
poeta, que conota, não aquele que falta à verdade, mas o seu trabalho mental. Quando diz que
não usa o coração, não significa que não tem sensações, até porque ele parte delas. O que ele
quer dizer é que não é aqui que se elabora a grande poesia.