Percepção de cultura: a manutenção do conceito
evolucionista na sociedade brasileira
Andrei Moletta Scheiner (twitter.com/inobvio)
Resumo: A presença do conceito evolucionista de cultura no imaginário atual da sociedade brasileira através da análise de frases sobre a importância do Jornal do Brasil em realizar uma promoção que fornece bolsas de estudo de curso superior.
Rio de Janeiro, abril de 2004
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1 – Objetivo
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar, através de exemplos reais,
a existência do pensamento evolucionista na definição de cultura pelo senso comum
da sociedade Brasileira complexa e pós-moderna do início século XXI através de três
noções do termo:
• Cultura como acúmulo de conhecimento;
• Cultura como classificadora de algo no espaço-tempo;
• Cultura como sinônimo de arte.
2 – Metodologia
Serão analisadas frases que corroboram estas três noções derivadas do
evolucionismo, redigidas por leitores do Jornal do Brasil para a participação na
promoção "Leia o JB e concorra a 1 ano de faculdade grátis", realizada em fevereiro
de 2004 com moradores do Estado do Rio de Janeiro, maiores de 16 anos e com o
Ensino Médio concluído.1
O universo da análise é composto pelas 100 frases mais 'criativas'2
selecionadas pelo júri3, respondendo a seguinte pergunta: "Porque só o JB pode fazer
uma promoção como essa?". Estas 100 frases contemplaram4 100 pessoas com o
prêmio de um ano de mensalidade grátis em um curso de nível superior fornecido pela
da Universidade Estácio de Sá.
Dentro deste universo, foram retiradas como amostra para análise neste
trabalho as frases que continham as palavras 'cultura' e/ou 'cultural', totalizando 26
frases diferentes – mais que uma quarta parte do total. Destas 26 frases, utilizaremos
apenas 12 para exemplificarem o raciocínio aqui desenvolvido, já que muitas
transcrevem a mesma interpretação do pensamento.
1 Tal perfil de público participante foi deduzido a partir da análise do regulamento da promoção, disponível no site http://fdmbiz.com/fis/imagensjb/reg_1AnoFaculdade.htm (acesso em 04/04/2004). 2 O regulamento não deixa evidente, em nenhum momento, o critério utilizado para a seleção das frases premiadas. Tomemos como base o critério 'criatividade' então, já que é o mais utilizado neste tipo de concurso de criação de frases. 3 Cláusula 17 do regulamento da promoção: "(…) júri formado por profissionais das áreas de Circulação, Marketing e Redação da Editora JB S.A." (site citado). 4 A participação era condicionada ainda pelo preenchimento de uma cartela com selos publicados diariamente no jornal. Para melhor entendimento da mecânica da promoção, consultar o site http://www.fdmbiz.com/jb/promo/faculdade.asp (acesso em 04/04/2004).
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3 – A noção evolucionista de cultura na antropologia.
Devemos ter como instrumento primordial de entendimento a noção de cultura
'esboçada' pelo Iluminismo no século XVIII, época em que o centro do pensamento
filosófico eram os ideais de progresso, evolução, educação e razão sintetizados pela
Enciclopédia. Segundo Couche (1999), para o Iluminismo, o "progresso nasce da
instrução, isto é, da cultura, cada vez mais abrangente". Posteriormente (metade do
séc. XIX), o conceito de Evolução foi sintetizado cientificamente por Charles Darwin
em seu livro A Origem das Espécies, associado à idéia de processo orgânico –
biológico – permanente. Assim, o evolucionismo biológico e o evolucionismo social se
encontram e o segundo passa a ser o novo modelo explicador (Rocha, 2003) da
diferença entre os povos.
É neste contexto científico que, no final do século XIX, o antropólogo inglês Sir
Edward B. Tylor, herdeiro do iluminismo e da concepção universalista, define cultura,
compartilhando os postulados evolucionistas do seu tempo:
"Cultura ou civilização, no seu sentido etnográfico estrito, é este todo
complexo que inclui conhecimento, crença, arte, leis, moral, costumes e
quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem
enquanto membro da sociedade". (Tylor apud Rocha, 2003: 30).
Foi o método comparativo de estudo, introduzido pelo próprio Tylor na
etnologia, que permitiu a conclusão por parte dele de que todas as culturas estavam
ligadas umas às outras em um movimento de progresso cultural (Couche, 1999: 38).
Segundo Couche, o conceito de continuidade entre 'cultura primitiva' e 'cultura
avançada' "rebateu a teoria da degenerescência dos primitivos", defendida pelos
teólogos que não aceitavam os 'selvagens' como seres criados por Deus e,
conseqüentemente, consideravam-nos como não pertencentes ao grupo de seres
humanos 'civilizados'. Acreditando na noção de unidade psíquica da humanidade,
Tylor explicava as semelhanças existentes em sociedades muito diferentes, afirmando
que "em condições idênticas, o espírito humano operava em toda parte de maneira
semelhante" (Couche, 1999: 37). Tylor chegou à conclusão de que a cultura dos
povos contemporâneos considerados 'primitivos' representava uma sobrevivência das
primeiras fases da evolução cultural, pela qual a cultura dos povos 'civilizados' teria
necessariamente passado.
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Esse "todo complexo" da definição de Tylor absolutizava e descontextualizava
todos os seres humanos, colocando a idéia da cultura universal, evolutiva, tendo sua
própria sociedade – a sociedade burguesa da Inglaterra – como o modelo universal
mais bem acabado (Rocha, 2003: 30). Foi criada uma classificação da humanidade,
em três estágios de evolução: selvagens, bárbaros e civilizados. Com essa
classificação, a idéia evolucionista da cultura conseguiu suporte para ser aceita na
comunidade antropológica da época. O ápice da evolução humana seria a cultura
civilizada, iniciada
"com a adoção da arte da escrita, que, por armazenar a história, leis,
conhecimento, e religião para o usufruto das eras por virem, uniu o
passado e o presente em uma corrente inquebrável de progresso moral
e intelectual." (Tylor, 1960: 18-19).
O trabalho de Tylor foi complementado por seu contemporâneo Lewis Morgan
(antropólogo), o qual sintetizou um esquema mais completo de estágios de evolução
cultural. De seus pensamentos, podemos destacar a idéia de que a "acumulação do
saber" e o progresso das "faculdades mentais e morais dos homens" fundamentam as
mudanças de estágios no caminho da evolução. (Rocha, 2003: 34).
Segundo Gilberto Velho, após o Evolucionismo a influencia da Escola
Sociológica Francesa5 foi fundamental para ampliação da teoria da cultura como
sistemas simbólicos e redes de significado – especialmente no que diz respeito ao
trabalho de Lévi-Strauss6. Velho cita os trabalhos dos antropólogos Clifford Geertz –
livro A Interpretação das Culturas – e Marshall D. Sahlins, como expoentes do
pensamento de Lévi-Strauss. Todos estes autores recuperaram o estudo da noção de
cultura, que no Brasil era antes identificada com as correntes do neo-evolucionismo de
Leslie White7 ou do bioculturalismo de Malinowski8. (Velho, 1999: 114-115).
5 Trabalhos de Émile Durkheim, Marcel Mauss, entre outros. 6 Para Velho, os trabalhos mais importantes de Lévi-Strauss dizem respeito ao parentesco e mitologia. (Velho, 1999: 115). Rocha (2003) cita os livros Pensamento Selvagem, As Estruturas Elementares do Parentesco e Raça e História. Além disso, podemos incluir Totemismo Hoje. 7 O neo-evolucionismo de White, difundido no pós-guerra, era a reabilitação do evolucionismo de Tylor e Morgan porém utilizando o conceito de fontes de energia despendida pelo homem como delimitador dos estágios de evolução. (Marconi, 2001: 257-258). 8 Para Malinowski, a cultura está apta a fornecer os meios para satisfazer as necessidades de seus membros, sejam elas básicas – biológicas – ou derivadas das instituições culturais. (Marconi, 2001: 265).
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4 – As três noções evolucionistas de cultura e sua presença nas frases do concurso.
Apesar do conceito de cultura ter evoluído dentro das ciências, o senso comum
continua utilizando o evolucionismo para expressar seu entendimento do significado
de cultura. Roberto DaMatta, em seu brilhante artigo "Você Tem Cultura?" (1981)
estabelece duas noções presentes no cotidiano popular e a importância do
entendimento de cultura "não como uma simples palavra, mas como uma categoria
intelectual". (DaMatta, 1981 in id, 1986: 121) Além disso, incluiremos uma terceira
noção, exemplificada por Everardo Rocha9.
Vejamos cada um dos três conceitos de cultura, sua ligação com o
evolucionismo e a presença destes através da análise de algumas10 frases11 do
concurso.
4.1 – Cultura como 'acúmulo de conhecimento'.
A primeira noção é a cultura como 'acúmulo de conhecimento' - segundo
DaMatta, sinônimo de sofisticação, sabedoria, educação no sentido restrito do termo.
(DaMatta, 1981 in id, 1986: 121). Rocha usa a metáfora 'caderneta de poupança
espiritual' para exemplificar a noção popular que Morgan teorizou com a acumulação
do saber.
O evolucionismo está presente ao se colocar a cultura como equivalente da
inteligência, volume de conhecimentos adquiridos na vida da pessoa. É como se as
pessoas não fossem influenciadas imediatamente pela cultura ao nascerem – visão
simbólica, mas sim 'adquirissem' essa cultura na medida em que são educadas – no
sentido primário do termo – na escola, com leituras e aulas. Por exemplo, é comum
observar pessoas tratarem os analfabetos como 'seres sem cultura', já que a
faculdade de ler e escrever seria fundamental para alguém poder aprender cultura.
9 A partir deste momento, o que se referir a Everardo Rocha terá base nas anotações a partir das aulas expositivas deste professor – não cabendo, portanto, referência bibliográfica indicativa. 10 Nenhuma das frases da promoção utilizadas neste trabalho sofreu revisão ortográfica. 11 Todas as 100 frases estão disponíveis a partir da página http://www.fdmbiz.com/jb/promo/faculdade.asp (acesso em 04/04/2004).
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Tomemos as seguintes frases do concurso do JB como exemplo da existência
desta noção:
"Grandes Promoções só com grandes parcerias. Jornal do Brasil e Estácio
fazem a diferença para leitores que querem cultura."
Neste caso 'querer cultura' é sinônimo de aprender alguma coisa ao se ler o
Jornal do Brasil e estudar na Estácio.
"Porque o JB acredita que só a cultura e o conhecimento são capazes de
construir uma sociedade sólida e justa"
A própria frase já coloca 'cultura' e 'conhecimento' como a mesma coisa, base
da evolução da sociedade.
"Porque o JB sempre investiu na verdadeira informação, no crescimento
cultural e profissional do leitor."
'Crescimento cultural' como evolução, aprendizado através da leitura do jornal.
"Porque só o JB sabe que o futuro se conquista com cultura e educação."
Educação e cultura são os únicos fatores para a conquista 'do futuro' (sucesso,
evolução pessoal).
4.2 – Cultura como classificadora de algo.
A segunda noção é a cultura como 'classificadora de algo no espaço-tempo',
relacionada diretamente à noção de 'acúmulo de conhecimento' já que o 'possuir, ou
não, cultura' é utilizado até como arma discriminatória contra algum sexo, idade, etnia
ou sociedade. (DaMatta, 1981 in id, 1986: 122). Este uso do termo traz autoridade,
hierarquia, estágio cultural. É como falar em 'cultura grega' para expressar a
civilização helenista e não o sistema simbólico que representa a cultura dos habitantes
atuais da Grécia.
Tal classificação resgata o pensamento evolucionista ao tratar da noção de
história universal – 'cultura egípcia' (civilizada), 'cultura inglesa' (civilizada), 'cultura
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indígena' (selvagens) – e o poder envolvido nestas classificações – o civilizado estar
acima do selvagem.
As frases que podemos utilizar como exemplo desta noção são:
"Porque o JB sempre defende idéias afinadas com os valores éticos e
culturais de nossa sociedade."
A relação entre o jornal e o respeito aos 'valores éticos e culturais' – autoridade
– presentes na sociedade.
"Só o JB é capaz de reunir em um jornal: informação competente, cultura
eficiente e promoção inteligente pra gente!"
Neste caso não existe nem uma escala de valor para definir a 'cultura eficiente',
mas o JB é visto como autoridade ('civilizado') em promover esta eficiência da cultura.
"Porque o JB tem um compromisso histórico com a educação e cultura do
Brasil."
'Cultura do Brasil' como 'compromisso histórico' (exercício de poder através da
tradição) fundamental para ser tratado por um jornal brasileiro.
"Esta iniciativa só poderia partir mesmo do nosso JB, com seu histórico de
grande patrocinador e incentivador da cultura nacional."
'Cultura nacional', sinônimo de cultura brasileira, sendo incentivada pelo jornal.
4.3 – Cultura como sinônimo de arte.
A terceira, e última, interpretação é a cultura como sinônimo de arte. A
atividade artística se coloca como 'dona' da cultura (Rocha) e promove o marketing
cultural, que na verdade é o patrocínio das artes e não do estudo das redes de
significados – fomento científico. A estética e o entretenimento viram os maiores
representantes do que é a cultura – peças de teatro, filmes, exposições, pinturas,
entre outros. Esta é a noção de cultura mais difundida pela mídia, que coloca
"Cadernos de Cultura" nos jornais para falar apenas de arte, por exemplo. O próprio
7
Governo Federal corrobora tal noção, ao nomear um ministério que trata da arte e do
entretenimento como Ministério da Cultura.
O evolucionismo se justifica pela complementação com as outras duas noções
do senso comum, já que as artes 'desenvolvidas' seriam a expressão do 'civilizado',
não cabendo, por exemplo, ao 'selvagem' expressar métrica e rimas complexas nas
suas canções (Tylor, 1960: 160).
Tomemos como exemplo as frases:
"O JB é um jornal que fez história ao longo de 113 anos de existência,
sempre apoiando a cultura."
'Apoiar a cultura' é patrocinar, divulgar algum movimento artístico.
"Porque é o único veículo de comunicação comprometido com a verdade,
a cultura e a sociedade."
Esta separação entre 'cultura' e 'sociedade' deixa evidente que a produção
artística é a cultura, algo que não pode ser a sociedade, mas apenas a representação
desta.
"Sensacionalismo qualquer jornal pode promover. Divulgar, com sabedoria,
eventos que promovam cultura é o que o JB mais sabe fazer."
'Eventos que promovam cultura' são eventos artísticos divulgados, por
exemplo, pelo Caderno B do jornal.
"Porque para o JB cultura é matéria de primeira página."
O significado do jornal publicar arte e entretenimento na primeira página.
5 – Conclusões
As três noções de cultura presentes no senso comum são, ao mesmo tempo,
complementares e independentes. Ao se analisar as frases do concurso, podemos
notar que a palavra 'cultura' ou 'cultural' denotam diferentes interpretações – sinônimo
8
de arte e acúmulo de conhecimento, por exemplo – que podem ser analisadas em
separado, mas que congregam uma mesma visão: o evolucionismo.
O problema é que esta visão evolucionista, no Brasil, é levada à interpretação
de que a grande maioria da população não possui cultura, pois se considerarmos as
frases como axiomas da sociedade brasileira, somente com a leitura de um jornal é
possível ter cultura.
Esta é uma inverdade que os antropólogos já demonstraram, ao tratarem
cultura como um sistema simbólico e ao relativizarem seu estudo. O 'etnocentrismo ao
avesso' que marca nossa sociedade acaba por nos colocar em um estado de auto-
mutilação social, política, econômica – entre outros – ao promover não o avanço, mas
sim a manutenção do atraso. É a aplicação do pensamento "somos inferiores, sempre
fomos assim e sempre seremos. Isto é parte da nossa cultura'.
Vale lembrar que esta existência do pensamento evolucionista sequer é notada
pelo senso comum, pois apenas um entendimento do que é o próprio evolucionismo e
do conceito simbólico de cultura pela sociedade é que permitiria uma reflexão sobre o
tema.
Daí tiramos a conclusão maior de que é fundamental o estudo das Ciências
Sociais e a difusão deste conhecimento para toda a sociedade, permitindo uma melhor
compreensão do ser humano como agente modificador e modificado em relação ao
mundo em que vive.
Por fim, DaMatta resume muito bem esta importância da interpretação não-
evolucionista da cultura:
"Num país como o nosso, onde as formas hierarquizantes de
classificação cultural sempre foram dominantes, onde a elite sempre
esteve disposta a autoflagelar-se dizendo que nós não temos uma
cultura, nada mais saudável do que esse exercício antropológico de
descobrir que a fórmula negativa – esse dizer que não temos cultura –
é, paradoxalmente, um modo de agir cultural que deve ser visto, pesado
e talvez substituído por uma fórmula mais confiante no nosso futuro e
nas nossas potencialidades." (DaMatta, 1981 in id, 1986: 127-128)
9
6 – Bibliografia
CUCHE, Denis. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane
Ribeiro. Bauru: EDUSC, 1999.
DA MATTA, Roberto. Você tem cultura? Jornal da Embratel, 1981 In: _______.
Explorações: ensaios de sociologia interpretativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. P.
121-128.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 17. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zelia Maria Neves. Antropologia: uma
introdução. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense,
2003.
TYLOR, Sir Edward B. Anthropology. Michigan: Ann Arbor Paperback, 1960.
VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da
sociedade contemporânea. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.