outubro de 2013
Patrícia Marlene Pinto Alves
A Responsabilidade do Estado por Imposição de Sacrifício
Universidade do Minho
Escola de Direito
Pat
rícia
Mar
lene
Pin
to A
lves
A
Re
spo
nsa
bili
da
de
do
Est
ad
o p
or
Imp
osi
ção
de
Sa
crif
ício
U
Min
ho|2
013
Trabalho realizado sob a orientação da
Professora Doutora Isabel Celeste Monteiro
Fonseca
outubro de 2013
Patrícia Marlene Pinto Alves
Universidade do Minho
Escola de Direito
Dissertação de Mestrado Mestrado em Direito Administrativo
A Responsabilidade do Estado por Imposição de Sacrifício
ii
AGRADECIMENTOS
A presente Dissertação é dedicada a todas as pessoas que contribuíram para a
minha formação, em especial à minha orientadora de Mestrado, a Sra. Professora
Doutora Isabel Celeste Monteiro Fonseca que foi uma pessoa essencial para o apoio na
elaboração da presente tese, demonstrando-se sempre disponível e incansável para me
orientar, e à minha família mais próxima, nomeadamente à minha mãe, ao meu pai e ao
meu irmão. A todas estas pessoas fico sincera e humildemente grata. Aproveito desde já
também para agradecer a todo o corpo docente da Escola de Direito da Universidade do
Minho, pólo de Gualtar, Braga, pelos conhecimentos que me transmitiram quer ao longo
da Licenciatura em Direito, quer ao longo da parte letiva da Pós-graduação em Direito
Administrativo. Aproveito para agradecer à Professora Fernanda Paula Oliveira, da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pela ajuda que ela me deu em
relação à bibliografia em sede de Direito do Urbanismo, mais propriamente no que
respeita ao regime das expropriações. Aproveito a oportunidade também para agradecer
o contributo da Professora de Direito Carla Amado Gomes que através da rede social
facebook me ajudou com indicações bibliográficas.
Após muito esforço quer inteletual, quer financeiro e após muita dedicação,
espero que a presente Dissertação seja um meio inovador no desenvolvimento e
conhecimento mais aprofundado do Direito Administrativo e da responsabilidade do
Estado por imposição de sacrifício. Aguardo também que venha a ser uma ajuda para o
futuro estudo das pessoas que se venham a revelar ter interesse pelo Direito Público,
nomeadamente pela área do Direito Administrativo. Como tema interessante que é,
espero não desiludir quem venha a estudar e a ler a presente tese de mestrado em Direito
Administrativo. Esta dissertação de mestrado tem uma grande relevância na minha vida,
dado que o ano de 2013 revelou-se um ano complicado para mim, cheio de desgostos
emocionais. Quero agradecer o apoio da Andreia Carvalho e da Clara Moreira. Esta tese
foi o meu refúgio, uma das poucas alegrias que tive durante o ano de 2013, além da
passagem à fase de formação complementar de estágio da Ordem dos Advogados
Portuguesa. Aprendi que a vida é feita de altos e baixos e que o estudo da área de que se
gosta ajuda muito a ultrapassar os obstáculos e a evoluirmos positivamente na aquisição
de novos conhecimentos. Por muito que se estude, passa-se a vida toda a aprender.
«A juventude mostra o Homem tal como a manhã mostra o dia».
JOHN MILTON
iii
A Responsabilidade do Estado por Imposição de Sacrifício
RESUMO
O artigo 16.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o novo regime
de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas dispõe
sobre Indemnização pelo sacrifício, sendo de realçar o perímetro de aplicação da
indemnização pelo sacrifício. Esta abrange os denominados danos especiais e anormais
que decorrem do exercício da função administrativa, designadamente os provenientes de
atos administrativos lícitos e ações praticadas em estado de necessidade administrativa,
a que se referiam os números 1 e 2 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de
Novembro de 1967.
A lei supra mencionada foi alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Junho do
RRCEE, e tal aparecimento, tinha de entre as suas finalidades, a de traduzir os modelos
de efetivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado na sua tripla veste de
legislador, administrador e juiz, por violação do Direito Comunitário.
Trata-se de um tema inovador, quer a nível nacional, quer a nível do Direito
Comunitário, dado que, na atualidade é um tema muito pouco explorado a nível de
escrita.
Iremos, ainda, mencionar a importância do Código das Expropriações no que
respeita às figuras da expropriação e da requisição por utilidade pública.
iv
The Civil Extracontractual Responsability of the State to the Imposition of the
Sacrifice
ABSTRACT
The article 16. º of the law 67/2007, of 31 December, approved the new position
of the civil extracontractual responsibility of the state and public entities. The
Indemnisation of the sacrifice contains the specials and anormals wrongs that derived of
the exercise to the administrative fonction, of the licites acts and the actions that were
exercised on necessity state.
That law was suffering a change by the law 31/2008, of 17th
June RRCEE. The
Community Law is important for the theme of this master thesis, because implanted the
importance of the legislator, administrator and judge in this matter.
So, the Expropriations Code explains the regime of the expropriations and
requisition for public utility. It is a very important theme to be study for the people that
have interest of the Portuguese public law, in special, for the Portuguese and European
administrative law.
v
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS…………………………………………………………ii
RESUMO………………………………………………………………………iii
ABSTRACT…………………………………………………………………....iv
ÍNDICE…………………………………………………………………………v
ABREVIATURAS…………………...…………………………………………1
INTRODUÇÃO………………………………………………………………....2
PARTE I - ENQUADRAMENTO SOBRE O INSTITUTO DA
RESPONSABILIDADE
CAPÍTULO I. Da perspetiva histórica da responsabilidade civil ao Decreto – Lei
n.º 48 051 e a reforma de 2002
1. A perspetiva histórica de Direito Comparado e a evolução histórica da
responsabilidade civil administrativa……………………………………4
1.1.Da Constituição para a Lei…………………………………………...9
2. A responsabilidade civil administrativa, sua noção e aspetos
gerais…………………………………………………………………….16
3. O regime de responsabilidade objetiva por danos causados por normas emitidas
no desempenho da função administrativa………………………………16
3.1. A razão do tema…………………………………………………….16
3.2. Base legislativa ou base diretamente constitucional para a responsabilidade
por fato de regulamento? A responsabilidade por facto de regulamento entre
a responsabilidade por ato legislativo e a responsabilidade por ato
administrativo………………………………………………..……..18
4. O âmbito de incidência objetiva do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48
051…………………..………………………………………………..…22
4.1. A gestão pública como critério material da extensão do Decreto-Lei n.º 48
051, de 21 de Novembro de 1967…………………………………..22
5. A interpretação do n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967
à luz de elementos de ordem literal e teleológica………………………..24
vi
6. O contexto intertextual do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro, em
1967…………………………………………………………………….....31
7. O contexto intertextual do antigo Decreto-Lei n.º 48
051……..………………………………………………………………......32
8. A reforma de 2002 e o âmbito da jurisdição administrativa………………36
PARTE II – QUADRO LEGAL VIGENTE
CAPÍTULO II. Da lei vigente do regime da responsabilidade civil
1.A lei 67/2007, de 31 de Dezembro…………………………………………..41
1.1. Unificação da competência contenciosa dos tribunais administrativos no âmbito
da responsabilidade civil extracontratual da Administração: unidade de jurisdição vs
dualidade de regime substantivo………………………………………………..41
1.2. Âmbito da aplicação………………………………………………………..42
1.3. Função jurisdicional………………………………………………………..47
1.4. Função (político-) legislativa…………………………………………….....47
1.5. Obrigação de indemnizar…………………………………………………...50
1.5.1.Função administrativa……………………………………………………..50
1.5.2. Função jurisdicional……………………………………………………...52
1.5.3. Função político-legislativa…………………………………………….....54
1.5.4. Culpa do lesado por não utilização da via processual adequada……........54
1.5.5. Obrigatoriedade do exercício do direito de regresso………………..…....56
1.5.6. Responsabilidade por facto ilícito – âmbito normativo da ilicitude: ilegalidade
substantiva vs ilegalidade formal………………………………………..….…...58
1.5.7. Critério de aferição da culpa: presunção de culpa leve para a prática de atos
jurídicos ilícitos e incumprimento de deveres de vigilância…………..………..59
1.5.8. Responsabilidade pelo risco…………………………………..……….....63
1.5.9. A indemnização pelo sacrifício……………………………..………..…..64
1.6 A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário..……66
2.Classificações da responsabilidade civil administrativa………………...……86
3. Responsabilidade civil por ato de gestão pública: responsabilidade extracontratual
delitual…………………………………………………………………………...88
vii
4. A responsabilidade civil extracontratual pelo risco………………………108
5.A responsabilidade extracontratual por facto lícito………………….….....112
PARTE III - A RESPONSABILIDADE POR IMPOSIÇÃO DE SACRIFÍCIO
CAPÍTULO III. A responsabilidade do Estado por imposição de sacrifício: base
legal, abrangência e o Código das Expropriações no Direito do Urbanismo
1. A responsabilidade por imposição de sacrifício…………………………116
2. A abrangência da responsabilidade por imposição de sacrifício e as
indemnizações compensatórias pelo sacrifício de atuações administrativas lícitas
ou em estado de necessidade……………………………………………..125
3. As causas de exclusão da ilicitude e a compensação pelo sacrifício
…………......................................................................................................139
4. A indemnização pelo sacrifício pode também constituir uma das formas de
responsabilidade civil da função administrativa………………………....145
5. O regime das expropriações em sede de Direito do Urbanismo…………147
6. A relevância jurisprudencial do Tribunal Constitucional……………….159
CONCLUSÕES……………………………………………………………...162
BIBLIOGRAFIA……………………………………………………………..169
JURISPRUDÊNCIA…………………………………………………………179
SÍTIOS DA INTERNET……………………………………………………..184
1
ABREVIATURAS
Ac./ Acs. – Acórdão (s);
Art./ art. – Artigo/ artigo;
CA - Código Administrativo Português;
CC - Código Civil;
CCP - Código dos Contratos Públicos;
CE – Código das Expropriações;
Cedipre - Centro de Estudos de Direito Público e Regulação;
Cfr. - Conforme;
CJA - Cadernos de Justiça Administrativa;
CRP - Constituição da República Portuguesa;
Coord. - Coordenação;
DL - Decreto-Lei;
EDFAAP - Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Pública;
EMFAR - Estatuto dos Militares das Forças Armadas;
LBPOTU – Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território;
LOSTA - nova Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo;
LRCAP - Lei de responsabilidade civil da Administração Pública;
LPTA - Lei de Processo nos Tribunais Administrativos;
P. ou página./ pp. ou páginas. – Página/ Páginas;
RJIGT – Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial;
RJUE – Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação;
RLJ - Revista de Legislação e de Jurisprudência;
RRCEC ou RRCEE - Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e
Demais Entidades Públicas;
ROA - Revista da Ordem dos Advogados;
Polic. – Policopiadas;
Segs./ segs. – Seguintes;
STA - Supremo Tribunal Administrativo;
TAF – Tribunal Administrativo e Fiscal;
TC - Tribunal Constitucional;
TCAN – Tribunal Central Administrativo Norte;
TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem;
TJCE – Tribunal de Justiça das Comunidades Europeia.
2
INTRODUÇÃO
A responsabilidade civil administrativa é o conjunto de circunstâncias da qual
emerge, para a administração e para os seus titulares de órgãos, funcionários ou agentes,
a obrigação de indemnização dos prejuízos causados a outrem no exercício da atividade
administrativa.
O artigo 16.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o novo
regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas
dispõe sobre Indemnização pelo sacrifício (que é o tema fulcral a ser retratato na
presente dissertação).
Ora, debruçando-nos sobre o perímetro de aplicação da indemnização pelo
sacrifício, esta abrange, desde logo, os danos especiais e anormais decorrentes do
exercício da função administrativa, designadamente os derivados de atos
administrativos lícitos e ações praticadas em estado de necessidade administrativa, a que
se referiam os n.ºs 1 e 2 do art. 9.º do DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967.
Porém, a localização sistemática da indemnização pelo sacrifício no Capítulo V
do RRCEE, separada da responsabilidade associada às funções administrativa,
jurisdicional e legislativa, a não imputação da indemnização pelo sacrifício a nenhuma
específica função estadual, assim como o estabelecimento pelo art. 16.º do RRCEE
como requisito da indemnização pelo sacrifício de razões de interesse público, sem
qualquer outra especificação em relação à natureza da atividade desenvolvida,
conduzem à conclusão de que aquela não engloba somente os danos especiais e
anormais que decorrem da função administrativa, incluindo, também, os danos especiais
e anormais que resultam do exercício das funções legislativa e política.
Destarte, o aparecimento da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela
Lei 31/2008, de 17 de Junho (RRCEE), de há muito esperado, tinha, de entre os seus
objetivos, o de traduzir os modelos de efetivação da responsabilidade civil
extracontratual do Estado na sua tripla veste de legislador, administrador e juiz, por
violação do Direito Comunitário. Nas palavras de Carla AMADO GOMES: «A
jurisprudência comunitária vem expressamente afirmando a responsabilidade do Estado
desde 1991/1993, datas dos Acórdãos Francovich e Brasserie du Pêcheur,
respectivamente, e cumpria acolher devidamente essa lição no ordenamento jurídico
português». Como alerta Carla AMADO GOMES: «O arcaísmo do DL n.º 48 051 fazia-
se também aí sentir, e a sua inadequação à doutrina do Tribunal da Justiça das
3
Comunidades Europeia (TJCE) foi mesmo passível de censura formal em sede de acção
por incumprimento».
De referir que na indemnização pelo sacrifício, enquanto modalidade de
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, vão
incluídos também danos especiais e anormais de conteúdo patrimonial provenientes de
atos lícitos integrados na função administrativa, rejeitando-se, deste modo, a tese que
reduz o âmbito de aplicação do art. 16.º do RRCEE «à responsabilidade pelo sacrifício
de bens pessoais (designadamente a vida, a integridade física, a saúde e a qualidade de
vida, bem como os direitos de personalidade referidos no art. 26.º, n.º 1, da CRP) e por
danos causados em estado de necessidade» e defende «a subordinação a um regime
comum das pretensões indemnizatórias pelo sacrifício de todo e qualquer direito
patrimonial privado, situado à margem da lógica do art. 16.º do RRCEE», encontrando
no art. 62.º, n.º 2, da CRP, concernente à indemnização por expropriação e por
requisição por utilidade pública, e no Código das Expropriações a disciplina da
indemnização de todos e quaisquer danos especiais e anormais de caráter patrimonial
decorrentes de atos lícitos da função administrativa.
De salientar que a nível das expropriações, o desdobramento que a noção de
expropriação tem sofrido nas últimas décadas coloca especiais problemas ao intérprete
que busca o Tatbestand da norma ínsita do RRCEE. A nossa conclusão vai no sentido
de que o legislador nacional deve reservar a indemnização pelo sacrifício para os casos
típicos (expropriação e requisição) e estendê-lo só a intervenções que, pela magnitude
de amputação de faculdades associadas à propriedade e ao uso standard que dela é feito,
devam merecer tratamento semelhante, destacando estas hipóteses do RRCEE e
submetendo-as ao Código das Expropriações. O artigo 16.º do RRCEE funciona como
um regime geral de compensação pelo sacrifício, que deverá ser utilizado em face de
ingerências lícitas – administrativas, no plano que nos ocupa – especiais e anormais na
esfera jurídica de particulares, sendo desnecessária a remissão para o seu dispositivo.
Tal artigo encontra-se filiado num princípio de justa repartição dos encargos públicos,
que emana dos artigos 2.º, 13.º e 18.º da CRP. Porém, consoante a posição jurídica
privada concretamente sacrificada pela ingerência administrativa, poderão estar também
em causa os artigos 26.º, n.º 1 ou 62.º, n.º 1 da CRP, isto é, perante danos de natureza
não patrimonial ou patrimonial, de forma respetiva.
30 de Agosto de 2013.
4
Capítulo I
Da perspetiva histórica da responsabilidade civil ao Decreto – Lei n.º 48 051 e a
reforma de 2002
1. A perspetiva histórica de Direito comparado e a evolução histórica da
responsabilidade civil administrativa
No Estado absoluto, o poder público era considerado irresponsável pelos
prejuízos que provocasse aos particulares («the king can do no wrong»); a reparação de
tais prejuízos apenas ocorreria por uma graça do monarca. Para tal compreensão
contribuíram diversos fatores: a herança da noção romana de potestas, a fundamentação
divina do poder, as conceções bodiniana («la souverainité n`est limitée, ni en puissance,
ni en charge») e hobbesiana ( «princeps legibus solutus») da soberania, bem como a
imunidade de jurisdição da coroa ( no direito britânico: teoria da non suability) (1).
É ainda de referir que no período do Estado de polícia, aceitava-se, todavia, a
responsabilidade do Estado no âmbito das relações de caráter patrimonial que
mantivesse com os particulares, justificada com a teoria do Fisco.
As preocupações essenciais com a subtração da administração aos esquemas
igualitários do direito privado e com a afirmação da sua supremacia perante os
particulares, assim como a circunstância de a administração ter passado a ser vista como
atividade puramente executiva da legislação, por sua vez considerada como resultado
infalível da expressão da vontade geral, levaram a que, tal como aconteceu com outros
aspetos do absolutismo, o princípio da irresponsabilidade do Estado tivesse passado
para o direito administrativo do liberalismo oitocentista. Naquela época fez escola a
ideia segundo a qual «é próprio da soberania impor-se a todos sem compensações» (E.
Laferrière) (2).
Numa linha de continuidade com a fase final do Estado absoluto, era aceite a
responsabilidade do Estado no âmbito das relações de caráter patrimonial e não
soberano estabelecidas com os cidadãos. No restante, pelos danos causados a
particulares responderiam, quando muito, os funcionários administrativos, a título
estritamente pessoal; mas mesmo a responsabilidade pessoal dos funcionários era
(1) Neste sentido ver Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa,
Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1.ª ed., (reimpressão da 1.ª edição: Julho de 2010), Lisboa, Dom Quixote, 2008, página 12. (2) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 12.
5
fortemente limitada nas ordens jurídicas europeias continentais, que durante muito
tempo exigiram uma autorização superior para que ela pudesse ter lugar (sistema da
garantia administrativa, vigente na Alemanha até 1879, em França até 1873 e em
Espanha até 1869).
A afirmação de uma responsabilidade civil do Estado e das demais pessoas
coletivas administrativas por atos de autoridade foi uma conquista do século XX e, em
particular, do Estado social de direito. Na Alemanha, a responsabilidade civil
administrativa foi consagrada pelo artigo 131.º da Constituição de Weimar e,
posteriormente, pelo artigo 34.º do GG; somente em 1981 foi aprovada uma lei federal
geral da responsabilidade civil administrativa que, todavia, viria a ser declarada
inconstitucional pelo BVerfG, mantendo-se até hoje um vazio da legislação federal
nesta matéria. Em Espanha, o artigo 41.º da Constituição republicana de 1931 afirmou a
responsabilidade civil da administração, embora só a título subsidiário em relação à dos
seus titulares de órgãos, funcionários e agentes; à consagração, a partir de 1935, de um
princípio geral de responsabilidade civil da administração municipal, sucedeu-se o
estabelecimento, em geral, da responsabilidade civil da administração na Lei da
Expropriação Forçada de 1954, que passaria para a Lei do Regime Jurídico da
Administração do Estado (1957) e para a Lei do Regime Jurídico das Administrações
Públicas e do Procedimento Administrativo Comum (1992).
Nos Estados Unidos da América, foi preciso esperar até ao Federal Torts Claims Act
(1946) para que fosse consagrada a responsabilidade civil do Estado.
Em Inglaterra, a responsabilidade civil da Coroa foi consagrada pelo Crown
Proceedings Act de 1947 que, na tradição anglo-saxónica, manda aplicar-lhe o regime
da responsabilidade civil de direito comum (a responsabilidade civil da Coroa por atos
de polícia só foi, no entanto, instituída em 1964). Em França, a responsabilidade civil
administrativa tinha, por via da jurisprudência do Conselho de Estado, começado a
autonomizar-se da responsabilidade civil geral com o arrêt Blanco (1873), que afirmou
a competência jurisdicional dos tribunais administrativos em matéria de
responsabilidade civil administrativa, e com o arrêt Pelletier (1873), que iniciou uma
tendência para a desvalorização da responsabilidade pessoal dos funcionários (3); o
primeiro de uma série de resultados significativos daquela evolução deu-se com o arrêt
Anguet (1911), no qual se admitiu pela primeira vez a responsabilidade simultânea da
administração e dos seus titulares de órgãos, funcionários e agentes em caso de factos
(3) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa..., cit., p. 13.
6
ilícitos e culposos (fautes) funcionais. O sistema francês de responsabilidade civil é,
ainda hoje, fundamentalmente de origem jurisprudencial
Em Portugal, o Código Civil de 1867, em consonância com o espírito do seu
tempo, estabeleceu a irresponsabilidade do Estado pelos prejuízos causados no exercício
da sua atividade de execução da lei (artigo 2399.º); pelos danos resultantes de atividades
ilegais eram responsáveis os funcionários administrativos, a título exclusivamente
pessoal (artigo 2400.º).
A garantia administrativa deixou de vigorar para a responsabilidade civil
precisamente em 1867 (embora tenha subsistido intermitentemente até ao Decreto-Lei
n.º 74/75, de 21 de Fevereiro, para a responsabilidade criminal em geral e aflore ainda,
embora em termos muito mitigados, no regime da detenção de militares fora de
flagrante delito: art. 24.º, n.º 1 do EMFAR). Na ausência de previsão legal específica, a
doutrina e a jurisprudência aceitavam a responsabilidade civil do Estado pelos prejuízos
provocados por atividades de gestão privada, como tal reguladas pelo direito privado.
Importa ainda salientar que a responsabilidade civil das entidades públicas
suscitou o interesse da doutrina civilista e administrativista da I República. A
consagração legal da responsabilidade civil administrativa extracontratual por atos
ilícitos de gestão pública datava dos anos trinta do século XX (portanto, antes do seu
surgimento na Alemanha, em Espanha, Estados Unidos e Inglaterra e, paradoxalmente,
num período de autoritarismo político): em 1930, o art. 2399.º CC foi revisto no sentido
de acrescentar à responsabilidade dos agentes estaduais a responsabilidade solidária do
próprio Estado; em 1936, o CA passou a estabelecer a responsabilidade civil das
autarquias locais pelos prejuízos resultantes de atos ilegais de gestão pública
compreendidos nas suas atribuições e competência (art. 366.º CA), embora mantendo a
regra da responsabilidade estritamente pessoal quanto aos prejuízos provocados por atos
de gestão pública viciados de incompetência, excesso de poder ou falta de formalidades
fundamentais (art. 367.º do CA). A responsabilidade civil administrativa pelo risco e
por ato lícito não foram objeto de previsão genérica, pelo que se entendia apenas
existirem nos casos expressamente previstos na lei (embora Marcello Caetano tenha
sustentado um princípio geral de responsabilidade por facto lícito a partir de 1950). A
responsabilidade civil administrativa por atos de gestão privada continuou a reger-se
pelo disposto no regime da responsabilidade civil de direito privado estabelecido no CC.
O atual CC (em vigor desde 1967) consagrou pela primeira vez disposições
especificamente aplicáveis à responsabilidade civil administrativa extracontratual por
7
atos de gestão privada (arts. 500.º - 501.º CC), deixando para lei especial o regime da
responsabilidade civil administrativa extracontratual por ato de gestão pública. Aquela
disciplina viria a constar da LRCAP (entrada em vigor em 1967), que incluía
disposições sobre responsabilidade civil delitual, pelo risco e por facto lícito mas não
sobre responsabilidade civil administrativa contratual por ato de gestão pública. A
Constituição de 1976 consagrou o princípio da responsabilidade civil solidária da
administração e dos seus titulares de órgãos, funcionários e agentes pelos prejuízos
provocados no exercício das suas funções (art. 22.º da CRP, do qual decorre um direito
fundamental dos particulares à reparação dos danos, análogo aos direitos, liberdades e
garantias do Título II da Parte I da CRP (art. 17.º da CRP) e proibiu a garantia
administrativa (art. 271.º, n.º 1 da CRP, parte final).
A mudança de regime ocorrida em 1974, as novidades trazidas na matéria em
causa pela CRP, bem como o emergir de novos problemas, práticos e teóricos, no
domínio da responsabilidade civil, geral e administrativa, contribuíram para a
insuficiência do regime legal vigente desde 1967 e para a premência da sua revisão. Em
2001 foi apresentada à Assembleia da República uma proposta de lei que visava
substituir a LRCAP, na qual se intentava o aperfeiçoamento do regime vigente e se
regulava a responsabilidade civil por atos das funções legislativa e jurisdicional; a
proposta não chegou a ser votada, em virtude da demissão do XIV Governo
constitucional, e não foi retomada nas legislaturas seguintes (4).
Torna-se, porém, relevante mencionar que em 2006 voltou a ser apresentada
uma proposta de lei de teor muito próximo, da qual veio a resultar, após um complexo
processo legislativo que inclui um veto político presidencial, o novo Regime da
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, que entrou
em vigor em 30 de Janeiro de 2008. Se bem que, no plano da responsabilidade civil
administrativa, este não tenha introduzido alterações tão revolucionárias como na
responsabilidade civil do Estado por atos das funções jurisdicional (arts. 12.º -14.º
RRCEC) e político-legislativa (art. 15.º do RRCEC), ainda assim trouxe algumas
inovações, como a introdução de um regime da indemnização (arts. 3.º e 5.º do
RRCEC), com destaque para a regra da reintegração específica de danos (art. 3.º, n.º 1
do RRCEC), a definição do conceito de funcionamento anormal do serviço (art. 7.º, n.ºs
3 e 4 do RRCEC), o estabelecimento da obrigatoriedade do exercício do regresso contra
os responsáveis concretos pelo dano (art. 6.º do RRCEC) e de duas presunções de culpa
(4) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 15.
8
leve na responsabilidade delitual (art. 10.º, n.ºs 2 e 3 do RRCEC), bem como o
alargamento do âmbito da responsabilidade pelo risco (art. 11.º, n.º 1 do RRCEC, que
passou a referir-se a atividades, serviços ou coisas «especialmente» e já não
«excecionalmente» perigosos).
Tal como dizem Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE
MATOS: «O CCP, que entrou em vigor quase simultaneamente com o RRCEC,
regulou, pela primeira vez no direito português, a responsabilidade civil administrativa
contratual» (5).
O artigo 16.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o novo
regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas
dispõe sobre Indemnização pelo sacrifício (que é o tema fulcral a ser retratato na
presente dissertação). Nas palavras de Carla AMADO GOMES: «tal disposição legal
vem suceder ao artigo 9.º do DL 48.051, de 21 de Novembro de 1967, previsão similar
mas não idêntica – não só porque, em razão da natureza do diploma, o seu âmbito se
restringia à responsabilidade por actos da função administrativa, mas também porque
autonomizava os actos praticados em estado de necessidade dentro da categoria de actos
lícitos» (6). Nascido sob a égide da Constituição de 1933, este dispositivo convivia com
a expropriação por utilidade pública, prevista no artigo 8.º, n.º 15 da Lei Fundamental,
confirmando a existência de direitos à compensação por danos para além da afetação do
direito de propriedade.
Importa explorar qual o fundamento e âmbito do artigo 16.º do RRCEE,
tentando, desta forma, destacar as situações cobertas pelos institutos da expropriação e
requisição por utilidade pública (e seus derivativos) – já muito escalpelizadas pela
doutrina administrativista, sobretudo pelos estudiosos do Direito do Urbanismo (7) - das
hipóteses de aplicação do instituto da compensação pelo sacrifício.
(5) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 16.
(6) Neste sentido ver Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in: «Revista do Ministério Público»: n.º 129, Janeiro: Março, 2012, p. 9.
(7) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e
notas de Jurisprudência in: Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Vol. IV, (Direito Administrativo e Justiça Administrativa), Coimbra Editora, FDUL, 2012, pp. 151-152, nota 1: «A associação, muitas vezes sancionada pelo legislador, entre
expropriação de título e expropriação de direito (faculdades do direito), material ou, na terminologia de Fernando ALVES
CORREIA, de sacrifício, com remissão do cálculo da compensação para o regime do Código das Expropriações, introduziu desdobramentos na base constitucional, destacando do regime do artigo 16.º do RRCEE algumas situações que, prima facie, aí se
acolheriam. Sobre estes desdobramentos, numa perspetiva ainda ligada ao conceito clássico de expropriação, vejam-se Bernardo
AZEVEDO, Servidão de direito público. Contributo para o seu estudo, Coimbra, 2005, pp. 29 e segs, e Fernando ALVES CORREIA, A indemnização pelo sacrifício: contributo para o esclarecimento do seu sentido e alcance, in: «RLJ», n.º 3966, 2011,
pp. 143 e segs., 155-161. Numa outra perspetiva, à qual está subjacente uma lógica ampla de expropriação, veja-se Miguel
NOGUEIRA DE BRITO, A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional, Coimbra, 2007, pp. 1009-1016, introduzindo o conceito de «determinação do conteúdo envolvendo um dever de compensação»., de Carla AMADO GOMES.
9
1.1. Da Constituição para a Lei
Como sublinha Carla AMADO GOMES: “Em 1789, o artigo XVII da
Déclaration des Droits de l`Homme et du Citoyen estabelecia que, constituindo a
propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado salvo em
caso de necessidade pública devidamente atestada e devendo ser prévia e justamente
indemnizado” (8).
Ora, o artigo II da Déclaration já havia, de resto, identificado a propriedade
como um direito natural e imprescritível, a par da liberdade, da segurança e da
resistência à opressão. Descartando agora toda a discussão político-filosófica que estas
inscrições possam gerar (nomeadamente, se devem ser entendidas num sentido de
extensão do direito de propriedade como condição de igualdade e de dignidade de todas
as pessoas, ou se hão-de ser lidas como uma garantia dos privilégios dos (nobres)
proprietários pré-revolucionários e uma perpetuação do reconhecimento da cidadania
em função do capital), «resulta destas normas uma associação da propriedade a uma
característica de intrínseca humanidade, de realização da pessoa através do ter e do
conservar o adquirido, para si e no continuum da identidade familiar» (9), isto nas
palavras de Rui MEDEIROS.
Importa salientar que nas Constituições portuguesas, o direito de propriedade foi
desde logo objeto de garantia na Constituição de 1822, cujos artigos 1.º a 6.º seguem de
muito perto os preceitos citados da Déclaration. Idêntico quadro apresentavam a Carta
Constitucional de 1826 (no art. 145.º/ 12.º), a Constituição de 1838 (no art. 23.º), e a
Constituição de 1911 (nos arts. 3.º e 25.º). Ora, a Constituição de 1933, na senda da
Constituição de Weimar de 1914 (10
), desdobrava o valor da propriedade em duas
vertentes: sendo estas a vertente objetiva (art. 35.º), sublinhando a dimensão social da
propriedade (11
), e a vertente subjetiva (arts. 8.º/15 e 49.º, Iº), na tradição liberal. Tal
desdobramento insere-se na lógica da Constituição de 1933 como primeira Lei
Fundamental nacional a adotar o modelo de Estado Social, desígnio desde logo bem
patente no art. 6.º, onde se incumbia o Estado de «zelar pela melhoria de condições das
(8) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in:
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 10.
(9) Nas palavras de Rui MEDEIROS, a Constituição protege a propriedade privada porque «a encara como um espaço de autonomia pessoal, isto é, como um instrumento necessário para a realização de projetos de vida livremente traçados, responsavelmente
cumpridos e que não podem nem devem ser interrompidos ou impossibilitados por opressivas ingerências externas» – cfr. Jorge
MIRANDA e Rui MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2ª ed., Coimbra, 2010, pp. 1239 segs, 1246 (a anotação é de Rui MEDEIROS).
(10) Cfr. Os artigos 153.º e 155.º.
(11) Na elucidativa expressão da Constituição de Weimar (art. 153.º): «A propriedade obriga. A sua utilização deve servir simultaneamente o interesse do proprietário e o bem comum».
10
classes sociais mais desfavorecidas, obstando a que aqueles desçam abaixo do mínimo
de existência minimamente suficiente».
No entanto, importa referir que com a Constituição de 1976, a proteção da
propriedade aparece no Capítulo I (Direitos e deveres económicos) do Título III,
dedicado aos direitos económicos, sociais e culturais. A sua garantia insere-se na linha
de continuidade liberal e social, admitindo, porém, pontuais exceções decorrentes da
previsão de instauração de um modelo económico coletivista (12
). Estas exceções
desapareceram com as revisões constitucionais, de 1982 e de 1989, respetivamente. Na
atualidade, a garantia da intangibilidade da propriedade privada, salvo prevalência de
interesse superior coletivo que determine, em geral, restrições e, em especial, a
expropriação ou a requisição por utilidade pública e mediante justa indemnização,
mantém-se no art. 62.º e decorre bem assim, por força da receção formal operada pelo
art. 16.º, n.º 2 da CRP, do art. 17.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (13
).
Contudo, a associação da lesão do direito de propriedade por parte das entidades
públicas ao art. 62.º, n.º 2 da CRP e não, como os demais títulos de responsabilização
dessas entidades, ao artigo 22.º da CRP, decorre primacialmente da tradição liberal de
respeito pela propriedade privada. Cumpre, aliás, destacar que o direito à compensação
por fato de expropriação cedo foi reconhecido em Portugal no Direito Constitucional
(14
), no Direito Civil (15
) e, sequencialmente, no Direito Administrativo, isto é, bem
antes da consagração do direito à indemnização por atos ilícitos ( e pelo risco), que o
princípio da irresponsabilidade dos poderes públicos vetou até 1930.
É verdade que o Tribunal Constitucional começou por não excluir que no art.
22.º da CRP pudessem caber outras «responsabilidades» – dentro da extracontratual –
que não apenas a aquiliana. Admitiu-o, sem o afirmar claramente, no acórdão 153/90
(16
) - por referência à posição doutrinal de GOMES CANOTILHO, a quem não repugna
colocar o dever de indemnizar por atos ilícitos a par da responsabilidade pelo risco e do
dever de compensar por atos lícitos (17
). Contudo, mais recentemente, os juízes do
(12) Cfr. Os arts. 82.º, n.º 2 e 87.º, n.º 2, que derrogavam a garantia de justa indemnização sediada no art. 62.º, n.º 2.
(13) Sobre o art. 62.º da CRP, vejam-se Rui MEDEIROS, Anotação ao artigo 62.º, in: Constituição…,cit.,pp.1239 e segs, e José
Joaquim GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, pp. 798 e segs. Sobre o conceito constitucional de propriedade, Miguel NOGUEIRA DE BRITO, A justificação…, cit., pp. 903 e
segs. Particularmente sobre o conceito de justa indemnização, Fernando ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, II,
Coimbra, 2010, pp. 209 e segs. (14) Cfr. as normas supra citadas das Constituições históricas portuguesas.
(15) Cfr. o art. 2397.º do Código Civil de 1867.
(16) Todos os acórdãos do Tribunal Constitucional mencionados no texto foram consultados no sítio do Tribunal: http:// www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
(17) José Joaquim GOMES CANOTILHO, na 7.ª edição do seu Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003,
afirma «não ser tal conclusão líquida mas propender para que o artigo 22.º é sustentáculo da responsabilidade por factos lícitos» (p. 508). Neste sentido, cfr. o Acórdão do STA de 22 de Janeiro de 2002 (Processo n.º 044308), onde se afirma que: «De acordo com os
11
Palácio Raton (TC) parecem propender a encontrar no princípio do Estado de Direito
democrático ínsito no art. 2.º da CRP (e reforçado logo na alínea b) do art. 9.º da CRP)
o tronco de sustentação de um direito geral à reparação de danos, que teria
concretizações especiais nos arts. 22.º, 37.º, n.º 4, 60.º, n.º 1 e 62.º, n.º 2 da CRP (18
).
No contexto do art. 62.º, n.º 2 da nossa Lei Fundamental, o TC tem uma vasta
jurisprudência acerca da questão da garantia da propriedade e compensação da sua
afetação, em especial, a propósito das indemnizações (muito tardiamente) atribuídas na
sequência das nacionalizações surgidas no período pós-25 de Abril de 1974 e, em geral,
sobre normas do Código de Expropriações que se revelarem incompatíveis com os
requisitos de restrição estabelecidos no art. 62.º, n.º 2 da CRP. Parece-nos importante
realçar a nível da jurisprudência constitucional, que: do art. 62.º, n.º 2 da CRP resulta
explicitamente que a compensação atribuída ao lesado constitui um pressuposto de
legitimidade do ato expropriativo ou, noutros dizeres, trata-se de «um elemento
integrante do próprio ato de expropriação» (19
); a aferição do quantum em que se traduz
a compensação não decorre de critérios rigidamente estabelecidos na CRP; porém, tais
critérios deverão espelhar valores acarinhados pela Lei Fundamental como a igualdade e
a proporcionalidade, não podendo conduzir a compensações irrisórias ou
manifestamente desproporcionadas face à perda do concreto bem requisitado ou
expropriado (20
); a fixação da justa indemnização deve obedecer a um princípio de
equivalência de valores, ou seja, não deverá ficar aquém do mínimo razoavelmente
expetável nem ir demasiado além do máximo concretamente realizável através da
transação do bem. Nas palavras dos juízes do Palácio Ratton: «Tal indemnização tem
como medida o prejuízo que para o expropriado resulta da expropriação. E, se esta
indemnização não pode estar sujeita ou condicionada por fatores especulativos, por
estes serem, muitas vezes, artificialmente criados, sempre deverá representar e traduzir
uma adequada restauração da perda patrimonial sofrida pelo expropriado» (21
) (22
); a
Justiça da compensação afere-se a partir do quantum mas também do tempo que o
montante leva a ingressar na esfera patrimonial do expropriado, tempo esse que deve ser
artigos 2.º e 22.º, ambos da CRP, a indemnização, seja ela baseada em ato ilícito ou lícito como a dos autos, deve ter em conta todas
as circunstâncias de fato relativas ao valor dos bens sacrificados, respeitando os princípios da igualdade e da proporcionalidade».
(18) Cfr. o Acórdão 444/2008. (19) Cfr. o Acórdão do TC 210/93.
(20) Cfr. o Acórdão do TC 210/93.
(21) No Acórdão 314/95, o TC acrescentou que, para a aferição do justo valor do bem, deverá «atender-se (…) ao preço que o bem deterá num mercado normal, onde não entrem em consideração fatores especulativos ou anómalos que, as mais das vezes, se
encontram no mercado real e concreto».
(22) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in: «Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 14.
12
computado no quantitativo final, sob pena de desproporcionalidade da restrição (23
); a
plenitude/justiça da compensação deve avaliar-se quer em termos absolutos, quer
relativos: por um lado, e como se apontou supra, o lesado deve ser ressarcido do
prejuízo correspondente à perda do bem fixado a partir de valores atuais e objetivos; por
outro lado, o lesado deve ficar numa posição patrimonial idêntica àquela em que se
encontram outros sujeitos potencialmente suscetíveis de sofrer idêntica perda mas que a
não sofreram (24
).
Importa salientar que pode bem depreender-se destes tópicos de cariz
jurisprudencial que a supressão definitiva do direito de propriedade (ou,
temporariamente, das faculdades de uso e fruição, no que tange a requisição) (25
), se
encontra fortemente enleada por dois princípios basilares: de uma banda, a
proporcionalidade e, de outra banda, a igualdade.
É ainda de referir que a preocupação do TC é perfeitamente compreensível:
sofrendo o lesado uma amputação no seu património, a qual redundará num benefício da
coletividade em geral, seria injustificável que sofresse um duplo encargo, sendo estes o
da perda e o da não compensação adequada e suficiente desta.
Não se fique com a ideia de que o instituto da compensação por fato lícito é um
exclusivo do Direito público. Na realidade, o CC contempla alguns casos em que o
exercício lícito de um direito pode causar danos a terceiros, que devem ser
compensados. Tal como diz Luís MENEZES LEITÃO, este autor refere: «os exemplos
dos artigos 81.º/2, 1322.º, 1349.º, 1367.º, 1554.º, 1560.º/3, 1561.º/1, 1170.º/1 e 1172.º
(26
), ao que nós aditamos dois outros: por um lado, a situação prevista nos artigos
1101.º/a), 1102.º e 1103.º, que admitem a denúncia, pelo senhorio, de contrato de
arrendamento que o arrendatário cumpre escrupulosamente, para habitação própria
daquele ou de seus descendentes em primeiro grau, colmatando a perda do direito ao
arrendamento através do pagamento de uma compensação de montante equivalente a
um ano de renda (art. 1102.º/1)» (27
); e, por outro lado, a possibilidade de o dono da
obra desistir do contrato de empreitada, sediado no art. 1229.º. Isto, além da clássica
(23) Cfr. o Acórdão do TC 115/88).
(24) Cfr. o Acórdão do TC 210/93.
(25) José Joaquim GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição…, cit., p. 807) sublinham a profunda diferença entre expropriação e requisição: o fundamento da primeira deve-se a «razões normais e permanentes de utilidade pública; as razões da
requisição são necessidades urgentes de interesse público nacional, caraterizadas pela excecionalidade e anormalidade».
(26) Neste sentido Luís MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, II, Coimbra, 2002, pp. 350 e segs. (27) Sobre esta prerrogativa, Luís MENEZES LEITÃO, Arrendamento urbano, Coimbra, 2005, pp. 109-110.
13
previsão da compensação por fato praticado em estado de necessidade, a calcular pelo
juiz com base num juízo de equidade, nos termos do art. 339.º/2, 2.ª parte, do CC (28
).
Contudo, aparentemente, o artigo 62.º, n.º 2 da CRP (complementado pelo art.
83.º da CRP) constitui sustentáculo bastante para pedidos de compensação por
sacrifícios patrimoniais em benefício da coletividade, consequentemente o art. 16.º do
RRCEE seria um dispensável afloramento de tal dispositivo, antes operacionalizado
pelo Código das Expropriações (Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, com última
alteração introduzida pela Lei n.º 56/2008, de 4 de Setembro). Dir-se-ia, que o artigo
16.º, se não é uma norma supérflua, constitui uma norma de baixo espetro, restringindo
o seu âmbito aos danos morais ou não patrimoniais (29
). Tal asserção claudica, porém,
uma vez que a garantia constitucional visa expressa e literalmente as restrições à
propriedade que se traduzem numa iniciativa administrativa tendente à privação da
utilização do bem pelo seu proprietário, temporária (requisição) ou permanente
(expropriação), em prol da comunidade em geral, isto é, uma ingerência administrativa
conducente à transferência, temporária ou definitiva, do uso e/ou do título de
propriedade de um bem privado (ou público) para a esfera de um (outro) ente público
(ou privado no exercício de funções materialmente administrativas – em caso de
requisição). Esta intervenção tem subjacente uma ponderação de interesses públicos e
privados que obedece a um iter específico, a definir por lei oxigenada pelas diretrizes
constitucionais, maxime pelos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
Julgamos, assim, e por um lado, que a compensação por sacrifícios provocados
pela função legislativa não está abrangida pelo Tatbestand do art. 62.º, n.º 2 da CRP (30
)
(mas antes pela conjugação entre os artigos 62.º, n.º 1, 13.º e 18.º, n.º 2 e 3 da CRP) (31
).
Por outro lado, parece igualmente admissível afirmar que a afetação patrimonial que se
não consubstancie numa transferência (temporária ou definitiva) do direito de
(28) Cfr., o artigo 339.º/2 do CC não consagra um direito à compensação, antes deixando a ponderação na mão do julgador. «Esta
solução é criticada por Luís MENEZES LEITÃO (Direito das Obrigações, II, cit.), por a entender prejudicial à segurança jurídica». (29) Neste sentido, Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa, III,
Lisboa, 2008, p. 59.
(30) Apontando exemplos teóricos de compensação pelo sacrifício nesse âmbito, Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, Anotado, 2.ª ed., Coimbra, 2011, p. 367. Note-se
que, no plano do julgamento de uma ação de compensação pelo sacrifício, não será necessário recorrer ao TC (como no âmbito do
artigo 15.º do RRCEE) para confirmar a licitude da norma, uma vez que vale a presunção de constitucionalidade. Em contrapartida e como sugere Carlos FERNANDES CADILHA (ob. cit., p. 365), no âmbito da responsabilidade legislativa por atos lícitos, estes
hão-de ser, além de anormais, também especiais, prevalecendo, no cálculo do quantum compensatório, o critério de equidade
estabelecido no n.º 6 do artigo 15.º do RRCEE. Considerando “muito estranha” a abertura do diploma à compensação por facto legislativo lícito ao artigo I6.º depois dos cuidados revelados no artigo 15.º, Fernando ALVES CORREIA, A indemnização pelo
sacrifício: contributo para o esclarecimento do seu sentido e alcance, in: «RLJ», Ano 140, n.º 3966, 2011, pp. 143 segs, 151.
Paralelamente, e ainda que se trate de casos excecionais, no campo da função jurisdicional podem identificar-se casos de compensação por facto lícito. A alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal constitui um exemplo de
compensação por facto lícito decorrente do decretamento de detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação
injustificada. (31) Em sentido inverso, Rui MEDEIROS, Anotação ao artigo 62.º, in: Constituição…, cit., pp. 1266 e 1268.
14
propriedade (ou do seu uso) de um particular para uma entidade que aja em nome de
fundamentos de utilidade pública tão pouco cabe na letra do art. 62.º/2 da CRP e no
instituto da expropriação por utilidade pública que o concretiza (mas antes na garantia
da propriedade ancorada no art. 62.º, n.º 1 da CRP, cujas restrições se hão-de pautar
pelo respeito pelos princípios da proporcionalidade e confiança). E, finalmente, impõe-
se a revelação de que qualquer outro tipo de ingerência administrativa sobre categorias
jussubjetivas não coincidentes com o direito de propriedade (na sua integralidade)
também escapará à malha do artigo 62.º, n.º 2 da CRP.
Noutros termos, apesar de a inspiração primeira do instituto da compensação
pelo sacrifício ser, na tradição liberal, a garantia da propriedade, a Lei Fundamental
somente se reportou aos casos-regra, deixando ao legislador a opção de alargar a
hipótese normativa a casos paralelos de privação de bens que se não reconduzam ao
padrão constitucionalmente identificado – ou seja, aquelas em que o prejuízo opera
independentemente de um procedimento expropriatório ou requisitório, podendo
redundar na deterioração ou na perda de um bem ou direito.
Contudo, tal opção é apenas quanto ao como, não quanto ao se: tais hipóteses
devem igualmente merecer a atenção do legislador ordinário, embora não por força do
art. 62.º, n.º 2, mas antes pelos indirizzos emanados dos artigos 13.º, n.º 1 e 18.º, n.ºs 2 e
3 da CRP, sempre com o princípio do Estado de Direito democrático como pano de
fundo (32
) - como é realçado, desde logo, a nível jurisprudencial constitucional (33
). É de
referir que o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos reclama, à
partida, compensação para um cidadão que, a favor da comunidade, lhe vê infligida
uma perda significativa (34
); e o princípio da proporcionalidade, determinará, à chegada
se, em função do prejuízo concretamente imposto ao cidadão, se justifica a
compensação e em que medida.
É de salientar que a propósito da índole deste direito, o TC frisou, no Acórdão
444/2008 (na linha do que já afirmara no Acórdão 153/90), que «o legislador ordinário
tem ampla liberdade de conformar mais ou menos limitativamente o direito à reparação
dos danos, seja definindo condições para a constituição de uma obrigação de
indemnização, seja limitando os danos ressarcíveis. Necessário é que, no
(32) Ancorando nestes dois princípios o instituto da compensação por facto lícito, Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da
Responsabilidade civil…, cit., p. 360. (33) Cfr., também, o Acórdão do TCAN de 8 de Maio de 2008 (Processo n.º 00155/06.0BEPNF) no qual se refere, precisamente, que
o instituto da compensação pelo sacrifício encontra o seu fundamento tríplice nos artigos 2.º, 13.º e 18.º da CRP.
(34) Acerca deste princípio, veja-se o clássico José Joaquim GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, Coimbra, 1974, pp. 135-141.
15
estabelecimento dessas condições e limites, não se venha a tornar desprovido de
significado o «núcleo» desse direito, ou seja, que o direito à reparação dos danos, na
prática, não venha a ser impossibilitado de operar, ou que dos limites fixados não
resulte um ressarcimento dos danos irrisório ou desprezível, devendo essas condições e
limites serem justificadas pelos interesses em jogo».
Esta posição é a adotada pelo Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de
13 de Janeiro de 2004 (Processo n.º 040581), descartando alegações de
inconstitucionalidade dos artigos 8.º e 9.º do DL 48 051, por alegadamente restringirem
o direito à indemnização em moldes mais amplos do que no plano da responsabilidade
por facto ilícito. Trata-se, observa o Tribunal, «de um imperativo de proporcionalidade
estreitamente ligado ao Estado Social, que justifica as baias da especialidade e
anormalidade do prejuízo como afetações que o legislador ordinário considerou
necessárias para evitar o colapso financeiro, pondo em risco todo o conjunto das tarefas
fundamentais do Estado». Já antes, de resto, o STA frisava, em Acórdão de 10 de
Outubro de 2002 (Processo n.º 048404) (35
), que a «admissibilidade deste tipo de
responsabilidade tem naturalmente subjacente o princípio de que não é acertado
construir uma sociedade livre e pluralista na base da transferência de todos os riscos da
vida social dos indivíduos e das empresas para o Estado».
Por outras palavras, o modelo de compensação pelo sacrifício a desenhar para
além da expropriação (e requisição) da propriedade – enquanto privação plena do feixe
de faculdades contido no direito de propriedade, de forma provisória ou definitiva – há-
de conduzir a resultados balizados entre a proibição de irressarcibilidade de prejuízo
privado intolerável e a aceitação de irrestrita socialização de todo e qualquer prejuízo
privado motivado em razões de interesse público (36
), numa espécie de equação
fortemente enraizada na equidade. O legislador ordinário encontra-se mais solto na
construção deste quadro de pressupostos, quer quanto ao universo de danos ressarcíveis,
quer quanto aos critérios de cálculo do montante compensatório, quer, enfim, quanto ao
tempo – ou seja, a justiça desta indemnização não passa pela literalidade do artigo 62.º,
n.º 2 da CRP, mas apenas pela principiologia da igualdade na repartição dos encargos
públicos através de restrições a um direito fundamental, de natureza patrimonial ou não
(35) É de referir que todos os acórdãos dos tribunais administrativos foram consultados na base da DGSI: www.dgsi.pt.
(36) No plano do direito privado, e no que tange a responsabilidade-regra, que é aquiliana, a jurisprudência vem chamando a atenção para a irressarcibilidade de prejuízos decorrentes da vivência comunitária num determinado modelo de sociedade, apelando a uma
lógica de adequação social - que mais não é do que a aplicação da teoria da concordância prática moldada pelo princípio da
proporcionalidade às relações interprivadas – Cfr., o Acórdão do STJ de 20 de Setembro de 2010 (processo 1229/05.0TVLSB.LI.SI).
16
patrimonial (ora se ligando ao artigo 62.º, n.º 1, ora ao artigo 26.º, n.º 1, ambos da CRP).
Os travões da especialidade e da anormalidade do dano constituem, por isso,
pressupostos inelimináveis deste instituto, embora não sejam os únicos.
2. A responsabilidade civil administrativa, sua noção e aspetos gerais
A responsabilidade civil administrativa é o conjunto de circunstâncias da qual
emerge, para a administração e para os seus titulares de órgãos, funcionários ou agentes,
a obrigação de indemnização dos prejuízos causados a outrem no exercício da atividade
administrativa. O qualificativo civil da responsabilidade não remete para o direito
privado: trata-se apenas de esclarecer que a responsabilidade em causa não é política,
criminal, contra-ordenacional ou disciplinar.
Como explicam Marcelo REBELO DE SOUSA e de André SALGADO DE
MATOS: «Todas estas modalidades de responsabilidade têm fins diferentes da
responsabilidade civil: esta visa predominantemente a reparação de danos, enquanto a
responsabilidade política visa a efectivação do controlo democrático no quadro do
funcionamento do sistema de governo e as responsabilidades criminal, contra-
ordenacional e disciplinar visam finalidades de prevenção, geral ou especial, e de
repressão de condutas antijurídicas» (37) ( 38).
3. O regime de responsabilidade objetiva por danos causados por normas
emitidas no desempenho da função administrativa
3.1. A razão do tema
Relativamente à razão do tema importa denotar que não era considerada líquida,
à face do ordenamento jurídico português, a questão do regime jurídico aplicável à
relação entre a Administração e um particular lesado por normas emitidas no
desempenho da função administrativa. E era assim em particular no que tocava à
responsabilidade objetiva, ou seja, quando a conformidade de tais normas com o Direito
não merecia ser posta em causa não obstante o seu efeito danoso. A dúvida nasceu da
redação do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967,
que, ao fixar o princípio da responsabilidade objetiva da Administração pela prática de
(37) Em geral, fala-se em responsabilidade civil do Estado e das demais pessoas coletivas de direito público; mas a administração
pública em sentido orgânico também compreende pessoas coletivas de direito privado, sujeitas a um regime de direito
administrativo no âmbito da sua atividade de gestão pública. Às pessoas coletivas de direito privado integrantes da administração pública aplica-se, na medida em que exerçam a função administrativa, o regime da responsabilidade civil administrativa, sendo neste
sentido que deve entender-se a referência da parte final do art. 1.º, n.º 5 do RRCEC; em termos processuais, art. 4.º, n.º 1, alínea i)
do CPTA. (38) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 12.
17
atos lícitos, se referiu somente aos atos administrativos legais e aos atos materiais
lícitos. O entendimento literal estrito da primeira destas expressões apartava os atos
normativos da Administração e, entre eles, os atos regulamentares. Porém, existiam
argumentos de natureza finalística e sistemática para proceder a uma interpretação
declarativa lata do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051 de modo a compreender
os atos normativos da Administração na expressão atos administrativos tal como usada
naquele preceito.
Como alertava Marcello CAETANO, o autor: «nunca assumiu uma posição clara
sobre a questão» (39
). E algum clima de incerteza continua a pairar na obra do
juspublicista, a tantos títulos inovadora, que, em 1974, GOMES CANOTILHO dedicou
à responsabilidade do Estado por atos lícitos (40
). De então até aos tempos de hoje,
nenhum autor português dedicou (que saibamos) atenção a este tema.
Para sermos precisos, impõe-se trazer aqui o texto de José Manuel Sérvulo
CORREIA, que diz: «Importa referir que a este vazio na doutrina corresponde a
inexistência de decisões do Supremo Tribunal Administrativo em matéria de
responsabilidade objetiva por facto de regulamento. Dir-se-ia que se gira em círculo
vicioso: a ausência de orientação doutrinária inibe aos particulares de invocar em
tribunal esta causa de pedir e, na falta de matéria prima jurisprudencial, a doutrina
administrativista, dela sempre tão dependente, retrai-se» (41
).
No entanto, apesar da pendência, naquela altura em que estava em discussão,
perante a Assembleia da República da Proposta de Lei n.º 95/VIII sobre a
responsabilidade civil extracontratual do Estado, que, uma vez entronizada, iria
modificar significativamente os dados da questão, não nos pareceu que fosse tarde de
mais para tentar reparar aquele vazio, ainda que de forma incipiente. É certo que, caso
se viesse a firmar de acordo com os termos da iniciativa governamental, a lei proposta
estabelecia uma ampla figura de indemnização pelo sacrifício, objeto de um dever do
Estado e das demais pessoas coletivas de direito públicas, sempre que, por razões de
interesse público, estes impusessem encargos ou causem danos especiais e anormais
(artigo 16.º do atual RRCEE). Tal fórmula cobre, atualmente, sem dúvidas, a
responsabilidade objetiva por atos normativos legais da Administração. Mas nem por
(39) Cfr., para mais desenvolvimentos vd., Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 9.ª e última edição,
Lisboa, Coimbra Editora, 1972, pp. 1215-1217.
(40) Cfr., para mais desenvolvimentos vd., J. J. GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, Coimbra, Almedina, 1974, p. 197.
(41) Cfr. José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas
emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p. 1316.
18
isso perde todo o interesse a averiguação do DL supra mencionado da ordem jurídica
nesse domínio. É conveniente mencionar a aplicação do DL n.º 48 051 – que tornou o
regime da responsabilidade objetiva por facto regulamentar mais claro quanto ao seu
fundamento mas não alterou a sua substância - sempre lucrando, com o melhor
entendimento, sendo que constituiu uma nova etapa.
Porém, crê-se pois que se justificou proceder ao exame do fundamento jurídico,
no DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, da responsabilidade objetiva por danos
causados por normas legalmente emitidas no desempenho da função administrativa.
3.2. Base legislativa ou base diretamente constitucional para a
responsabilidade por facto de regulamento? A responsabilidade por
facto de regulamento entre a responsabilidade por ato legislativo e a
responsabilidade por ato administrativo.
Tal como diz José Manuel Sérvulo CORREIA: «Embora seja sobre a sede da
responsabilidade objectiva por facto regulamentar que nos propomos discorrer, não
pode naturalmente esta questão, que tem contornos específicos, desprender-se por
completo da das raízes da responsabilidade subjectiva por facto de regulamento» (42
).
Há algo de comum na situação destas duas categorias: a circunstância de o Decreto-Lei
n.º 48 051 só referir as normas regulamentares como parâmetros de licitude dos atos
jurídicos (artigo 6.º) e nunca, expressamente, como atos geradores de responsabilidade
administrativa. Nas palavras de José Manuel Sérvulo CORREIA: «Podia pois – em face
do teor literal do diploma – suscitar-se a questão de saber se o seu escopo relegou para
outra instância de regulação, ou para nenhuma, o enquadramento normativo de todos os
efeitos danosos decorrentes da actividade regulamentar da Administração» (43
).
A verdade, contudo, é que não eram iguais em grau os obstáculos colocados pelo
texto quando se pretender reconduzir à estatuição do Decreto-Lei n.º 48 051 as formas
de responsabilidade subjetiva e objetiva. Da conjugação entre os artigos 1.º, 2.º e 6.º,
resultava que se encontravam submetidos ao regime de responsabilidade subjetiva
constante do Decreto-Lei os atos jurídicos culposamente praticados no âmbito da gestão
pública que violassem normas legais e regulamentares ou os princípios gerais
(42) Cfr. José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas
emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p.
1317. (43) Cfr. José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas
emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p.
1317.
19
aplicáveis. Cabiam indubitavelmente neste conceito os regulamentos que, verificada
culpa nos termos dos artigos 487.º e 497.º do Código Civil, contrariassem o disposto por
normas, incluindo outras normas regulamentares, que possuíssem eficácia superior.
Com efeito, o regulamento representava uma forma típica de ato jurídico da
Administração no âmbito da gestão pública.
Porém, no que concernia à responsabilidade objetiva eram maiores as
dificuldades visto que o artigo 9.º, n.º 1, apenas referia como seus possíveis causadores
os atos administrativos legais e os atos materiais lícitos.
Importa enunciar que a subtração da responsabilidade, incluindo mesmo a
responsabilidade subjetiva, por facto de regulamento à incidência do Decreto-Lei n.º 48
051, ou seja, ao regime geral da responsabilidade administrativa extracontratual por ato
de gestão pública, só poderia encontrar uma justificação na preferência de a fazer
alinhar com o regime de responsabilidade do Estado e das regiões autónomas por ato
legislativo. Optar-se-ia dessa forma por juntar toda a responsabilidade por atos
normativos, fossem eles legislativos ou regulamentares, separando-a de um outro
instituto jurídico circunscrito à responsabilidade da Administração por atos de gestão
pública concretos, de natureza jurídica ou material. Valeria aqui, numa perspetiva
funcional, a proximidade entre o regulamento e a lei, a pertença do regulamento ao
conceito de lei em sentido material. Sublinhar-se-ia dessa forma o caráter de regra
abstrata e geral da norma regulamentar, que a separava dos outros atos jurídicos
próprios da função executiva.
Em Portugal, e na segunda metade do Século XIX, como sublinha Carlos
BLANCO DE MORAIS, nunca se abriu: «espaço para a concretização de uma reserva
material de carácter regulamentar, ou mesmo de eixos de concorrência entre
regulamentos independentes e «leis formais» em certos domínios, tal como existia na
Alemanha na Itália» (44
). E, de qualquer forma, sem prejuízo da existência da nossa
Ordem Jurídica de órgãos com dupla competência legislativa e regulamentar (o
Governo e as assembleias legislativas regionais), a colocação constitucional desses dois
modos de normação situava as regras por eles geradas em dois planos distintos. Estes
não se materializavam apenas pela diferente força hierárquica (como igualmente sucedia
entre norma regulamentar e ato administrativo concreto) mas também por acentuadas
diferenças de regime quanto ao procedimento de feitura, quanto ao grau de autonomia
conformativa e quanto ao controlo de juridicidade.
(44) Neste sentido ver Carlos BLANCO DE MORAIS, As Leis Reforçadas, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 47 e segs.
20
A analogia da norma regulamentar em relação à norma legislativa prendia-se
com o aspeto formal da estrutura lógica da proposição prescritiva no tocante aos
âmbitos de incidência subjetiva e objetiva. Mas o traço comum da estrutura não apagava
uma muito mais relevante desigualdade intrínseca no tocante à instrumentalização dos
preceitos a diferentes funções do Estado. Não obstante a parcial simultaneidade da
autoria orgânica, a diferenciação dos planos funcionais suscitava a extração, a partir do
princípio da separação de poderes, de ilações muito diferentes no tocante ao regime dos
preceitos legislativos e dos preceitos regulamentares. Porém, para além de aspetos já
meteoricamente referidos (procedimento, autonomia de conformação e controlo)
apontava-se a circunstância de o poder regulamentar se confinar, em relação a cada
pessoa coletiva pública cujos órgãos dele dispunham, à esfera das respetivas atribuições.
É verídico que a competência regulamentar e a competência para a prática de atos
administrativos podiam não coincidir no tocante à sua distribuição pelos órgãos da
pessoa coletiva ou no tocante à destrinça entre as matérias que esta podia conformar de
maneira geral e abstrata ou de forma concreta. Deste modo, a nível exemplar, certos
institutos públicos somente podiam praticar atos administrativos; os regulamentos que
eventualmente, a par da lei, disciplinassem o conteúdo de tais atos competiam nesse
caso ao Governo. Mas o regulamento era um meio para permitir o exercício das suas
atribuições à pessoa coletiva pública dotada de órgãos com competência normativa. As
atribuições representavam desta forma um quadro comum para o exercício de
competências tanto normativas como concretas que não balizava, em contrapartida, a
feitura das leis pelos órgãos de soberania (45
).
Em suma, localizada entre a norma legislativa e o ato administrativo, a norma
administrativa situava-se mais próxima do último do que da primeira no quadro sinótico
dos atos jurídicos públicos. A função regulamentar era administrativa e não legislativa.
O regulamento compartilhava com o ato administrativo o caráter não inicial ou não
primário. Muitas vezes, assumiam até a mesma forma típica (decreto, portaria,
despacho, deliberação de assembleia municipal…). E, embora não vejamos na
(45) Porém, já a atividade legislativa das assembleias regionais tem de se enquadrar no âmbito das matérias de interesse específico para as regiões autónomas. É o compromisso possível quando se reconhecem poderes legislativos a entidades desprovidas de
soberania. O poder legislativo das assembleias regionais materializa uma autonomia política mas respeitante a uma população de um
espaço infra-estadual. Automaticamente, surge a necessidade de destrinçar os interesses públicos – ou seja, as atribuições – em função do respetivo âmbito geográfico. Mas, no domínio dos interesses específicos da região autónoma não comprimido pela
reserva de legislação nacional, o legislador regional pode prosseguir uma plenitude de fins que a delimitação de atribuições entre a
região autónoma, as pessoas coletivas da administração regional indireta e as autarquias locais do território não consente a nenhum dos órgãos com poder regulamentar de qualquer destes entes. O âmbito dos poderes de normação administrativa corresponde
sempre, apenas, ao das atribuições da pessoa coletiva pública em causa. E, para o efeito da função administrativa, as atribuições da
região autónoma não correspondem a todo o âmbito dos interesses específicos da região visto que estes também são prosseguidos pela administração indireta e pelas autarquias locais.
21
discricionariedade administrativa o fundamento do poder regulamentar, não havia
dúvida quanto ao papel do regulamento como veículo de discricionariedade e como
instrumento de auto-vinculação dos poderes discricionários suscetíveis de serem
exercidos através da prática de atos administrativos. Isso significava, que, ao emitir tais
normas, a Administração disciplinava o seu próprio comportamento em relações
jurídicas em que era parte e não apenas comportamentos de outros sujeitos, como em
regra fazia o legislador. Também sob este ângulo a norma administrativa se revelava
próxima do ato administrativo e distante do ato legislativo.
A tradição portuguesa era a do tratamento da responsabilidade pública com
atenção separada às diferentes funções do Estado em que se inscreviam os atos danosos.
Mesmo a proposta de lei pendente, naquela época, na Assembleia da República, ainda
que conjugasse num só diploma o tratamento dessa responsabilidade e defirisse todas as
suas manifestações à cognição da ordem jurisdicional administrativa, organizava em
capítulos separados a disciplina da responsabilidade civil por danos decorrentes do
exercício da função política e legislativa, da função jurisdicional e da função
administrativa.
Não víamos pois razões de ordem funcional (muito pelo contrário!) para separar
a responsabilidade por danos causados por regulamentos da responsabilidade por atos
administrativos. O caráter geral e abstrato dos comandos regulamentares não acarretava
por si só a respetiva submissão, por analogia, ao regime da responsabilidade por danos
decorrentes de ato legislativo. Se este último tinha de se ir buscar em diretas
decorrências de princípios constitucionais, nomeadamente o da garantia da propriedade
privada, o regime da responsabilidade por atos regulamentares havia de enquadrar-se
na lei sobre responsabilidade civil extracontratual da Administração por atos de gestão
pública pois que a gestão pública era a área em que se inscrevia a atividade normativa
da Administração. Havia, contudo, que averiguar se a hermenêutica impunha alguma
distorção à lógica do sistema, ou seja, se, ainda que se tratasse de má política legislativa,
o Decreto-Lei n.º 48 051 teria, a título excecional, afastado do seu âmbito de incidência
a responsabilidade objetiva por facto de ato normativo da Administração.
22
4. O âmbito de incidência objetiva do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051.
4.1. A gestão pública como critério material da extensão do
Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967
No que respeitava ao sentido e extensão do DL n.º 48 051, de 21 de Novembro
de 1967 é muito proveitosa a leitura do Manual de Marcello CAETANO.
A entrada em vigor do CC de 1966 abriu uma lacuna importantíssima, na
medida que veio contemplar unicamente a produção de danos no exercício de atividade
de gestão privada, enquanto que o CC de Seabra constituía assento de todo o regime de
responsabilidade extracontratual da Administração. Foi todo o espaço que ficaria em
aberto que o DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, se propôs cobrir regulando de
uma forma genérica - «em tudo que não esteja previsto em leis especiais» - a
responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas de direito público
«no domínio dos atos de gestão pública» (art. 1.º). Dado que o DL n.º 48 051 atribuiu
nova forma a dois artigos do Código Administrativo sobre responsabilidade das
autarquias locais, o diploma legal passou, exceto disposições em legislação especial,
como lembrava Marcello CAETANO: «a cobrir, com a sua disciplina autónoma da do
Código Administrativo, todos os casos de responsabilidade extracontratual da
Administração no domínio dos actos de gestão pública que não consistissem em factos
ilícitos culposos praticados pelos órgãos ou agentes da Administração local» (46
).
Importa ainda mencionar que o DL em apreço obedecia à diretiva finalística de
constituir o assento legal de um regime geral de responsabilidade da Administração,
tomando como matriz do âmbito material dessa normação, por um lado, a figura dos
atos de gestão pública, como protótipo do facto causado do dano, e, pelo outro, no
tocante aos requisitos ou pressupostos do dever de indemnizar, as modalidades da
responsabilidade subjetiva e da responsabilidade objetiva, esta última nas suas
subespécies da responsabilidade pelo risco e da responsabilidade pela prática de atos
lícitos.
Importa sublinhar que o regime de responsabilidade de direito administrativo
apontava para uma reposição da esfera do lesado mediante uma reparação, em geral de
cariz pecuniário, e apenas, excecionalmente por reconstituição natural. Respeitava por
tal motivo a uma relação jurídica cujo elemento essencial era a pretensão a uma
prestação e não o tipo de conduta em relação causal com o dano que justificava o dever
e o direito a essa prestação.
(46) Cfr. Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo 9, II, Lisboa, Coimbra Editora, 1972, pp. 1196-1197.
23
Porém, tal como salienta José Manuel Sérvulo CORREIA: «Sublinhamos pois
que choca com a lógica interna do Decreto-Lei n.º 48 051, assente na ideia de garantia
da reparação dos danos causados pela Administração quando actua na área da gestão
pública, uma interpretação restrita da expressão actos administrativos tal como utilizada
no n.º 1 do respetivo artigo 9.º» (47
). Ora, como evidencia José Manuel Sérvulo
CORREIA: «Uma tal leitura introduz uma mutilação da área própria da gestão pública
que o diploma se auto-fixa como âmbito material, ou seja, como sua extensão» (48
).
Subscrevendo Diogo FREITAS DO AMARAL, baseando-se na jurisprudência
do Tribunal dos Conflitos, são atos de gestão pública «os que se compreendem no
exercício de um poder público, integrando eles mesmos a realização de uma função
pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de
meios de coação, e independentemente ainda das regras, técnicas ou de outra natureza,
que na prática dos actos devam ser observados». Ou, por outras palavras do mesmo
autor, gestão pública é «a actividade da Administração desenvolvida sob a égide do
Direito Administrativo» (49
). Podemos ainda referir que a gestão pública pode designar-
se como sendo a área da função administrativa regida pelo Direito Administrativo como
Direito estatutário da Administração.
A gestão pública conhecia quatro formas típicas de atuação: o ato administrativo
em sentido estrito, o ato regulamentar, o contrato administrativo e o ato material (50
). No
âmbito da regulação normativa pelo DL n.º 48 051, tal como estatuído no art. 1.º que se
propunha dispor apenas sobre responsabilidade extracontratual por atos de gestão
pública, restavam os atos administrativos em sentido estrito, os atos regulamentares e os
atos materiais cuja prática e efeitos fossem regidos por normas de Direito
Administrativo.
(47) Cfr. José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas
emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p. 1324.
(48) Cfr. José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas
emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p. 1324.
(49) Ver Marcello CAETANO, Curso de Direito Administrativo 2, I, Coimbra: Almedina, 1994, pp. 138-139.
(50) «O Direito Administrativo pós-moderno tem vindo a desenvolver outras formas típicas de actuação que, no entanto, são em princípio reconduzíveis às quatro formas «clássicas». «Assim é com os planos que, não obstante tenderem a adquirir natureza sui
generis, são ainda, no essencial, uma combinação de normas administrativas, actos de definição imperativa de situações jurídicas
administrativas concretas e actos materiais» (cfr. diz Fernando ALVES CORREIA, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, Almedina, 1989, pág. 235 e seguintes). «Assim é igualmente com as declarações negociais emitidas pela
Administração em sede de execução dos contratos administrativos que, dando lugar a um contencioso de plena jurisdição, se
integram no instituto do contrato administrativo a propósito do seu (in) cumprimento e geram responsabilidade contratual, exterior, portanto, ao âmbito do Decreto-Lei n.º 48 051».
24
5. A interpretação do n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro
de 1967 à luz de elementos de ordem literal e teleológica
Muito embora nos debrucemos sobre a responsabilidade objetiva por facto
regulamentar, convém frisar que o problema assim delimitado não faria sentido se o DL
n.º 48 051 tivesse deixado de fora do âmbito da sua estatuição toda a responsabilidade
por facto regulamentar. Parece-nos, contudo, que a inclusão da responsabilidade por
facto regulamentar inválido, isto é, da responsabilidade subjetiva por facto de
regulamento, não sofreu grandes dúvidas.
Em 1967, o legislador ao dispor sobre responsabilidade subjetiva, assentou-a no
conceito de ato ilícito culposo (artigo 2.º), sendo este conceito melhor explicitado no
artigo 6.º, que o desdobrava em atos jurídicos e atos materiais. Os regulamentos eram
atos jurídicos, não ficando excluídos da previsão do artigo 6.º devido à circunstância de
este preceito se referir às normas regulamentares, a par das normas legais e dos
princípios gerais, como sendo os parâmetros em relação aos quais a desconformidade
ditava a ilicitude dos atos jurídicos. Noutros termos, não seria correto considerar que, na
economia do preceito, a expressão atos jurídicos não abrangesse atos regulamentares só
porque os segundos eram diferenciados dos primeiros a título de constituírem medida da
sua validade. Pelo contrário, era perfeitamente lógica a presença, no tecido do art. 6.º,
dos atos regulamentares sob a dupla capa de atos jurídicos (parametrizados) e de
(paramétricas) normas regulamentares. De referir que a expressão atos jurídicos
abarcava os atos administrativos em sentido estrito, que tinham nas normas
regulamentares um dos padrões de validade. De mencionar que há regulamentos de
diferente força hierárquica, os quais se relacionam em termos de critério de valor
jurídico e de realidade avaliada (a nível exemplificativo temos o disposto no art. 241.º
da CRP).
Contudo, não parecia assim legítimo extrair da estrutura do art. 6.º do DL n.º 48
051 a ilação de que os atos jurídicos suscetíveis de gerar responsabilidade subjetiva da
Administração no âmbito da gestão pública não abarcavam os atos regulamentares.
Verificado que o DL n.º 48 051 cobria a responsabilidade por danos emergentes
de regulamento ilegal, ou seja, a responsabilidade subjetiva por facto de regulamento,
podemos agora concentrar-nos na questão da sujeição a esse diploma da
responsabilidade por facto de regulamento lícito, ou seja, da responsabilidade objetiva
por facto de regulamento.
25
Importa enunciar que eram fundamentalmente de três ordens os argumentos a
poderem-se recorrer em apoio da exclusão da responsabilidade por facto de regulamento
lícito do âmbito de incidência objetiva do DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967.
Ora é de referir que o primeiro argumento, firmado na letra do n.º 1 do art. 9.º,
acentuaria que este preceito referia os atos administrativos mas não os regulamentos.
Porém, o segundo argumento consistiria na demonstração de que a finalidade do
DL n.º 48 051 seria alheia à tutela dos particulares contra danos sofridos em
consequência direta da sua sujeição à estatuição de uma norma regulamentar válida.
Por fim, o terceiro argumento repousaria em razões de ordem sistemática
intratextual ou contextual que ditariam o afastamento da responsabilidade objetiva por
facto de regulamento em prol da coerência do regime jurídico da responsabilidade do
Estado tal como era definido no DL n.º 48 051 ou como construído, em termos mais
amplos, conjugadamente no DL supra mencionado e noutros diplomas integrantes de
uma ordem jurídica que se pretendia unitária.
No nosso entendimento, tais três ordens de análise hermenêutica conduziam
precisamente à conclusão contrária, isto é, à conclusão de que o art. 9.º do DL n.º 48
051 se entendia também ele por referência à ideia de cobertura omnicompreensiva da
responsabilidade extracontratual da Administração por danos decorrentes da gestão
pública.
É de referir que em primeiro lugar, aquela cobertura omnicompreensiva não era
afastada por qualquer barreira intransponível levantada pela letra do n.º 1 do artigo 9.º
do DL n.º 48 051. Na verdade, a locução atos administrativos ali usada comportava uma
interpretação declarativa lata que compreendia os atos regulamentares.
Ato administrativo em sentido estrito e regulamento eram duas formas de
conduta típicas da Administração quando a Administração agia no quadro do Direito
Administrativo. Uma das mais antigas partes da teoria geral do direito administrativo
respeitava precisamente às formas jurídicas de conduta. Mas tais formas não podiam ser
absolutizadas. Elas valiam na medida em que lhes deviam ser ligados efeitos jurídicos,
de ordem substantiva, procedimental ou processual. Para além desse primeiro plano
diferenciador, que relevava enquanto justificava a submissão a regimes distintos, as
formas jurídicas serviam para, no que à construção jurídica respeitava, elevar as
situações a que respeitavam a uma visão de conjunto que tornava mais presente a
comunicação entre os princípios ordenadores e as soluções. Queria-se significar com
isto que havia algo de comum entre regulamento e ato administrativo em sentido estrito:
26
eram sempre e só conduta da Administração para desempenho da função executiva no
quadro do Direito Público. E pretendia-se lembrar igualmente que, encontrando-se no
seu conjunto a conduta da Administração regida por princípios idênticos, a distinção de
regimes atinentes às formas que cristalizavam tais comportamentos só fazia sentido na
medida em que, sem tal diferenciação, as formas perdessem a sua adequação funcional.
Compreendia-se à luz das ideias assim expressas que, no Direito Administrativo
português (como em outros, como, por exemplo, o francês), nunca tenha sido absoluta a
separação entre as figuras do ato regulamentar e do ato administrativo em sentido
estrito, isto é, ato de definição imperativa de uma situação jurídica administrativa
desprovida de generalidade e ou de abstração.
Porém, não nos parece, por esta razão, que o emprego desgarrado pelo legislador
da expressão atos administrativos devesse constituir um non plus ultra que agarrasse
imperiosamente o intérprete a um entendimento sintonizado com a aceção técnica mais
precisa. No Direito, há muitas expressões de geometria variável. Era o que sucedia, por
exemplo, no ordenamento jurídico francês com expressões como décision éxécutoire
que tanto abrangia a definição concreta como a normativa de situações jurídicas
administrativas desde que com elas a Administração visasse modificar o ordenamento
jurídico ou opor-se a uma pretensão de modificação. Mas, a décision éxécutoire (ela
própria com aceções mais ou menos amplas) integrava-se numa categoria de âmbito
mais vasto (por incluir todas as decisões suscetíveis de recurso por excesso de poder
mesmo que não passíveis de suspensão jurisdicional de eficácia), que era a de «acte
administratif». Ora, no que respeitava a este, ele tanto abarcava também atos concretos
como atos normativos de cariz regulamentar. Embora, pois, a doutrina francesa
reconhecesse a diferença entre «décision individuelle» e «décision réglementaire», nem
por isso deixava de considerar que constituíssem um conjunto homogéneo visto que o
poder regulamentar não passava de uma das manifestações do poder da Administração
de tomar decisões unilaterais. Daí a unidade do seu regime de impugnação contenciosa.
De referir que na génese do Direito Administrativo português, tão influenciada
pelo modelo francês, reinou também, por largo tempo, uma acentuada indiferenciação
entre os regimes dos atos da administração de natureza concreta ou normativa. Cumpre
recordar que a figura de ato administrativo foi elaborada ao longo do Século XIX, nos
planos jurisprudencial e doutrinário, com o objetivo de encontrar um elo de ligação
típico entre as condutas da Administração e a sua sindicância contenciosa.
27
Parafraseando Marcello CAETANO: «Pelo que toca às posturas e aos
regulamentos locais, sempre se admitiu o recurso directo de anulação: sob a forma de
acção pública perante os tribunais judiciais no Código (Administrativo) de 1836 (art.
82.º, 27.º, n.º 1) e nos termos gerais do contencioso administrativo a partir do Código de
1842 (art. 208.º, n.º 1)» (51
). No que respeitava à impugnação dos regulamentos da
Administração Central, o percurso jurisprudencial e legislativo não foi homogéneo. De
todo modo, a partir de 1917, o STA recebeu recursos diretos de normas regulamentares
quando privassem desde logo os particulares de algum direito subjetivo fundado em lei
anterior. Tal orientação foi confirmada a partir de 1934 também por jurisprudência do
Tribunal dos Conflitos. Só em 1956, a nova Lei Orgânica do Supremo Tribunal
Administrativo (LOSTA) veio considerar insuscetíveis de recurso os decretos
regulamentares. Relativamente aos regulamentos sem a forma de decreto, não se gerou
qualquer consenso.
Certas vozes, tal como exprimia Afonso QUEIRÓ: «sustentaram a
impugnabilidade por recurso contencioso de anulação das suas próprias disposições
genéricas quando a sua aplicação se convertesse em ofensa efetiva das situações
subjetivas dos destinatários» (52
).
Contudo, jamais se levantaram dificuldades quanto à sujeição dos regulamentos
e posturas locais ao recurso contencioso de anulação. E importa ter bem presente que a
razão porque assim sucedeu foi a de que o artigo 820.º do CA previa universalmente o
recurso contencioso para as auditorias administrativas (atualmente, tribunais
administrativos de círculo) das decisões e deliberações dos órgãos da Administração
local, sem fazer aceção entre atos concretos e normativos.
Tal como evidenciava Marcello CAETANO, «os regulamentos ficavam
abrangidos por também serem objecto de decisão ou de deliberação de um órgão local»
(53
).
De realçar que o artigo 820.º do CA vigorava quando, em 1967, entrou por seu
turno em vigor o DL n.º 48 051, cujo art. 9.º, n.º 1, estabelecia a responsabilidade do
Estado e demais pessoas coletivas públicas pelos prejuízos especiais e anormais
causados por atos administrativos legais. De referir que uma tal relação contextual leva-
nos pois a concluir que não repugna ler a expressão atos administrativos em sentido
amplo, em termos de abranger também, pelo menos, os atos normativos da
(51) Cfr. Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo 9, II, Lisboa, Coimbra Editora, 1972, p. 1324.
(52) Cfr. Afonso QUEIRÓ in: «Revista de Legislação e Jurisprudência», 97.º, p. 300. (53) Cfr. Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo 9, II, Lisboa, Coimbra Editora, 1972, p. 1326.
28
Administração local e os da Administração central cuja impugnação se não encontrasse
vedada (em atenção ao emprego da forma de decreto). Era com precisão a expressões
sinónimas de atos administrativos (decisões e deliberações) que se referia o art. 820.º do
CA, mostrando desta forma que o legislador da época empregava as locuções em causa
também numa aceção ampla que abrangia as normas regulamentares.
Destarte, também não existia, a nosso entendimento, qualquer razão de cariz
finalístico para circunscrever o âmbito da responsabilidade por ato lícito aos atos
administrativos que definiam casos jurídicos administrativos concretos, sendo patente
que o legislador não pretendeu fazê-lo, uma vez que também estatuiu, no art. 9.º já
referido, a responsabilidade por atos materiais lícitos.
Tal como dizia Marcello CAETANO, «o propósito foi o de formular o princípio
geral da responsabilidade da Administração por factos lícitos, não se tratando sequer de
uma inovação legislativa, visto que o art. 2397.º do CC de 1867 já consagrava, em
termos genéricos, o princípio de que o sacrifício especialmente imposto a um
património para o benefício da coletividade deve ser por esta indemnizado pelo modo
mais adequadamente estabelecido na lei» (54
).
Concluindo, a intenção do DL n.º 48 051 era a de cobrir toda a responsabilidade
incorrida pela Administração no exercício da gestão pública extracontratual. Em
sintonia com tal DL n.º 48 051, a pretensão do art. 9.º daquele diploma legal era a de
formular o princípio geral da responsabilidade da Administração por factos lícitos
próprios da gestão pública extracontratual. Não se encontrava nem na finalidade nem na
economia estrutural do DL n.º 48 051 qualquer motivo evidente para excecionar deste
programa universal para a área da gestão pública extracontratual a responsabilidade por
danos especiais e anormais diretamente causados por normas regulamentares.
Ainda importa referir que de um ponto de vista abstrato, podia ainda colocar-se a
questão de saber se a finalidade prosseguida pelo DL n.º 48 051 era compatível com a
sua extensão aos atos normativos da Administração. A argumentação em sentido
contrário fundar-se-ia na pretensa insuscetibilidade de um ato genérico e abstrato causar
danos individualizados.
A ter pertinência, tal argumento teria a virtualidade de afastar também a
responsabilidade da Administração por danos causados por ato normativo inválido.
Porém, para o efeito da incidência do n.º 1 do art. 9.º do DL n.º 48 051, o
encargo ou prejuízo imposto pelo ato legal necessitava de ser não apenas anormal mas
(54) Cfr. Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo 9, II, cit., p. 1216.
29
também especial. A questão residia pois em saber qual a medida em que esta
especialidade se podia conjugar com a generalidade e abstração próprias de um
comando normativo. É que o dano especial era aquele que incidisse particularmente
sobre certos sujeitos de direito, ou seja, que os colocasse em situação desigual em
relação à generalidade das pessoas.
Nas palavras de GOMES CANOTILHO, «há algumas décadas atrás, na doutrina
alemã, chegou até a definir-se uma corrente – a teoria do acto individual
(Einzelakttheorie) para a qual a especialidade do prejuízo corresponderia a
individualidade formal do acto que o causa» (55
).
Mas, como afirma GOMES CANOTILHO, «a impraticabilidade e a
inidoneidade deste critério, quando pretendido como único, cedo se revelou.
Impraticabilidade porquanto, entre a generalidade e a individualidade pura do acto, se
desenvolve uma série vasta de gradações. E inidoneidade visto que, não obstante a sua
generalidade e abstracção, os actos normativos podem incidir sobre um ou outro grupo
restrito de sujeitos de direito» (56
). Esta era também a posição da jurisprudência
administrativista francesa, que se não revelava, em princípio, hostil à indemnizabilidade
dos danos causados por ato regulamentar. Apesar de o ato regulamentar afetar uma
pluralidade de pessoas, o dano seria considerado especial para aquelas cuja situação
fosse particularmente afetada.
No entanto, o mesmo sucederia se, por exemplo, um regulamento municipal
viesse proibir a circulação de veículos pesados no centro da localidade. Naturalmente
que a proibição de trânsito de pesados afetaria uma pluralidade mais ou menos
indefinida de empresas abastecidas por viaturas que aí circulavam ou que através delas
enviavam as suas mercadorias. O dano era, porém, claramente individualizado para uma
empresa que deixasse de poder colocar em veículos pesados, indispensáveis ao
respetivo transporte, as mercadorias que armazenasse ou ensilasse, depois de as receber
por via-férrea, em instalação que possuísse naquele local (57
).
É de referir que a generalidade e abstração de uma norma não impediam
absolutamente as respetivas operatividade e lesividade.
(55) Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, cit., p. 273. (56) Idem, pp. 274-275.
(57) «Embora se trate de dano causado por acto material lícito e não acto regulamentar, merece ser citado o Acórdão do STA, 1.ª
secção, de 25.05.2000, proferido no processo n.º 41420, que respeita a uma situação com fortíssima semelhança à imaginada. Sucedeu que a Câmara Municipal de Barcelos realizou obras de beneficiação numa rua e o abaixamento do respectivo leito
modificou as condições de acesso de um prédio destinado a uso industrial, impedindo o estacionamento e acesso de veículos ao
interior do edifício. O Supremo Tribunal Administrativo considerou haver prejuízo especial e anormal para o efeito do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051, incorrendo o município em responsabilidade por acto lícito».
30
Ainda é de mencionar que uma norma era operativa (imediatamente operativa)
quando, não obstante a sua generalidade e abstração, a sua volição incidisse diretamente
(e não apenas mediante a emissão de atos de aplicação) sobre a esfera jurídica de
destinatários, ou seja, sobre relações jurídicas de particulares entre eles ou de
particulares com a Administração.
Convém, porém, mencionar que operatividade não se confundia necessariamente
com lesividade. A operatividade até podia ser ampliativa da esfera jurídica do
destinatário da norma. Mas, quando a operatividade fosse lesiva, também nem por isso
o dano era forçosamente especial: a lesividade especial ou especialidade do dano
dependiam das circunstâncias próprias de cada situação real de vida sobre a qual a
norma incidisse restritivamente. Conheciam de forma lesiva a operatividade de uma
norma regulamentar que proibisse a circulação automóvel em determinada via todos
aqueles que por ali transitavam habitualmente por conveniência própria. Ficavam,
porém, colocados em situação desigual e, portanto, sujeitos a dano especial aqueles que
não apenas teriam de procurar um percurso alternativo, ainda que menos cómodo, mas
antes ficavam impedidos de exercer uma certa atividade económica em prédio a que
deixassem de ter acesso em horário compatível as viaturas de transporte de mercadorias.
Resumindo, a abstração e generalidade do ato normativo não obstavam à sua
operatividade lesiva, podendo, porém, esta lesividade direta da norma revelar-se
especial e também anormal à luz das circunstâncias concretas de vida de um certo
destinatário.
A existência de normas com virtualidade para causar lesão direta é hoje
reconhecida pela própria CRP quando, no art. 268.º, n.º 5, garante o direito de
impugnação das normas administrativas com eficácia externa lesivas de direitos ou
interesses legalmente protegidos. A referência à lesividade só faz sentido neste preceito
se se entender que se pode tratar também de um efeito direto da própria norma: é da
impugnação desta que se trata visto que a impugnação dos atos de aplicação é versada
no n.º 4.
Por outro lado, também o art. 63.º da LPTA estabelece como requisito de
legitimidade uma lesividade direta ainda que não necessariamente imediata: «pode
impugnar a norma aquele que seja prejudicado pela sua aplicação ou venha a sê-lo,
previsivelmente, em momento próximo». Pelo menos o primeiro termo deste diedro
pressupõe uma operatividade direta da norma.
31
Deste modo, não existem quaisquer dúvidas quanto à possibilidade, em abstrato,
da existência de normas administrativas com operatividade lesiva.
É de salientar, assim, que o problema de tal operatividade lesiva reconduz-se,
no fundo, ao apuramento da existência de um dano e de um nexo de causalidade que
ligue o dano, como efeito, à simples vigência da norma. Na prática, a questão pode
complicar-se porém devido à necessidade de que, para efeito do direito a indemnização
por dano gerado por norma administrativa legal, se trate não de uma lesividade comum
e sim de uma lesividade especial e anormal.
Importa ainda salientar que, rejeitado o valor dos argumentos literal e
teleológico contrários à abrangência do DL n.º 48 051 no que respeitava à
responsabilidade objetiva por facto de regulamento, restava-nos ponderar a força da
argumentação de cariz sistemático. A lógica intrasistemática, isto é, a decorrência das
linhas estruturantes do diploma, apontava precisamente no sentido inverso sob pena de
uma mutilação arbitrária do campo de regulação definido no art. 1.º.
6. O contexto intertextual do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro,
em 1967
De referir que poderia ainda haver uma única razão de coerência externa, ou
seja, de compatibilização entre um art. 9.º, n.º 1, do DL n.º 48 051 – lido de forma
estrita quanto ao alcance da expressão atos administrativos – e outros estratos do
ordenamento jurídico exteriores ao âmbito do mencionado antigo diploma legal. Tal
razão localizar-se-ia no regime de inimpugnabilidade contenciosa, em 1967, dos
regulamentos administrativos sob a forma de decreto. Esta inimpugnabilidade foi
estabelecida pelo hoje revogado art. 16.º, n.º 1, da LOSTA. Esta norma nivelou os
decretos regulamentares com as leis e resoluções da Assembleia Nacional e os decretos-
lei para efeito da insuscetibilidade de recurso contencioso. A inovação prendia-se com a
natureza autoritária do regime político e resolveu a favor da Escola de Coimbra uma
longa querela entre esta e a Escola de Lisboa. É de salientar que tal como diz
MOREIRA DA SILVA: «Ao passo que autores como FEZAS VITAL, CARLOS
MOREIRA e AFONSO QUEIRÓ reconduziam a ilegalidade do decreto regulamentar a
inconstitucionalidades orgânicas ou formais, MARCELLO CAETANO, mais tarde
acompanhado por JORGE MIRANDA e RUI MACHETE, sustentava a autonomia dos
32
vícios da ilegalidade de tais decretos» (58
). A questão tinha considerável interesse
prático visto que o art. 123.º da Constituição de 1933 retirava aos tribunais o controlo da
inconstitucionalidade orgânica e formal das regras de direito constantes de diplomas
promulgados pelo Presidente da República e que entre estes se contavam precisamente
os decretos regulamentares (artigo 81.º, n.º 9).
Porém, a questão encontra-se duplamente ultrapassada.
Pareceu evidente, de um ponto de vista doutrinário, que o facto de um
regulamento contrariar norma legislativa envolvia ilegalidade. A hierarquia das fontes
de Direito resultava e resulta da Constituição.
É de concluir que como observa José Manuel Sérvulo CORREIA: «Mesmo em
1967, quando da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48 051, não seria de boa
hermenêutica invocar a inimpugnabilidade dos regulamentos sob a forma de decreto
para daí extrair a inaplicabilidade da responsabilidade por acto administrativo lícito aos
regulamentos, entendidos como uma das subespécies de um superconceito de acto
administrativo» (59
).
7. O contexto intertextual do antigo Decreto-Lei n.º 48 051
Todo o contexto sistemático do art. 9.º do DL n.º 48 051 evoluiu de forma clara
em termos que tornaram ainda mais manifesta a necessidade de ler aquele preceito no
sentido de prever também a responsabilidade por atos regulamentares legais.
A ausência de controlo jurisdicional da legalidade de (certos) regulamentos não
constituía motivo para considerar excluída a responsabilidade por danos diretamente
causados por regulamentos legais.
Como lembra José Manuel Sérvulo CORREIA: «O apuramento desta não
passava pela decisão de uma controvérsia sobre a legalidade. E as diferentes opções
valorativas subjacentes à responsabilidade subjetiva e à responsabilidade objetiva por
ato lícito tornavam injustificável a pretensão de fazer depender a admissibilidade de um
desses institutos da paralela admissibilidade do outro» (60
). Entende-se desta forma que,
apesar de escrever ainda sob a vigência da Constituição de 1933 e do art. 16.º da
LOSTA, tal como sugere José Manuel Sérvulo CORREIA: «GOMES CANOTILHO
(58) Cfr. MOREIRA DA SILVA, Da Impugnação Contenciosa de Regulamentos Administrativos, Tese de Mestrado, polic.,
Faculdade de Direito de Lisboa, 1992, p. 170.
(59) Cfr. José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p.
1339.
(60) Cfr. José Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p. 1339.
33
não visse «bases seguras» para o entendimento que fundasse no emprego da expressão
actos administrativos no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051 a exclusão do âmbito deste
diploma do problema da lesão de situações subjectivas causadas por actos normativos
da Administração» (61
). Como sublinhava, na sua obra, em 1974, o Constitucionalista
GOMES CANOTILHO, citando Marcello CAETANO, «acto administrativo (em
sentido estrito) e regulamento incluem-se na função executiva, ou seja, constituem
actividade de execução de leis» (62
).
Porém, o texto constitucional estabelecia as traves mestras de um sistema
coerente e omnicompreensivo de tutela jurisdicional administrativa dos direitos e
interesses legalmente protegidos. Ainda que tal garantia possuísse uma natureza
predominantemente processual, ela não podia deixar de ter, por vezes, prolongamentos
de ordem substantiva, como precisamente sucedia no domínio da responsabilidade
administrativa.
A garantia respeitava a direitos e interesses legalmente protegidos e qualificava-
se como efetiva. Esta efetividade significava, designadamente, que havia que assegurar
uma indemnização quando a ofensa causada não pudesse desaparecer inteiramente
graças à eliminação do ato jurídico que a provocasse visto ser ele legal. A garantia seria
meramente formal se se consubstanciasse somente no acesso do lesado ao tribunal: ela
passava pela existência, a par de outros, de um meio processual capaz de albergar um
tipo de decisão jurisdicional correspondente à pretensão indemnizatória. Noutros
termos, uma tutela jurisdicional efetiva teria de ser omnicompreensiva, ou seja, de
compreender o leque de meios bastantes para que toda a concebível lesão de direitos e
interesses legalmente protegidos pudesse ser integralmente reposta.
Portanto, a efetividade da tutela passava também pela possibilidade de obter do
tribunal uma condenação da Administração na indemnização pelo efeito danoso da
ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos quando não fosse possível
eliminar essa ofensa pela mera reformulação do ordenamento jurídico normativo ou
concreto.
(61) Cfr. José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas
emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro 2001, p. 1340.
(62) Cfr. O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, cit., p. 195, GOMES CANOTILHO afirmava, pouco mais
adiante, que «quanto aos regulamentos e posturas locais cremos não subsistirem grandes problemas. O art. 828.º, único, do Código Administrativo admite a interposição de um recurso contencioso directo contra posturas e regulamentos policiais, cuja legalidade
pode ser impugnada a todo o tempo. O particular pode fazer realçar a lesão dos seus direitos em consequência da emanação de um
regulamento local ilegal e provar, portanto, ser vítima de lesão causada por facto da administração ou seus agentes», (cfr. art. 824.º do CA.). Idem, p. 197.
34
Essa impossibilidade de reformulação por iniciativa processual do particular
existia precisamente no caso em que o ato regulamentar danoso fosse legal. De referir
que o n.º 5 do art. 268.º da CRP (63
) constrói a garantia dos particulares perante as
normas administrativas lesivas em torno da figura da impugnação, o que pressupõe a
ilegalidade da norma. Porém, tal preceito não pode ser considerado de forma isolada e
antes à luz da sua íntima conexão com o n.º 4 do mesmo artigo 268.º, e, também, com
os artigos 20.º, n.º 1, e 22.º da CRP. O sistema delineado neste conjunto de preceitos
visa a proteção jurisdicional contra a lesão de direitos e interesses legalmente
protegidos, quer esta lesão seja ilegal ou legal. E a reposição de tal lesão não passa
sempre e necessariamente pela eliminação do ato que a causou, que pode ser um ato
jurídico legal ou um ato material consumado e irreversível.
Deste modo, a proteção dos cidadãos contra a eficácia externa lesiva das normas
administrativas não se esgota pela impugnação garantida pelo n.º 5 do artigo 268.º,
passando também, quando apropriado, por um meio processual inserível na cláusula
geral da primeira parte do n.º 4. Era esse o caso da ação de responsabilidade civil
extracontratual dos entes públicos por prejuízos decorrentes de atos de gestão pública,
incluindo os regulamentos legais dotados de operatividade imediata e dessa forma
causadores de prejuízo especial e anormal.
Apenas pretendemos destacar que o contexto constitucional supra mencionado
vem reforçar substancialmente as razões que já existiam antes dele para uma
interpretação declarativa lata do n.º 1 do art. 9.º do DL n.º 48 051.
Nos termos do art. 9.º, n.º 1, do Código Civil, a interpretação deve reconstituir, a
partir dos textos, o pensamento legislativo tendo em consideração não apenas as
circunstâncias em que a lei foi elaborada mas também a unidade do sistema jurídico e as
condições específicas do tempo em que é aplicada. Como insinua OLIVEIRA
ASCENSÃO, a referência às condições específicas do tempo em que é aplicada «é
totalmente incompreensível fora de um entendimento atualista» (64
), acrescentando que
«a fórmula em que a lei se consubstancia está fixada; mas o seu sentido dessa fórmula
pode variar, consoante as incidências do circunstancialismo donde arrancam as suas
(63) Cfr. «Os cidadãos têm igualmente direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos
ou interesses legalmente protegidos». (64) OLIVEIRA ASCENSÃO apud José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos
causados por normas emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa,
Dezembro 2001, p. 1342.
35
significações» (65
). Tal circunstancialismo compreende desde logo o contexto, que é
aquele que é em cada momento e não ficou para sempre fixado nos textos conexos que
vigoravam quando a norma interpretanda iniciou a sua vigência. Se não fosse assim, o
aplicador não poderia guiar-se pelo objetivo da unidade da ordem jurídica para o qual
aponta o art. 9.º do Código Civil.
Se preciso fosse, haveria que fazer uma interpretação atualista do n.º 1 do art. 9.º
do DL n.º 48 051. Pensamos que a qualificação nem sequer se aplicava visto que a letra
do preceito sempre consentiu o entendimento declarativo lato que o sistema jurídico
desde o início inculcou. Mas, de qualquer das formas tratava-se de uma interpretação
conforme à Constituição dado o âmbito da garantia constitucional de tutela jurisdicional
administrativa. Porém, só podia haver interpretação conforme à Constituição quando,
mesmo sem o influxo da diretiva constitucional, o preceito admitiria o entendimento
necessário à sua constitucionalidade.
É ainda de mencionar que sendo no entanto esse o caso, ficávamos dispensados
de, partindo da hipótese da inconstitucionalidade superveniente do n.º 1 do art. 9.º do
DL n.º 48 051, averiguar se existiriam bases para sustentar a admissibilidade de uma
decisão jurisdicional modificativa. Em tal hipótese, a sentença concluiria pela
inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 9.º do DL n.º 48 051, na parte em que não
estatuísse a responsabilidade objetiva da Administração por regulamento legal mas
lesivo de direitos ou interesses legalmente protegidos, por violação do princípio
constitucional da igualdade e da garantia constitucional da tutela jurisdicional
administrativa. Deste modo se eliminaria em benefício dos lesados a exclusão – operada
implicitamente – da tutela mediante responsabilidade administrativa, estendendo-lhes o
tratamento mais favorável.
Convém salientar que tal como admite Rui MEDEIROS: «Preconizar esta
solução significaria em todo o caso remeter os interessados para uma via assás
atribulada: a maioria da nossa doutrina constitucionalista manifesta-se adversa às
decisões modificativas e, embora estas não estejam de todo ausentes da nossa
jurisprudência constitucional – sobretudo em matéria de pensões – o TC não adoptou
até ao momento uma posição consistente neste domínio» (66
).
(65) OLIVEIRA ASCENSÃO apud José Manuel Sérvulo CORREIA, Da sede do regime de responsabilidade objectiva por danos causados por normas emitidas no desempenho da função administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa,
Dezembro 2001, p. 1342.
(66) Cfr. Rui MEDEIROS, A Decisão de Inconstitucionalidade, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1999, pp. 456 e segs., em particular 469-477.
36
Tendo em consideração tudo o que foi escrito até agora, uma das situações
menos controversas – pois que até um adversário em tese da figura das decisões
modificativas as aceitava quanto a ela a título excecional – é aquela em que a
modificação da lei considerada inconstitucional incorpora unicamente uma solução
constitucionalmente obrigatória. Nestas situações, tal como diz Rui MEDEIROS: «o
tribunal não exerce manifestamente uma função substancialmente criativa ex nihil.
Quando não existe uma pluralidade de soluções alternativas porque a única solução é
aquela que imperativamente decorre da Constituição, ao juiz só resta submeter à directa
estatuição da lei fundamental as situações da vida discriminatoriamente não
contempladas na norma de valor infraconstitucional». Ao agir dessa forma, o juiz «não
ofende as prerrogativas do legislador» (67
).
Porém, seria precisamente esse o caso se – contra o que sustentamos – se
devesse entender que o n.º 1 do art. 9.º do DL n.º 48 051 não contemplava a
responsabilidade por atos normativos legais da Administração a par da responsabilidade
por atos administrativos concretos (ou atos administrativos em sentido estrito) legais e
por atos materiais lícitos. Uma vez que o princípio da igualdade não consente que os
prejuízos especiais e anormais legal ou licitamente infligidos pela Administração a um
cidadão deixem de ser indemnizados e uma vez que a tutela jurisdicional efetiva da
lesão de direitos e interesses legalmente protegidos tem de incorporar tal indemnização
entre a sua panóplia de remédios, o juiz (qualquer juiz e não apenas o juiz do Tribunal
Constitucional) poderia decidir no sentido de que um direto comando constitucional
completava a previsão do n.º 1 do art. 9.º, com a consequência de a responsabilidade por
ato regulamentar legal ficar submetida à disciplina do DL n.º 48 051.
Em suma, sempre esta subespécie de responsabilidade objetiva por encargos ou
prejuízos especiais e anormais decorrentes da atividade de gestão pública deveria
considerar-se fundada no DL n.º 48 051 e por ele deveria ser disciplinada.
8. A reforma de 2002 e o âmbito da jurisdição administrativa
Tal como nos expõe Maria João ESTORNINHO: «Em 1984, o legislador optou,
no ETAF (DL n.º 129/84, de 27/4), para efeitos de delimitação do âmbito da jurisdição
(67) Cfr. Rui MEDEIROS, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 504.
37
administrativa, por um sistema que conjuga uma cláusula geral e uma enumeração
meramente exemplificativa, de caráter negativo» (68
).
Como afirma Maria João ESTORNINHO: «A cláusula geral, consagrada no art.
3.º, associa a competência dos tribunais administrativos e fiscais ao «âmbito das
relações jurídicas administrativas e fiscais» (69
).
O art. 4.º, sob a epígrafe «limites da jurisdição», enumera algumas das matérias
que, de entre outras, se consideram excluídas da jurisdição administrativa e fiscal.
Como refere Maria João ESTORNINHO: «Trata-se, assim, de matérias que
tradicionalmente são excluídas da jurisdição administrativa como corolário do princípio
da separação de poderes (é o caso dos atos da função política, dos atos da função
legislativa e, por arrastamento, das questões de responsabilidade por danos decorrentes
do exercício dessas funções do Estado); trata-se, por outro lado, das questões de direito
privado, de acordo com a lógica tradicional segundo a qual as questões relativas à
atividade de gestão privada da Administração Pública estão excluídas da jurisdição
administrativa; trata-se, ainda, de algumas outras questões, tais como a apreciação dos
atos em matéria administrativa dos tribunais judiciais e dos atos relativos ao inquérito e
instrução criminais e ao exercício da ação penal, bem assim como a qualificação de
bens como pertencentes ao domínio público e os atos de delimitação destes com bens de
outra natureza» (70
).
Porém, importa realçar a importância do contencioso administrativo e o âmbito
da jurisdição administrativa (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro). Neste sentido, torna-
se indiscutível a importância prática e teórica das opções a fazer, em sede de definição
do âmbito da jurisdição administrativa, numa era de progressiva diluição das clássicas
fronteiras entre o próprio Direito Administrativo e os restantes ramos do Direito. De um
modo global, Maria João ESTORNINHO diria que houve, em tal reforma, «um
alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, especialmente inovador em
matérias como a da actividade contratual e a da responsabilidade civil da Administração
Pública» (71
).
Contudo, no que concerne ao âmbito da jurisdição administrativa, a primeira
novidade daquela reforma do contencioso administrativo residiu no facto de se adotar
(68) Cfr. Maria João ESTORNINHO, A reforma de 2002 e o âmbito da jurisdição administrativa, in: «Cadernos de Justiça
Administrativa», n.º 35, Setembro/Outubro 2002, p. 3. (69) Cfr. Maria João ESTORNINHO, ob. cit., p. 3.
(70) Neste sentido ver: Maria João ESTORNINHO, A reforma de 2002 e o âmbito da jurisdição administrativa, in «Cadernos de
Justiça Administrativa», n.º 35, Setembro/Outubro 2002, p. 3. (71) Cfr. Maria João ESTORNINHO, ob. cit., p. 3.
38
um sistema que, para além de uma cláusula geral, incluiu, contrariamente ao que
sucedia no DL n.º 48 051, uma enumeração de matérias excluídas da jurisdição
administrativa e também uma cláusula de sentido positivo, isto é, uma enumeração, de
caráter também ela meramente exemplificativo, de matérias expressamente atribuídas à
jurisdição administrativa.
De referir que assim, o artigo 1.º recorta o âmbito da jurisdição administrativa e
fiscal em função dos «litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
fiscais» (como era impensável deixar de ser, à luz do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição,
nos termos do qual compete aos tribunais administrativos e fiscais «o julgamento das
acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes
das relações jurídicas administrativas e fiscais»); por seu lado, o artigo 4.º, cuja epígrafe
é «Âmbito da jurisdição», continha, no n.º 1, uma enumeração positiva de um vasto
elenco de matérias que se consideravam da competência da jurisdição administrativa e
fiscal e, nos n.ºs 2 e 3, pelo contrário, enumerações de sentido negativo, excluindo
algumas matérias do âmbito dessa mesma jurisdição.
É de salientar que a existência de uma tal cláusula positiva de atribuição de
competência foi, em si mesma, especialmente relevante, pelo que significava de
afirmação de um espaço próprio dos tribunais administrativos, cuja competência deixou
de ser definida apenas pela negativa, em relação aos tribunais comuns. Mas,
obviamente, mais importante do que a novidade da existência da referida cláusula
positiva é, indubitavelmente, o próprio elenco das matérias que, em concreto, se
consideravam ser, ou passar a ser, da competência dos tribunais administrativos. De
referir ainda que o elenco das matérias expressamente atribuídas à competência dos
tribunais administrativos, no art. 4.º, n.º 1, do novo ETAF, não podia deixar de ser
apreciado à luz de princípios constitucionais, determinantes nesta matéria, tais como o
princípio da separação de poderes e o princípio da tutela judicial plena e efetiva, bem
assim como da própria ideia de uma eventual reserva de jurisdição administrativa.
Especialmente interessadas eram na altura em que estava em discussão, assim, alíneas
como a alínea a), relativa à tutela dos direitos fundamentais dos particulares, ou a alínea
l), relativa à promoção da prevenção, da cessação ou da perseguição judicial de
infrações cometidas por entidades públicas contra determinados valores e bens
constitucionalmente protegidos.
Convém ver agora as matérias excluídas expressamente do âmbito da jurisdição
administrativa, procurando fazer uma comparação do sistema que vigorava no passado
39
com o sistema proposto naquela reforma do contencioso administrativo: no n.º 2, do
mencionado artigo 4.º, tendo por pano de fundo o princípio da separação de poderes,
excluíram-se, sem novidade, do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, os atos da
função política e os atos da função legislativa (embora já não, aí, sim, com grande
novidade, os danos emergentes do exercício dessas funções do Estado); tendo em
consideração o n.º 2, do referido art. 4.º, excluíram-se também do âmbito do
contencioso administrativo questões relativas ao exercício da função jurisdicional por
outros tribunais. Deste modo, no n.º 2, excluíram-se deste âmbito as decisões
jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e
fiscal e, no n.º 3, excluiu-se: «A apreciação das acções de responsabilidade por erro
judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como
das correspondentes acções de regresso»; excluídos do âmbito da jurisdição
administrativa continuaram a ficar, também, os: «Actos relativos ao inquérito e
instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respetivas decisões»
(art. 4.º, n.º 2, alínea c);do âmbito da competência dos Tribunais Administrativos se
excluíram ainda os atos materialmente administrativos do Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça e do Conselho Superior de Magistratura e seu Presidente (art. 4.º, n.º
3, alíneas b) e c); por fim, excluíram-se do âmbito da jurisdição administrativa os
litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não conferem a qualidade
de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito
público (art. 4.º, n.º 3, alínea d).
De referir que a propósito dos referidos contratos, recorde-se que, na reforma
supra mencionada, eles também estavam excluídos da jurisdição administrativa, pelo
facto de se entender que, pese embora celebrados pela AP, tais contratos envolveriam
«questões de direito privado» que, nos termos do art. 4.º, n.º 1, alínea f), do DL n.º
129/84, de 27/4, foram e são remetidas para o foro dos tribunais comuns. Aliás, o que
aconteceu na referida reforma é que, pela mesma ordem de razões, se entendeu que
muitos outros contratos e muitos outros litígios relacionados com as referidas «questões
de direito privado» da AP estavam também afastados do âmbito da competência dos
tribunais administrativos. Deste modo, o que se verificou naquela reforma do
contencioso administrativo foi, «a contrario», um imenso alargamento do âmbito da
jurisdição administrativa, uma vez que os litígios emergentes da tradicionalmente
denominada «atividade de gestão privada» da AP deixaram de estar excluídos da
jurisdição administrativa.
40
Porém, na verdade, uma das grandes novidades de tal reforma do contencioso
administrativo residiu precisamente, na eliminação da referência às questões de direito
privado no elenco de matérias que se consideraram excluídas do foro administrativo.
Como frisa Maria João ESTORNINHO: «Finalmente desaparece a dicotomia
tradicional «gestão pública/gestão privada» como critério de repartição de competência
entre o foro administrativo e o foro comum, o que, por um lado, pressupõe um novo
entendimento acerca da própria noção de «relação jurídica administrativa» (uma vez
que se passa a aceitar que a tradicionalmente chamada atividade de «gestão privada» da
Administração Pública também envolve (…) obviamente – relações jurídicas
administrativas, que devem estar sujeitas aos tribunais administrativos) e, por outro
lado, irá de forma inevitavelmente acarretar uma significativa uniformização de regimes
jurídicos substantivos aplicáveis às referidas relações jurídicas» (72
).
No entanto, sintomática daquela eliminação da dicotomia «gestão pública/gestão
privada», foi (e é) a atribuição aos tribunais administrativos, no art. 4.º, n.º 1, alínea g),
do novo ETAF, de todo o contencioso da responsabilidade civil extracontratual das
pessoas coletivas de direito público.
(72) Cfr. Maria João ESTORNINHO, ob. cit., p. 5.
41
Capítulo II
Da lei vigente do regime da responsabilidade civil
1. A lei 67/2007, de 31 de Dezembro
1.1. Unificação da competência contenciosa dos tribunais administrativos
no âmbito da responsabilidade civil extracontratual da Administração:
unidade de jurisdição vs dualidade de regime substantivo
Tal como escreve Carlos FERNANDES CADILHA: «O novo regime de
responsabilidade patrimonial das entidades públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de
31 de Dezembro, desde há muito aguardado, introduziu alterações muito significativas
no regime substantivo da responsabilidade civil pelo exercício da função administrativa,
revogando e substituindo, nesse âmbito, o Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro
de 1967, e os artigos 96.º e 97.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, que anteriormente
disciplinavam essa matéria (73
), e veio estabelecer, pela primeira vez, em termos
sistemáticos, o regime de responsabilidade civil por danos derivados da função
legislativa e da função jurisdicional» (74
).
De referir que o enquadramento legislativo unitário em matéria de
responsabilidade civil por atuação dos poderes públicos tem como contraponto, no
plano processual, a unificação da jurisdição relativamente às diferentes formas de
responsabilidade civil estadual, que foi levada a cabo pela reforma do contencioso
administrativo de 2002.
É de salientar que na verdade, o ETAF operou um alargamento da competência
contenciosa dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil das
pessoas coletivas de direito público, mediante três diferentes vias: (a) uniformizou o
âmbito da jurisdição no que se refere à responsabilidade decorrente da atividade
administrativa, passando a atribuir aos tribunais administrativos as questões de
responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, sem qualquer
prévia distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada (artigo 4.º, n.º
1,alínea g),segmento inicial); (b) passou a incluir no âmbito da jurisdição administrativa
(73) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa, p. 1, nota 2: «O Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1969,
instituía o regime geral de responsabilidade administrativa, ao passo que os artigos 96.º e 97.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro,
continham disposições específicas sobre a responsabilidade funcional das autarquias locais e responsabilidade pessoal dos respetcivos titulares de órgãos e agentes, que, na parte aí não regulada, deveriam ser integradas pelo regime comum daquele outro
diploma», de Carlos FERNANDES CADILHA.
(74) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa, p. 1.
42
a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função legislativa, bem como
do funcionamento da administração da justiça, mas também o erro judiciário imputável
a tribunais administrativos (artigo 4.º, n.º 1, alínea f), 2ª parte, e n.º 3, alínea a); (c)
passou igualmente a abarcar na competência dos tribunais administrativos a
«responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o
regime específico da responsabilidade do Estado», pretendendo-se assim abranger as
entidades privadas de mão pública que possam exercer poderes de autoridade ou cuja
atividade seja regulada por disposições ou princípios de direito administrativo (artigo
4.º, n.º 1, alínea i).
Contudo, fulcrando a atenção na responsabilidade civil pelo exercício da função
administrativa, a primeira nota que importa realçar é que à apontada unidade de
jurisdição não corresponde uma unidade de regimes jurídicos substantivos.
1.2. Âmbito de aplicação
Nas palavras de Carla AMADO GOMES e de Miguel ASSIS RAIMUNDO: «O
âmbito de aplicação do RRCEE é descrito no seu artigo 1.º, que se assume como
regulação geral, não se sobrepondo, portanto, a regimes especiais (como, de resto, se
afirmara já no artigo 2.º/ 1 da Lei 67/07, embora circunscritamente à função
administrativa…). Este dispositivo incide expressamente sobre as funções
administrativa e jurisdicional, eximindo-se a disciplinar, em razão da natureza da
função, a responsabilidade dos órgãos e seus titulares em sede político-legislativa» (75
)
(76
).
Um ponto fulcral a retratar aqui é a função administrativa. Destarte, é de referir
que do art. 1.º, n.º 2 do RRCEE retira-se um conceito da função administrativa que
assenta na prática de ações ou omissões que traduzam prerrogativas de poder público
e/ou que sejam reguladas por normas jurídico-administrativas. Importa ainda explicitar
que como evidenciam Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO: «Do
confronto desta norma com o art. 2.º/2 da Lei 67/07 fica-nos a dúvida de saber se
devemos entender que sobrevive no RRCEE a distinção entre actos de gestão pública e
actos de gestão privada, constante do agora revogado DL n.º 48 051 - mas
aparentemente condenada a desaparecer pelo art. 4.º/1/ h) do ETAF -, descartando por
(75) Acerca do artigo 1.º do RRCEE, Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, Anotado, Coimbra, 2008, pp. 24 e segs.
(76) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, Topicamente - e a quatro mãos…- sobre o novo regime da
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas in: «Revista de Direito Público e Regulação», n.º 5, Março, ed. Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre), FDUC, 2010, p. 4.
43
completo a aplicação do regime plasmado nos artigos 500.º e 501.º do CC; ou se, ao
contrário, devemos interpretar restritivamente a norma do art. 2.º/2 citado, reportando-o
somente às situações de remissão legal para normas de direito privado a título de
disciplina da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito
público (e também às pessoas colectivas de direito privado “equiparadas” nos termos do
art. 1.º/5 do RRCEE?) por actos de gestão pública, remissão que ficaria assim proscrita»
(77
).
Tal como nos afirmam Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO:
«Arriscaríamos a segunda hipótese interpretativa, pois parece-nos que, apesar da
anunciada intenção de terminar com a distinção gestão pública/gestão privada pelo
ETAF, o legislador do RRCEE pretendeu, por um lado, fazer prevalecer os regimes
(especiais) de responsabilidade regulados por normas de direito público sobre o RRCEE
e, por outro lado, fazer deste o padrão normativo de resolução de todos os casos de
responsabilidade civil extracontratual que envolvam entidades actuando no exercício de
funções materialmente administrativas revelando prerrogativas de poder público. Ou
seja, uniformizar o regime de responsabilidade por actos de gestão pública, sem
prejudicar regimes especiais, continuando a sediar no CC as normas aplicáveis aos
casos de responsabilidade por actos de gestão privada» (78
).
De referir que não é por se deslocar uma fronteira concetual para definições
linguisticamente diferentes das tradicionais que tal fronteira se torna clara. Este nosso
caso é um ótimo exemplo, uma vez que poucas noções ao longo da História do Direito
terão sido tão discutidas como as que atentam na natureza jurídico-pública ou jurídico-
privada do regime substantivo que regula uma dada ação ou omissão; permanecerão,
por tal motivo, os conflitos de jurisdição. Importa salientar que podemos até ir mais
longe: a tradicional distinção entre atos de gestão pública e gestão privada traçava-se,
precisamente, em conformidade com os critérios das prerrogativas de direito público e
do regime substantivo da ação ou omissão; ou seja, como diz Carla AMADO GOMES:
«de acordo com os mesmos critérios que surgem agora nos n.ºs 2 e 5 do artigo 1.º do
RRCEE, que foram “recauchutados” pelo legislador» (79
).
(77) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, Topicamente - e a quatro mãos…- sobre o novo regime da
responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas in: «Revista de Direito Público e Regulação», n.º 5,
Março, ed. Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre), FDUC, 2010, p. 5. (78) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p. 5.
(79) Carla AMADO GOMES, As novas responsabilidades dos tribunais administrativos na aplicação da Lei 67/2007, de 31 de
Dezembro: primeiras impressões, in: Três Textos sobre o Novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, AAFDL, 2008, p. 99.
44
Convém frisar que trata-se claramente de um caso de mudança terminológica
sem mudança substantiva: o legislador, pretendendo acolher as avastadas críticas que se
faziam sentir à diferenciação entre gestão pública e gestão privada, abandonou-a, e
passou a falar na função administrativa; porém, ou por impossibilidade teórica ou
prática, ou por entender que não era o local adequado, ou ainda por não o considerar a
melhor solução, a verdade é que não forneceu um critério material que caraterize as
atividades que concretamente fazem parte da função administrativa (critério material,
que seria o único a resolver o problema de modo qualitativamente diferente), tendo-se
limitado a continuar o caminho que vinha sendo trilhado, consagrando um
entendimento, que acaba por ser o clássico, acerca da divisão entre atividade submetida
ao direito público e atividade não submetida ao direito público. Porquanto, importa
salientar que tal possibilidade há longo tempo vem sendo peremtoriamente negada na
Doutrina jusadministrativista, e importa frisar que mesmo partindo do princípio de que
uma tal possibilidade exista, a verdade é que até aos dias de hoje tal identificação
material do âmbito da função administrativa não parece ter existido.
De frisar que o n.º 3 do art. 1.º ressalvando embora a aplicação de lei especial,
determina a aplicação do regime do RRCEE a «titulares de órgãos, funcionários e
agentes públicos por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício
das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício», sendo que
confessamos uma certa incompreensão em relação ao sentido do advérbio “também”
neste n.º 3. Observe-se o inciso final da norma, que restringe a definição de função
administrativa aos atos praticados com uma finalidade juspública. Ora, se o fim é
condição essencial da natureza administrativa do ato (sendo de notar que do artigo
123.º, n.º 1, al. c) do CPA não se retira claramente que o fim do acto administrativo faça
parte do seu objecto - muito menos que integre os seus “elementos essenciais”, para os
efeitos do artigo 133.º, n.º 1 do CPA. No entanto, no limite, da teleologia do artigo 120.º
do CPA consegue extrair-se uma sintonia entre o fim de conformação de uma relação
jurídico-administrativa através de normas de direito público e o conceito de acto
administrativo), nas palavras de Carlos FERNANDES CADILHA: «o regime
substantivo do RRCEE apenas cobre a actuação funcionalmente administrativa» (80
),
descartando os denominados “actos pessoais” (o art. 8.º, n.º 2 do RRCEE confirma tal
posturais). Tal como sustentam Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS
RAIMUNDO: «A inclusão da função jurisdicional neste n.º 3 não deve causar
(80) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade civil…, cit., p. 38.
45
estranheza, dada a estrutura da máquina judicial, na qual, de uma banda, se integram
muitos servidores públicos sem estatuto de magistrado que praticam actos
administrativos e, de outra banda, se encontram magistrados a praticar, acessoriamente à
função jurisdicional, actos administrativos» (81
). No entanto, tal como demonstra Carla
AMADO GOMES: «reconhece-se que a distinção entre falta estritamente pessoal e falta
funcional levanta problemas de operacionalidade teórica e prática (desde logo porque
envolve habitualmente a prova de factos puramente subjectivos), e pode cifrar-se em
esquemas dilatórios (do servidor público ou da própria entidade pública) para adiar a
apreciação jurisdicional do litígio mediante a suscitação de incompetência absoluta do
tribunal» (82
), e em prejuízo do direito a uma tutela jurisdicional rápida. Este não parece
ser um problema de fácil solução, mantendo-se os quadros tradicionais em matéria de
repartição de jurisdições, que aliás são constitucionalmente impostos.
Porém, importa realçar que deve sublinhar-se a necessidade de se atualizar a
terminologia do RRCEE à luz da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que estabelece
o regime de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exerçam
funções públicas. Subscrevendo Carlos FERNANDES CADILHA, «mantendo-se as
noções de funcionário e agente administrativo como meras categorias conceituais, a
primeira deverá ser atribuída dentro do actual regime legal a quem obtenha uma
nomeação definitiva no exercício de funções públicas, aplicando-se o qualitativo de
agente administrativo àqueles que devam ser objecto de nomeação transitória, sendo a
estas duas posições profissionais que se reporta o presente artigo 1.º, n.º 3 quando se
refere a funcionários ou agentes públicos. Os trabalhadores contratados caem no âmbito
aplicativo do artigo 1.º, n.º 4» (83
). Tendo em linha de conta o disposto no artigo 21.º da
Lei n.º 12-A/2008, o contrato de trabalho em funções públicas pode ser a termo certo ou
incerto, sendo reservado aos trabalhadores que não possam ser nomeados – que são,
atualmente, a maior parte dos servidores públicos (para além das categorias dos
trabalhadores nomeados e contratados, há ainda que ter em conta a figura da comissão
de serviço (artigos 23.º e 24.º da Lei n.º 12-A/2008), assim como os titulares de cargos
dirigentes da Administração central, regional e local (Lei n.º 2/2004, de 15 de Janeiro,
com as alterações introduzidas pela Lei n.º 51/2005, de 30 de Agosto), e da
(81) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, Topicamente - e a quatro mãos…- sobre o novo regime da
responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas in: «Revista de Direito Público e Regulação», n.º 5, Março, ed. Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre), FDUC, 2010, pp. 6-7.
(82) Neste sentido, Carla AMADO GOMES, As novas responsabilidades…, cit., pp. 99-100, e também em Carla AMADO GOMES,
A responsabilidade civil extracontratual…, cit., p. 32 e nota 18. (83) Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade civil…, cit., p. 44.
46
Administração autárquica (DL n.º 93/2004, de 20 de Abril, com as alterações
introduzidas pelo DL n.º 104/2006, de 7 de Junho).
Constatação que, continuidades terminológicas apartadas, convida a inverter a
ordem proposta.
De mencionar que do n.º 5 retira-se uma extensão a todos os títulos relevante,
que consiste na aplicação do regime do RRCEE a pessoas coletivas privadas no
exercício de funções administrativas que exprimam prerrogativas de poder público.
Poder-se-ia considerar que tal extensão já decorria do disposto no n.º 2: porém, este
parece dedicado à manutenção do conceito de «gestão pública» (como se anotou supra),
articulando-se com atuações de entidades organicamente públicas, enquanto o n.º 5 tem
vocação aplicativa a entidades privadas que colaboram com a Administração no
desenvolvimento das suas missões e cuja submissão a normas jurídico-privadas poderia
levar a crer imunes às regras do RRCEE. Caem sob o seu âmbito tanto as empresas
públicas (sob forma societária, pois as entidades públicas empresariais e as entidades
empresariais locais, como pessoas coletivas públicas que são (84
), entram na referência
do n.º 2), como os concessionários, como restantes entidades particulares, desde que a
ação ou omissão geradora de responsabilidade traduza prerrogativas de poder público
ou se reja por normas jusadministrativas, possibilidades expressamente admitidas para a
generalidade das empresas dos setores empresariais estadual e local: v. artigos 14.º do
Regime do Setor Empresarial do Estado (RSEE) e 17.º do Regime do Setor Empresarial
Local (RSEL).
Importa mencionar que no fundo, o critério de imputação assenta no mesmo
padrão escolhido pelo legislador para desenhar os contornos da função administrativa e
que passa pela adesão à teoria estatuária, que tanto expulsa do regime do RRCEE – mas
não necessariamente do contencioso administrativo (cfr. o artigo 4.º, n.º 1, alíneas g) e
h) do ETAF) (85
) atos praticados por entidades formalmente públicas à margem de
exercício de poderes de autoridade, como e por maioria de razão, atos do mesmo
género exercidos por entidades privadas que colaborem com a Administração e no
âmbito dessa colaboração (no que diz respeito à responsabilidade de sujeitos privados a
(84) Cfr., respetivamente, os artigos 23.º, n.º 1 do RSEE (Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 300/2007, de 23 de Agosto), e 33.º, n.º 1 do RSEL (Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro).
(85) «Por isso já se afirmou que, embora a distinção entre gestão pública e gestão privada deixe de ser um critério para a divisão
entre a jurisdição administrativa e a jurisdição comum no que diz respeito às pessoas coletivas públicas e seus trabalhadores (alíneas g) e h) do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF), ela permanece, indirectamente, por força do artigo 1.º, n.º 5 do RRCEE, como uma
distinção «ineliminável» para efeitos de sujeição à jurisdição administrativa dos litígios sobre responsabilidade civil dos sujeitos
privados (artigo 4.º, n.º 1, alínea i) do ETAF)»: assim, Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral – Actividade administrativa, Tomo III, 2.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 2009, pp. 38-39.
47
qual se reja por um regime de direito público, vale a alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do
ETAF, devendo esta última ser articulada com o n.º 5 do artigo 2.º do RRCEE – o qual
exclui da jurisdição administrativa a apreciação dos danos causados por atos de «gestão
privada» destas entidades) – ainda que ambos os casos traduzam a prossecução de
atividade finalisticamente administrativa.
1.3. Função jurisdicional
Para começar, importa frisar que neste ponto cumpre somente retomar a
chamada de atenção transata, no que concerne à prática de atos administrativos (ou a
omissões jurídicas e materiais) no âmbito da função jurisdicional, quer por funcionários
administrativos, quer por magistrados, judiciais e do MP. Como mostra Carla AMADO
GOMES: «O n.º 2 do artigo 1.º do RRCEE é depois confirmado nos artigos 12.º e 14.º/1
(este exclusivamente dirigido aos magistrados), remetendo-se o regime de
responsabilidade aplicável para os artigos 7.º a 10.º do RRCEE» (86
).
1.4. Função (político-) legislativa
Tal como afirmam Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO: «A
função legislativa é a única função do Estado a cujos titulares o artigo 1.º do RRCEE se
não refere directamente, o que é explicável em razão do tipo de actos em causa
(sobretudo se pensarmos na lei e no decreto legislativo regional, por força da
irresponsabilidade dos deputados: artigo 157.º/1 da Constituição da República
Portuguesa (CRP); já não necessariamente no decreto-lei)» (87
). A referência é
meramente indireta, constando do segmento final do n.º 1, na remissão para lei especial:
trata-se dos artigos 45.º a 48.º da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho (acerca de
responsabilidade criminal e civil dos titulares de cargos políticos, com as alterações
introduzidas pela Lei n.º 108/2001, de 28/11). De referir que deles se extrai um
princípio de responsabilização do titular por danos que decorrem do exercício de crimes
relacionados com a função nos termos da lei civil, sendo o Estado solidário e detendo
direito de regresso (artigo 45.º, n.º 2). A absolvição do pedido criminal não leva à
extinção do dever de indemnizar no plano civil (artigo 46.º, n.º 1).
Porém, como sublinham Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS
RAIMUNDO é de mencionar que: «Uma dúvida que nos fica neste domínio prende-se
(86) Cfr. Carla AMADO GOMES, A responsabilidade civil do Estado por actos materialmente administrativos praticados no âmbito
da função jurisdicional, no quadro da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, em curso de publicação n` «O Direito». (87) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob cit., p. 9.
48
com a oscilação terminológica no seio do RRCEE entre função legislativa (artigo 1.º/ 1)
e função político-legislativa (artigo 15.º/1), antecedida pelo aparente desdobramento a
que procedeu o ETAF, em 2002/04, quando no artigo 4.º/2/a) exclui da jurisdição
administrativa os actos da “função (não funções…) política e legislativa”. Admitindo
que na previsão do artigo 22.º da CRP cabe também a função política, a sua ausência do
RRCEE – mas não do ETAF – causa algum desconforto» (88
).
Como explicam Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO:
«Ainda que a competência para o julgamento de tais acções, de jure condendo, pudesse
eventualmente caber ao Tribunal Constitucional, tem sido entendimento comum que de
acordo com o Direito constituído, ela cabe aos tribunais comuns. Tal posição baseia-se
na existência, na Constituição e na lei ordinária, de uma norma atributiva de jurisdição
aos tribunais comuns em casos residuais: nos termos do artigo 26.º/ 1 da Lei n.º
52/2008, de 28 de Agosto (a actual Lei de organização e funcionamento dos tribunais
judiciais), os tribunais comuns são competentes para apreciar as acções excluídas e não
atribuídas a qualquer outra jurisdição» (89
).
Nesta orientação, de referir que no sumário do acórdão do STA de 5 de Março
de 1998 (processo n.º 043438) podia ler-se a este respeito o seguinte:
I – «Actos políticos» são os «actos próprios da função política ou do governo»,
que embora eventualmente «ofensivos de direitos individuais, escapam, em princípio, à
competência contenciosa, em atenção ao móbil político que gera a sua prática, apenas
podendo ser objeto de crítica por parte da opinião pública ou das assembleias
representativas». II – A atuação de divulgação pública, através de meio televisivo, por
parte do Ministro da Saúde, da ordem de encerramento temporário de um
estabelecimento de saúde particular, possui, sem dúvida, subjacentes as funções
governamentais no âmbito da execução da política de proteção da saúde que ao governo
compete assegurar, «ex-vi» do postulado nos arts. 64 e 185 da CRP. III – O móbil
político do «se» e do «an» de tal intervenção, traduzindo a transmissão ou divulgação de
uma mensagem ao público em geral sobre um tema de inegável impacto social, surge
assim, «prima facie», como evidente. IV – Se tal conduta se apresenta ou não como
ofensiva de quaisquer direitos ou interesses individuais ou subjetivos, v.g. se houve ou
não abuso e (lesivo para outrem) do direito de antena e, como tal, relevante ou
(88) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p.10. (89) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p.10.
49
irrelevante para fins indemnizatórios, é matéria exorbitante da competência contenciosa
dos tribunais administrativos, e como tal, apenas eventualmente sindicável perante os
tribunais comuns de jurisdição ordinária por força da delimitação negativa constante do
art. 14 da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (LOTJ) 87 (L38/87, de 23/12) e do art. 4
n.º 1, al. a), do ETAF84».
No entanto, em nosso entendimento pode questionar-se esta forma de encarar o
problema. A norma do artigo 4.º, n.º 1, alínea g) do ETAF pode ser vista, pela sua
manifesta amplitude, como estabelecendo uma competência genérica dos tribunais
administrativos e fiscais para julgamento de pedidos de responsabilidade civil
extracontratual relacionados com a atividade do Estado; repetindo Carla AMADO
GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO: «assim sendo, uma das consequências dessa
perspectiva seria a da necessária inclusão, no âmbito da jurisdição administrativa e
fiscal, da responsabilidade civil por actos da função política» (90
) (91
), apesar de os
mesmos não serem referidos na alínea g) do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF. As cláusulas
constitucional e legal sobre competência residual dos tribunais comuns podem porém
ser encaradas como normas auxiliares do princípio da proibição de denegação de justiça
(isto é, servem como garantia de que há sempre uma jurisdição competente), não sendo
incompatíveis com uma leitura ampla e abrangente das normas atributivas de jurisdição
a outras ordens de tribunais, orientada pelo princípio de especialização das matérias. De
tal ponto de vista (da especialização das matérias), não há dúvidas de que a solução
mais curial é a sujeição destes litígios à jurisdição administrativa. Repetimos que a
primeira parte da alínea g) possui uma amplitude que permite a defesa deste nosso
entendimento de jure condito e não apenas de jure condendo.
Porém, colocando questões de competência jurisdicional à parte, será oportuno
saber que regime de responsabilização aplicar nestes casos, dado que o RRCEE não
autonomiza os atos políticos dos atos (político-) legislativos. E já constatámos que
determina a aplicação do regime civil no âmbito da Lei n.º 34/87, à reparação de danos
conexos com crimes de cariz funcional.
Ora, tal regime da responsabilidade por atos e omissões de titulares de cargos
políticos (92
) dificilmente se consegue ancorar, analogicamente, no artigo 15.º do
RRCEE, dado que este está construído tendo em conta a figura do ato legislativo (v.g., a
(90) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p. 11.
(91) Ver, no mesmo sentido, Vasco PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. Ensaio sobre as
acções no novo processo administrativo, 2.ª ed., Coimbra, 2009, pp. 527-528. (92) Neste sentido leia-se o artigo 3.º da Lei n.º 34/87.
50
questão do incidente de constitucionalidade, a declaração de inconstitucionalidade por
omissão) e não faz, por definição, qualquer alusão à regra da solidariedade – porque a
responsabilidade pelo ato é imputada ao Estado (ou à Região Autónoma). Tal como
salientam Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO: «Em contrapartida,
a restrição ao “dano anormal” e mesmo à redução equitativa do montante
indemnizatório parece-nos fazerem sentido também nesta sede – vejam-se os n.ºs 1 e 6
do artigo 15.º. Restará ao juiz a construção de um regime que o RRCEE não deveria ter
omitido e que o coloca, nessa medida, sob suspeita de inconstitucionalidade à luz dos
artigos 22.º e 117.º/ 1 da CRP. Até por essa tarefa pretoriana de construir um regime
valorativamente adequado e, por isso, necessariamente próximo do estabelecido no
RRCEE, consideraríamos mais adequada a sujeição destes litígios à jurisdição
administrativa» (93
).
1.5. Obrigação de indemnizar
O artigo 3.º do RRCEE, tem por epígrafe «Obrigação de indemnizar», e contém
três normas que reproduzem o regime civilístico: quem causa dano, deve reparar e
reconstituir a situação atual hipotética (artigo 3.º, n.º 1, que ecoa o artigo 562.º do CC);
a reconstituição in natura prefere à compensação pecuniária, salvo se se revelar
impossível ou excessivamente onerosa (artigo 3.º, n.º 2, correspondente ao artigo 566.º,
n.º 1 do CC); a indemnização cobre danos morais e patrimoniais, tanto presentes como
futuros (artigo 3.º, n.º 3, que reflete hipóteses contempladas identicamente na lei civil:
artigos 496.º e 564.º do CC).
Porém, conscientes dos obstáculos que a aplicação de cada uma destas normas
levanta, teceremos apenas certas considerações acerca de questões relacionadas com as
especificidades de cada uma das funções previstas pelo RRCEE.
1.5.1. Função administrativa
Renomeando Carla AMADO GOMES e de Miguel ASSIS RAIMUNDO: «No
que tange à função administrativa, o problema que imediatamente aflora, tendo em
conta o princípio de reconstituição in natura da situação actual hipotética, é o da
conjugação do pedido indemnizatório com o efeito reconstitutivo da sentença anulatória
ou de declaração de nulidade do qual este pode ser subsidiário (cfr. os artigos 4.º e 47.º
do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)). Na verdade, quando da
(93) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p.12.
51
execução da decisão de acolhimento do pedido principal resultar a reconstituição da
situação actual hipotética, essa decisão consumirá tendencialmente o pedido
indemnizatório (94
) – salvo, porventura, no tocante a danos morais» (95
). Tal como
sugere Carlos FERNANDES CADILHA, este «alude ainda aos danos decorrentes da
inexecução em espécie, ou seja, de execução deficitária tanto em face de alegação pela
Administração (e aceite pelo juiz) de causa legítima de inexecução, como da
necessidade de compensar o lesado em virtude de impossibilidade de reparação in
natura» (96
). Como realçam Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO:
«No primeiro caso, estará em jogo, além da indemnização substitutiva da execução de
sentença – a fixar na fase executiva do processo, nos termos dos artigos 166.º e 178.º do
CPTA -, alguma outra indemnização por dano remanescente, a reclamar em ação
autónoma. No segundo caso, tratar-se-á identicamente de uma acção autónoma» (97
).
Porém, no segundo caso, tratar-se-á de modo muito semelhante de uma ação autónoma,
sendo certo que em ambos os casos mencionados, a via adequada será a da ação
administrativa comum prevista no artigo 37.º, n.º 1, alínea f) do CPTA.
Contudo, a ação administrativa comum para efetivação da responsabilidade civil
da Administração terá também pleno cabimento nos casos de caducidade do direito de
ação (de impugnação da validade de atos administrativos), contempladas no artigo 38.º
do CPTA. Há aqui uma circunscrição do pedido à compensação pecuniária, uma vez
que a reconstituição in natura está, por conceito, vedada (cfr. o artigo 38.º, n.º 2). E o
montante indemnizatório pode sofrer diminuição em virtude da caraterização de culpa
do lesado, materializada no não uso em tempo útil do meio jurisdicional que permitiria
uma tutela plena e efetiva da pretensão do autor.
Caso especial é o do artigo 45.º do CPTA, de convolação de uma ação, comum
ou especial, de condenação à prática de atos materiais ou jurídicos ou de
anulação/declaração de nulidade de atos/normas administrativos/as, numa ação de
efetivação da responsabilidade por inexecução legítima, em razão de antecipação de
uma causa legítima de inexecução que viria a manifestar-se na fase executiva. Tal como
menciona Carlos FERNANDES CADILHA: «O artigo 45.º do CPTA consagra assim
(94) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: Topicamente - e a quatro mãos…- sobre o novo regime da
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas in: «Revista de Direito Público e Regulação», n.º 5, Março, ed. Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre), FDUC, 2010, p. 13, nota 28: «Anote-se, neste particular, a
mais-valia de uma disposição como o artigo 90.º/3 do CPTA, que permite ao juiz (na acção especial) fasear a instrução em atenção à
existência de pedidos subsidiários, de entre os quais se destacam os indemnizatórios», de Carla AMADO GOMES e de Miguel ASSIS RAIMUNDO.
(95) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p. 13.
(96) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade civil…, cit., pp. 74-75. (97) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p. 13.
52
uma regra processual instrumental da regra substantiva do artigo 3.º/ 2 do RRCEE (e do
artigo 566.º/1 do CC, a admitir-se que o mesmo pode ser aplicado directamente no foro
administrativo), pois ambas as regras estabelecem limites à reconstituição em espécie»
(98
). Conforme se explicita no n.º 5, o arbitramento de indemnização por inexecução
legítima não intimida o autor de reclamar, noutra ação, o ressarcimento de todos os
danos remanescentes que tal inexecução lhe cause (99
).
De ressalvar é também a diferença entre quantias devidas a título indemnizatório
e quantias devidas a título de sanções compulsórias (para tal definição, deve ver-se o
artigo 169.º do CPTA). As duas são cumuláveis; no entanto, como dispõe o n.º 6 do
artigo 169.º do CPTA, «a parte em que o valor das segundas exceda o das primeiras
constitui receita consignada à dotação anual, inscrita à ordem do Conselho Superior dos
Tribunais Administrativos e Fiscais».
Acrescente-se que, no plano da indemnização pelo sacrifício – ou por atos lícitos
-, regulada no artigo 16.º do RRCEE, não se aplicam os princípios consignados no
artigo 3.º. Na verdade, uma das especificidades desta possibilidade prende-se
precisamente com a impossibilidade de remover o dano em virtude da necessidade de
sacrifício dos interesses do particular. Destarte, como alertam Carla AMADO GOMES
e Miguel ASSIS RAIMUNDO: «Os critérios de cálculo fogem também à regulação pelo
artigo 3.º, arbitrando-se a compensação com base na ponderação do grau de afectação
do interesse/direito violado» (100
).
1.5.2. Função jurisdicional
No que respeita à responsabilidade por facto da função jurisdicional, as
considerações produzidas em relação à articulação entre pedido condenatório em
prestação de facere, anulatório ou de declaração de nulidade são, em certa medida, para
aqui transponíveis.
(98) Deste modo, Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade civil…, cit., nota 3 ao artigo 3.º.
(99) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: Topicamente - e a quatro mãos…- sobre o novo regime da
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas in: «Revista de Direito Público e Regulação», n.º 5, Março, ed. Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre), FDUC, 2010, p. 14, nota 32: «Refira-se que, tanto nesta
situação, como nas hipóteses “normais” de inexecução legítima, é duvidosa a possibilidade de reclamação de indemnização por
inexecução por autores populares, em virtude da não individualidade do interesse. Neste sentido, muito recentemente, veja-se o acórdão do STA, I, de 25 de Junho de 2009 (FREITAS CARVALHO), proc. 913/08, disponível em www.dgsi.pt.
Sempre que a lei substantiva não previr uma destinação em estreita relação com a natureza dos bens em jogo (caso do ambiente,
com o Fundo de Intervenção Ambiental – artigo 6.º, n.º 1, alínea d) do DL 150/2008, de 30 de Julho -, e do património cultural, com o Fundo de salvaguarda do património cultural – artigo 5.º, n.º 1, alínea e) do DL 138/09, de 15 de Junho), julgamos que as
quantias apuradas devem reverter para a dotação anual a que se reporta o artigo 172.º, n.º 3 do CPTA»., de Carla AMADO GOMES
e de Miguel ASSIS RAIMUNDO. (100) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p. 14.
53
É de referir ainda que o artigo 13.º, n.º 2 impõe a prévia revogação da decisão
danosa por tribunal de instância superior como requisito de efetivação da
responsabilidade por facto da função jurisdicional. Independentemente da avaliação da
bondade da solução mencionada, compensa recalcar que a responsabilidade a reclamar
aqui será a que remanescer à reposição das condições de exercício do direito pelo autor
realizada pelo acórdão que operou a revogação da decisão lesiva. Isto é, tratar-se-á,
tendencialmente, de compensação de danos morais e patrimoniais provocados (embora
temporariamente) pela decisão revogada, mas não da reconstituição in natura – essa
operada pelo acórdão revogatório.
Nas palavras de Carla AMADO GOMES e de Miguel ASSIS RAIMUNDO: «A
preocupação do RRCEE é, por um lado, a salvaguarda da credibilidade da função
jurisdicional e, por outro lado, a preservação do caso julgado. Ora, tais desígnios
comprometem a tutela dos direitos do autor sempre que a decisão lesiva for proferida
por tribunal superior, ou quando dela não caiba recurso (em virtude do sistema de
alçadas)» (101
). A válvula de escape aberta pelo artigo 696.º, alínea f) do Código de
Processo Civil (CPC), pensada à medida dos acórdãos prolatados pelo TEDH, é curta,
mesmo só no que ao Direito de fonte internacional diz respeito – nomeadamente, nela
não cabem situações de violação de jurisprudência do Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias. Como advertem Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS
RAIMUNDO: «Ainda que descartando a possibilidade de revisão de sentença com vista
à efectivação da responsabilidade do julgador perante casos de criação de uma corrente
jurisprudencial (maxime jurisprudência uniformizada) interpretativa de norma
anteriormente interpretada e aplicada erroneamente (desde logo tendo em mente o
disposto no artigo 13.º/1 do CC, relativo à salvaguarda do caso julgado em face da
eficácia retroactiva de leis interpretativas), perguntamo-nos se, em casos deste tipo, não
seria concebível a aceitação de uma indemnização compensatória em situações de dano
especial e anormal (com manutenção do caso julgado). Ressalvadas as devidas
distâncias, há aqui reminiscência da figura da causa legítima de inexecução, porquanto a
decisão inválida se mantém, sendo o autor compensado por não poder materializar a sua
razão…» (102
).
(101) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p.15.
(102) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p.15.
54
1.5.3. Função político-legislativa
Tal como aludem Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO:
«Relativamente à função legislativa, reitera-se a observação feita nos dois pontos
anteriores: fica para o pedido indemnizatório o que não puder ser reconstituído através
da sentença que reconstruir a situação jurídica despojada de base, por a norma ser
inconstitucional. A reconstrução, que caberá ao tribunal a quo após confirmação do
juízo de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, poderá passar quer pela
repristinação de direito anterior, quer pela elaboração de uma norma ad hoc, dentro do
espírito do sistema (nos quadros do artigo 10.º do CC). O que restar de prejuízo após tal
reconstituição deverá ser deduzido em ação autónoma – que, por maioria de razão, terá
que ser utilizada nas situações em que se pretende obter ressarcimento na sequência de
uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (com efeitos ex
tunc)» (103
).
Permitir-nos-íamos apenas acrescentar a necessidade de articular o artigo 3.º do
RRCEE com o pressuposto do dano anormal (artigo 15.º, n.º 1 do RRCEE) – que
diminui sensivelmente o universo aplicativo do RRCEE -, mas sobretudo com a
possibilidade de fixação equitativa do montante indemnizatório em quadros de
proliferação de cidadãos anormalmente lesados. De referir que, perante um número
considerável de lesados, o n.º 6 do artigo 15.º do RRCEE admite, sob invocação de um
interesse público de excecional importância, atribuir indemnizações que não satisfaçam
de forma integral o interesse ressarcitório dos autores. O princípio da reconstituição in
natura pode ser colocado em causa, assim como a garantia de reconstituição da situação
atual hipotética (no que exceder a primeira).
Por fim, nas palavras de Carla AMADO GOMES: «A aplicação do artigo 15.º/6
do RRCEE levanta problemas processuais delicados» (104
).
1.5.4. Culpa do lesado por não utilização da via processual adequada
Para começar, importa referir que tal como diz Carlos CADILHA: «Dois outros
aspetos gerais do regime jurídico de responsabilidade civil do Estado merecem especial
destaque: a culpa do lesado, a que se refere o artigo 4.º, e a obrigatoriedade do exercício
do direito de regresso por parte da Administração, a que alude o artigo 6.º» (105
).
(103) Cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, ob. cit., p. 16.
(104) Cfr. Ver Carla AMADO GOMES, As novas responsabilidades…, cit., pp. 135-139.
(105) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa, p. 3.
55
O primeiro dos referidos preceitos introduz um princípio de conculpabilidade ou
de co-responsabilidade resultante de facto imputável ao próprio lesado, quando o lesado
tenha contribuído para a produção ou o agravamento dos danos, conferindo ao tribunal a
faculdade de conceder, reduzir ou excluir a indemnização com base na gravidade das
culpas de ambas as partes e nas consequências que delas tenham resultado.
Porém, enquanto enuncia um princípio geral, a norma tem plena
correspondência com a do artigo 570.º do CC, que igualmente consagra uma regra de
concorrência de culpa entre o lesado e o respetivo autor do dano. A originalidade
daquele artigo 4.º é, no entanto, a de incluir entre os comportamentos culposos, que
poderão determinar a redução ou exclusão da indemnização, a própria negligência
processual do lesado por não ter utilizado, nos dizeres de Carlos FERNANDES
CADILHA: «a via processual adequada à eliminação do ato jurídico lesivo» (106
). De
salientar ainda que, neste ponto, o preceito reproduz o princípio anteriormente
consignado no artigo 7.º do DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, embora
explicitando – na linha do entendimento jurisprudencial entretanto firmado – que a
conduta processual omissiva ou negligente do lesado, quando deixe de impugnar ou
deixe de impugnar com eficácia um ato administrativo lesivo releva apenas no plano da
culpa, gerando, desta forma, a mera redução ou exclusão da indemnização devida.
Tal como acentua Carlos FERNANDES CADILHA: «Concebida nestes amplos
termos, a culpa do lesado afigura-se susceptível de contrariar o princípio da tutela
jurisdicional efectiva (entendido não apenas como uma garantia de existência de um
meio processual adequado à tutela do direito, mas como a possibilidade de escolher, de
entre os meios processuais legalmente admissíveis, aquele que o interessado considere
ser o mais ajustado à pretensão judiciária tal como a configura)» (107
); de mencionar
ainda que para além de que põe em causa o princípio da parificação dos meios
processuais administrativos, consagrado no artigo 268.º, n.º 4, da CRP, no ponto em que
limita a autonomia da ação de indemnização e esvazia o alcance prático da norma do
artigo 38.º do CPTA (artigo este que prevê a apreciação incidental da ilegalidade de um
ato administrativo que não possa já ser impugnado).
Tais considerações conduzem à conclusão de que o juiz, na sua tarefa de
apreciação em concreto da culpa do lesado, terá o dever de efetuar uma interpretação
(106) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo
exercício da função administrativa., p. 4.
(107) Neste sentido, Carlos FERNANDES CADILHA, Os poderes do juiz e o princípio da tipicidade das formas processuais, in: «Revista do CEJ», n.º 7, 2.º semestre de 2007, p. 22.
56
conforme à CRP, que obvie a que o uso da faculdade prevista no artigo 4.º, com base na
existência de uma conduta processual negligente, possa pôr em causa, na prática, o
direito de acesso à justiça.
Importa referir que a culpa do lesado deve ser avaliada segundo o princípio da
causalidade adequada, implicando que tal conduta processual do lesado possa ser
caraterizada como uma condição da produção do dano ou então do seu agravamento e
que essa seja normalmente adequada à produção de qualquer desses efeitos. Contudo,
por outro lado, há-de ser imputável ao lesado a título de culpa, o que pressupõe a
exigibilidade de uma ou outra conduta, ou seja, que o lesado, na qualidade de
destinatário de um ato administrativo lesivo, devesse reagir, desde logo, mediante um
meio processual próprio, que pudesse evitar que os danos viessem a surgir ou a subsistir
na sua esfera jurídica.
Neste plano, interessa ter em linha de conta que o alargamento dos meios
processuais e a inclusão de medidas cautelares de tutela antecipatória, e não apenas
conservatória, por efeito da entrada em vigor do CPTA, veio introduzir novos fatores de
variabilidade na apreciação da diligência processual do lesado, que o juiz não pode
deixar de tomar em linha de conta quando deva dar aplicação ao disposto naquele
preceito.
1.5.5. Obrigatoriedade do exercício do direito de regresso
O artigo 6.º prevê a obrigatoriedade do exercício do direito de regresso, por parte
das pessoas coletivas públicas, relativamente aos titulares de órgãos, funcionários e
agentes, nos casos em que ele se encontra especialmente previsto no diploma, mais
precisamente no seu n.º 1, e, para tal efeito, impõe à secretaria do tribunal que tiver
proferido a condenação em responsabilidade civil o dever de remeter certidão da
sentença à entidade administrativa competente para adotar as providências necessárias à
efetivação desse direito, entendendo-se como tal o titular de poderes de direção, de
supervisão, de superintendência ou de tutela.
Como observa Carlos FERNANDES CADILHA: «As situações em que há lugar
ao exercício do direito de regresso e que se encontram cobertas pelo regime de
obrigatoriedade aqui previsto, encontram-se elencadas nos artigos 8.º, 11.º, n.º 2, e 14.º
deste diploma, e no que se refere à responsabilidade pelo exercício da função
administrativa fundada em facto ilícito, que aqui interessa especialmente considerar,
abrange acções ou omissões cometidas por titulares de órgãos, funcionários e agentes
57
com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se
encontravam obrigados em razão do cargo, (artigo 8.º, n,º 1)» (108
).
De referir que o direito de regresso é uma mera decorrência do disposto nos
artigos 22.º e 271.º da CRP, que consagram, de um lado, a responsabilidade solidária da
Administração, e, de outro, a responsabilidade pessoal dos titulares de órgãos,
funcionários e agentes, sendo de realçar que em todo o caso, relativamente aos titulares
de órgãos, funcionários e agentes, o direito de regresso apenas opera em sede de
responsabilidade por facto ilícito, assim se entendendo que no âmbito da
responsabilidade pelo risco, o direito de regresso apenas possa ser exercido
relativamente a terceiros que tenham concorrido para a produção ou agravamento dos
danos, isto conforme o disposto no artigo 11.º, n.º 2 do RRCEE. De mencionar que é o
próprio n.º 5 do artigo 271.º que faz remissão para a lei ordinária da regulamentação dos
termos em que esse direito pode ser exercido por parte da pessoa coletiva pública.
Ora, concretizando o regime de exercício do direito de regresso, o n.º 3 do artigo
8.º do RRCEE confere aos titulares de poderes de direção, de supervisão, de
superintendência ou de tutela a competência para a adoção das providências necessárias
à efetivação desse direito, e o n.º 4 permite a prossecução do processo, entre a pessoa
coletiva pública e o titular de órgão, funcionário e agente, após a prolação da decisão de
condenação em indemnização, para efeito de apurar a existência de dolo ou culpa grave,
constituinte do requisito do direito de regresso, e eventualmente condenar no reembolso
do montante indemnizatório.
Nas palavras de Carlos FERNANDES CADILHA: «Este prolixo sistema legal
pressupõe a prévia compreensão de diversos factores: (a) em primeiro lugar, o
prosseguimento do processo apenas tem lugar quando a sentença condenatória não tiver
já apurado o grau de culpa do titular de órgão, funcionário ou agente, e,
designadamente, quando a acção não tenha sido interposta conjuntamente contra a
pessoa colectiva pública e o seu servidor ou a questão relativa ao direito de regresso não
tenha já sido suscitada, no processo, por via do incidente de intervenção provocada; (b)
por outro lado, o prosseguimento do processo, em aplicação do disposto no artigo 8.º,
n.º 4, não poderá ser determinado automática e oficiosamente pelo juiz, dependendo
antes de requerimento da entidade pública que figurar como primitivo réu, que deverá
identificar a pessoa ou pessoas contra quem o processo deverá continuar e definir o
(108) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa, p. 5.
58
objecto do pedido, por forma a que os chamados possam exercer o direito de
contraditório; (c) a possibilidade de utilização desse mecanismo legal, destinando-se a
permitir, por razões de economia processual, discutir a matéria relativa ao direito de
regresso na própria acção indemnizatória, não impede que a Administração, quando a
acção tenha sido originariamente interposta apenas contra ela, possa usar os poderes que
lhe confere a lei processual civil, requerendo o chamamento do funcionário através do
incidente de intervenção provocada; (d) além de que o não uso dessa faculdade não
obsta a que a entidade pública proponha uma acção de regresso autónoma, a que
especialmente alude o artigo 37.º, n.º 2, alínea f), do CPTA» (109
).
1.5.6. Responsabilidade por facto ilícito - âmbito normativo da ilicitude:
ilegalidade substantiva vs ilegalidade formal
Relativamente à ilicitude, o artigo 9.º adota uma formulação que permite
abranger quer a ilicitude objetiva («acções ou omissões (…) que violem disposições ou
princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem
técnica ou deveres objectivos de cuidado») quer a ilicitude subjetiva («de que resulte a
ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos»).
A alusão à violação objetiva de normas e princípios jurídicos, por um lado, e de
regras de ordem técnica e de deveres de cuidado, por outro, evidenciam que a lesão
antijurídica pode derivar da ilegalidade administrativa – que poderá consistir na
violação de normas ou princípios jurídicos – ou de uma qualquer atuação material que
não seja conforme ao direito – em que se inclui a inobservância de normas técnicas ou
de um dever geral de cuidado (110
).
Tal como retrata Carlos FERNANDES CADILHA: «Por outro lado, a referência
aos direitos e interesses legalmente protegidos, que consta do artigo 9.º, n.º 1, in fine,
com o que se terá pretendido abranger não apenas os direitos subjectivos, mas também
os interesses individuais reflexamente protegidos pela norma, parece significar que a
ilicitude não se configura apenas através da violação de normas substantivas, mas pode
resultar também da violação de normas procedimentais (que regulam a competência do
(109) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado…, cit., p. 5.
(110) Revisitando Marcello CAETANO: «Assim se compreende, também, a desnecessidade de introduzir a diferença entre actos jurídicos e actos materiais, contrariamente ao que sucedia na correspondente norma do DL n.º 48 051. A indemnizabilidade de
danos resultantes de actos jurídicos ou de actos materiais está implícita na dicotomia estabelecida entre a violação de disposições ou
princípios constitucionais, legais ou regulamentares (que constitui motivo de ilegalidade quando esteja em causa um acto jurídico) e a infração dessas normas e princípios e ainda de ilegalidade quando esteja em causa um acto jurídico) e a infracção dessas normas
e princípios e ainda das regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado (que tem específica aplicação relativamente a
atividades materiais ou técnicas)». Tal explicitação, por referência ao artigo 6.º do DL n.º 48 051, em Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, II, vol., 9.ª edição, p. 1225.
59
órgão, a forma do acto administrativo ou aspectos processuais da formação da vontade
administrativa)» (111
). Não está excluído, neste contexto, que uma ilegalidade
meramente formal (inserindo-se na noção de ilicitude por ter implicado a violação de
norma destinada a proteger o interesse do particular) possa gerar o dever de indemnizar
desde que o vício detetado constitua causa adequada do dano que tenha sido invocado, o
que torna o reconhecimento do direito dependente de uma análise casuística que, em
face das circunstâncias concretas, permita imputar o dano indemnizável ao tipo de
ilegalidade praticada. Desde logo, há lugar a um direito indemnizatório quando o vício
meramente formal possa ter influído no sentido da decisão de modo a permitir concluir
que, se não fosse cometido, a solução jurídica do caso pudesse ser favorável ao
interessado.
De frisar que a ilicitude pode consistir, além disso, na violação de normas
comunitárias, como será o caso da emissão de atos ou regulamentos administrativos que
contrariem diretivas comunitárias de efeito direto, sendo essa a consequência que
dimana de o incumprimento do direito comunitário poder ser imputável a qualquer dos
poderes públicos estaduais, e, portanto, no âmbito da prática da atividade
administrativa.
Porém, mencionamos que fora da definição de ilicitude ficam as ilegalidades
sanáveis e, designadamente, a preterição ou inobservância de trâmites procedimentais
que se degradam em formalidades não essenciais, e bem assim, todas as ilegalidades
não invalidantes, como é a situação dos vícios não implicantes da anulação contenciosa
por efeito da aplicação, pelo tribunal, do princípio do aproveitamento do ato
administrativo.
1.5.7. Critério de aferição da culpa: presunção de culpa leve para a prática
de atos jurídicos ilícitos e incumprimento de deveres de vigilância
A previsão, no artigo 10.º, de um critério próprio de aferição de culpa, no
domínio da responsabilidade da Administração (n.º 1), assim como a referência
específica a situações de presunção de culpa (n.ºs 2 e 3), permite uma maior clarificação
legislativa, possibilitando também a identificação de certas especificidades em relação
ao regime geral da lei civil.
Ao determinar que a culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes «deve
ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das
(111) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado…, cit., p. 7.
60
circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e
cumpridor», o n.º 1 do artigo 10.º do RRCEE parte de uma conceção de culpa em
abstrato (à semelhança do que sucede na lei civil com a correspondente disposição do
artigo 487.º, n.º 2), sem perder de vista as circunstâncias particulares do caso concreto,
mas tomando como referente, não já o bonus pater familias, mas o titular médio de
órgão ou o funcionário médio. O facto suscetível de gerar o dever de indemnizar foi
cometido no exercício de funções ou por causa desse exercício (tratando-se de uma
responsabilidade funcional), pelo que importa avaliar a conduta do agente (em termos
de verificar se merece a censura ou a reprovação do direito), não por referência ao
homem comum, mas atendendo à especial qualidade da pessoa que cometeu o ato.
Há aqui no novo regime legal uma inovação que consiste no estabelecimento de
uma presunção de culpa leve para a prática de atos jurídicos ilícitos, de acordo com o
artigo 10.º, n.º 2 do RRCEE, e para o incumprimento de deveres de vigilância, nos
termos do artigo 10.º, n.º 3 do RRCEE.
Quanto aos atos jurídicos da Administração, a jurisprudência declarava, ainda
que sem grande desenvolvimento doutrinário, que a «violação de normas legais ou
regulamentares desde logo arrasta uma presunção judicial de negligência» (112
). Tal
como nos sugere Carlos FERNANDES CADILHA: «Os tribunais não afirmavam,
portanto, uma presunção de culpa, mas limitavam-se a admitir a demonstração da culpa
através da utilização, como meio de prova, da presunção judicial: por simples conjetura,
o julgador deduzia de um facto conhecido (o erro na aplicação ou interpretação de uma
norma) um facto incerto (a culpa na emissão do acto administrativo ilegal)» (113
).
Contudo, a culpa comporta um juízo de censura e representa, por essa razão,
algo mais do que a mera constatação da ilegalidade. Ademais, sendo a culpa aferida pela
diligência de um funcionário médio, dificilmente se entenderia que esse funcionário
incorresse em conduta culposa sempre que se tivesse limitado a adotar, na apreciação do
caso concreto, uma das soluções plausíveis de direito. Daí que, relativamente à prática
de atos jurídicos, fosse necessário indagar a existência da culpa em função do
circunstancialismo em que o ato tivesse sido cometido.
Destarte, o estabelecimento de uma presunção legal de culpa leve no domínio da
responsabilidade da Administração por danos resultantes da prática de actos jurídicos
vem clarificar um pouco as coisas e traz relevantes consequências. Como demarca
(112) Cfr. Neste sentido: acórdão do STA de 2 de Novembro de 1993 (Processo n.º 31842), in: AP-DR de 15 de Outubro de 1996, p.
5911. (113) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado…, cit., p. 8.
61
Carlos FERNANDES CADILHA: «A presunção legal de culpa envolve, antes de mais,
a inversão do ónus da prova, fazendo recair sobre a Administração o encargo de
demonstrar que agiu sem culpa (artigo 344.º do CC)» (114
). Nestes moldes, a presunção
legal aqui estabelecida não equivale a uma objetivação da culpa, mas tão somente
determina um agravamento da posição processual da Administração, que terá de
comprovar que se empenhou na procura da solução legal. Importa salientar que e nas
palavras de Carlos FERNANDES CADILHA: «E não será sequer difícil conceber
algumas circunstâncias desculpalizantes da ilegalidade: sistema legislativo imperfeito;
proliferação de legislação extravagante; prolixidade das disposições legais aplicáveis;
divergência na jurisprudência sobre a mesma questão jurídica; inflexão do entendimento
jurisprudencial após a prolação do acto administrativo impugnado» (115
). Em
contrapartida, não está excluído, como se depreende do segmento inicial do n.º 2 do
artigo 10.º do RRCEE, que possa vir a demonstrar-se que o autor de um ato
administrativo atuou com dolo ou a culpa grave na escolha da solução jurídica. Voltam
a funcionar, para tal efeito, os critérios gerais do ónus da prova, pelo que o juiz, para
concluir pela existência de qualquer dessas formas de culpa, não poderá apenas bastar-
se com um non liquet probatório, e terá de lançar mão de ilações que se baseiem nas
regras da experiência e de normalidade. Ora, como evidencia Margarida CORTEZ:
«Um especial juízo de censura poderá ser formulado pelo tribunal nos casos em que a
Administração incorre em erro de interpretação de normas de sentido preciso e
inequívoco ou quando opta – como por vezes sucede – por contrariar o entendimento
pacífico e reiterado dos tribunais sobre uma dada questão jurídica» (116
).
Por outro lado, o artigo 10.º, n.º 3 do RRCEE, ao prever uma presunção de culpa
leve sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância pretende
consagrar a orientação jurisprudencial já firmada no domínio do DL n.º 48 051, de 21
de Novembro de 1967, quanto à culpa in vigilando, remetendo para um regime
semelhante ao dos artigos 491.º e 493.º, n.º 1, do CC, sendo ainda de realçar que,
concretamente, a jurisprudência começou por admitir a presunção de culpa
relativamente a diversas situações em que existisse um encargo de vigilância por parte
de entidades públicas, reportando-se a danos causados pela existência de obstáculos na
via pública, deficiente conservação das vias, queda de árvores, ruína de edifício ou
(114) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado…, cit., p. 9. (115) Neste sentido, Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e das demais
Entidades Públicas, Coimbra Editora, 2008, p. 167.
(116) Acerca destes aspetos ver Margarida CORTEZ, Responsabilidade civil da Administração por Actos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado, Coimbra Editora, 2000, pp. 104-105.
62
rutura de condutas. (117
). Ficam excluídas, desta maneira, a presunção de culpa
relativamente a danos resultantes do exercício de atividades perigosas, a que se reporta
o n.º 2 do artigo 493.º do CC, e em relação aos quais se encontra prevista uma forma de
responsabilidade objetiva, nos termos descritos no artigo 11.º desta lei, assim como
todas as restantes situações de presunção de culpa consignadas no CC, e especialmente
no artigo 492.º. Nesse sentido, a ressalva constante do segmento inicial do n.º 3 do
artigo 10.º («Para além dos demais casos previstos na lei»), deve entender-se como
referindo-se apenas aos casos especialmente previstos em legislação extravagante que
tenham aplicação na responsabilidade civil extracontratual da Administração, e não a
outros que constem da lei geral civil.
Contudo, tal como escreve Carlos FERNANDES CADILHA: «Uma questão que
cumpre ainda esclarecer é a relativa à remissão feita no n.º 4 do artigo 10.º, em caso de
pluralidade de responsáveis, para o regime do artigo 497.º do CC. Este preceito da lei
civil estabelece o regime de responsabilidade solidária «quando forem várias as pessoas
responsáveis pelos danos» (n.º 1), acrescentando que «o direito de regresso entre os
responsáveis existe na medida das respectivas culpas e das consequências que delas
advieram, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis» (n.º 2) (118
).
O que aqui está, todavia, em questão, são apenas as hipóteses em que o dano
possa ser atribuído a várias causas e estas sejam imputadas a diferentes pessoas
responsáveis, não abarcando já as situações em que a lei define para uma única causa do
dano uma forma de responsabilidade solidária entre os diversos responsáveis ou aquelas
em que para a produção do dano possa também ter contribuído a culpa do próprio
lesado. A situação paradigmática é, porém, aquela em que possa configurar-se uma
concorrência de culpas entre o ente público na qualidade de dono da obra e um
concessionário ou empreiteiro particular, relativamente a danos resultantes da execução
de obras públicas.
De referir que, fora do âmbito de aplicação do artigo 497.º do CC fica a
responsabilidade solidária entre uma pessoa coletiva pública e um seu titular de órgão,
funcionário ou agente, quando estes pratiquem ações ou omissões ilícitas com dolo ou
com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam
(117)Veja-se, assim, entre as mais recentes decisões, os acórdãos do STA de 10 de Maio de 2006 (Processo n.º 121/06), de 4 de
Abril de 2006 (Processo n.º 1116/05), de 9 de Março de 2006 (Processo n.º 837/03), de 16 de Fevereiro de 2006 (Processo n.º 1039/05), de 3 de Novembro de 2005 (Processo n.º 792/05), de 19 de Outubro de 2005 (Processo n.º 394/05), de 29 de Junho de
2005 (Processo n.º 566/04), de 19 de Maio de 2005 (Processo n.º 590/04), de 26 de Abril de 2005 (Processo n.º 245/05) e de 7 de
Abril de 2005 (Processo n.º 856/04). (118) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado…, cit., p. 10.
63
obrigados (situação em que o regime de responsabilidade é o previsto no artigo 8.º, n.ºs
2, 3 e 4, com menção ao artigo 6.º). Aqui a pessoa coletiva pública funciona como
garante do pagamento, e não como co-responsável pelo facto causador do dano, pelo
que o direito de regresso que pode exercer se destina à obtenção do reembolso da
integralidade da indemnização em que tenha sido condenada como devedora solidária.
1.5.8. Responsabilidade pelo risco
O artigo 11.º do RRCEE consagra ainda uma norma de responsabilidade pelo
risco do Estado e das demais pessoas coletivas públicas por danos decorrentes de
atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos, em
correspondência com o que já estabelecia o artigo 8.º do DL n.º 48 051, de 21 de
Novembro de 1967, mas com relevantes inovações: em primeiro lugar, deixou de se
estabelecer qualquer limitação indemnizatória por referência à exigência de prejuízos
especiais e anormais (n.º 1); por outro lado, mantendo-se a possibilidade de redução ou
exclusão da indemnização baseada em concorrência de culpa de terceiro, passa a prever-
se, nesse caso, a responsabilidade em forma solidária do ente público, ainda que com
direito de regresso (n.º 2). De denotar que a responsabilidade solidária não é aqui
imposta por aplicação do princípio estabelecido no artigo 22.º da CRP, visto que não
estamos no âmbito de uma relação de serviço, podendo mostrar-se justificada, no plano
da política legislativa, por considerações ligadas à solvabilidade do direito
indemnizatório quando os danos devam ser imputados, em grande parte ou na sua
integralidade, à culpa de terceiro.
Não se condicionando agora o dever reparatório à verificação de um dano
especial e anormal, funciona um princípio de ressarcimento de todos os danos, desde
que se verifiquem os restantes requisitos da responsabilidade, tudo se passando, nesse
plano, como se tratasse de uma indemnização por fato ilícito. Nestes moldes, são
indemnizáveis os prejuízos que resultem do funcionamento de serviços (coisas ou
atividades) especialmente perigosos, de acordo com os critérios definidos no artigo 3.º
para a obrigação de indemnizar e mesmo que haja um grande número de lesados e se
trate de prejuízos de pequena gravidade, não havendo qualquer obstáculo à
ressarcibilidade inclusive de danos não patrimoniais, desde que estes, pela sua
gravidade, mereçam a tutela do direito (artigo 496.º, n.º 1, do CC). Tal não significa que
o dano não deva ser individualizado. Deverá tratar-se de um dano que incida sobre a
64
esfera jurídica de um indivíduo ou de uma pessoa coletiva e, como tal possa ser
invocado como uma desvantagem patrimonial ou um efeito negativo de caráter pessoal.
Não está, por outro lado, em causa, na responsabilidade pelo risco, o eventual
funcionamento anormal do serviço segundo a perspetiva que decorre do artigo 7.º, n.º 4
do RRCEE. Tal como diz Carlos FERNANDES CADILHA: «O funcionamento
anormal do serviço pressupõe a ilicitude da actividade administrativa e a imputação de
uma conduta objectivamente culposa, ainda que não seja possível provar que um
determinado funcionário ou agente tenha atuado com dolo ou negligência, pelo que o
fundamento do direito ressarcitório é, nessa hipótese, a responsabilidade aquiliana. Ao
contrário, a responsabilidade pelo risco é aquela que decorre de um funcionamento
normal do serviço, quando este, pela sua própria natureza, é susceptível de expor
terceiros a uma situação típica de perigo e assim originar danos indemnizáveis» (119
).
1.5.9. A indemnização pelo sacrifício
A indemnização pelo sacrifício pode também constituir uma das formas de
responsabilidade civil da função administrativa, correspondendo, em certa medida, à
responsabilidade por atos lícitos que anteriormente se encontrava regulada no artigo 9.º
do DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967. De referir, ainda, que a circunstância de
ter sido objeto de tratamento legislativo autónomo no artigo 16.º da nova lei deve-se ao
facto de se ter pretendido estabelecer, como requisito da indemnização, a existência de
quaisquer razões de interesse público, independentemente de a ação causadora do dano
se inserir na função administrativa ou em qualquer das demais funções do Estado. De
referir que em consonância com esse mesmo princípio, o CPTA autonomizou a
indemnização pelo sacrifício como um dos tipos de pretensões que podem ser deduzidas
através da acção administrativa comum (artigo 37.º, n.º 2, alínea g), distinguindo-a da
ação de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito ou pelo risco, a que alude
a alínea f) do mesmo preceito legal.
Contudo, nas palavras de Carlos FERNANDES CADILHA: «Ao referir-se à
imposição de encargos e à produção de danos, o legislador pretende abranger as
situações que resultam da intencional imposição de encargos (acções de protecção
sanitária, medidas de direcção económica, trabalhos públicos de requalificação urbana,
intervenções de cariz ambiental, certas medidas de polícia), e também os danos
(119) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado…, cit., p. 11.
65
ocasionalmente ocorridos no exercício de uma actividade lícita ou que resultem de
acções praticadas em estado de necessidade administrativa» (120
).
Porém, de notar que apenas são indemnizáveis os encargos ou danos especiais e
anormais, o que quer dizer que esta categoria de responsabilidade civil, procurando
assegurar o pagamento de uma compensação a quem tenha sido afetado na sua esfera
jurídica por razões de interesse comum, visa sobretudo dar concretização prática a um
princípio de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, desvalorizando a
ocorrência de danos generalizados ou de pequena gravidade que devam ser entendidos
como um encargo normal exigível como contrapartida dos benefícios que derivam do
funcionamento dos serviços públicos. De frisar que no regime anterior, idêntica
exigência resultava do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 48 051 para a responsabilidade por
factos lícitos, que era também tornada extensiva à responsabilidade pelo risco (artigo 8.º
do DL n.º 48 051). Relativamente à noção de danos ou encargos especiais e anormais,
esta encontra-se atualmente no artigo 2.º do Regime da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado.
No entanto, a especialidade e anormalidade são requisitos do prejuízo
indemnizável, enquanto pressuposto da responsabilidade civil, e não propriamente um
critério do cálculo da indemnização. Isto é, apurado que determinados prejuízos são
indemnizáveis, por preencherem as caraterísticas de especialidade e anormalidade, há
lugar à indemnização pelo sacrifício desde que se verifiquem os demais requisitos
materiais do dever ressarcitório. Nestes moldes, a exigência de um prejuízo ou encargo
especial e anormal não obstaria só por si a que se fixasse uma indemnização
correspondente à integralidade dos prejuízos ou encargos dessa natureza que tivessem
sido produzidos ou impostos. Ora, o artigo 16.º manda atender, para o cálculo da
indemnização, designadamente, ao «grau de afectação do conteúdo substancial do
direito ou interesse violado ou sacrificado». Tal indicação legislativa pressupõe que se
efetue uma apreciação equitativa do valor do encargo ou dano, e que, desse modo,
poderá não corresponder ao montante económico que esteja efetivamente em causa.
Evidencia, por outro lado, o caráter compensatório, e não meramente reparatório da
indemnização, o que se compadece com a consideração de que os direitos ou interesses
que possam ser sacrificados, em vários casos, pela sua própria natureza, serão apenas
suscetíveis de uma avaliação pecuniária indireta.
(120) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade civil do Estado…, cit., p. 12.
66
Em qualquer caso, compete ao tribunal o controlo da legitimidade do interesse
público invocado, havendo que distinguir entre os atos ablativos ou praticados em
estado de necessidade administrativa, que se encontram legitimados pela realização do
interesse público – e que, por isso justificam a indemnização limitada nos termos deste
artigo 16.º do RRCEE - daqueles outros atos que, de alguma forma, importam um
desvio aos critérios de legalidade e que caem sob a alçada da responsabilidade por facto
ilícito, como é o caso do ato expropriativo que excede o necessário para os fins de
utilidade pública em causa, ou da medida policial que viola os princípios da necessidade
e da proporcionalidade.
1.6. A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário
O surgimento da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei 31/2008,
de 17 de Junho (RRCEE), de há muito esperado, tinha, de entre as suas finalidades, a de
traduzir os modelos de efetivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado na
sua tripla veste de legislador, administrador e juiz, por violação do Direito Comunitário.
Revisitando Carla AMADO GOMES: «A jurisprudência comunitária vem
expressamente afirmando a responsabilidade do Estado desde 1991/1993, datas dos
Acórdãos Francovich (121
) e Brasserie du Pêcheur (122
), respectivamente, e cumpria
acolher devidamente essa lição no ordenamento jurídico português» (123
). Como alerta
Carla AMADO GOMES: «O arcaísmo do DL n.º 48 051 fazia-se também aí sentir, e a
sua inadequação à doutrina do Tribunal da Justiça das Comunidades Europeia (TJCE)
foi mesmo passível de censura formal em sede de acção por incumprimento» (124
).
De referir que com efeito, no Acórdão de 14 de Outubro de 2004 (Caso C-
275/03), o TJCE, por iniciativa da Comissão Europeia, condenou o Estado português
por não acatamento do princípio da solidariedade em virtude da manutenção em vigor
de um diploma que apenas admitia a responsabilização de agentes e pessoas coletivas da
Administração a título de dolo ou negligência grosseira – situação que afrontava o
estabelecido na Diretiva 89/665/CEE, do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, sobre
procedimentos de recurso em matéria de adjudicação de contratos públicos, sendo que
(121) Assim, Acórdão de 19 de Novembro de 1991, casos C-6/90 e 9/90.
(122) Assim, Acórdão de 5 de Março de 1993, casos C-46/93 e 48/93. (123) Cfr. Carla AMADO GOMES, O Livro das Ilusões: A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar
da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro in: «Separata Revista do CEJ», 1.º Semestre – n.º 11, Responsabilidade Civil Extracontratual
do Estado, Almedina – 2009, pp. 291 e 292. (124) Cfr. Carla AMADO GOMES, O Livro das Ilusões: A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar
da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro in: «Separata Revista do CEJ», 1.º Semestre – n.º 11, Responsabilidade Civil Extracontratual
do Estado, Almedina – 2009, p. 292.
67
houve entretanto uma segunda condenação de Portugal por parte do TJ, no Acórdão de
10 de Janeiro de 2006, caso 70/06. Tal como nos acentua Carla AMADO GOMES:
«Esta directiva, porque consagra no artigo 2.º/1/c) uma responsabilidade objectiva das
autoridades administrativas por qualquer violação do seu preceituado nos
procedimentos pré-contratuais, veria obstaculizada a sua vertente indemnizatória em
virtude da exigência de prova da culpa grave» (125
).
Porém, e tal como refere Carla AMADO GOMES: «Curiosamente, este leit-
motif voltou a emergir já na vigência da RRCEE, porquanto a primitiva versão,
referindo-se à responsabilidade da Administração no âmbito do procedimento pré-
contratual, remetia o regime para “os termos da presente lei” (artigo 7.º/2, 1.ª versão)»
(126
). Tal redação, no entanto, ainda não era satisfatória no que respeitava às exigências
do Direito Comunitário, na medida em que, apesar de o diploma alargar a
responsabilização à falta leve (artigo 7.º/1) e de esta se presumir (artigo 10.º/2), tal
presunção é elidível, podendo resultar na desresponsabilização da Administração em
sede de procedimento pré-contratual – resultado proibido pela diretiva 89/665/CEE.
Importa ainda mencionar que daí que a Lei 32/2008 tenha substituído o segmento
insuficiente pela fórmula, como alerta Esperança MEALHA: “ de acordo com os
requisitos da responsabilidade civil extracontratual definidos pelo direito comunitário”
(127
).
Destarte, e nas palavras de Carla AMADO GOMES: «melhor teria andado o
legislador se tivesse remetido para o regime da directiva, e não simplesmente atirado o
intérprete para “o direito comunitário”…» (128
).
De referir que tal como nos salienta Carla AMADO GOMES: «O relato deste
caso releva a dois títulos: em primeiro lugar, para justificar a cirúrgica e ultra-rápida
alteração do RRCEE, escassos seis meses após a sua entrada em vigor» (129
). Em
segundo lugar, sendo tal ponto o que mais releva agora, para equacionar uma questão
(125) Cfr. Carla AMADO GOMES, O Livro das Ilusões: A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar
da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro in: «Separata Revista do CEJ», 1.º Semestre – n.º 11, Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, Almedina – 2009, p. 292.
(126) Cfr. Carla AMADO GOMES, O Livro das Ilusões: A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar
da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro in: «Separata Revista do CEJ», 1.º Semestre – n.º 11, Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, Almedina – 2009, p. 292.
(127) De referir que acerca do sentido e alcance deste n.º 2, veja-se Esperança MEALHA, Responsabilidade civil nos procedimentos
de adjudicação dos contratos públicos (notas ao artigo 7.º/2 da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro), in «Julgar», n.º 5, 2008, pp. 99 e segs.
(128) Cfr. Carla AMADO GOMES, O Livro das Ilusões: A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar
da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro in: «Separata Revista do CEJ», 1.º Semestre – n.º 11, Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, Almedina – 2009, p. 293.
(129) Cfr. Carla AMADO GOMES, O Livro das Ilusões: A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar
da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro in: «Separata Revista do CEJ», 1.º Semestre – n.º 11, Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, Almedina – 2009, p. 293.
68
prévia, consistente em saber se seria preciso incluir no RRCEE um regime substantivo
de responsabilização do Estado nas suas várias funções por violação do Direito
Comunitário -, ou mesmo apenas uma mera referência a essa hipótese. É ainda de notar
que o TJCE, no acórdão de 14 de Outubro de 2004 citado, procedeu à condenação do
Estado português por manter em vigor uma disposição de aplicação geral que reduziria
o alcance de uma norma de direito comunitário, mas não apelou à tradução em
legislação nacional de um regime substantivo específico.
Ora, essa tem sido a postura do TJCE, muito bem expressa no Acórdão Traghetti
(130
). Neste aresto, o Tribunal do Luxemburgo, debruçando-se sobre uma norma de uma
lei italiana versando sobre a responsabilidade do juiz que circunscreve esta a atuações
com culpa grave, que define exaustivamente os casos de «culpa grave», obtemperou que
«(…) não se pode excluir que o direito nacional precise os critérios relativos à
natureza ou ao grau de uma infração, que devem estar preenchidos para que possa
existir responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário imputável a um
órgão jurisdicional nacional decidindo em última instância, mas esses critérios não
podem, em nenhum caso, impor exigências mais restritivas do que a decorrente da
condição de violação manifesta do direito aplicável (conforme estabelecido no Acórdão
Köbler]».
Neste sentido, tal como menciona Carla AMADO GOMES: «o TJCE não exige
que o legislador nacional estabeleça os pressupostos de efetivação da responsabilidade
do Estado por violação do Direito Comunitário – essa função é indeclinavelmente sua
(131
) -, nem tão-pouco se opõe a que o legislador nacional enquadre a matéria
identicamente nos casos de violação do direito nacional e comunitário (apelando ao
princípio da autonomia), desde que não reduza o âmbito de proteção da teoria por si
desenvolvida desde o Acórdão Francovich»( 132
). Tal como nos narra Carla AMADO
GOMES: «O que o TJ não admite é que o legislador nacional mantenha ou coloque em
(130) Assim, Acórdão de 13 de Junho de 2006, caso C-173/03, 44.º. (131) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: O Livro das Ilusões: A Responsabilidade do Estado por violação
do Direito Comunitário, apesar da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro in: «Separata Revista do CEJ», 1.º Semestre – n.º 11,
Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, Almedina – 2009, p. 294, nota 8: «O TJCE não deixa margem de dúvidas quanto a esta “reserva de jurisdição”. “Leia-se o considerando 25 do Acórdão Brasserie: “(…) importa sublinhar que a questão da
existência e do âmbito da responsabilidade de um Estado por danos decorrentes da violação das obrigações que lhe incumbem por
força do direito comunitário tem a ver com a interpretação do Tratado que, enquanto tal, é da competência do Tribuna de Justiça»., de Carla AMADO GOMES.
(132) Cfr. Carla AMADO GOMES, O Livro das Ilusões: A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar
da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro in: «Separata Revista do CEJ», 1.º Semestre – n.º 11, Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, Almedina – 2009, p. 294.
69
vigor disposições que reduzam ou anulem o princípio da responsabilização do Estado
por violação do Direito Comunitário quer sejam aplicáveis estritamente nesse âmbito,
quer tenham vocação de aplicação geral e não contemplem exclusões que garantam a
observância dos princípios desenvolvidos na sequência da jurisprudência Francovich»
( 133
).
Porém, tendo em linha de conta a pontual e errática referência que o RRCEE faz
ao Direito Comunitário (no n.º 1 do artigo 15.º, no plano da responsabilidade por facto
da função legislativa, mas apenas por ação e deixando na sombra a intervenção do
TJCE), questionamo-nos se o legislador português (nacional) não deveria ter-se limitado
a incluir no RRCEE um artigo que remetesse os termos da efetivação da
responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário para a jurisprudência
do TJCE, salvaguardando o caso da responsabilidade civil extracontratual da
Administração na condução de procedimentos pré-contratuais desta remissão geral e
vinculando-a ao regime da diretiva. De salientar que como acentua Carla AMADO
GOMES: «A norma poderia ainda aludir ao mecanismo adjectivo conducente a esta
efectivação, que deverá passar, em regra, pelo incidente de reenvio prejudicial,
atestando o controlo dos parâmetros da responsabilidade pelo TJ – salvo em situações
de jurisprudência constante relativamente à norma em questão, que dispensem nova
consulta, bem assim como nos casos em que a violação foi constatada por tribunal
superior, em sede de recurso» (134
) (135
).
Torna-se importante mencionar que sublinhando Carla AMADO GOMES: «o
legislador traçou um quadro ilusório, gerador de confusão nos aplicadores do Direito.
Não ignoramos que a técnica de acantonamento de um regime de responsabilidade civil
extracontratual do Estado por violação do Direito Comunitário numa norma que o
destaque do regime geral se presta ao questionamento da salvaguarda da igualdade
relativamente aos casos que envolvam apenas direito nacional. Mas esse, apesar de
sensível, constitui um problema meramente interno, que não compromete Portugal
perante a Comunidade e assegura o respeito do bloco de legalidade alargada que funda a
Comunidade de Direito» (136
) (137
).
(133) Cfr. Carla AMADO GOMES, O Livro das Ilusões: A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar
da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro in: «Separata Revista do CEJ», 1.º Semestre – n.º 11, Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, Almedina – 2009, p. 294.
(134) De mencionar que em sentido análogo, Maria José RANGEL DE MESQUITA, O regime de responsabilidade civil
extracontratual do Estado e demais entidades públicas e o Direito da União Europeia, Coimbra, 2009, p. 107 (com uma proposta de norma a inserir em futura alteração ao RRCEE).
(135) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos sobre Direito da Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades
Públicas, Lisboa, AAFDL, Publicação CarbonoZero, 2010, p. 191. (136) Cfr., os artigos 7.º n.º 6 e 8.º n.ºs 3 e 4 da CRP, e 10.º do Tratado de Roma.
70
Tal como nos narra Carla AMADO GOMES: «Sem embargo de estarmos a
começar pelas conclusões, pareceu-nos impossível progredir (ou regredir) no raciocínio
sem assinalar o mau ponto de partida que a técnica do RRCEE constitui em face do
problema que nos ocupa» (138
).
Relativamente aos critérios de efetivação da responsabilidade do Estado por
violação do Direito Comunitário à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, a
construção pretoriana do TJCE sobre a responsabilidade do Estado por violação do
Direito Comunitário despontou com a perceção de que a teoria do efeito direto e a
solução da interpretação do direito nacional conforme ao direito comunitário originário
ou derivado não chegavam por si só para conferir exequibilidade aos direitos dos
particulares. Com efeito, pode haver efeito direto da norma de direito comunitário sem
que haja condições de concretização prática e/ou jurídica dos direitos nela consagrados,
por inércia do legislador ou administrador nacional, podendo também acontecer que,
mau grado a norma revestir efeito directo, ao legislador caiba uma margem de discricio-
naridade que torne difícil ou não possível mesmo à Administração convertê-la em
direitos favoráveis aos destinatários. Porém, nos dizeres de Carla AMADO GOMES: «E
se a esta inoperatividade se aliar a impossibilidade de interpretação conforme – por pura
e simplesmente inexistir norma nacional da qual possa extrair-se essa normação
“corrigida” -, o particular vê os seus direitos reconhecidos de forma puramente
platónica» (139
). Ora, tal como lembra Carla AMADO GOMES: «Não podendo
consentir na neutralização do princípio da tutela jurisdicional efectiva, nem tão-pouco
na quebra do princípio da uniformidade do Direito Comunitário, o TJCE lançou as
bases de uma teoria da responsabilização dos Estados-membros pela inobservância da
legalidade comunitária, desígnio que considera “inerente ao sistema do Tratado» (140
).
O primeiro obstáculo foi colocado com o Acórdão Francovich . Neste caso, o
TJCE debruçou-se sobre a responsabilidade da função legislativa por omissão (não
transposição de uma diretiva), estabelecendo-se, no §40, os três requisitos que
posteriormente reiterou e depurou em arestos posteriores:
1. a norma comunitária consagra direitos a favor dos particulares;
2. o conteúdo de tais direitos resulta de uma noção vinculada para o legislador
nacional;
(137) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit.,pp.191-192.
(138) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 192.
(139) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Disperso…, cit., pp. 192 e 193. (140) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 193.
71
3. verifica-se (a existência de) um nexo de causalidade entre a omissão do
Estado e os danos sofridos pelos cidadãos destinatários da norma.
O TJCE adita, no §43, que as condições fixadas na legislação nacional em
matéria de reparação de danos não podem ser menos favoráveis do que as que dizem
respeito a reclamações similares de natureza interna (princípio da equivalência) –
fórmula semelhante à referenciada no (posterior) Acórdão Traghetti, supra mencionado
-, e não podem ser organizadas de forma a tornar praticamente impossível ou
excessivamente difícil a obtenção da reparação (princípio da efetividade).
Para sermos mais precisos, impõe-se trazer aqui o texto de Carla AMADO
GOMES: «Dois anos depois, nova pronúncia no Acórdão Brasserie du Pêcheur. Mais
uma vez, um caso de responsabilidade por facto da função legislativa, mas no qual o
TJCE considerou relevante destrinçar entre o grau de vinculação a que o legislador
nacional se encontra vinculado ou, dito de outra forma, os critérios de aferição da
clareza e inteligibilidade das posições jurídicas acolhidas pela norma comunitária. Daí
que, no §57, se tenha espraiado em precisões sobre o segundo pressuposto de
responsabilização traduzido na fórmula “ violação suficientemente caracterizada” (141
)
ou “violação manifesta e grave” dos limites do poder de livre conformação do Estado»
(142
):
«A este respeito, entre os elementos que o órgão jurisdicional competente pode
ser levado a considerar, importa sublinhar o grau de clareza e de precisão da regra
violada, o âmbito da margem de apreciação que a regra violada deixa às autoridades
nacionais ou comunitárias, a carácter intencional ou involuntário do incumprimento
verificado ou do prejuízo causado, o carácter desculpável ou não de um eventual erro
de direito, o facto de as atitudes adoptadas por uma instituição comunitária terem
podido contribuir para a omissão, a adopção ou a manutenção de medidas ou práticas
nacionais contrárias ao direito comunitário.
De qualquer modo, encontramo-nos perante uma violação do direito
comunitário suficientemente caracterizada quando esta perdurou, apesar de ter sido
proferido um acórdão em que se reconhecia o incumprimento imputado ou um acórdão
num reenvio prejudicial, ou apesar de existir uma jurisprudência bem assente do
Tribunal de Justiça na matéria, dos quais resulte o carácter ilícito do incumprimento
em causa».
(141) De referir que a noção de «violação caracterizada» já vinha de longe. Ver o §8 do Acórdão Loheac, de 31 de Março de 1977,
casos 54 a 60-76. (142) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 194.
72
Em tal decisão, o TJCE preocupa-se em afirmar expressamente a
descorrespondência entre a violação do Direito Comunitário e a culpa, «conceito que
não é idêntico nos diferentes sistemas jurídicos» (§75). Contudo, lembrando Carla
AMADO GOMES: «se no contexto da função legislativa a averiguação da culpa pode
revelar-se problemática, devendo aproximar-se de um conceito de ilicitude objectiva,
nas restantes funções, a pessoalização do desempenho permite identificar o agente da
errada interpretação ou aplicação da norma comunitária gerador do dano. Assim se
explica a enunciação de critérios de aferição da diligência devida dos órgãos nacionais,
que traduzem um desígnio de harmonização de pressupostos de responsabilização
formalmente desligado de conceitos de significação múltipla e por vezes controversa
nos vários ordenamentos nacionais» (143
).
Ora, tal posicionamento não significa, no nosso entendimento, que o TJCE
avance para um regime de responsabilização objetiva dos Estados em todas as suas
funções. No caso British Telecommunications, tendo o TJCE exonerado o Reino Unido
de responsabilidade por facto da função legislativa por considerar ter havido boa-fé na
transposição de uma diretiva não especialmente clara (§43) (144
), é um exemplo.
Ao longo da década de 1990, o TJCE foi reiterando estes pressupostos e
aditando detalhes. Assim sendo, iremos referir dois exemplos:
1. no Acórdão Konle (145
), o TJCE frisou que um Estado-membro não pode
invocar a repartição das competências e responsabilidades entre as coletividades
que existem na sua ordem jurídica interna para se eximir ao cumprimento das
obrigações que decorrem do Direito Comunitário ( §62);
2. no Acórdão Haim (146
), a Alta Instância comunitária clarificou que os três
requisitos avançados no Acórdão Francovich e lapidados no Acórdão Brasserie
du Pêcheur são exigíveis tanto no caso de os prejuízos cuja reparação é exigida
resultarem de uma omissão do Estado – não transposição de diretiva -, como no
de adoção de ato legislativo ou administrativo que atente contra o direito
comunitário (§37), sendo certo que a sua apreciação é sempre casuística.
(143) Cfr. Carla AMADO GOMES, O Livro das Ilusões: A Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar
da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro in: «Separata Revista do CEJ», 1.º Semestre – n.º 11, Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, Almedina – 2009, pp. 297-298.
(144) Assim, Acórdão de 26 de Março de 1996, caso C-392/93.
(145) Assim, Acórdão de 1 de Junho de 1999, caso C-302/97. (146) Assim, Acórdão de 4 de Julho de 2000, caso C-424/97.
73
Como salienta Carla AMADO GOMES: «Esta jurisprudência tem aplicação directa
à função legislativa, mas a vinculação da Administração ao Direito Comunitário, que o
TJCE afirmou expressamente em 1989, no Acórdão Fratelli Costanzo (147
), torna-a
extensível também à função executiva» (148
).
No entanto, tal como refere Carla AMADO GOMES: «em 2003, o TJCE
clarificou que a teoria da responsabilização do Estado por violação do Direito
Comunitário se estende à função jurisdicional» (149
). Tal proeza, fê-lo no Acórdão
Köbler (150
), num caso em que aparentemente uma decisão do Verwaltungsgerichtshof
austríaco ignorou de forma manifesta um entendimento expresso do TJCE face a
determinada norma (acerca da natureza de um subsídio atribuído a professores
universitários), ao ter retirado um pedido de reenvio prejudicial quando a jurisprudência
comunitária ainda não era totalmente esclarecedora relativamente ao sentido da norma
e, perante a dúvida, ter feito uma interpretação errónea da mesma.
Porém, o Tribunal do Luxemburgo concluiu (contra a opinião manifestada pelo
Advogado-Geral) que não existiu neste caso violação manifesta, dado que a resposta
não era evidente. Outros fatores de retracção poderão ter sido o aparente ataque ao
princípio do caso julgado, que se mantém nestes casos intocado, e ainda a importância
do princípio da independência e da correlativa irresponsabilidade do juiz (julgador).
É conveniente mencionar, ainda, que três anos mais tarde, no já referido
Acórdão Traghetti, o TJCE agiu de forma mais coerente com a possibilidade avançada
no Acórdão Köbler e determinou a responsabilidade do juiz italiano que fez errada
interpretação do Direito Comunitário e ignorou a obrigação de reenvio. Como sublinha
Carla AMADO GOMES: «O TJCE, consultado em sede de reenvio prejudicial
provocado pelo Tribunale di Genova junto do qual foi apresentada a acção de
responsabilidade, frisou que a responsabilidade do juiz deve considerar-se excepcional,
dependendo de uma violação manifesta do Direito Comunitário, a cuja caracterização se
chega apelando» (151
):
« (…) a um conjunto de critérios, tais como o grau de clareza e de precisão da
regra violada, o carácter intencional da violação, o carácter desculpável ou não do
erro de direito ou o não cumprimento, pelo órgão jurisdicional em causa, da sua
(147) Assim, Acórdão de 22 de Junho de 1989, caso 103/88. (148) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p.197.
(149) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 198.
(150) Acórdão de 30 de Setembro de 2003, caso C-224/01. (151) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., pp. 199-200.
74
obrigação de reenvio prejudicial por força do artigo 234, terceiro parágrafo, CE, e
presume-se, em qualquer caso, quando a decisão em causa for tomada violando
manifestamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria» (§43).
Para sermos mais precisos, impõe-se trazer aqui o texto de Carla AMADO
GOMES: «Neste aresto discutiu-se ainda, como se observou acima, a possibilidade de o
Estado-membro delimitar os pressupostos de responsabilização do julgador. O TJCE
aceita que essa limitação possa acontecer – sobretudo tendo em consideração a
sensibilidade da função em causa -, mas nunca através de “exigências mais restritivas do
que a decorrente da condição de violação manifesta do direito aplicável” (§44), fórmula
aberta que permite acolher um conjunto muito lato de hipóteses» (152
).
Sumariamente, importa fazer uma breve referência relativamente à
responsabilidade por facto da função administrativa e a sua vis atrativa.
Neste contexto, importa referir que renomeando Carla AMADO GOMES: «O
Acórdão Fratelli Costanzo, ao afirmar a vinculação de todas as funções do Estado ao
dever de lealdade comunitária, aponta para um quadro de predominância da
responsabilização da função administrativa face à legislativa e jurisdicional» (153
). No
§31 desta decisão, pode ler-se, com muita clareza:
«Seria por outro lado contraditório entender que os particulares têm o direito
de invocar perante os tribunais nacionais, as disposições de uma directiva que
preencham as condições acima referidas, com o objectivo de fazer condenar a
administração, e, no entanto, entender que esta não tem o dever de aplicar aquelas
disposições afastando as de direito nacional que as contrariem. Daqui resulta que,
preenchidas as condições exigidas pela jurisprudência do tribunal, para as normas de
uma directiva poderem ser invocadas pelos particulares perante os tribunais nacionais,
todos os órgãos da administração, incluindo as entidades descentralizadas, tais como
as comunas, têm o dever de aplicar aquelas disposições».
Como exprime Carla AMADO GOMES: «Ora, se a Administração estadual é
uma função de implementação do Direito Comunitário, essa vertente de concretização
(152) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 200. (153) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 200.
75
do ordenamento eurocomunitário pode ver-se diminuída ou inviabilizada em três tipos
de situações:
1. no caso de normas com aplicabilidade directa e com efeito directo, a sua
desaplicação em detrimento de norma nacional; a sua incorrecta aplicação
(diminuindo o índice de protecção); ou ainda a sua não regulamentação (por via
administrativa) ou regulamentação incorrecta (por, apesar da aplicabilidade
directa da norma, aquela não ser imediata);
2. no caso de normas sem aplicabilidade directa e com efeito directo, a sua não
aplicação uma vez expirado o prazo de transposição, contra ou em vez de norma
nacional; a sua interpretação errada (e subsequente aplicação deficiente); a não
interpretação de norma nacional conforme a norma eurocomunitária (sendo
possível) (154
);
3. e no caso de actos administrativos, a emissão de decisões individuais e concretas
que afrontem o efeito atributivo de posições jurídicas de vantagem aos
particulares pelas normas comunitárias» (155
).
Ora, em tais situações, pelos cânones do TJCE, a responsabilidade será da
Administração – pelos menos primária. Como recorda Carla AMADO GOMES: «O que
deixa para a esfera da responsabilidade do legislador e do juiz um conjunto
relativamente reduzido de casos, a saber (e sem pretensões de exaustividade):
1. por um lado, no que tange ao legislador, as situações de normas legislativas
imediatamente exequíveis que transpõem normas comunitárias; os casos de
normas com efeito directo mas conferindo larga margem de concretização ao
legislador, não permitindo à Administração substituir-lhe na aplicação imediata
(hipótese não despicienda mas progressivamente menos provável, em razão da
precisão crescente das directivas); e ainda, dubitativamente, as situações em que
o legislador transpõe ou regulamenta incorrectamente (quando esta última
competência lhe compete);
2. por outro lado, no que concerne ao juiz, as hipóteses de erro judiciário puro:
errada interpretação da norma comunitária pelo julgador, contra jurisprudência
(154) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: Textos Dispersos…, cit., p. 201, nota 28: «Sobre o dever de interpretação conforme por parte das autoridades administrativas, ver o Acórdão Von Colson, de 10 de Abril de 1984, caso 14/83,
§26», de Carla AMADO GOMES.
(155) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., pp. 201-202.
76
constante do TJCE, ou prescindindo da obrigação de reenvio em casos de dúvida
sobre o sentido da norma» (156
).
Tal como destaca Carla AMADO GOMES: «Repare-se que, no terceiro
subgrupo do primeiro grupo de casos, é ainda questionável se a Administração não tem
a obrigação de emendar a mão do legislador, aplicando a norma comunitária em
detrimento de norma nacional, ou refazendo a regulamentação. Esta interrogação é
legítima e demonstra bem a dualidade de perspectivas que a questão envolve. É que, se
do ponto de vista do TJCE, o que prevalece é a obrigação de cumprimento do dever de
uniformidade de aplicação e da optimização da tutela efectiva, já do ponto de vista do
ordenamento nacional, o princípio da separação de poderes pode opor-se frontalmente a
este tipo de substituição – bem assim como, aliás, à aplicação da norma comunitária na
ausência de norma nacional» (157
).
Ora, a dúvida que surge é a de saber se a Administração está em condições de
levar por diante tais operações de reconstrução ou tão-somente de desaplicação da
norma nacional, em nome da primazia da norma comunitária, sendo que, em última
análise, a nossa resposta é negativa, com a exceção de se a interpretação da norma
comunitária estiver sedimentada em jurisprudência do TJCE, possibilidade na qual, à
analogia do que ficou afirmado no Acórdão Traghetti a propósito da responsabilidade
do juiz, se presume a responsabilidade da Administração. No entanto, mesmo aqui não
descartando um pedido subsidiário ao Estado legislador, pois os deveres de
transposição, de transposição correta e suficiente, de regulamentação, cabem a este. Ora,
o facto de a causalidade se “interromper” por força da responsabilização primária da
função executiva não deve, pois, invalidar, a nosso ver, a perseguição do Estado
legislador, a título subsidiário. De notar que o TJCE admite que a responsabilidade do
julgador é excecional que apenas uma violação manifesta – um erro clamoroso – do
direito comunitário a despoleta, isto é, uma falha evidente de interpretação da norma ou
uma ignorância olímpica da obrigação de reenvio.
Tal como enaltece Carla AMADO GOMES: «Será de crer que relativamente a
órgãos titulados por profissionais qualificados – os juízes -, o TJCE exija uma violação
manifesta, mas impute a violação à Administração com base numa falha desculpável do
titular do órgão administrativo, muitas vezes não jurista e alheio à complexidade do
(156) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., pp. 202-203.
(157) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 203.
77
Direito Comunitário? A isto acresce a “reserva de juiz” que pode entender-se decorrer
do artigo 234 do Tratado de Roma, com a entrega do mecanismo do reenvio aos
tribunais nacionais, obrigatório para os tribunais superiores (mas sem mecanismo
directo de efectivação do cumprimento da obrigação). Não estando a Administração
habilitada a reenviar questões interpretativas para o TJCE, fará sentido falar de uma
responsabilidade da função administrativa por desaplicação ou deficiente aplicação de
normas comunitárias?
Julgamos que a questão, assim vista, está desfocada e que a razão porque o
Tribunal do Luxemburgo exige a violação manifesta por parte do julgador se prende
com a reverência face ao poder jurisdicional e com a necessidade de salvaguardar a
credibilidade da função, imunizando relativamente o juiz. O TJCE não abdicará da
responsabilização da Administração como posição de princípio – sem embargo de a
perspectivar de forma despessoalizada, ou seja, num plano puramente funcional. Isso
não implica que, no plano interno, questões como as que identificámos, nas quais a
causalidade função legislativa/lesão do particular se quebra por interposição forçosa da
Administração nacional vinculada à legalidade comunitária, não acabem por reverter em
pedidos de responsabilização do legislador. Sublinhe-se que, uma vez questionado pelo
tribunal competente para julgar a acção de responsabilidade, o TJCE se limitará a apurar
os pressupostos da responsabilidade à luz do Direito Comunitário, concluindo
eventualmente pela responsabilização da Administração. No entanto, e conforme
sucedeu no caso Brinkmann, pode identicamente concluir que a complexidade da
questão exigia a intervenção do legislador a título primário – o que obrigará a um
redireccionar do pedido indemnizatório. Ou pode chegar à conclusão de que a
responsabilidade cabe efectivamente à função administrativa, devendo o juiz nacional
dar execução a esta avaliação, condenando a pessoa colectiva a cujos órgãos se possa
imputar a prática do acto» (158
).
No entanto, importa e muito fazermos a seguinte pergunta: será realmente
importante determinar qual a função do Estado que responde perante o particular? Ora,
e para respondermos acertadamente à respetiva questão, mais uma vez, dependerá, à
primeira vista, da perspetiva que venha a adotar. Assim, de um prisma estritamente
comunitário, formando a teoria da responsabilidade do Estado por violação do Direito
Comunitário um corpo único de requisitos, o apuramento da função concreta não é
relevante: é sempre o Estado a dar a cara, independentemente das vestes em que ache,
(158) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., pp. 204-205.
78
sendo exemplo disto o caso Dillenkoffer – Acórdão de 17 de Abril de 2007, caso C-
470/03, §99, – A.G.M.-COS.MET Srl -, no qual o TJCE, confrontado com um caso de
responsabilidade funcional de um agente do Estado da Finlândia obtemperou que «in
the event of a breach of Community Law, Community Law does not preclude an oficial
from being held liable in addition to the Member State, but does not require it». Por
outras palavras, o Tribunal é alheio ao modelo de responsabilização dos entes públicos
existente, desde que este promova a tutela plena de cariz ressarcitório perante o lesado
em condições semelhantes (ou, então, nunca menos favoráveis) às que o ordenamento
nacional prevê. Como torna claro Carla AMADO GOMES: «Em contrapartida, de um
prisma nacional, e contextualizando agora o problema no quadro do RRCEE, a
determinação da função poderá fazer toda a diferença, não só quanto à imputação, como
relativamente ao quantum indemnizatório. Basta ter presente normas como o artigo
13.º/1, que exige uma decisão “manifestamente inconstitucional ou ilegal”; ou o artigo
15.º/1, que circunscreve os danos indemnizáveis por facto da função legislativa aos
danos “anormais”; ou ainda o n.º 5 do mesmo preceito, que omite a referência à omissão
de medidas de transposição/execução de normas comunitárias… Ou seja,
aparentemente, a função administrativa é aquela que permite uma mais fácil e plena
responsabilização» (159
).
Veremos as respostas do RRCEE.
Importa, de forma muito breve, fazer uma alusão quanto à efetivação da
responsabilidade por violação do Direito Comunitário, apesar da Lei n.º 67/2007, de 31
de Dezembro.
De mencionar que convém darmos uma resposta válida à questão prévia que se
enunciou sobre a necessidade ou desnecessidade de o RRCEE fazer menção ao Direito
Comunitário. Assim, repete-se a afirmação de que, em vez das referências erráticas que
o RRCEE incorpora, melhor seria ter consagrado um artigo ao problema, remetendo
para os critérios do TJCE o apuramento da responsabilidade e estabelecendo um
mecanismo processual de controlo. Porém, não tendo atuado de tal maneira, a leitura do
mencionado diploma legal permite duvidar se:
1. existe responsabilidade da Administração por violação do Direito
Comunitário, por ação e por omissão;
(159) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 205.
79
2. existe responsabilidade do Juiz (Julgador) por violação do Direito
Comunitário, em razão de débil interpretação ou ignorância da obrigação de
reenvio;
3. existe responsabilidade do Legislador por violação do Direito Comunitário,
por omissão – e nos casos de violação por ação, como se efetiva e se articula
com o limite do dano anormal.
Como sublinha Carla AMADO GOMES: «Julgamos que estas dúvidas devem
resolver-se no sentido de viabilizar a efectivação da responsabilidade do Estado em
qualquer das suas três por violação do Direito Comunitário apesar da confusão
introduzida pelos excessos e defeitos do texto legal. A vinculação de Portugal ao bloco
de legalidade alargada que constitui o ordenamento comunitário (artigos 7.º/6 e 8.º/3 e 4
da CRP; 10 do Tratado de Roma) conduz o intérprete/aplicador do RRCEE a fazer uma
interpretação correctiva (ou abrogante?) deste, deferindo aos tribunais administrativos
de círculo – os competentes para julgar todas as acções de responsabilidade [artigo
4.º/1/g) e (salvo) 3/a) do ETAF] – os critérios de efectivação da responsabilidade, em
articulação com o TJCE. Sublinhe-se que estes critérios são independentes daqueles que
os tribunais utilizam no julgamento de acções de responsabilidade por violação de
Direito interno (ou de regras técnicas), preferindo-lhes sempre que se trate de questões
que envolvam incumprimento de obrigações comunitárias» (160
).
Como relata Carla AMADO GOMES: «Esta opção vai ao encontro – ou não
entra em colisão com – dos princípios da equivalência e da efectividade, fixados pelo
TJCE no Acórdão Francovich. Com efeito, a remeter assim as referências contidas no
RRCEE ao Direito Comunitário para um plano ilusório, as condições (estabelecidas na
legislação nacional em matéria de reparação de danos) não se revelam menos favoráveis
do que as que dizem respeito a reclamações semelhantes de natureza interna, e não são
organizadas de forma a tornar praticamente impossível ou excessivamente difícil a
obtenção da reparação… porque na realidade, não ganhando qualquer consistência, é
como se não existissem» (161
). No entanto, a melhor solução seria que o legislador
tivesse separado as coisas e incluído uma disposição exclusivamente dedicada ao
Direito Europeu. Contudo, na falta de tal disposição e sob pena de inviabilizar quase por
completo a responsabilização do Estado naquele plano, com prejuízo para a tutela
(160) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 206. (161) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 207.
80
efetiva e para a posição do Estado português perante a Comunidade, melhor será que se
deixe de mediatizar os princípios de responsabilização do diploma interno e se filie
diretamente os mesmos nos princípios da lealdade e da tutela efetiva. Destarte, não
ignoramos que tal proposta de leitura poderá não ser convincente para o TJCE se
confrontado com o quadro formal do RRCEE, uma vez que a falta de clarividência deste
diploma legal é suscetível de comprometer, pelo menos, o princípio da efetividade.
Tendo em linha de conta o texto supra mencionado, cabe-nos agora colocar três
relevantes questões. Assim:
1. no plano da responsabilidade por facto da função administrativa, a quem
compete responder em caso de dolo/falta grave?
A resposta a esta pergunta assenta decisivamente na circunscrição dos critérios
de aferição da responsabilidade à jurisprudência do TJCE e ao facto do TJCE remeter,
isto, em regra (dado que, por vezes, o TJCE, em processos de reenvio, se considera
competente, pelo simples facto de ser detentor de todos os elementos essenciais à
imputação, ou não, para afirmar a responsabilidade Estadual) (162
), a apropriação dos
factos pela pauta de responsabilidade por si gizada para o tribunal nacional (163
). Ora,
como adverte Carla AMADO GOMES: «Por outras palavras, apelando exclusivamente
aos critérios do TJCE, o tribunal nacional apura (ou limita-se a declarar) se há ou não
responsabilidade – sempre imputável à pessoa colectiva, mesmo havendo dolo ou culpa
do funcionário, uma vez que, para a justiça comunitária, o problema do regresso não
releva. “Falta”, “violação manifesta”, “violação suficientemente caracterizada”, são
noções de imputação objectiva, à pessoa colectiva da qual provém a actuação lesiva. Se
houve culpa do funcionário, isso é um aspecto que concerne às relações interorgânicas,
alheio aos intuitos de efectivação da tutela efectiva e de salvaguarda (indirecta) do
princípio da uniformidade por parte do TJCE» (164
).
Para sermos mais precisos, impõe-se trazer aqui o texto de Carla AMADO
GOMES: «Claro que, se na acção de responsabilidade apreciada pelo tribunal
administrativo, a pessoa colectiva é a única ré demandada, e não chama à demanda o
funcionário, a condenação basear-se-á em falta leve (sob pena de violação dos
princípios do contraditório e da tutela efectiva do funcionário eventualmente
responsabilizável mas não presente em juízo) e não haverá qualquer hipótese de
exercício do direito de regresso. Já se há litisconsórcio passivo, e se o juiz nacional
(162) Assim, o caso British Telecommunications, cit., §42.
(163) Assim, ver o §45 do Acórdão Francovich. (164) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 208.
81
apurar que além de haver falta, ela foi grave, então o regresso deverá acontecer, em
acção posterior. Finalmente, se só o funcionário estiver em juízo – hipótese pouco
credível em acções deste tipo -, problemático poderá ser se o TJ entende haver falta da
Administração, mas o tribunal nacional a considerar leve, ficando o réu isento de
responsabilidades. O particular terá que propor nova acção contra a pessoa colectiva e
invocar a jurisprudência comunitária para obter ressarcimento do dano sofrido» (165
).
Em qualquer caso, o dano será sempre indemnizável pela integralidade,
conforme o Tribunal teve chance de afirmar no Acórdão Brasserie du Pêcheur (§90),
não se traduzindo automaticamente a condenação em compensação pecuniária. Com
efeito, o artigo 3.º/2 do RRCEE (e o artigo 566.º/1 do CC) aponta para essa hipótese. Na
certeza, contudo, de que, a não ser física ou juridicamente possível a reconstrução
retroactiva da posição jurídica do lesado, em virtude de invocação de causa legítima de
inexecução pela Administração, a indemnização deverá cobrir a totalidade dos danos
sofridos, sob pena de restrição sem qualquer tolerância do direito à indemnização,
vedada pelo Acórdão Francovich (§43).
2. no plano da responsabilidade por facto da função jurisdicional, como
articular a «prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição
competente», exigida pelo artigo 13.º/2 do RRCEE, com o imperativo de
responsabilização estabelecido pelo TJCE ?
Respondendo a esta pergunta, pode começar-se por duvidar da exigência da
«prévia revogação da decisão danosa», no controlo do Direito Comunitário. Nos termos
de Carla AMADO GOMES: «Na verdade, tal faz sentido para as situações em que a
errada interpretação da norma comunitária é feita pelo tribunal de comarca ou mesmo
de segunda instância e há revogação da decisão por tribunal superior, repondo a
conformidade com a legalidade comunitária. Todavia, quando a falha é perpetrada por
tribunal superior, ou não é emendada por este, o pressuposto da prévia revogação deve
ceder perante a necessidade de apurar responsabilidade da função jurisdicional à luz dos
princípios do Direito Comunitário (eventualmente a acrescer à administrativa, derivada
de não aplicação ou errada interpretação da norma comunitária – situação que deu
origem ao litígio)» (166
). Importa salientar que o TJCE é alheio quanto ao problema da
subsistência da decisão lesiva, desde logo por motivos que se prendem com o respeito
(165) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 208. (166) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 209.
82
pela autonomia processual dos Estados-membros (que deverão consagrar mecanismos
permissivos para a revisão da decisão sem afetação do princípio do caso julgado). Ora,
no limite poder-se-á conceber a existência de uma ação de condenação por facto da
função jurisdicional apesar da subsistência do caso julgado se raciocinarmos somente na
vertente compensatória, e não primariamente reconstitutiva, da indemnização visada.
Assim, como afirma Carla AMADO GOMES: «Permanecendo no ordenamento
a decisão lesiva, natural será que o tribunal administrativo junto do qual é proposta a
acção questione o TJCE em reenvio prejudicial – por se tratar da avaliação da conduta
de um tribunal superior e pretender obter um respaldo para a sua decisão na acção de
responsabilidade. Uma vez confirmada a violação manifesta do Direito Comunitário
pelo Tribunal do Luxemburgo, o tribunal nacional terá carta branca para condenar o
Estado, podendo eventualmente “adjectivar” a falta cometida pelo julgador – facto que
relevará não só para ajustar o montante indemnizatório, mas também para futuro
exercício do regresso contra o magistrado (cfr. o artigo 14.º/1 do RRCEE)» (167
).
Isto é:
1. por um lado, existirão casos em que o tribunal de comarca, mesmo que
chamado à atenção pela parte para a necessidade de interpretação em
conformidade com o Direito Comunitário ou mesmo para a invalidade da
norma eurocomunitária, não procede ao reenvio para o TJCE, não sendo,
porém, a tal obrigado pelo artigo 234 do Tratado de Roma. Ora, importa
frisar que o tribunal superior, contudo, corrige a solução da forma que
passaremos a expor. Assim, o tribunal superior ou procede ao reenvio ou
dispensa-o, quer recorrendo a jurisprudência constante do TJ, quer valendo-
se dos seus próprios recursos hermenêuticos. Desta forma, os danos causados
ao particular pela decisão de 1.ª instância poderão ser invocados em ação de
responsabilidade intentada junto dos tribunais administrativos;
2. por outro lado, emergirão casos de repetida incorreta interpretação de normas
de Direito Comunitário, ou de aplicação de Direito interno desconformes
com este que, ou por as decisões não serem passíveis de recurso, ou por os
tribunais superiores não procederem ao reenvio nem corrigirem, por si sós, a
solução, ficariam impunes à luz da exigência da prévia revogação. Porém,
competirá aos tribunais administrativos onde for interposta a ação proceder à
avaliação da falta, de forma tendencial com a intervenção do TJCE, ademais
(167) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 210.
83
se estiverem em causa falhas imputadas a tribunais superiores, aplicando os
critérios da jurisprudência Francovich e Brasserie du Pêcheur, direcionados
,de modo muito específico, para a função jurisdicional nos Acórdãos
Traghetti e Köbler.
Nas palavras de Carla AMADO GOMES: «Uma hipótese em que a
intervenção do TJCE no seio da acção indemnizatória é inquestionavelmente
dispensável verifica-se quando pré-existe uma condenação do Estado pelo
TJCE em sede de acção por incumprimento desencadeada a propósito do
caso sub judice, ou de vários processos envolvendo a mesma norma
comunitária. O acórdão que atesta o incumprimento deverá equiparar-se à
revogação da decisão danosa para efeitos de propositura de acção de
responsabilidade – embora, em bom rigor, a decisão jurisdicional interna se
mantenha intocada, quer em homenagem ao princípio da intangibilidade do
caso julgado, quer em virtude da especificidade do objecto da acção por
incumprimento» (168
).
Neste domínio, há uma cedência das considerações que expendemos acerca
da reconstituição da situação atual hipotética como finalidade primordial das
ações de efetivação da responsabilidade perante o princípio da
intangibilidade do caso julgado. Ora, como salienta Carla AMADO
GOMES: «No que tange as acções de responsabilidade por facto da função
jurisdicional e perante a subsistência da decisão lesiva (em casos de
inadmissibilidade, pelo ordenamento, da sua revisão), apenas é possível
exigir reparação pecuniária do prejuízo sofrido» (169
).
3. no plano da responsabilidade por facto da função legislativa, está a omissão
de medidas legislativas de concretização do Direito Comunitário coberta
pelo artigo 15.º? Como opera (de resto, a resposta valerá também para a
violação por ação)? Restringe-se aos danos anormais ou abarca qualquer
dano?
Respondendo a esta questão, é de realçar a complexidade de aplicação do artigo
15.º do RRCEE às ações e omissões legislativas em violação do Direito Comunitário.
Assim, nas expressões de Carla AMADO GOMES: «De facto, embora o legislador
(168) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 211. (169) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 211.
84
tenha inserido a referência à responsabilidade do Estado por emissão de diplomas em
desconformidade com o Direito Comunitário (originário e derivado) no n.º 1 do artigo
15.º, a conjugação com o n.º 2 reduz o padrão de desconformidade às normas do
Tratado de Roma e Tratados de revisão deste (“convenção internacional”) – deixando de
fora uma miríade de actos, nomeadamente regulamentos e directivas (porventura por
pretender preservar a articulação entre esta norma e o artigo 70.º/1/i) da Lei Orgânica do
Tribunal Constitucional)..» (170
).
Como reforça Carla AMADO GOMES: «As dificuldades não terminam, todavia,
aqui – dir-se-á que apenas começam…: ao suscitar a intervenção do Tribunal
Constitucional, o RRCEE parece pressupor que a Alta Instância de controlo da
constitucionalidade aceita formular um juízo de conformidade ou desconformidade do
direito interno com o Direito Comunitário – o que, claramente, não acontece» (171
).
De mencionar que ou o tribunal administrativo requer a pronúncia do TC – caso
a violação do Direito Comunitário seja compreendida também como uma transgressão
da Lei Básica, que consumirá a primeira, caso se prove, e isso bastará; - sendo de
revelar a nossa hesitação neste aspecto, dado que a consumpção poderá acarretar a
aplicação exaustiva dos critérios nacionais, mais restritivos do que os comunitários,
passando a solução por utilizar a bitola comunitária, mesmo sem consulta do TJCE -,
(que deverá redundar num reenvio prejudicial, se não existir violação de norma ou
princípio constitucional); ou como alerta Carla AMADO GOMES: «o tribunal
administrativo, perante uma violação estrita do Direito Comunitário, procede ao reenvio
ou constata por si mesmo existir violação do Direito Comunitário, e julga a acção de
responsabilidade (sendo certo que pode não reenviar por não se considerar a tanto
obrigado (172
); mas se a recusa de reenvio pelo Tribunal Central Administrativo, em
recurso, redundar em diminuição das garantias do particular, surgirá nova fonte de
responsabilização do Estado)» (173
).
Porém, é de salientar que todas as omissões do Estado em face de obrigações de
legislar impostas pelos compromissos comunitários – maxime, de transposição,
completa e atempada, de diretivas – são olimpicamente ignoradas pelo RRCEE. Assim,
dir-se-ia que aí o caso é mais grave, porque o legislador nem sequer alude ao problema
(170) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 211.
(171) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 212. (172) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: Textos Dispersos…, cit., p. 212, nota 41: «Deverá ter-se em
consideração a alçada do tribunal administrativo de círculo para aferir da obrigação a que alude o artigo 234 do Tratado de Roma»,
de Carla AMADO GOMES. (173) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., p. 212.
85
da inexecução de tarefas legislativas impostas pelo Direito Comunitário, remetendo-se
às omissões inconstitucionais de forma restrita decorrente do artigo 283.º da nossa Lei
Fundamental.
Em tal domínio, e considerando o RRCEE como um livro das ilusões, julgamos
que o legislador até andou melhor ao não se ter pronunciado, pois tal silêncio deixa
caminho aberto à aplicação da jurisprudência do TJCE. Esta aplicação da jurisprudência
do TJCE nem sequer exige a condenação do Estado em ação por não cumprimento
como condição de efetivação da responsabilidade por omissão legislativa, bastando-se,
por um lado, com a constatação da impossibilidade, quer de aplicar imediatamente as
normas eurocomunitárias, quer de proceder à realização da interpretação conforme da
norma nacional e, por outro lado e de modo subsequente, com a verificação dos critérios
estabelecidos nos Acórdãos Brasserie du Pêcheur e Francovich (já anteriormente
mencionados).
Desta forma, importa referir que, tal como diz Carla AMADO GOMES: «O
sucesso da acção administrativa comum de efectivação de responsabilidade do Estado
por omissão de medidas legislativas que obstem à plena e uniforme aplicação do Direito
Comunitário dependerá, desta feita, da invocação de uma pronúncia do TJCE no sentido
da inoperacionalidade da norma comunitária em causa, não necessariamente num
processo em que o autor tenha intervindo. Esta pronúncia tanto pode traduzir-se num
acórdão condenatório em acção por incumprimento relativa a omissão de medidas
legislativas quanto à norma comunitária em causa, como num acórdão em sede de
reenvio prejudicial interpretativo efectuado por um tribunal português, a propósito da
mesma norma, constatando a omissão legislativa» (174
).
Porém, no que respeita à limitação fixada pelo RRCEE relativamente aos danos
anormais, mais uma vez terá de se proceder a uma operação de «preferência aplicativa»
da jurisprudência do TJCE, que propugna, a priori, a indemnização da totalidade dos
danos, independentemente da sua natureza ou do número de sujeitos envolvidos.
Contudo, se tal afirmação é válida teoricamente, o TJCE entreabre uma possibilidade de
imposição de limites aos montantes indemnizatórios «em razão de importantes
consequências financeiras desvantajosas para os Estados-membros» (§91.º do Acórdão
Brasserie du Pêcheur) (175
).
(174) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., pp. 213-214.
(175) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: Textos Dispersos…, cit., p. 214, nota 44: «Ressalva que Carlos
FERNANDES CADILHA considera neutralizar a contrariedade que poderia existir entre o pressuposto de dano anormal fixado pelo RRCEE e a jurisprudência comunitária» (Regime da Responsabilidade Civil…, cit., p. 268). «Em contrapartida, Maria José
86
Todavia, certo parece ser, em qualquer dos tipos de responsabilidade, o aumento
de reenvios prejudiciais para o TJCE pelos tribunais administrativos de círculo. De
mencionar que é manifesto o embaraço de um julgador de primeira instância em face da
alegação de uma falha – manifesta – de interpretação ou aplicação do direito
comunitário por qualquer órgão do Estado, maxime se legislador ou julgador. Tal como
nos explicita Carla AMADO GOMES: «Na ausência de atribuição a uma jurisdição
superior e eventualmente em secção especializada da apreciação destes pedidos, o
acréscimo de reenvios interpretativos surge como consequência natural e mesmo
recomendável, sob pena de os tribunais superiores, enveredando por atitudes de
sobranceria face ao TJCE, persistentemente inviabilizarem as pretensões
indemnizatórias em via de recurso. Correlativamente, a arquitectura do próprio
contencioso comunitário terá, mais tarde ou mais cedo, de responder eficazmente a este
aumento, redistribuindo a competência de apreciação de pedidos de reenvio prejudicial
entre o TJCE e o Tribunal de Primeira Instância – como, de resto, o artigo 225/3 do
Tratado de Roma admite (mas o Estatuto do TJ, por ausência de vontade política dos
Estados, ainda não concretizou)» (176
). Ora, torna-se relevante atentarmos nos artigos
35.º do TUE (reservando para o TJCE a competência apreciativa de questões
prejudiciais em sede de cooperação em matéria de assuntos internos), e torna-se,
também importante atentarmos nos artigos 23.º e 23.º-A do Estatuto do TJ, quanto às
regras processuais.
2. Classificações da responsabilidade civil administrativa
Para começar importa referir que se vai tratar o tema da responsabilidade civil
administrativa.
De tal forma atenderemos à classificação da mesma. Neste sentido, a
responsabilidade civil administrativa pode ser classificada atendendo ao título da
imputação do prejuízo, à natureza da posição jurídica subjetiva violada e ao ramo de
direito pelo qual é regulada. Cada uma destas modalidades de responsabilidade civil
está sujeita a um regime jurídico pelo menos parcialmente diverso.
RANGEL MESQUITA (Responsabilidade do Estado por incumprimento do Direito da União Europeia: um princípio com futuro, Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6 de Março de 2003 (Agravo 0650624), in: «CJA», n.º 60, pp. 60 e segs.,
68) manifesta-se muito céptica quanto à compatibilidade entre os dois», de Carla AMADO GOMES.
(176) Cfr. Carla AMADO GOMES, Textos Dispersos…, cit., pp. 214-215.
87
Importa salientar que quanto ao título de imputação do prejuízo, a
responsabilidade civil pode ser delitual, pelo risco ou por facto lícito. Enquanto que a
responsabilidade delitual decorre de uma conduta reprovada pela ordem jurídica, sendo,
por isso, por vezes designada por responsabilidade por facto ilícito e culposo, a
responsabilidade pelo risco e a responsabilidade por facto lícito prescindem de tal
reprovação, sendo modalidades de responsabilidade objetiva. De mencionar que a
responsabilidade pelo risco decorre de regras objetivas de distribuição dos riscos
sociais, assentando na ideia de que, apesar de não ter sido praticado qualquer facto
ilícito e culposo, um determinado dano exorbita da esfera de risco do lesado, devendo
outra pessoa responder por aquele; já a responsabilidade por facto lícito decorre da
necessidade de compensar alguém por sacrifícios que lhe sejam impostos, mediante
condutas juridicamente conformes, em benefício do interesse público.
Relativamente à natureza da posição jurídica subjetiva violada, a
responsabilidade civil pode ser contratual ou extracontratual. A responsabilidade
contratual é a que decorre da violação de direitos de crédito resultantes de contrato. A
responsabilidade extracontratual é a decorrente da afetação de outros direitos subjetivos
ou interesses legalmente protegidos. De mencionar que nas palavras de Marcelo
REBELO DE SOUSA e de André SALGADO DE MATOS: «Nos últimos anos, a
doutrina tem vindo a identificar uma terceira via da responsabilidade civil, a meio
caminho entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual, que
abrangeria situações de violação de deveres específicos de protecção, informação e
lealdade, não decorrentes de contratos mas com densidade superior aos deveres
genéricos de respeito de direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos cuja
violação gera responsabilidade extracontratual» (177
).
Relativamente ao ramo de direito pelo qual é regulada, a responsabilidade civil
pode ser por ato de gestão pública ou por ato de gestão privada. Como realçam Marcelo
REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «Trata-se de uma repercussão
do problema, transversal a todo o direito administrativo, da distinção entre gestão
pública e gestão privada. A distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão
privada só suscita dificuldades reais quanto aos contratos e aos actos materiais; os
regulamentos e actos administrativos são, sem excepção, actos de gestão pública.
Tradicionalmente, a distinção entre estas duas modalidades de responsabilidade
(177) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., pp. 16- 17.
88
acarretava consequências substantivas (a responsabilidade administrativa por acto de
gestão pública era regida por disposições de direito administrativo; a responsabilidade
administrativa por acto de gestão privada era regida por disposições de direito privado)
e processuais (a responsabilidade administrativa por acto de gestão pública era
efectivada perante os tribunais administrativos; a responsabilidade administrativa por
acto de gestão privada era efectivada perante os tribunais judiciais)» (178
). De salientar,
ainda, que atualmente, o ETAF submete aos tribunais administrativos toda a
responsabilidade civil administrativa extracontratual - art. 4.º, n.º 1, alíneas g), h) e i) do
ETAF-, mesmo por ato de gestão privada, assim como os litígios emergentes de alguns
contratos tradicionalmente considerados como de direito privado (art. 4.º, 1, alíneas e) e
f) do ETAF). O art. 1.º, n.º 2 do RRCEC, ao considerar abarcadas pelo regime legal as
ações e omissões «reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo»,
que são virtualmente todas as ações e omissões administrativas, abre as portas para a
superação substantiva da dicotomia, mas não de forma tão nítida que seja neste
momento previsível o rumo que vai ser adotado pela jurisprudência. O alcance
inequívoco da distinção resume-se atualmente, por tal motivo, à responsabilidade
contratual.
3. Responsabilidade civil por ato de gestão pública: responsabilidade
extracontratual delitual
Para começar iremos retratar o fundamento da responsabilidade administrativa
delitual. Neste sentido, tal como nos narram Marcelo REBELO DE SOUSA e André
SALGADO DE MATOS: «A responsabilidade civil delitual da administração tem um
duplo fundamento, subjectivo e objectivo: de um ponto de vista subjectivo, a vinculação
da administração pública aos direitos fundamentais (art. 18.º, 1 CRP) e o princípio do
respeito pelas posições jurídicas subjectivas dos particulares (art. 266.º, 1 CRP); de um
ponto de vista objectivo, o princípio da legalidade. De mencionar, ainda, que da
combinação de ambos decorre a proibição de provocação ilegal de danos na esfera
jurídica dos particulares ou, como sucedâneo, a sua reintegração através de
indemnização» (179
).
Porém, iremos agora retratar os temas da responsabilidade administrativa e
responsabilidade pessoal e, desta forma, afirmaremos que as pessoas coletivas
(178) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 17. (179) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 18.
89
administrativas, como as pessoas coletivas na generalidade, atuam através das pessoas
físicas que são os seus titulares de órgãos e agentes. Como estes também praticam atos
de conteúdo estritamente privado, que nada têm que ver com as funções por si
exercidas, e como tais atos podem provocar danos, põe-se o problema da delimitação
entre a responsabilidade administrativa das pessoas coletivas administrativas e dos seus
titulares de órgãos e agentes, por um lado, e a responsabilidade estritamente pessoal
destes últimos, por outro lado.
Contudo, o critério que releva é o da imputação: existe responsabilidade
administrativa pelos prejuízos provocados por atos que sejam imputados a uma pessoa
coletiva administrativa (atos funcionais). Os arts. 7.º, n.º 1 e 8.º, n.º 2 do RRCEC
referem os pressupostos cumulativos exigidos para que um ato seja considerado como
funcional: tem que ser praticado por um titular de órgão ou agente (ou ainda
trabalhador: art. 1.º, n.º 4 do RRCEC) de uma pessoa coletiva administrativa (o que
pressupõe a investidura de uma pessoa física em tal estatuto; podem suscitar-se alguns
problemas quando tal investidura resulte de atos jurídicos nulos ou inexistentes); tem
que ser praticado no exercício das funções do titular de órgão ou agente, tal como
decorrente do respetivo estatuto, e por causa dessas funções. Tratando-se de atos
funcionais, a obrigação de indemnizar que emerge da responsabilidade civil delitual
pode impender, quer exclusivamente sobre a pessoa coletiva a que é imputado o facto
que gera o prejuízo (art. 7.º do RRCEC), quer também sobre o titular de órgão ou agente
que o praticou (art. 8.º do RRCEC). De referir, ainda, que os atos não funcionais são
atos da esfera privada das pessoas que os exercem; a eventual responsabilidade civil a
que dêem lugar é estritamente pessoal, nada tem que ver com a administração pública
ou o direito administrativo estando sujeita ao regime geral da responsabilidade civil
constante do Código Civil.
No entanto, importa referir os pressupostos da responsabilidade administrativa
delitual. Desta forma, importa mencionar que há responsabilidade civil delitual da
administração, e dever de indemnizar, assim que se verifiquem preenchidos de forma
cumulativa cinco pressupostos, expressa ou implicitamente resultantes dos arts. 7.º, n.º 1
e 8.º, n.ºs 1 e 2 do RRCEC: o facto voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de
causalidade. Porém, basta a não verificação do preenchimento de um destes
pressupostos que acarreta de forma automática a inexistência de responsabilidade
delitual, embora possa ainda haver lugar a outro tipo de responsabilidade civil ou
mesmo a outra pretensão reintegratória (assim, se faltar o pressuposto da ilicitude, pode
90
haver lugar a responsabilidade por facto lícito ou pelo risco ou a uma pretensão
indemnizatória pelo sacrifício de direitos patrimoniais privados; se faltar o pressuposto
da culpa pode ter lugar a pretensão à reconstituição da situação atual hipotética ou o
enriquecimento sem causa).
Ora, cabe-nos agora explicitar, de forma, mais detalhada cada um dos
pressupostos atrás mencionados. Deste modo, começaremos por explicar o pressuposto
do facto voluntário. Desta feita, apenas há responsabilidade civil delitual por danos
resultantes de factos humanos domináveis pela vontade – isto é, de atos em sentido
próprio, que podem consistir, quer em ações, quer em omissões (arts. 7.º, n.º 1 e 8.º, n.ºs
1 e 2 do RRCEC). Para efeitos de responsabilidade civil constituem ações os
regulamentos e os atos administrativos, assim como as simples atuações administrativas
e os atos reais, incluindo todas as omissões juridicamente importantes. Tal como
acentuam Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «A
responsabilidade civil decorrente de actos positivos tem carácter genérico, na medida
em que decorre de um dever também genérico de não lesar activamente as posições
jurídicas subjectivas de outrem; já a responsabilidade civil emergente de omissões,
apesar da aparente generalidade das referências legais, depende da existência de um
dever de praticar a acção omitida, geralmente designado como «dever de garante».
Apesar desta exigência, a relevância das omissões é maior na responsabilidade
administrativa do que na responsabilidade civil em geral: no tráfego jurídico privado, a
esfera de autonomia individual impede a existência de um dever genérico de evitar a
produção de danos para outrem; pelo contrário, no direito administrativo, à
administração pública assiste sempre um tal dever nos domínios abrangidos pelas suas
tarefas de polícia» (180
). Ainda é de referir que não se consideram factos voluntários
para efeitos de responsabilidade civil, designadamente, os factos naturais e os atos
reflexos ou exercidos mediante coação física.
Agora, e de forma sucinta, retrataremos o pressuposto da ilicitude. Este é o
segundo pressuposto da responsabilidade civil delitual, a ilicitude do facto voluntário
(arts. 7.º, n.º 1 e 8.º, n.ºs 1 e 2 RRCEC). Ora, ilicitude é sinónimo de antijuridicidade,
que se expressa num juízo negativo (ou desvalor) formulado pela ordem jurídica
(predominantemente incidente sobre o facto ou sobre o seu resultado, consoante os
casos). Ilícita é, por tal razão, qualquer conduta que viole o bloco de legalidade (ou seja,
que seja ilegal): deste modo, são ilícitos os atos que violem princípios ou regras
(180) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 20.
91
constitucionais, legais ou regulamentares (ou ainda internacionais ou comunitários) ou
infrinjam regras técnicas ou deveres objetivos de cuidado (art. 9.º, n.º 1 do RRCEC),
assim como aqueles que violem os parâmetros pelos quais deve reger-se o
funcionamento normal dos serviços (art. 9.º, n.º 2 do RRCEC).
Contudo, para haver responsabilidade civil delitual não é suficiente a verificação
de qualquer ilegalidade, devendo esta consistir na violação da norma que tutela a
posição jurídica subjetiva cuja lesão se pretende ver reparada (Acórdão do STA de
31/5/2005, Processo n.º 0127/03; o mesmo decorre implicitamente da última parte do
art. 9.º, n.º 1 RRCEC). Há, desta forma, duas modalidades básicas de ilicitude: a
ilicitude por violação de direitos subjetivos e a ilicitude por violação de normas
destinadas a proteger interesses (normas de proteção). Como enaltecem Marcelo
REBELO DE SOUSA e de André SALGADO DE MATOS: «Na primeira situação,
incluem-se quaisquer direitos subjectivos (direitos fundamentais, de personalidade,
reais, familiares, de propriedade intelectual ou industrial), excepto quando se trate da
ofensa de direitos de crédito emergentes de contratos, perpetrada pelo devedor, que gera
responsabilidade contratual; na segunda situação, incluem-se os interesses legalmente
protegidos. Existem ainda previsões específicas de ilicitude para efeitos de
responsabilidade civil administrativa, designadamente a decorrente da prestação de
informações (art. 7.º, 2 CPA)» (181
).
Porém, e ainda quanto à ilicitude releva referir as causas de justificação da
ilicitude. Assim, estas são quatro: o cumprimento de um dever; o estado de necessidade;
o consentimento do lesado e a legítima defesa. Desta forma, passaremos agora a
explicar cada uma das causas.
Como destacam Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE
MATOS: «A antijuridicidade de uma determinada conduta pode ser relevada na
presença de circunstâncias específicas, designadas causas de justificação da ilicitude;
faltando o pressuposto da ilicitude, a responsabilidade delitual ficará necessariamente
excluída (mas pode ainda haver lugar a responsabilidade pelo risco ou por fato lícito). O
RRCEC não regula esta matéria, mas o seu regime resulta da CRP, dos princípios gerais
em matéria de responsabilidade civil e dos princípios fundamentais da actividade
administrativa» (182
). Cabe-nos agora e neste contexto passar a explicar o cumprimento
de um dever. Assim, pode acontecer que alguém esteja investido no dever de praticar
(181) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 21. (182) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 21.
92
determinado ato danoso; aquele dever está, então, em conflito com o dever de não
provocar o dano, uma vez que não é possível acatar um dever sem violar o outro. O
conflito de deveres deve ser resolvido através do acatamento do dever que a ordem
jurídica considere prevalecente. Ora, tal como afirmam Marcelo REBELO DE SOUSA
e André SALGADO DE MATOS: «O comportamento de quem sacrifique um dever no
cumprimento de um outro dever prevalecente sobre o primeiro não pode ser reprovado
pela ordem jurídica, sob pena de quebra da unidade do sistema normativo» (183
); desta
maneira, o cumprimento do dever prevalecente justifica a ilicitude da violação do outro
dever. Uma situação específica de cumprimento de um dever é a prevista no art. 271.º,
n.º 2 da nossa Lei Fundamental e no art. 10.º do EDFAAP: é justificada a ilicitude da
conduta do subalterno que obedeça a ordens ou instruções ilegais a que estivesse
vinculado (desde que tenha praticado o direito de representação). Como exemplo de
cumprimento de um dever daremos o seguinte: não há em princípio lugar a
responsabilidade se um regimento de bombeiros sapadores deixar arder um pinhal para
apagar um outro incêndio que põe em causa a vida humana, uma vez que o dever de
salvar vidas humanas assume primazia sobre o dever de proteger o património.
Agora passaremos e explicar o estado de necessidade. O estado de necessidade é
um conceito frequentemente utilizado (por exemplo, nos arts. 3.º, n.º 2 e 151.º, n.º 1 do
CPA) mas nunca definido na legislação administrativa nacional. A ideia que domina é a
de que o legislador administrativo recebeu, tal como consagrados no art. 339.º do CC,
os requisitos do estado de necessidade (existência de um perigo atual ou iminente;
ameaça de bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do agente ou de terceiro) e os
pressupostos das condutas adotadas ao seu abrigo [manifesta superioridade dos danos a
evitar em relação ao prejuízo provocado – isto é, razoabilidade deste último, no sentido
que a expressão assume no princípio da proporcionalidade; caráter meramente
patrimonial dos bens afetados]. Para sermos mais precisos, impõe-se trazer aqui o texto
de Marcelo REBELO DE SOUSA e de André SALGADO DE MATOS: «O art. 3.º, 2
CPA exige que o resultado visado pela actuação administrativa em estado de
necessidade não pudesse ser alcançado de outro modo, o que deve ser interpretado no
sentido de que a ilicitude daquela só está justificada se for estritamente necessária, à luz
do princípio da proporcionalidade. Apesar da formulação do art. 3.º, 2 CPA, o estado de
necessidade pode justificar a ilicitude decorrente da violação de qualquer norma de
direito administrativo e não apenas das normas nele contidas. Ao invés, o estado de
(183) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 22.
93
necessidade não pode justificar a ilegalidade de condutas administrativas viciadas de
usurpação de poder ou de desvio de poder, pelo menos por motivo de interesse
particular, nem mesmo de toda e qualquer conduta viciada de violação de lei» (184
).
Assim, exemplos de atuações cuja ilicitude é justificada por estado de necessidade são
os atos de destruição de coisas ou de ocupação temporária de imóveis, necessários para
realizar operações de socorro ou alojamento de pessoas ou bens (a nível
exemplificativo, nos termos do previsto nos arts. 52.º - 54.º do DL n.º 794/76, de 5 de
Novembro).
Porém, o art. 3.º, n.º 2 do CPA estabelece expressamente o dever de
indemnização dos danos causados pela administração em estado de necessidade; mas,
como este justifica a ilicitude, trata-se de uma responsabilidade civil por facto lícito
(tendo em linha de conta o estabelecido no artigo do 16.º do RRCEC/ RRCEE, cuja
epígrafe é “ Indemnização pelo sacrifício”).
Ora, agora cabe-nos explicar a causa de justificação da ilicitude: consentimento
do lesado. Desta forma, é de referir que o consentimento do lesado como causa de
justificação da ilicitude deriva da ideia segundo a qual in volenti non fit injuria: não faz
sentido obrigar à reparação de um dano se o lesado consentiu na sua produção. Não há
qualquer previsão específica do consentimento do lesado no direito administrativo; e a
sua eficácia justificadora da ilicitude está excluída quando estejam em causa direitos
indisponíveis ou quando tal seja juridicamente proibido (aproximadamente nestes
termos, temos o artigo 340.º do CC, cuja epígrafe é «Consentimento do lesado»). Como
em direito administrativo a atuação administrativa apenas é juridicamente conforme se
for positivamente permitida por lei (precedência total da lei), o consentimento do lesado
apenas pode justificar a ilicitude de uma conduta administrativa quando tal esteja
normativamente admissível; assim o consentimento do lesado nunca pode substituir a
necessária habilitação normativa para a atuação administrativa.
Por fim, e como não nos poderia escapar, passaremos a referir exemplos de
atuações cuja ilicitude é justificada por consentimento do lesado: a revogação de atos
administrativos favoráveis (art. 132.º, n.º 2, alínea b) do CPA), e a revogação com
efeitos retroativos desfavoráveis de atos administrativos (art. 127.º, n.º 3, alínea b) do
CPA). De mencionar que nos dois casos a lei faz depender a legalidade da conduta
administrativa da disponibilidade dos direitos envolvidos.
(184) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 23.
94
Agora, passaremos a explicar a legítima defesa. No disposto do art. 21.º da CRP,
todos têm o direito de repelir pela força qualquer agressão quando não seja possível
recorrer à autoridade pública. Esta previsão terá sido especificamente pensada para os
particulares, contudo não pode ser negada aos agentes da administração a hipótese de se
defenderem de agressões de que sejam objeto, em princípio nos mesmos termos que os
demais cidadãos.
Subscrevendo Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE
MATOS: «O art. 21.º CRP exige como requisito da legítima defesa a impossibilidade de
recurso à autoridade pública. Numa leitura apressada, esta última restrição parece levar
à exclusão da relevância da legítima defesa como causa de justificação da ilicitude das
condutas administrativas, uma vez que a administração é, por definição, autoridade
pública. Contudo, não é assim: a expressão «autoridade pública» do art. 21.º CRP
significa apenas a parcela do aparelho público que está especificamente legitimada para
o uso da coerção – ou seja, os tribunais e a polícia -, sendo evidente que a generalidade
dos agentes da administração não se inclui nesta categoria. Mesmo quanto à
administração policial, não parece de excluir a admissibilidade da legítima defesa, que
nesse caso terá como requisito a impossibilidade de recurso aos tribunais em tempo útil
para repelir a agressão. Os argumentos teleológicos de interpretação também apontam
neste sentido: ao referir-se à impossibilidade de recurso à força pública, o art. 21.º CRP
teve como finalidade exclusiva evitar a generalização da autotutela privada, problema
que manifestamente não se põe quanto ao uso da força pela administração, em particular
pela polícia. Em todo o caso, note-se que não está em causa a admissibilidade de defesa
dos agentes da administração no exercício das suas funções; o que se discute na doutrina
é apenas se a exclusão da ilicitude opera por via do instituto da legítima defesa,
designadamente no sentido do art. 21.º CRP, ou por via de uma causa de justificação
distinta e inominada» (185
).
Destarte, os requisitos da justificação por legítima defesa inferem-se do art. 21.º
da CRP e do princípio da proporcionalidade: tem que existir uma agressão, atual ou
iminente, que seja ilícita; a defesa tem que ser necessária, no sentido de não ser possível
afastar a agressão de outro modo; o prejuízo causado pela conduta defensiva deve
constituir um meio adequado e necessário para repelir a agressão e não pode ser
manifestamente superior ao dano que visa evitar (tais exigências coincidem
(185) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 24.
95
fundamentalmente com as da legítima defesa no direito (civilístico) privado: nos termos
do art. 337.º, n.º 1 do CC).
Porém, há uma exceção: o regime geral da legítima defesa não se aplica quando
esteja em causa o uso de armas de fogo por agentes policiais, matéria regulada
especialmente no DL n.º 457/99, de 5 de Novembro: nestas situações, a conduta
administrativa apenas está justificada quando o uso da arma de fogo seja absolutamente
necessário, como medida extrema, se outros meios menos perigosos não se mostrarem
eficazes e desde que proporcionado às circunstâncias (art. 2.º, n.º 1 do RRCEE); quando
o uso da arma de fogo se faça contra pessoas/humanos, a conduta apenas é justificada
quando seja necessária para repelir agressões que constituam um perigo iminente de
morte ou ofensa grave que ameace vidas humanas (art. 3.º, n.º 2 do RRCEC). Ao
inverso do que poderia parecer num primeiro contato, tais exigências são mais do que
meras explicitações do princípio da proporcionalidade e dos pressupostos gerais de
legitimidade da defesa: por um lado, em geral, a proporcionalidade da defesa através de
arma de fogo é qualificada (podendo falar-se numa exigência de estrita
proporcionalidade); por outro lado, quanto ao uso de armas de fogo contra seres
humanos, o critério de ponderação entre bens jurídicos está legalmente definido e, por
tal motivo, em larga medida subtraído ao juízo do aplicador do direito. Dos apertados
pressupostos legais resulta, desta forma, uma verdadeira desproporcionalidade prima
facie do uso de armas de fogo e, indiretamente, um reforço do ónus de argumentação
em prol da legitimidade da defesa. Há exemplos de atuações cuja ilicitude é justificada
por legítima defesa tais como: os danos necessariamente causados por um agente
municipal, encarregue de executar um embargo de uma obra ilegal, à integridade física
de um ser humano que, agredindo-o, tentava impedi-lo de cumprir aquela missão; os
danos necessariamente causados por um agente policial à integridade física do suspeito
de um crime, de maneira a conseguir a sua imobilização na sequência de flagrante
delito.
Relativamente ao pressuposto da culpa, trata-se do terceiro pressuposto da
responsabilidade civil delitual (arts. 7.º, n.º 1 e 8.º, n.ºs 1 e 2 do RRCEC), e consiste na
preterição da diligência pela qual a lei exigia que o autor do facto voluntário e ilícito
tivesse pautado a sua conduta/ o seu comportamento; assim, quando falamos em
culpabilidade, falamos do juízo formulado pela ordem jurídica sobre quem age com
96
culpa. A palavra «culpa» é, por vezes, utilizada restritamente para designar a
negligência (por ex., arts. 7.º, n.º 1 e 8.º, n.º1 do atual diploma legal - RRCEC) (186
).
Parafraseando Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE
MATOS: «São modalidades de culpa o dolo e a negligência. O dolo pressupõe a
intenção de provocar um determinado resultado danoso (dolo directo, se o autor do facto
voluntário pretender primariamente a produção desse resultado; dolo necessário, se o
autor do facto voluntário pretender primariamente a produção de um outro resultado
cuja verificação implica necessariamente a produção do resultado danoso) ou, pelo
menos, a conformação com a produção desse resultado (dolo eventual)» (187
). Quanto à
negligência, esta pressupõe a violação, consciente ou inconsciente, de deveres de
cuidado. Quando a diligência empregue tenha sido manifestamente inferior àquela a que
o titular de órgão ou agente se encontrava obrigado em razão do cargo por si ocupado
(art. 8.º, n.º 1 do RRCEC), estamos perante a negligência diz-se (a negligência
extremamente grave, na fronteira com o dolo eventual, designa-se habitualmente por
negligência grosseira, tratando-se, contudo, de uma categoria sem relevância normativa
geral); nas demais situações, diz-se leve (art. 7.º, n.º 1 do RRCEC). A distinção entre a
negligência grave e a negligência leve não tem grande relevância no direito privado nem
no direito penal mas é da maior relevância na responsabilidade administrativa: para a
responsabilização das pessoas coletivas administrativas chega qualquer tipo de
negligência (art. 7.º, n.º 1 do RRCEC), mas a responsabilidade dos titulares de órgãos
ou agentes pressupõe pelo menos, precisamente, a negligência grave (art. 8.º, n.º 1 do
RRCEC).
Importa ainda mencionar que a culpa é apreciada à luz da diligência e aptidão
que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de
órgão ou agente cumpridor e zeloso (art. 10.º, n.º 1 do supra mencionado RRCEC); tal
formulação é vazia, nada dizendo na realidade relativamente aos graus de diligência e
aptidão exigidos. Conforme é corrente no direito da responsabilidade civil (no direito
privado) conforme o disposto no art. 487.º, n.º 2 do nosso CC), deve entender-se que
estão em causa a diligência e a aptidão de um titular de órgão ou agentes médios. As
«circunstâncias de cada caso» não podem deixar de levar em conta os deveres
funcionais do concreto titular de órgão ou agente (como resulta do art. 8.º, n.º 1 do
RRCEC, parte final), de forma a que seja respeitado o princípio que nos diz que
(186) A palavra «culpa» é utilizada aqui no seu sentido tradicional. (187) Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., pp. 25-26.
97
ninguém é obrigado a mais do que aquilo que pode fazer (ultra posse nemo obligatur),
mas também de forma a evitar que as condutas de titulares de órgãos ou agentes
administrativos de topo sejam avaliadas segundo padrões de diligência benevolentes em
razão da relevância das funções que lhes estão cometidas.
Ora, ainda em relação à culpa, cabe-nos agora explicar a culpa pessoal e o
«funcionamento anormal do serviço». Nas palavras de Marcelo REBELO DE SOUSA e
de André SALGADO DE MATOS: «A diligência das pessoas colectivas
administrativas é, no fundo, a diligência das pessoas singulares que constituem os seus
titulares de órgãos e agentes. É, portanto, por estas últimas que a indagação da culpa
deve principiar; haverá culpa da pessoa colectiva administrativa quando haja culpa
(dolo ou negligência) do seu titular de órgão ou agente» (188
).
No entanto, há situações em que, apesar de ser objetivamente comprovável que
um determinado dano se produziu em virtude da má organização ou do mau
funcionamento de um serviço público, não é possível identificar o autor ou os autores
dos factos que lhes deram origem; isto ocorre com mais frequência em situações de
omissão. Aplicando estritamente os requisitos da responsabilidade civil, teria que
concluir-se não ser possível a sua efetivação prática, na medida em que, desconhecendo-
se o autor do facto a quem respeitam as circunstâncias subjetivas relevantes, não seria
possível formular os juízos de dolo ou negligência dos quais depende o preenchimento
do pressuposto culpa da responsabilidade civil (em alguns casos, nem sequer seria
possível identificar uma conduta à qual imputar o facto danoso). Porém, tal solução
seria iníqua para o lesado e contrariaria os fundamentos da responsabilidade delitual,
motivo pelo qual se admite, neste caso, a responsabilização da pessoa coletiva a que
pertença o serviço em causa sem ser preciso proceder ao apuramento da culpa
individual (art. 7.º, n.ºs 3 e 4 do RRCEC), mediante averiguação da diligência
diretamente em relação ao serviço público no âmbito do qual se produziu o facto
lesivo/danoso: existirá, assim, «funcionamento anormal do serviço» quando este esteja
organizado ou tenha funcionado objetivamente com uma diligência inferior àquela que
era normativamente exigida (o art. 7.º, n.º 4 do RRCEC é ambíguo quando se refere aos
«padrões médios de resultado» e muito restrito, por parecer reduzir-se às omissões,
quando se refere a «uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos»). A noção
(188) Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., pp. 26-27.
98
de funcionamento anormal do serviço é, pelo menos em parte, um sucedâneo da culpa;
sendo por isso que, tradicionalmente, se falava mesmo em culpa do serviço ( 189
).
Porém, devemos referir-nos ainda à prova da culpa e presunções de culpa. Tal
como dizem Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «A lei
não dispõe directamente sobre a prova da culpa, mas a regra geral infere-se da parte
inicial do art. 10.º, 2 RRCEC: sobre a culpa deve incidir uma demonstração, pelo que é
ao lesado que cabe o ónus de provar a culpa do autor da lesão. A lei administrativa geral
prevê duas presunções legais de culpa leve, que invertem o ónus da prova, quanto à
prática de actos imateriais ilícitos e em caso de violação de deveres de vigilância (art.
10.º, 2, 3 RRCEC)» (190
).
Na falta de presunções de culpa administrativa e na inexistência de normas que
determinem a aplicação à administração de presunções de culpa estabelecidas na lei
civil, estas têm que considerar-se inaplicáveis à responsabilidade administrativa, em
virtude da natureza do direito administrativo como direito comum da função
administrativa. Contudo, o art. 10.º, n.º 3 do RRCEC contém um elemento perturbador
desta conclusão, ao referir que a presunção de culpa leve em caso de violação de
deveres de vigilância decorre da «aplicação dos princípios gerais da responsabilidade
civil». Porém, o sentido desta norma parece não ser o de importar para a
responsabilidade civil administrativa todas as presunções de culpa do direito civil, quer
porque em tal caso não faria sentido a própria existência do art. 10.º, n.º 3 do RRCEC,
quer porque o modelo de presunção da culpa leve do RRCEC, sobreponível às situações
de responsabilização exclusiva das pessoas coletivas públicas, não parece compatível
com o sistema civil de presunções integrais de culpa. A falta de presunções legais de
culpa não afasta as chamadas presunções judiciais de culpa, resultantes da experiência
do julgador, relativamente a condutas ostensivamente ilegais da administração Em
sentido oposto ao defendido, a jurisprudência administrativa tem-se orientado
ultimamente no sentido da aplicação à administração das presunções de culpa
estabelecidas na lei civil, mas é de enaltecer que a questão não é pacífica. Todavia, no
sentido da aplicação das presunções de culpa do CC Português, entre outros, os Acs.
STA BMJ 492 (2000), 236; 2/2/2000, AD 473 (2001), 635; 10/2/2000, BMJ 494 (2000),
(189) De realçar que a teoria da culpa do serviço foi admitida pela primeira vez pela jurisprudência administrativa portuguesa a propósito da responsabilidade do Estado pelos danos provocados pela ruína de uma muralha na cidade Invicta, causada pela omissão
das necessárias obras de conservação, apesar de não ter sido possível apurar a identidade dos titulares de órgãos ou agentes
omitentes (Ac. STA, 28/11/1966, ADSTA 51 (1966), 321). (190) Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 28.
99
150; 20/2/2002, AD 487 (2002), 1023; 25/3/2004, Processo n.º 01718/03; 3/11/2004,
Processo n.º 0811/03; 15/3/2005, Processo n.º 036/04; 16/5/2006, Processo n.º 0121/06.
Cabe-nos agora explicar as causas de exclusão da culpa. Assim como sucede
com a ilicitude, também um juízo de culpa formulado prima facie pode ser afastado em
circunstâncias particulares, acarretando, assim, a exclusão da responsabilidade delitual.
O RRCEC não regula em geral tal matéria, resultando, porém, o seu regime da CRP,
dos princípios gerais em matéria de responsabilidade civil e penal e dos princípios
fundamentais da atividade administrativa. De mencionar que as causas de exclusão da
culpa relevantes em matéria de responsabilidade administrativa delitual são duas: o erro
desculpável e o estado de necessidade desculpante.
Quanto ao erro desculpável, o erro trata-se de uma falsa representação da
realidade, podendo consistir, quer no desconhecimento, quer na suposição, de algo; é
desculpável, excluindo a culpa, quando não seja objeto de censura pela ordem jurídica.
Dois exemplos de situações em que a culpa é excluída por erro desculpável são:
condutas causadas por erro em que a administração tenha sido induzida por atuação
dolosa de um particular e, condutas adotadas em erro, não imputável ao titular do órgão
ou agente da administração, sobre os requisitos de uma causa de justificação da
ilicitude.
Quanto ao estado de necessidade desculpante, tal como explicitam Marcelo
REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «Há estado de necessidade
desculpante quando uma conduta da qual decorre o sacrifício de bens alheios, apesar de
não preencher os pressupostos ou requisitos de uma causa de justificação da ilicitude,
ocorre contudo em circunstâncias que excluem a culpa do agente. Exemplos de
situações em que a culpa é excluída em virtude de estado de necessidade desculpante:
condutas praticadas sob coacção moral exercida sobre um titular de órgão ou agente da
administração; a omissão de realização de uma intervenção cirúrgica num paciente em
risco de vida para que possa ser efectuada uma outra intervenção cirúrgica em outro
paciente na mesma situação» (191
).
Agora, cabe-nos explicar o pressuposto do dano, ou prejuízo, que pode ser
definido como a diminuição ou extinção de uma vantagem que é objeto de tutela
jurídica. É um pressuposto da responsabilidade civil administrativa (arts. 7.º, n.º 1, 8.º,
n.º 1 do RRCEC) que decorre da própria função do instituto da responsabilidade civil
em geral. A definição de dano para efeitos de responsabilidade civil administrativa
(191) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 29.
100
abrange uma pluralidade de situações: danos emergentes e lucros cessantes; danos
presentes e danos futuros e danos patrimoniais e danos morais.
Quanto aos danos emergentes e lucros cessantes, enquanto que os danos
emergentes são aqueles que correspondem à privação de vantagens que já existiam na
esfera jurídica do lesado à altura da lesão; os lucros cessantes são aqueles que
correspondem à privação de vantagens que iriam formar-se na esfera jurídica do lesado
se não tivesse ocorrido a lesão (art. 564.º, n.º 1 do CC). Quanto aos danos presentes e
danos futuros (art. 3.º, n.º 3 do RRCEC), sendo que danos presentes são aqueles que já
ocorreram no momento da fixação da indemnização; e danos futuros são aqueles que
ainda não ocorreram no momento da fixação da indemnização (art. 564.º, n.º 2 do CC).
Por último, quanto aos danos patrimoniais e danos morais (art. 3.º, n.º 3 do RRCEC;
também art. 85.º, n.º 6 do EDFAAP), os danos dizem-se patrimoniais quando
suscetíveis de avaliação pecuniária/monetária e, dizem-se morais (ou não patrimoniais:
art. 3.º, n.º 3 do RRCEC) quando insuscetíveis de tal avaliação de cariz pecuniário. O
art. 3.º, n.º 3 do RRCEC remete a matéria para os «termos gerais de direito», pelo que
parece dever aplicar-se o art. 496.º, n.º 1 do CC, artigo este que restringe a
indemnizabilidade dos danos morais aos casos que, pela sua gravidade, mereçam a
tutela do direito; isto pouco acrescenta ao critério de delimitação dos danos ressarcíveis,
acabando a decisão sobre a ressarcibilidade ou não dos danos por ser relegada para uma
ponderação a efetuar no caso concreto em causa. Questão relativa aos danos não
patrimoniais que se encontra rodeada de grande controvérsia é a de saber se o dano
consistente na morte é indemnizável à própria vítima (transmitindo-se necessária e
imediatamente por via sucessória); mas só à custa de concetualismo extremo pode tal
hipótese ter admissibilidade.
Ora, na jurisprudência administrativa, o STA considerou que as meras angústia e
incerteza causadas por uma conduta administrativa não são danos suficientemente
graves para merecerem tutela em sede de responsabilidade civil (Ac. STA 31/5/2005,
Processo n.º 0127/03), mas aceitou a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais
consistentes no «desgosto, nervosismo, angústia e depressão» sofridos pelo lesado em
consequência da conduta administrativa (Ac. STA 24/10/2006, processo n.º 0539/06).
Cabe-nos agora explicar o pressuposto do nexo de causalidade. De referir que
para que haja responsabilidade civil é preciso que o dano possa ser objetivamente
imputado ao facto voluntário; o último requisito da responsabilidade civil delitual é um
nexo de causalidade entre o facto voluntário e o dano, estando tal exigência implícita
101
nos arts. 7.º, n.º 1 e 8.º, n.º 1 do RRCEC, quando se referem aos prejuízos que resultem
de atos ilícitos e culposos. A terminologia legal parece apontar para um conceito
ontológico de causalidade: em termos ontológicos, um facto é causa de um evento se o
evento, sem o facto, não tivesse ocorrido. Este conceito de causa como conditio sine qua
non é a base das teorias normativas da causalidade, mas por si só é imprestável, pois
dela resulta um número de causas potencialmente infinito para cada resultado.
Há, pois, atualmente três teorias do nexo de causalidade com expressão a nível
doutrinal, sendo que todas elas conduzem a resultados praticamente semelhantes na
grande maioria dos casos: a teoria da causalidade adequada, a teoria da esfera de
proteção da norma e a teoria da conexão do risco.
Assim sendo, passaremos agora a explicar em que consiste cada uma destas
teorias.
Nos termos de Marcelo REBELO DE SOUSA e de André SALGADO DE
MATOS: «Para a teoria da causalidade adequada um dano é imputado a um facto
voluntário quando, perante a prática deste, fosse previsível, em condições de
normalidade social, a produção do primeiro; em caso de omissão, existe nexo de
causalidade quando tenha sido omitida a acção que, em condições de normalidade
social, teria previsivelmente permitido impedir a produção do dano. A avaliação desta
previsibilidade, que não dispensa a noção de causalidade ontológica, é efectuada
mediante um juízo virtual de prognose formulado após a ocorrência do facto voluntário
e do resultado (prognose póstuma); e deve atender aos conhecimentos específicos do
agente que lhe permitam dominar processos causais à partida anormais. É esta a teoria
da causalidade actualmente dominante no direito português da responsabilidade civil
(quer privada, quer administrativa) e penal, estando implicitamente consagrada no art.
563.º CC e no art. 10.º, 1 CP» (192
).
Relativamente à teoria da esfera de proteção da norma (ou, mais precisamente,
do fim de proteção do mandado de cuidado), há nexo de causalidade sempre que o dano
ontologicamente causado por um facto voluntário (ação ou omissão) incida sobre as
vantagens conferidas pela norma que consagra um direito subjetivo ou pela norma de
proteção. Tal conceção resulta de críticas à teoria da causalidade adequada, com base no
argumento de que esta, por envolver considerações de teor subjetivo acerca da conduta
do agente (nomeadamente, quando incide sobre os seus conhecimentos subjetivos que
(192) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 31.
102
lhe permitem dominar processos causais anormais), ultrapassa a matéria da imputação
objetiva.
Ora, e por fim, para a teoria da conexão do risco, estamos perante imputação
objetiva quando exista a criação ou o aumento (em caso de ação), assim como a não
eliminação ou a não diminuição (em caso de omissão) de um risco proibido, e esse risco
se concretize num resultado danoso; para tal conceção, a teoria da esfera de proteção da
norma serve como limite negativo da imputação objetiva. Como sugerem Marcelo
REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «A teoria da conexão do risco
foi concebida pelo penalista alemão C. Roxin, sendo actualmente maioritária na
doutrina jurídico- penal alemã e constituindo um aperfeiçoamento da teoria da esfera de
protecção da norma, sobretudo quanto às omissões e aos factos voluntários danosos dos
quais resulte a diminuição (e não a criação ou o aumento) de riscos não permitidos;
trata-se, porventura, da construção mais aperfeiçoada da teoria da causalidade jurídica»
(193
).
Destarte, ainda quanto ao nexo de causalidade convém agora fazer alusão à
causa virtual e comportamento lícito alternativo. Assim sendo, começaremos por
afirmar que a base ontológica da noção normativa de causalidade implica que esta se
refira a factos reais. E o que sucede nas situações em que, a não ter ocorrido a causa
real, o dano produzido se tivesse verificado na mesma por efeito de uma causa diversa,
consistente num comportamento de outrem? E o que sucede nos casos em que, a não ter
ocorrido a causa real, o dano produzido se tivesse verificado na mesma por efeito de um
comportamento conforme ao dever violado por parte do autor do facto que o causou
efetivamente? O primeiro problema faz remissão para a teoria da causa virtual e o
segundo problema remete para a teoria do comportamento lícito alternativo.
No que concerne à causa virtual, tal como dizem Marcelo REBELO DE SOUSA
e André SALGADO DE MATOS: «a doutrina é unânime no sentido de o autor da causa
virtual não poder ser responsabilizado pelo dano ocorrido, na medida em que este se
deveu realmente a uma causa diversa; solução contrária seria mesmo inconstitucional,
por implicar uma intromissão não justificada no património do autor da causa virtual
(assim, vigora a regra da irrelevância positiva da causa virtual). É também
praticamente unânime que a existência de uma causa virtual não pode servir para eximir
o autor da causa real da responsabilidade que lhe cabe pelo dano que efectivamente
(193) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., pp. 31- 32.
103
provocou; caso contrário, inexistiria em princípio qualquer responsabilidade pelos
danos provocados pelo facto ilícito e culposo em causa, com violação dos fundamentos
constitucionais das pretensões reintegratórias dos particulares e dos eventuais direitos
subjectivos e mesmo jusfundamentais do lesado (assim, vigora a regra da irrelevância
negativa da causa virtual). Por vezes, e a título excepcional, a lei civil dá
expressamente relevância negativa à causa virtual (arts. 491.º, 492.º, 493.º, 1, 616.º, 2
CC)» (194
).
Ao contrário do que acontece com a causa virtual, o comportamento lícito
alternativo é genericamente importante, pois violaria o princípio da proporcionalidade a
imposição ao lesante do dever de indemnizar um dano que, em qualquer situação, se
produziria através de uma ação lícita; é, porém, de exigir, uma demonstração absoluta
de que o comportamento lícito alternativo não permitiria evitar o dano
(uma vez que, no caso de a evitação do dano ser uma mera hipótese, terá havido uma
criação ou aumento do risco proibido que justifica a imputação objetiva, à luz da teoria
da conexão do risco). Algumas das situações previstas na lei civilística a respeito da
relevância negativa da causa virtual podem abarcar comportamentos lícitos alternativos
(por ex., nos arts. 491.º, 492.º, 493.º, 1 do CC português). Tal como nos demarcam
Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «Os tribunais
administrativos consideram não existir nexo de causalidade entre actos administrativos
materialmente válidos, mas padecendo apenas de vício de forma ou de violação de lei
por falta ou vício de fundamentação, e os danos eventualmente verificados: nestes
casos, os danos ter-se-iam produzido na mesma se os actos administrativos em causa
tivessem sido praticados sem o vício que os inquinava (assim, quanto a actos
administrativos ilegais por falta de audiência dos interessados, Ac. STA 25/1/2005,
Proc. 01116/04; quanto a actos administrativos ilegais por falta de fundamentação,
embora com uma formulação algo elíptica, Acs. STA 9/2/2006, Proc. 0294/05,
13/2/2003, Proc. 01961/02); trata-se de uma aplicação, embora sem invocação expressa,
da teoria do comportamento lícito alternativo» (195
).
Esta doutrina não põe de parte, a existência de nexo de causalidade quando o
vício não substancial em causa «tiver inquestionavelmente determinado o conteúdo
substancial e resolutório do acto ilegal» (Ac. 13/2/2003, Processo n.º 01961/02).
(194) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 32. (195) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 33.
104
Porém, compete-nos agora referirmo-nos à culpa do lesado como causa de
exclusão ou modificação da responsabilidade administrativa delitual. Repetindo
Marcelo REBELO DE SOUSA e de André SALGADO DE MATOS: «A
responsabilidade civil é um desvio à regra geral de imputação de prejuízos à esfera
jurídica em que eles ocorrem» (196
); tal regra pode, contudo, ser reposta se os prejuízos
forem imputáveis à falta da diligência devida pelo próprio lesado, já que a este incumbe
um ónus de proteção diligente da sua esfera jurídica. Desta forma, a culpa do lesado
pode excluir a responsabilidade do lesante ou implicar a distribuição proporcional da
responsabilidade pelas esferas patrimoniais do lesante e do lesado. Ora, a culpa do
lesado está prevista em geral no art. 4.º do RRCEC: quando o comportamento culposo
do lesado tenha concorrido para a produção ou o agravamento dos danos causados, a
indemnização pode ser totalmente concedida, reduzida ou excluída, consoante a
gravidade das culpas de ambas as partes e as consequências que delas tenham resultado
(art. 4.º do RRCEC). Contudo, a culpa do lesado não exclui em abstrato a efetivação da
responsabilidade civil; o juízo sobre a subsistência, e em que termos, do direito à
indemnização será efetuado em concreto pelo tribunal na ação de indemnização que for
interposta. A responsabilidade do lesante é excluída de forma automática sempre que
resultasse da presunção da sua culpa (art. 570.º, n.º 2 do CC, disposição que deve
considerar-se abrangida pela remissão do art. 10.º, n.º 3 do RRCEC para os princípios
gerais da responsabilidade civil quanto às presunções de culpa administrativa
especificamente consagradas). A diligência do lesado é aferida nos mesmos termos que
é aferida a do lesante.
Como admitem Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE
MATOS: «Caso paradigmático de culpa do lesado, durante muito tempo o único
expressamente previsto na lei e hoje objecto de individualização no art. 4.º RRCEC é o
de o lesado não ter utilizado a via processual adequada à eliminação de um acto jurídico
lesivo, assim concorrendo para a produção ou o agravamento dos danos causados.
Contudo, esta referência é passível de generalização a todas as situações em que o
lesado não tenha utilizado o meio processual adequado para reagir contra qualquer
acção ou omissão administrativa da qual possam resultar danos para a sua esfera
jurídica» (197
). Deste modo, tem-se considerado que o não requerimento da suspensão
(196) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 33. (197) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 34.
105
de eficácia de atos administrativos pode originar a culpa do lesado; discutivelmente, o
Ac. STA 18/3/1993 (Processo n.º 030914) foi ao ponto de aplicar esta doutrina aos atos
nulos e inexistentes.
Alguns exemplos de determinadas situações em que a responsabilidade civil
administrativa é excluída ou reduzida em virtude de culpa do lesado são: um automóvel
conduzido por um funcionário público ao abrigo do poder de direção do superior
hierárquico atropela um peão, mas este estava a atravessar a rua no sinal vermelho; um
agente da polícia dispara ilegalmente sobre uma pessoa, mas as lesões corporais sofridas
agravam-se em consequência da recusa do lesado em submeter-se a tratamento médico;
uma licença de exercício de determinada atividade económica é ilegalmente revogada,
implicando o incumprimento de contratos celebrados pelo seu titular, mas tal não teria
acontecido caso este tivesse impugnado o ato revogatório e pedido a suspensão
jurisdicional da sua eficácia.
Cabe-nos, agora, fazer referência aos sujeitos do dever de indemnizar na
responsabilidade administrativa delitual. A responsabilidade delitual não impende só
sobre as pessoas coletivas administrativas, mas também sobre os seus titulares de órgãos
ou agentes que, do ponto de vista ontológico, praticaram o facto voluntário ilícito,
culposo e danoso. A articulação das responsabilidades de cada um está sujeita a certas
regras. Passemos a referir a independência parcial entre a responsabilidade das pessoas
coletivas administrativas e a responsabilidade dos titulares de órgãos ou agentes. Tal
como nos expõem Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS:
«As pessoas colectivas administrativas respondem pelos prejuízos resultantes de actos
ilícitos e culposos dos seus órgãos ou agentes (arts. 7.º, 1, 8.º, 1, 2 RRCEC)» (198
). Os
titulares de órgãos e agentes administrativos respondem pelos prejuízos resultantes de
actos ilícitos praticados com dolo ou negligência grave (art. 8.º, 1 RRCEC), resultando
daqui a irresponsabilidade dos titulares de órgãos ou agentes pelos seus atos praticados
com negligência leve (solução tradicional no direito português mas muito discutível e
mesmo de duvidosa constitucionalidade, à luz do art. 22.º da nossa Lei Fundamental;
recusando a inconstitucionalidade temos o Ac. do STA de 28/9/2006, Proc. 0855/04).
Isto é, a responsabilidade das pessoas coletivas administrativas pressupõe a prática de
(198) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 35.
106
um ato ilícito e culposo por um titular de órgão ou agente, mas não pressupõe a sua
responsabilidade, podendo existir responsabilidade das primeiras e não dos segundos.
Passemos agora a explicitar a solidariedade entre as pessoas coletivas
administrativas e os titulares de órgãos ou agentes. Assim, tal como realçam Marcelo
REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «A responsabilidade das
pessoas colectivas administrativas e dos seus titulares de órgãos e agentes é solidária
(art. 22.º CRP), o que significa que o lesado pode exigir individualmente de cada um
dos responsáveis, ou simultaneamente a todos eles, a satisfação da totalidade da
indemnização (art. 512.º do CC). Naturalmente que a solidariedade pressupõe a
responsabilidade do titular de órgão ou agente; por isso, este regime só se aplica nos
casos de dolo ou negligência grave (art. 8.º, n.º 2 RRCEC, que suscita dúvidas de
conformidade constitucional, mas em todo o caso progride em relação ao chocante
regime anterior, que restringia a solidariedade à responsabilidade emergente de actos
dolosos)» (199
).
Contudo, há que fazer alusão à figura do dever de regresso. Em regra, quando
satisfaça uma indemnização com fundamento em responsabilidade delitual, a pessoa
coletiva administrativa deve, por sua vez, exigir ao titular de órgão ou agente que
ontologicamente cometeu o facto que lhe pague o montante da indemnização suportada;
a isto chama-se o exercício do regresso (art. 8.º, n.º 3 do RRCEC), sendo que a
possibilidade de regresso apenas não existe em três situações:
1. caso a negligência do titular do órgão ou agente tenha sido leve, dado que nesse
caso aquele será irresponsável (arts. 7.º, 8.º, n.ºs 1, 2 e 3 do RRCEC);
2. caso tenha havido funcionamento anormal do serviço, dado que nesse caso não
é possível apurar a identidade do autor do facto voluntário;
3. caso o autor do facto voluntário tenha atuado ao abrigo de ordens ou instruções
ilegais às quais devesse obediência e tenha exercido o seu direito de
representação (havendo depois lugar a regresso contra o superior hierárquico que
emitiu as ordens ou instruções).
Contudo, a existência do regresso como regra significa que a responsabilidade
delitual das pessoas coletivas administrativas se aproxima de uma garantia do
cumprimento do dever de indemnizar que, fundamentalmente, incumbe aos seus
titulares de órgãos e agentes; e visa garantir que não é toda a coletividade, através dos
(199) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 35.
107
impostos que constituem a grande parte dos recursos financeiros do Estado, a suportar
os danos que só são imputáveis a alguns.
Tal como expressam Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE
MATOS: «O exercício do regresso é juridicamente vinculado, tratando-se por isso de
um verdadeiro dever jurídico (art. 6.º, 1 RRCEC, do que resulta a inadequação da
expressão tradicional «direito de regresso»); para que ele possa ser cumprido, a
secretaria do tribunal que tenha condenado a pessoa colectiva administrativa ao
pagamento de uma indemnização deve remeter a certidão da sentença transitada em
julgado aos órgãos competentes para promover as diligências necessárias para a sua
efectivação (art. 6.º, 2 RRCEC). Os órgãos aos quais incumbe a efectivação do regresso
são os detentores dos poderes de direcção, de superintendência ou de tutela sobre quem
praticou o facto danoso (art. 8.º, 3 RRCEC; havendo vários órgãos em tais
circunstâncias, a competência é deferida pela ordem indicada). A omissão daquelas
diligências é ilegal, pelo que os órgãos omitentes poderão, eles próprios, tornar-se
civilmente responsáveis pela sua não adopção perante a pessoa colectiva a que
pertençam. Quando uma pessoa colectiva administrativa seja condenada ao pagamento
de uma indemnização em virtude de presunção de culpa leve, a acção judicial
prossegue, após a condenação, entre aquela pessoa colectiva e o responsável individual,
para apuramento do grau de culpa e do eventual exercício do regresso (art. 8.º, 4
RRCEC, que, inexplicavelmente, contempla apenas a presunção de culpa do art. 10.º, 2
RRCEC)» (200
).
Nesta matéria, o RRCEC representou um avanço relativamente à situação
normativa transata, que permitiu a total inefetividade do mecanismo do regresso, com a
consequência prática de que os titulares de órgãos e agentes administrativos dispunham
de um seguro gratuito e ilimitado de responsabilidade civil, cujos custos eram
suportados pela totalidade dos contribuintes. Contudo, teria sido preferível ir mais além,
estabelecendo expressamente a responsabilidade solidária entre os titulares de órgãos e
agentes primariamente responsáveis e aqueles que omitam as providências necessárias a
efetivar o direito de regresso (solução que, todavia, já decorre do conjunto do regime
legal geral) assim como, do ponto de vista processual, impor ao MP a obrigação de, nas
ações de responsabilidade civil administrativa, suscitar a intervenção dos titulares de
(200) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., pp. 36 -37.
108
órgãos e agentes que praticaram o delito, quando tal intervenção não seja solicitada
pelas partes.
Por fim, vamos agora fazer referência à solidariedade entre os titulares de órgãos
e agentes, em caso de pluralidade de responsáveis. Assim, se houver mais do que um
titular de órgão ou agente responsáveis, o art. 10.º, n.º 4 do RRCEC manda atender ao
disposto no art. 497.º, n.º 1 do CC, que, por sua vez, determina a solidariedade entre os
vários responsáveis (art. 497.º, n.º 1 do CC), estabelecendo ainda que o direito de
regresso entre todos eles existe na medida das suas culpas e das consequências que delas
advieram, presumindo-se serem tais culpas iguais (art. 497.º, n.º 2 do CC). Estando esta
situação regulada no CC, não é aplicável o disposto no art. 6.º do RRCEC (seria, aliás,
despropositado que a lei impusesse a obrigatoriedade do exercício do regresso em
relações interprivadas).
4. A responsabilidade civil extracontratual pelo risco
Contrariamente ao que sucede no direito privado (art. 483.º, n.º 2 do CC), a
responsabilidade administrativa pelo risco não possui caráter excecional, definindo-se
através de uma cláusula geral: as pessoas coletivas administrativas respondem pelos
danos causados por atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente
perigosos (art. 11.º, n.º 1 do RRCEC).
Não há conluio na doutrina acerca do exato fundamento da imputação pelo risco:
nos dizeres de Marcelo REBELO DE SOUSA e de André SALGADO DE MATOS:
«para a teoria da criação do risco, a responsabilidade funda-se na exigência de que
quem cria um risco responda pelas suas consequências; para a teoria do risco-proveito, a
responsabilidade funda-se na exigência de que quem tira proveito de uma actividade
responda pelos riscos por ela criados; para a teoria do risco de autoridade, a
responsabilidade funda-se na exigência de que quem tem sob o seu controlo uma coisa
ou uma actividade responda pelos riscos que elas envolvem. A formulação do art. 11.º,
1 RRCEC parece pressupor a teoria do risco de autoridade; mas ao regime legal estão
também subjacentes, ainda que de forma negativa, as teorias da criação do risco e do
risco-proveito: a primeira, porque a responsabilidade pelo risco é excluída ou
modificada se houver culpa do lesado ou de terceiro, ou seja, se existirem outras fontes
de risco; a segunda, porque a responsabilidade pelo risco é apenas das pessoas
colectivas administrativas e não dos seus titulares de órgãos ou agentes, uma vez que o
109
risco é criado em benefício exclusivo do interesse público prosseguido pelas primeiras e
não dos interesses particulares dos segundos» (201
).
Cabe-nos agora explicar os pressupostos da responsabilidade administrativa pelo
risco.
Assim sendo, começaremos por explicar o primeiro pressuposto: o facto. Ao
contrário do que acontece na responsabilidade delitual, não é todo e qualquer facto que
pode gerar responsabilidade pelo risco: é preciso que esse facto resulte de uma
atividade, do funcionamento de um serviço ou de uma coisa especialmente perigosos
(art. 11.º, n.º 1 do RRCEC). A noção de perigo especial exprime uma potencialidade de
lesão de bens que normalmente não se verifica na vida social; estão, nomeadamente
(mas não apenas), abrangidos pelo conceito aqueles perigos decorrentes de
circunstâncias especificamente atinentes à prossecução da atividade administrativa e
que, por isso, não se verificam correntemente em atividades desenvolvidas por
particulares ou em coisas que estejam na sua posse. A natureza especial do perigo não
deve ser averiguada abstratamente, mas tendo em consideração os concretos
funcionamento do serviço, coisa ou atividade que estejam em causa.
Como chamam à atenção Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO
DE MATOS: «Anteriormente ao RRCEC, a lei exigia um perigo não apenas especial
mas excepcional, entendido como uma potencialidade de lesão de bens absolutamente
exorbitante da normalidade social. Na prática, isto reduzia a responsabilidade
administrativa pelo risco a uma expressão insignificante. Os exemplos clássicos de
serviços administrativos, actividades e coisas excepcionalmente perigosos eram
extremos: operações policiais que envolvam armas de fogo ou coacção física sobre as
pessoas; transfusões de sangue realizadas em hospitais públicos após a existência de
meios de diagnóstico do vírus HIV/SIDA (Ac. STA de 1/3/2005, Proc. 01610/03);
manobras militares; depósitos de armas, substâncias inflamáveis, explosivas ou
radioactivas; centrais de produção e as redes de distribuição de energia eléctrica ou gás;
centrais nucleares. O conceito de serviços administrativos, actividades ou coisas
especialmente perigosos abrange, por maioria de razão, as situações anteriormente
referidas, mas também, por exemplo, a realização de obras na via pública, a condução
de veículos prioritários (ambulâncias, veículos policiais) a velocidades normalmente
não permitidas e, eventualmente, o bloqueamento e o reboque de viaturas. Pelo
contrário, parece não dever considerar-se como tendo carácter especialmente perigoso a
(201) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 38.
110
detenção ou condução, em circunstâncias normais, de automóveis, aeronaves ou navios,
que no direito privado origina situações expressamente previstas como sendo de
responsabilidade pelo risco (arts. 503.º e 506.º, CC; art. 4.º Decreto-Lei n.º 202/98, de
10 de Julho).
Para além do art. 11.º RRCEC, existem ainda previsões específicas de
responsabilidade do risco, com regimes especiais, formuladas em termos tão amplos que
abrangem a administração pública no exercício de gestão pública: é o caso da
responsabilidade do produtor pelos danos causados pelos defeitos dos produtos que põe
em circulação (Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º
131/2001, de 24 de Abril)» (202
).
Passaremos agora a explicar o pressuposto do dano. Para efeitos de
responsabilidade pelo risco, o dano não apresenta qualquer especificidade relativamente
à responsabilidade delitual. Aqui, não existe qualquer limite qualitativo à
ressarcibilidade dos danos; contrariamente ao que se passa em algumas situações de
responsabilidade pelo risco no direito privado (por exemplo, art. 508.º, n.º 1 do CC), a
ressarcibilidade dos danos também não tem qualquer limite quantitativo.
Por último, retrataremos o pressuposto do nexo de causalidade (implícito na
expressão «danos decorrentes de», no art. 11.º, n.º 1 do RRCEC). Ora, também o nexo
de causalidade na responsabilidade pelo risco não difere substancialmente da
responsabilidade delitual, mostrando-se aqui especialmente apropriada a teoria da esfera
de proteção da norma.
No entanto, há que fazer alusão às causas de exclusão ou modificação da
responsabilidade administrativa pelo risco. A responsabilidade administrativa pelo risco
pode ser excluída ou modificada em três situações: o caso fortuito ou de força maior, a
culpa do lesado (ambos no art. 11.º, n.º 1, última parte do RRCEC) e a responsabilidade
de terceiro (art. 11.º, n.º 2 do RRCEC). Estas causas são cumuláveis entre si, devendo
apurar-se em que proporção cada uma delas, assim como o risco criado pela
administração, concorreu para o dano.
Quanto ao caso fortuito ou de força maior, tal como observam Marcelo
REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «Existe caso de força maior,
excludente da responsabilidade pelo risco, quando a criação ou o aumento do risco que
conduziu ao dano tenha sido provocado por uma circunstância inevitável (por exemplo,
uma catástrofe natural, uma guerra); apesar de a lei não se lhe referir expressamente,
(202) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 39.
111
parece que também exclui a responsabilidade pelo risco o chamado caso fortuito,
consistente em circunstâncias imprevisíveis, ainda que, a terem sido previstas, fossem
evitáveis (por exemplo, um comportamento humano não gerador de responsabilidade
civil)» (203
). Muito embora a lei não o expresse, deve entender-se que, para que o caso
fortuito ou de força maior exclua a responsabilidade pelo risco, repondo-se a regra geral
segundo a qual cada esfera jurídica suporta os danos que nela se produzam, é preciso
que aquele seja estranho ao funcionamento do serviço; isto é, o risco de um caso
fortuito ou de força maior pode, consoante as circunstâncias, excluir ou reduzir a
responsabilidade da administração (art. 11.º, n.º 1 do RRCEC); no último caso, haverá
que apurar em que proporção o risco criado e o caso fortuito ou de força maior
concorreram para a produção do dano sofrido pelo (s) lesado (s).
Quanto à culpa do lesado, esta afere-se nos mesmos termos que na
responsabilidade delitual, podendo, consoante as circunstâncias, excluir ou reduzir a
responsabilidade da administração (art. 11.º, n.º 1 do RRCEC); no último caso, haverá
que apurar em que proporção o risco criado e a culpa do lesado concorreram para a
produção do dano/da lesão.
Quanto à responsabilidade de terceiro, esta depende da verificação, quanto a
outrem, dos requisitos da responsabilidade civil; ao falar em «facto culposo de terceiro»,
a lei parece apontar só para a responsabilidade delitual daquele, mas pode também
tratar-se de responsabilidade pelo risco (embora não pelo mesmo risco). Tal como
dizem Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «O terceiro
responsável pode ser uma pessoa colectiva administrativa ou um particular, o que
determina a aplicação do correspondente regime de responsabilidade civil; não pode,
logicamente, ser um titular de órgão ou agente da pessoa colectiva responsável pelo
risco, no exercício das suas funções e por causa delas (pois, nesse caso, estar-se-ia
perante responsabilidade administrativa delitual). A responsabilidade de terceiro pode
excluir ou reduzir a responsabilidade da administração, devendo, no último caso,
apurar-se em que proporção o risco criado e o facto de terceiro concorreram para a
produção do dano (embora apenas a possibilidade de redução esteja implícita no art.
11.º, 2 RRCEC). Quando a responsabilidade pelo risco coexista com a responsabilidade
de terceiro, a administração responde solidariamente com o terceiro, sem prejuízo do
exercício do regresso; trata-se de uma solução altamente discutível, na medida em que
(203) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 40.
112
nada justifica que o erário público funcione como garante da responsabilidade de
pessoas que não são titulares de órgãos ou agentes públicos» (204
).
5. A responsabilidade extracontratual por facto lícito
Começaremos por expor o fundamento da responsabilidade civil administrativa
por facto lícito. Assim, nas palavras de Marcelo REBELO DE SOUSA e de André
SALGADO DE MATOS: «Por vezes, a lei permite que, no exercício da função
administrativa e em benefício do interesse público, a administração sacrifique posições
jurídicas subjectivas dos particulares. Em alguns destes casos, a lei determina que a
administração seja responsável pelos danos provocados, independentemente de qualquer
ilicitude ou risco especial; trata-se, portanto, de uma responsabilidade por facto lícito»
(205
). A responsabilidade civil por facto lícito decorre do princípio da justa distribuição
dos encargos públicos: segundo tal princípio, os prejuízos resultantes do exercício de
uma atividade que visa a prossecução do interesse coletivo devem ser suportados pela
coletividade que dela beneficia e não de forma exclusiva pelo lesado; como acentuam
Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «pelo dispêndio de
recursos públicos na reparação de prejuízos causados, os titulares dos órgãos
administrativos respondem, por sua vez, perante a colectividade pagadora de impostos.
O princípio da justa distribuição dos encargos públicos fundamenta-se, por sua vez, no
princípio do Estado de direito (art. 2.º CRP) e no princípio da igualdade (art. 13.º CRP)»
(206
).
Agora explicaremos as modalidades da responsabilidade civil administrativa por
facto lícito. Neste sentido, como acentuam Marcelo REBELO DE SOUSA e André
SALGADO DE MATOS: «Existem duas modalidades de responsabilidade civil por
facto lícito: a responsabilidade pelo sacrifício de bens pessoais e por danos causados em
estado de necessidade (art. 16.º RRCEC) e a responsabilidade civil pela legítima não
reconstituição da situação actual hipotética (arts. 45.º, 49.º, 102.º, 5, 166.º e 178.º do
CPTA)» (207
).
Repetindo Marcelo REBELO DE SOUSA e de André SALGADO DE MATOS:
«A disciplina legal da matéria da responsabilidade por facto lícito no art. 16.º do
RRCEC é bastante infeliz. Provavelmente, partindo da verificação de que as pretensões
(204) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., pp. 40- 41.
(205) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 41.
(206) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 41. (207) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 42.
113
indemnizatórias pelo sacrifício de direitos patrimoniais privados são fundamentalmente
alheias à responsabilidade civil, o legislador quis afastar-se dos quadros conceptuais
deste instituto (daí o ter-se referido a «indemnização» e não a «responsabilidade»).
Contudo, esqueceu-se de que o dever de indemnizar por factos lícitos pode também
decorrer do sacrifício de direitos de carácter pessoal e, ao regular unitariamente o dever
de «indemnização pelo sacrifício», visou sujeitar as pretensões indemnizatórias pelo
sacrifício de direitos patrimoniais privados à ocorrência de um dano especial e anormal
e, afinal, submeter aquelas pretensões ao modelo de reintegração sucessiva da
responsabilidade civil, em ambos os casos com violação do art. 62.º, 2 CRP. Esta
circunstância deve levar a uma interpretação restritiva conforme com a Constituição do
art. 16.º RRCEC, dele se excluindo as pretensões indemnizatórias pelo sacrifício de
direitos patrimoniais privados; o que resta para a disposição em causa é, assim, apesar
da sua epígrafe, exclusivamente matéria de responsabilidade civil por facto lícito. Por
outro lado, o art. 16.º RRCEC eliminou o regime específico anteriormente existente
para a responsabilidade por actos praticados em estado de necessidade, que, assim,
numa solução de conformidade constitucional duvidosa e não passível de superação
através de interpretação constitucionalmente conforme (uma vez que esta pretensão
reintegratória não pode, por definição, reconduzir-se ao modelo de indemnização
concomitante das pretensões indemnizatórias pelo sacrifício de direitos patrimoniais
privados), passa a ficar dependente do carácter especial e anormal do encargo ou dano»
(208
).
Passaremos agora a explicar a responsabilidade pelo sacrifício de bens pessoais.
O art. 16.º do RRCEC reporta-se à responsabilidade pelo sacrifício em termos
excessivamente amplos: por interpretação conforme com a Constituição, as pretensões
indemnizatórias pelo sacrifício de direitos patrimoniais privados devem ser excluídas do
seu âmbito e enquadradas em termos substancialmente diversos dos nele consagrados.
De salientar que o âmbito do art. 16.º do RRCEC fica reduzido à responsabilidade pelo
sacrifício de bens pessoais (designadamente a vida, a integridade física, a saúde e a
qualidade de vida, bem como os direitos de personalidade referidos no art. 26.º, n.º 1
CRP) e por danos causados em estado de necessidade.
Iremos agora mencionar e explicar os pressupostos da responsabilidade civil
pelo sacrifício de bens pessoais: facto voluntário, licitude, dano e nexo de causalidade.
(208) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 42.
114
Começaremos pelo facto voluntário, que pode ser um ato administrativo ou um
ato material; a exclusão dos regulamentos do conceito de ato voluntário prende-se com
a sua impossibilidade natural para produzir danos ressarcíveis no âmbito deste tipo de
responsabilidade civil, em virtude do caráter necessariamente especial do dano.
Porém, faremos agora referência à licitude. Desta forma, para haver
responsabilidade pelo sacrifício de bens pessoais, o facto voluntário tem que ser lícito.
O art. 16.º RRCEC não refere expressamente este pressuposto, mas ele infere-se
sistematicamente da conjugação com os preceitos concernentes à responsabilidade
delitual e à responsabilidade pelo risco. No caso de responsabilidade por danos
causados em estado de necessidade, a ilicitude da atuação administrativa tem que estar
justificada por estado de necessidade, abarcando todos os seus pressupostos,
designadamente a estrita necessidade da atuação administrativa para a obtenção do
objetivo visado (que inclui a exigência de que ela seja ditada pelo interesse público,
expressa no art. 16.º do RRCEC); caso não haja justificação da ilicitude, recai-se na
esfera da responsabilidade delitual.
Quanto ao dano, nem todos os danos são suscetíveis de ressarcimento no âmbito
desta modalidade de responsabilidade civil. Em primeiro lugar, tem que tratar-se em
regra de um dano/uma lesão em bens pessoais; só poderá tratar-se de um dano em bens
patrimoniais se tiver sido causado em estado de necessidade; salvo esta situação,
tratando-se de danos em bens patrimoniais, recai-se na pretensão indemnizatória pelo
sacrifício de direitos patrimoniais privados. Em segundo lugar, tem que se tratar de um
encargo ou dano especial e anormal (art. 16.º do RRCEC) sendo que é considerado
especial o encargo ou dano causado a pessoas individualmente identificáveis; é
considerado anormal o encargo ou dano que ultrapassa o risco normal da vida social.
Cabe-nos agora explicar o nexo de causalidade. A exigência de nexo de
causalidade entre o facto lícito e o encargo ou dano especial e anormal retira-se
implicitamente do art. 16.º do RRCEC pelas expressões: («imponham encargos ou
causem danos»). A averiguação do nexo de causalidade não apresenta especificidades
relativamente à responsabilidade delitual.
Por fim, retrataremos a figura da responsabilidade pelo não restabelecimento
legítimo de posições jurídicas subjetivas violadas. Como recordam Marcelo REBELO
DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS: «Em regra, os particulares lesados nas
suas posições jurídicas subjectivas por condutas administrativas têm direito à
eliminação daquelas condutas e a que seja reconstituída na sua esfera jurídica a situação
115
que existiria se aquelas condutas não tivessem ocorrido. Por vezes, a lei admite que a
reconstituição não ocorra, por tal ser impossível ou manifestamente inconveniente, mas
impõe à administração – que, recorde-se, praticou a conduta ilegal – o dever de
indemnizar o lesado.
Esta indemnização é um sucedâneo de restabelecimento das posições jurídicas
subjectivas violadas (e, em particular, da reconstituição da situação actual hipotética) e
não visa, por isso, ressarcir o lesado de todos os danos provocados pela conduta ilegal
da administração. Em coerência com isto, os pressupostos da responsabilidade civil por
facto lícito são simplificados: para que haja lugar a esta modalidade de responsabilidade
civil é apenas necessário que se verifiquem os pressupostos das pretensões ao
restabelecimento de posições jurídicas subjectivas violadas e que se verifique uma
situação em que é legítima a sua não satisfação pela administração. A subsistência deste
regime, não previsto na legislação geral da responsabilidade civil, é assegurada pelo art.
2.º, 1 RRCEC» (209
). De mencionar ainda que, diferentes destas situações são aquelas
em que a administração responde pelo não restabelecimento ilegítimo de posições
jurídicas subjetivas violadas: nesta situação, as condutas administrativas são ilegais e,
por esse motivo, a responsabilidade civil a que dêem lugar é delitual e não por facto
lícito (210
).
(209) Cfr. Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 44.
(210) Relativamente à inexecução ilegal de sentenças dos tribunais administrativos, arts. 159.º, n.º 1, alínea a), 168.º, n.º 3 e 179.º, n.º 6 do CPTA.
116
CAPÍTULO III
A responsabilidade do Estado por imposição de sacrifício: base legal, abrangência
e o Código das Expropriações no Direito do Urbanismo
1. A responsabilidade por imposição de sacrifício
O artigo 16.º do RRCEE tem por epígrafe «Indemnização pelo sacrifício» e
refere que: «O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público indemnizam os
particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem
danos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização, atender-se,
designadamente, ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse
violado ou sacrificado».
Pretendemos caraterizar a figura da indemnização pelo sacrifício, autonomizada
no artigo 16.º do RRCEE, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, e alterado
pontualmente pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho, dar uma definição do seu sentido e
alcance e situá-la no contexto global do «direito das prestações de ressarcimento e de
indemnização jurídico-públicas».
Nas palavras de João CAUPERS: «O último preceito da nova lei, o artigo 16.º,
estatui sobre um tema que é tradicionalmente incluído entre nós na temática da
responsabilidade.
Estão em causa daquelas situações em que o Estado ou outras entidades
públicas imponham a particulares encargos ou causem danos especiais e anormais no
interesse da colectividade – por razões de interesse público, na letra da lei» (211
).
José Joaquim GOMES CANOTILHO, na sua Dissertação do Curso
Complementar de Ciências Político-Económicas da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra (1970/71), escreveu-a sobre um tema problemático. Publicada
em Janeiro de 1974, intitulada O problema da responsabilidade do Estado por actos
lícitos, aquela Dissertação, ainda nos dias de hoje, decorridos quase 40 (quarenta) anos,
constitui uma obra de referência acerca da matéria, onde o ilustre autor português
defende, de forma profunda e inovadora, o alargamento do fenómeno indemnizatório
estadual por atos jurídicos ou materiais da Administração aos atos legislativos e
jurisdicionais, criando-se, dessa forma, um «sistema totalizante das prestações
(211) Cfr. João CAUPERS, A Responsabilidade do Estado e outros Entes Públicos, Capítulo VIII, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 15.
117
reparatórias», e propõe uma «nova visualização do instituto da responsabilidade, onde a
responsabilidade objectiva obtenha a mesma dignidade da responsabilidade subjectiva».
Lendo bem JOHN MILTON: «a juventude mostra o Homem tal como a manhã
mostra o dia», sendo de referir que a mencionada obra do jovem jurista José Joaquim
GOMES CANOTILHO antecipou e mostrou a genialidade do Professor de Direito, do
Jus-Publicista, do Pensador e do ilustríssimo Homem de Cultura que atualmente
conhecemos e que muito tem contribuído para o estudo do Direito Público.
De referir que o RRCEE disciplina quatro tipos de responsabilidade do Estado
em sentido amplo, os quais têm origem em factos diferentes, assentam em diferentes
pressupostos e obedecem a regimes jurídicos diversos. Porém, quanto ao fundamento
jurídico-constitucional, este também não é o mesmo para todos eles.
Destarte, tal como afirmam GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA:
«poderemos falar de um “superconceito” de responsabilidade do Estado em sentido
amplo, englobador daqueles tipos de responsabilidade, ou, dizendo as coisas de outro
modo, de um instituto unitário de responsabilidade do Estado, não obstante as
importantes peculiaridades de cada um dos tipos que a integram» (212
), e nas palavras de
GOMES CANOTILHO, «e cujo escopo comum é a transferência do dano do sujeito
lesado para o autor do facto danoso» (213
).
Ora, os quatro tipos enunciados são os seguintes: a responsabilidade civil por
danos decorrentes do exercício da função administrativa, a qual se desdobra em
responsabilidade por facto ilícito e responsabilidade pelo risco; a responsabilidade civil
por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional; a responsabilidade civil por
danos decorrentes do exercício da função legislativa (214
). Embora a norma do artigo
(212) Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra,
Coimbra Editora, 2007, p. 432.
(213) Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, Coimbra, Almedina, 1974, p. 99.
Ainda nas palavras de GOMES CANOTILHO: «Conclui-se, assim, que qualquer discurso sobre a ressarcibilidade
reconduz-se ao quadro precedente, sendo mais ou menos indiferente a natureza pública ou privada do sujeito ao qual se imputa o evento danoso, podendo ainda ser indiferente, no plano dos conceitos gerais, a diversa e específica natureza do objecto da lesão. É
que, não se esgotando a responsabilidade no ilícito e desejando considerar-se no mesmo plano a responsabilidade por risco e por
actos lícitos danosos, parece não poder avançar-se para além da afirmação de que o escopo da responsabilidade é a transferência do dano do sujeito lesado para o agente lesante».
(214) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES
CANOTILHO, in «STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 211, nota 5: «É já vasta a doutrina que se tem
debruçado sobre a disciplina jurídica da responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício das funções administrativa,
jurisdicional e legislativa no novo RRCEE. Assim, J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A Responsabilidade por Danos Decorrentes do Exercício da Função Administrativa na Nova Lei sobre Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades
Públicas, in «Revista de Legislação e de Jurisprudência (RLJ)», Ano 137.º, n.º 3951, pp. 360 e segs.; J. M. CARDOSO DA
COSTA, Sobre o Novo Regime da Responsabilidade do Estado por Actos da Função Judicial, in «RLJ», Ano 138.º, n.º 3954, pp. 156 e segs.; MARCELO REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa, Direito
Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, Dom Quixote, 2008; Fernando ALVES CORREIA, A indemnização pelo Sacrifício, in:
«Revista de Direito Público e Regulação», n.º 1, Maio, ed. Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre), FDUC, 2009, p. 63-75; Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa, Direito
118
16.º do RRCEE comporte a indemnização dos danos especiais e anormais que decorrem
de atos políticos (a nível exemplar, a proibição de acostagem em portos nacionais de
navios, nos casos em que não ocorra uma violação das normas concernentes a
transportes marítimos, o encerramento de uma embaixada ou de um consulado no
estrangeiro ou o não reconhecimento de uma situação de calamidade pública),
entendemos que a responsabilidade extracontratual do Estado por danos oriundos do
exercício da função política, fora dos casos cobertos pela indemnização pelo sacrifício,
está excluída do perímetro de aplicação daquele RRCEE, como resulta do seu art. 1.º,
n.º 1, que circunscreve o âmbito de aplicação do mesmo aos «danos resultantes do
exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa». Parece-nos, pelo
exposto, dever-se a um lapso do legislador a utilização, nas epígrafes do Capítulo IV e
do art. 15.º do RRCEE, da frase «função político-legislativa», porquanto aí é
disciplinada tão-só a responsabilidade civil do Estado e das regiões autónomas por
danos resultantes da função legislativa; e a indemnização pelo sacrifício, prevista no art.
16.º do RRCEE (porém, não ignoramos que tal posição segundo a qual a indemnização
pelo sacrifício é uma modalidade de responsabilidade civil do Estado e demais
entidades públicas não é aceite por todos). Desta forma, nas palavras de João
CAUPERS, este entende que aquela não configura uma situação de responsabilidade,
antes significa algo que está «mais perto de uma situação como a expropriação por
utilidade pública do que um caso de responsabilidade civil» (215
).
No que concerne ao fundamento constitucional das quatro categorias de
responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas já referidas, podemos falar
numa base constitucional comum a todas elas. Assim, é de mencionar que tal alicerce
constitucional comum é o princípio do Estado de direito democrático, princípio este
condensado nos artigos 2.º e 9.º, alínea b), da CRP, do qual deriva um direito geral dos
cidadãos à reparação dos danos provenientes de ações e omissões. De salientar que tem
sido esta a orientação do TC, expressa em vários arestos, de que são exemplo os
Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, Dom Quixote, 2008; L. CABRAL DE MONCADA, Responsabilidade Civil Extra-
contratual do Estado, A Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, Lisboa, Abreu & Marques Vinhas, 2008; Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, Coimbra,
Coimbra Editora, 2008; A. MENEZES CORDEIRO, A Responsabilidade Civil do Estado, in: Homenagem ao Professor Doutor
Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, Almedina, 2010, pp.883 e segs.; Diogo FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, pp. 671 e segs.; João CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo,
10.ª ed., Lisboa, Âncora, 2009, pp. 317 e segs.; Pedro MACHETE, A Responsabilidade da Administração por Facto Ilícito e as
Novas Regras de Repartição do Ónus da Prova, in: «Cadernos de Justiça Administrativa», n.º 69 (2008), pp. 30 e segs.; Carla AMADO GOMES, Três Textos sobre o Novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades
Públicas, Lisboa, AAFDL, 2008; e Maria José RANGEL DE MESQUITA, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do
Estado e demais Entidades Públicas e o Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2009»., de Fernando ALVES CORREIA. (215) Cfr. João CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, cit., pp. 342-343.
119
Acórdãos n.ºs 385/2005 e 444/2008 (216
). Como recorda Fernando ALVES CORREIA:
«Sublinha-se, neste último, que, no princípio estruturante do Estado de direito
democrático, consagrado no artigo 2.º da Lei Fundamental, colhe-se “um direito geral à
reparação dos danos, de que são expressão particular os direitos de indemnização
previstos nos artigos 22.º, 37.º, n.º4, 60.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2, da Constituição […].
Constituindo missão do Estado de direito democrático a protecção dos cidadãos contra a
prepotência, o arbítrio e a injustiça, não poderá o legislador ordinário deixar de
assegurar o direito à reparação dos danos injustificados que alguém sofra em
consequência da conduta de outrem. A tutela jurídica dos bens e interesses dos cidadãos
reconhecidos pela ordem jurídica e que foram injustamente lesionados pela acção ou
omissão de outrem, necessariamente assegurada por um Estado de direito, exige, nestes
casos, a reparação dos danos sofridos, tendo o instituto da responsabilidade civil vindo a
desempenhar nessa tarefa um papel primordial» (217
).
Tal como nos refere Fernando ALVES CORREIA: «Mas se o princípio do
Estado de direito democrático nos fornece a base constitucional comum a todas as
apontadas espécies de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
entidades públicas – um tal princípio é mesmo a credencial constitucional de todas as
modalidades de responsabilidade civil extracontratual e contratual do Estado e demais
entes públicos e dos particulares, sejam reguladas pelo direito público ou pelo direito
privado -, encontramos no texto constitucional regras e princípios específicos que
constituem o suporte das diferentes modalidades de responsabilidade civil
extracontratual do Estado e demais entidades públicas» (218
). Como alerta Fernando
ALVES CORREIA: «Assim, é no artigo 22.º da Constituição que, devido à sua
formulação ampla, se encontra o fundamento constitucional da responsabilidade civil
extracontratual por factos ilícitos e culposos praticados no exercício da função
administrativa, da função legislativa e da função jurisdicional – norma essa que deve ser
interpretada em conjugação com outros preceitos constitucionais atinentes à
responsabilidade civil dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, como o artigo
271.º (responsabilidade civil dos funcionários e agentes do Estado e das demais
(216) Assim, o primeiro publicado no DR, II Série, de 18 de Outubro de 2005, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 62.º Vol.
(2005), pp. 1027 e segs., e o segundo no DR, II Série, de 28 de Outubro de 2008, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 73.º Vol. (2008), pp. 107 e segs.
(217) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, in:
«STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 212-213.
(218) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, in:
«STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 213.
120
entidades públicas), o artigo 117.º, n.º 1 (responsabilidade civil dos titulares de cargos
políticos pelas acções ou omissões que pratiquem no exercício das suas funções), e o
artigo 216.º, n.º 2 (responsabilidade civil dos juízes)» (219
).
A indemnização pelo sacrifício, porque assente numa atividade pública lícita,
tem o seu fundamento no princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos
públicos, que é uma expressão do princípio da igualdade, plasmado no art. 13.º, n.º 1, da
CRP, a pessoa ou pessoas que suportam, por razões de interesse público, encargos ou
danos especiais (singulares) e anormais (graves) que contribuiriam em maior medida do
que os demais cidadãos para o interesse público, no caso de não ressarcimento daqueles
danos ou encargos, pelo que haveria uma violação do princípio da igualdade dos
cidadãos perante os encargos públicos se os danos ou encargos por eles suportados não
fossem indemnizados. Assim sendo, em contrapartida, a indemnização pelo sacrifício,
porque assente numa atividade pública lícita, não tem o seu fundamento no art. 22.º da
Lei Fundamental Portuguesa. No sentido referido vai a recente jurisprudência do STA.
Deste modo, o Ac. de 17 de Dezembro de 2008, Processo n.º 348/08, afirmou que «o
princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos constitui o
fundamento axiológico da responsabilidade civil extracontratual por facto lícito», a qual
é, na atualidade, uma das dimensões da indemnização pelo sacrifício.
Destarte, importa salientar que os quatro tipos de responsabilidade civil
extracontratual do Estado e demais entidades públicas devem ser perspetivados como
concretização de um direito fundamental do cidadão à reparação dos danos – direito
fundamental este que não se trata de um direito ilimitado ou absoluto, estando antes
submetido a «um espaço, maior ou menor, de liberdade de conformação legal» (220
).
Revisitando Fernando ALVES CORREIA: «O carácter não absoluto ou ilimitado
daquele direito fundamental à reparação dos danos deriva do facto de se reconhecer ao
legislador um certo espaço de discricionaridade na densificação dos respectivos
pressupostos, de modo a evitar um alargamento excessivo das pretensões
indemnizatórias dos cidadãos perante o Estado e demais entidades públicas» (221
). Ora,
resulta, também, da possibilidade de o legislador, nos casos de intervenções ilegais dos
(219) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES CANOTILHO, in:
«STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 213. (220) Cfr. Acórdãos do TC n.ºs 45/99, 5/2005, 13/2005 e 683/2006, sendo que o primeiro está publicado no DR, II Série, de 26 de
Março de 1999, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42.º Vol (1999), p. 191 e segs., o segundo no DR, II Série, de 18 de
Abril de 2005, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 61.º Vol. (2005), p. 31 e segs., e o quarto em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 66.º Vol. (2006), pp. 687 e segs.
(221) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES CANOTILHO, in:
«STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 214.
121
poderes públicos nos direitos dos cidadãos, articular a tutela primária dos cidadãos,
através de uma ação administrativa especial, ação esta destinada a eliminar os atos de
autoridade praticados de forma indevida e a condenar a Administração à prática de atos
da mesma natureza ilegalmente omitidos, com todas as consequências nos planos legal e
de facto – a qual, na grande maioria dos casos, será suficiente para assegurar a tutela
efetiva dos direitos dos particulares, isto é, permitirá colocá-los na situação em que se
encontrariam, caso não houvesse sido praticada qualquer ilegalidade -, com a tutela
secundária, a realizar através de uma ação administrativa comum, direcionada à
eliminação dos danos provocados aos direitos dos cidadãos pelas mencionadas
intervenções ilegais, quando a mesma não seja possível através dos meios de tutela
primária.
O cariz secundário da responsabilidade civil relativamente à tutela primária é
evidenciado no art. 4.º do RRCEE, nos seguintes termos: «Quando o comportamento
culposo do lesado tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos
causados, designadamente por não ter utilizado a via processual adequada à eliminação
do acto jurídico lesivo, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas
de ambas as partes e nas consequências que delas tenham resultado, se a indemnização
deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».
Cabe-nos, agora, fazer uma breve comparação com o regime transato. Assim, o
art. 16.º do RRCEE autonomizou a indemnização pelo sacrifício relativamente às
demais espécies de responsabilidade civil extracontratual, dissociando-a do tipo de
atividade pública exercida. Tal localização sistemática da indemnização pelo sacrifício,
uma localização ao lado e separada da responsabilidade decorrente da função
administrativa, da função jurisdicional e da função legislativa, tem relevantes
consequências quanto ao seu perímetro de aplicação. Contudo, já anteriormente, o
CPTA tinha autonomizado, na alínea g) do n.º 2 do art. 37.º, a «condenação ao
pagamento de indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de
interesse público» como um dos propósitos que podem ser deduzidos através da ação
administrativa comum, ao lado da «responsabilidade civil das pessoas colectivas, bem
como dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, incluindo acções de
regresso», prevista, também como um dos processos que seguem a forma de ação
administrativa comum, na alínea f) do n.º 2 do art. 37.º do CPTA.
De referir que o art. 16.º do RRCEE define os pressupostos da indemnização
pelo sacrifício. Assim:
122
«O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público indemnizam os
particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem
danos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização, atender-se,
designadamente, ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse
violado ou sacrificado».
O art. 2.º do RRCEE, dá-nos a noção de danos ou encargos especiais e anormais
(222
).
Relativamente ao que estabelecia o DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967
– que continha o Regime da Responsabilidade da Administração Pública por Atos de
Gestão Pública, verificamos grandes diferenças em relação ao que estabelece o RRCEE,
que revogou e substituiu o DL n.º 48 051.
Em primeiro lugar, a expressão indemnização pelo sacrifício não era sequer
utilizada no DL n.º 48 051. Nas palavras de Fernando ALVES CORREIA: em segundo
lugar, «a indemnização dos encargos ou danos especiais e anormais era reportada pelo
Decreto-Lei 48 051 exclusivamente aos actos administrativos legais ou actos materiais
lícitos, praticados, no interesse geral, pelo Estado e demais pessoas colectivas públicas
(art. 9.º, n.º 1) e ao sacrifício especial, no todo ou em parte, de coisa ou direito de
terceiro, operado pelo Estado e demais pessoas colectivas públicas, em caso de
necessidade e por motivo de imperioso interesse público (art. 9.º, n.º 2). Tetrio, os casos
apontados de responsabilidade civil derivavam sempre de actos administrativos ou de
actos materiais imputados à Administração Pública» (223
). Em quarto lugar, coube à
doutrina e à jurisprudência definir o conceito de danos ou encargos especiais e
anormais, uma vez que o DL n.º 48 051 não definia tal conceito.
No entanto, no quadro do RRCEE, a indemnização pelo sacrifício trata-se de um
instituto gregador de todos os casos de indemnização de danos ou encargos especiais e
anormais, resultantes de atos de poder público lícitos, exercidos por razões de interesse
público. Esta abrange, inquestionavelmente, os casos de responsabilidade civil
extracontratual da Administração pública por atos lícitos (atos administrativos legais ou
atos materiais lícitos), previstos no art. 9.º, n.º 1 do (anterior) DL n.º 48 051, de 21 de
Novembro de 1967, tal como os casos impositivos de sacrifícios especiais de coisas ou
(222) Cfr., o disposto no art. 2.º do RRCEE: «Para os efeitos do disposto na presente lei, consideram-se especiais os danos que
incidam sobre uma pessoa ou um grupo, sem afectarem a generalidade das pessoas, e anormais os que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito».
(223) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES CANOTILHO, in:
«STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 216.
123
direitos de terceiro, decorrentes de uma atuação da Administração, em estado de
necessidade e por motivo imperioso de interesse público condensados no art. 9.º, n.º 2,
do DL n.º 48 051.
Não existem dúvidas, desta forma, quanto ao cabimento, no âmbito da aplicação
da norma do art. 16.º do RRCEE, dos denominados casos de responsabilidade civil
extracontratual da Administração Pública por atos jurídicos (atos administrativos e
regulamentos) e atos materiais lícitos.
Como lembra Fernando ALVES CORREIA: «Estamos perante atos jurídicos ou
materiais praticados por órgãos da Administração Pública, por motivos de interesse
público, no respeito das leis e dos princípios jurídicos fundamentais regentes da
actividade administrativa, mas que, por produzirem encargos ou danos especiais
(singulares) e anormais (graves), devem ser acompanhados de indemnização» (224
).
Como enuncia GOMES CANOTILHO: «Dado que estamos perante uma
actividade administrativa lícita - licitude que advém não só do seu desenvolvimento de
acordo com a lei e o direito, mas, ainda, do facto de a ressarcibilidade dos danos estar
prevista na lei -, compreende-se que não sejam indemnizáveis todos e quaisquer danos
ou encargos, mas apenas os dotados de especialidade e gravidade, sob pena de
insolúveis problemas financeiros paralisadores da actividade do Estado e das demais
entidades públicas. Fala-se, a este propósito, de “elementos-travão” de uma total
socialização dos prejuízos» (225
).
Contudo, tal como o fazia o art. 9.º, n.º 1, do DL n.º 48 051, o art. 16.º do
RRCEE apenas considera como merecedores de indemnização os encargos ou danos
especiais e anormais. Assim, especiais são «os danos ou encargos que incidam sobre
uma pessoa ou um grupo, sem afectarem a generalidade das pessoas». Anormais são
aqueles que, «ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua
gravidade, a tutela do direito». Tal noção de «encargos ou danos especiais e anormais»,
de natureza patrimonial ou pessoal (v.g., vida, saúde e liberdade), constante do art. 2.º
do RRCEE, inspirou-se nitidamente na nossa doutrina nacional mais representativa. Nas
palavras de Fernando ALVES CORREIA: «A influência da doutrina e jurisprudência
alemãs é manifesta, dado que a apontada noção de “encargos ou danos especiais e
anormais” constitui uma síntese das duas grandes teorias jurisprudenciais e doutrinais
(224) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES CANOTILHO, in:
«STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 218. (225) Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, cit., p. 221.
124
respeitantes à demarcação entre a expropriação e a vinculação social da propriedade do
solo [a teoria do sacrifício especial (Sonderopfertheorie) e a teoria da gravidade
(Schweretheorie)], congregando elementos formais e materiais na definição daquele
conceito» (226
).
Quanto à sua caraterização, a caraterização da especialidade e da anormalidade
de um encargo ou dano, para efeitos da sua indemnização, deve ser feita tendo em conta
as circunstâncias do caso. De facto, ambos (especialidade e anormalidade) são
verdadeiros conceitos indeterminados, carecidos de preenchimento valorativo na
aplicação ao caso concreto. No entanto, por vezes, o legislador procede, ele mesmo, a
essa caraterização e impõe, em certas situações, a atribuição de uma indemnização. É o
que acontece com o dever de indemnização dos danos resultantes da alteração por
iniciativa da câmara municipal das condições da licença ou comunicação prévia de uma
operação de loteamento, desde que tal alteração se mostre necessária à execução de um
superveniente plano municipal ou especial de ordenamento do território.
Na verdade, o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE),
aprovado pelo DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro, alterado, por último, pela Lei n.º
60/2007, de 4 de Setembro, pelo DL n.º 26/2010, de 30 de Março, e pela Lei n.º
28/2010, de 2 de Setembro, determina, no art. 48.º, n.º 1, que «as condições da licença
ou comunicação prévia de operação de loteamento podem ser alteradas por iniciativa da
câmara municipal desde que tal alteração se mostre necessária à execução de plano
municipal de ordenamento do território, plano especial de ordenamento do território,
área de desenvolvimento urbano prioritário, área de construção prioritária ou área de
reabilitação urbana». Porém, logo adianta, no n.º 4 do art. 48.º, que «a pessoa colectiva
que aprovar os instrumentos referidos no n.º 1 que determinem directa ou
indirectamente os danos causados ao titular do alvará e demais interessados em virtude
do exercício da faculdade prevista no n.º 1 é responsável pelos mesmos nos termos
estabelecidos no DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, em matéria de
responsabilidade por actos lícitos» (227
).
Por fim, e é o que acontece com o art. 71.º do DL n.º 309/2009, de 23 de
Outubro (228
), nos termos do qual «os prejuízos decorrentes de servidões administrativas
(226) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, Almedina, 1989, pp. 494-505.
(227) De referir, (agora, «indemnização pelo sacrifício»).
(228) Diploma que «estabelece o procedimento de classificação dos bens imóveis de interesse cultural, bem como o regime jurídico das zonas de protecção e do plano de pormenor de salvaguarda».
125
ou de outras restrições resultantes da aplicação do presente decreto-lei são
indemnizáveis nos termos do artigo 16.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro».
Por fim, em suma, interessa realçar o conteúdo da indemnização pelo sacrifício.
Assim, no que respeita ao conteúdo da indemnização pelo sacrifício o mesmo é, no
fundamental, determinado pela razão de ser do próprio instituto: a rutura da igualdade
dos cidadãos perante os encargos públicos (229
).
2. A abrangência da responsabilidade por imposição de sacrifício e as
indemnizações compensatórias pelo sacrifício de atuações administrativas
lícitas ou em estado de necessidade
Debruçando-nos sobre o perímetro de aplicação da indemnização pelo sacrifício,
esta abrange, desde logo, os danos especiais e anormais decorrentes do exercício da
função administrativa, designadamente os derivados de atos administrativos lícitos e
ações praticadas em estado de necessidade administrativa (230
), a que se referiam os n.ºs
1 e 2 do art. 9.º do DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967.
Porém, a localização sistemática da indemnização pelo sacrifício no Capítulo V
do RRCEE, separada da responsabilidade associada às funções administrativa,
jurisdicional e legislativa, a não imputação da indemnização pelo sacrifício a nenhuma
específica função estadual, assim como o estabelecimento pelo art. 16.º do RRCEE
como requisito da indemnização pelo sacrifício de razões de interesse público, sem
qualquer outra especificação em relação à natureza da atividade desenvolvida,
conduzem à conclusão de que aquela não engloba somente os danos especiais e
(229) Cfr., para mais desenvolvimentos vd., Pedro MACHETE, Artigo 16.º - Indemnização pelo sacrifício, in: Rui MEDEIROS
(org.), Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2013, pp. 473-474 e segs.
(230) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES
CANOTILHO, in: «STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 220, nota 16: «O estado de necessidade administrativa
constitui um domínio especialmente importante de aplicação da indemnização pelo sacrifício. O estado de necessidade é definido
por José Manuel Sérvulo CORREIA como “a permissão normativa de actuação administrativa discrepante das regras estatuídas, como modo de contornar ou atenuar um perigo iminente e actual para um interesse público essencial, causado por circunstância
excepcional não provocada pelo agente, dependendo a juridicidade excepcional de tal conduta da observância de parâmetros de
proporcionalidade e brevidade e ficando a Administração incursa em responsabilidade pelo sacrifício”. Cfr. Revisitando o Estado de Necessidade, in: Em Homenagem ao Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 745 e 746. Por sua vez
o STA, no seu Acórdão da 1.ª Secção de 4 de Março de 2004, Proc. n.º 1353/03, definiu o estado de necessidade como “actuação
sob o domínio de um perigo iminente e actual para cuja produção não haja concorrido a vontade do agente. Diversamente do que sucedia com o DL n.º 48 051, o RRCEE não refere expressamente o dever de indemnização por
danos especiais causados a terceiros em estado de necessidade e por motivo de imperioso interesse público (cfr. o artigo 9.º, n.º 2, do
Decreto-Lei n.º 48 051). Segundo José. Manuel Sérvulo CORREIA, a ausência de uma tal referência expressa justifica-se por várias razões: em primeiro lugar, não é o RRCEE o local adequado para, em termos sistemáticos, habilitar em geral a Administração a
preterir, em estado de necessidade, os comandos legais normalmente aplicáveis; em segundo lugar, o estado de necessidade é apenas
um espaço, entre outros, de indemnização pelo sacrifício causado por acto lícito – licitude que, no caso de exercício de poderes de necessidade, tem como fonte um princípio geral de direito administrativo, positivado nos artigos 3.º, n.º 2, e 151.º, n.º 1, do Código
do Procedimento Administrativo (CPA). Cfr. ob. cit., p. 726. Sobre a abrangência dos danos causados em estado de necessidade
pela indemnização pelo sacrifício, condensada no artigo 16.º do RRCEE, cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, ob. cit., pp. 305-307»., de Fernando ALVES CORREIA.
126
anormais que decorrem da função administrativa, incluindo, também, os danos especiais
e anormais que resultam do exercício das funções legislativa e política. Contudo, não se
pode falar em indemnização pelo sacrifício associada à função jurisdicional, uma vez
que a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes de erro judiciário,
regulada, em certos e limitados termos, no art. 13.º do RRCEE, é uma forma de
responsabilidade fundada não em licitude mas, em ilicitude, que resulta da prolação de
uma decisão jurisdicional manifestamente inconstitucional ou ilegal ou injustificada por
erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.
Ora, a indemnização pelo sacrifício abrange, deste modo, também a
indemnização de danos especiais e anormais provocados por atos legislativos não
enquadrados na norma do art. 15.º do RRCEE, ou seja, por atos legislativos desprovidos
de qualquer dos vícios nela mencionados. Trata-se da posição sufragada pela
generalidade dos autores que se pronunciaram acerca desta problemática antes do atual
RRCEE (231
) ou que participaram nos debates científicos sobre a Proposta de Lei n.º
95/VIII, apresentada pelo XIV Governo Constitucional à Assembleia da República, que
esteve na génese do vigente RRCEE (232
), assim como por aqueles que já se debruçaram
sobre este novo diploma legal (233
).
Tal como sugere Fernando ALVES CORREIA: «De acordo com este
entendimento, no âmbito da indemnização pelo sacrifício cabe a indemnização dos
danos especiais e anormais decorrentes de actos legislativos conformes à Constituição,
ao direito internacional, ao direito comunitário ou a acto legislativo de valor reforçado
(como sucederá com uma lei que proíbe importações de certos produtos, por razões de
interesse público, designadamente por motivos de protecção de saúde pública, donde
resulta a ruptura de contratos já celebrados entre empresas nacionais e estrangeiras)»
(234
).
Muito embora não contestemos a bondade de tal interpretação, porém, é muito
esquisito que, tendo o legislador definido com especial rigor os pressupostos da
(231) Cfr., a título meramente exemplificativo temos: Rui MEDEIROS, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil Extracontratual do
Estado por Actos Legislativos, Coimbra, Almedina, 1992, p. 235 e segs.; e Maria da Glória F. P. DIAS GARCIA, A
Responsabilidade Civil do Estado e Demais Pessoas Colectivas, Lisboa, Conselho Económico e Social, 1997, pp. 62-67. (232) Margarida CORTEZ, Contributo para uma Reforma da Lei de Responsabilidade Civil da Administração, in Responsabilidade
Civil Extra-Contratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, pp. 257-264; Carlos
FERNANDES CADILHA, Regime Geral da Responsabilidade Civil da Administração Pública, in: «Cadernos de Justiça Administrativa», 2003, n.º 40, pp. 18-31; e João RAPOSO, Novas Fronteiras da Responsabilidade Civil Extracontratual da
Administração, in «Cadernos de Justiça Administrativa», n.º 58, 2006, pp. 67-73.
(233) Cfr., a título exemplificativo, L. CABRAL DE MONCADA, ob. cit., pp. 89-100; Maria José RANGEL DE MESQUITA, ob. cit., p. 15; e Carlos FERNANDES CADILHA, O Regime da Responsabilidade civil Extracontratual do Estado…, cit, pp. 26 e 301.
(234
) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES CANOTILHO, in:
«STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 221-222.
127
responsabilidade civil por danos decorrentes da função legislativa no artigo 15.º do
RRCEE – entre os quais se conta a anormalidade dos danos provocados aos direitos ou
interesses legalmente protegidos dos cidadãos por atos legislativos ou omissões
legislativas e a violação pelos mesmos da CRP, do direito internacional, do direito
comunitário ou de ato legislativo de valor reforçado -, tenha vindo, no art. 16.º do
RRCEE, a abrir a porta à ressarcibilidade dos danos especiais e anormais decorrentes de
todo e qualquer ato legislativo, mesmo que totalmente regular, a título de indemnização
pelo sacrifício.
Contudo, consideramos profundamente criticável que, no âmbito da
responsabilidade por atos da função legislativa, se tenha transitado de uma ausência
quase total de fundamentos de propositura da consequente ação de responsabilidade
civil contra o Estado para uma desmesurada extensão das possibilidades de
responsabilidade. Assim, e como o fez o Presidente da República na fundamentação do
veto político à promulgação do Decreto n.º 150/X da Assembleia da República, que
aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
entidades públicas, questionamo-nos, se não estaremos perante a assunção pelo Estado
de «uma função «previdencialista» dos danos e riscos sociais através de uma expansão
excessiva dos pressupostos de responsabilidade das entidades públicas, com especial
relevo no domínio do exercício da função legislativa», aspeto este que não deixará de
«contribuir, em prejuízo manifesto do interesse nacional, para uma relação pouco
solidária entre o poder político e a sociedade civil».
Porém, é de salientar que a indemnização pelo sacrifício inclui ainda os danos
especiais e anormais provenientes de atos integrados na função política, entendidos,
como refere o Ac. do TC n.º 195/94 (235
), seguindo a doutrina do ilustre Afonso
QUEIRÓ, como volições primárias – e, por isso, situadas ao mesmo nível dos atos
legislativos -, provenientes de um órgão de soberania ou de um «órgão supremo do
Estado» de natureza individual e concreta – sendo, ao nível do seu conteúdo,
semelhantes aos actos administrativos - , as quais representam o exercício de faculdades
directamente conferidas pela CRP, sem sujeição à lei ordinária, fora, portanto, de
qualquer propósito de traduzir, no que concerne à sua índole, uma atuação concreta,
uma volição prévia do legislador ordinário. Ora, divergentemente, o STA vem adotando
um critério mais estrito, compreendendo que «a função política corresponde à prática de
(235) Acórdão publicado no DR, II Série, de 12 de Maio de 1994, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º Vol. (1994), pp. 411 e segs.
128
actos que exprimem opções fundamentais sobre a definição e prossecução dos
interesses ou fins essenciais da colectividade» (cfr. o Ac. de 6 de Março de 2007,
Processo n.º 1143/06) ou que configura uma «actividade de ordem superior, que tem por
conteúdo a direcção suprema e geral do Estado, tendo por objectivos a definição dos
fins últimos da comunidade e a coordenação das outras funções à luz desses fins» (cfr. o
Ac. do STA de 20 de Maio de 2010, Processo n.º 0390/09).
Vamos agora expor alguns exemplos de situações que poderão configurar a
responsabilidade civil pela imposição de sacrifício no âmbito de atos integrados na
função política, que nas palavras de Carlos FERNANDES CADILHA são: «a interdição
de circulação de navios nas águas territoriais ou a proibição de acostagem de navios em
portos nacionais, nos casos em que não ocorra uma violação das regras de transporte
marítimo, o encerramento de postos diplomáticos por motivo de guerra ou tumulto e, no
quadro das relações internas, o não reconhecimento de uma situação de calamidade
pública [impedindo o acesso das autarquias locais a auxílios financeiros especiais,
previstos no artigo 8.º, n.ºs 3 e 5, da Lei de Finanças Locais (Lei n.º 2/2007, de 15 de
Janeiro)]» (236
).
Na indemnização pelo sacrifício, enquanto modalidade de responsabilidade civil
extracontratual do Estado e demais entidades públicas, vão incluídos também danos
especiais e anormais de caráter patrimonial provenientes de atos lícitos integrados na
função administrativa, rejeitando-se, deste modo, a tese que reduz o âmbito de aplicação
do art. 16.º do RRCEE à responsabilidade pelo sacrifício de bens pessoais
(designadamente a vida, a integridade física, a saúde e a qualidade de vida, bem como
os direitos de personalidade referidos no art. 26.º, n.º 1, da CRP) e por danos causados
em estado de necessidade e defende a subordinação a um regime comum das pretensões
indemnizatórias pelo sacrifício de todo e qualquer direito patrimonial privado, situado à
margem da lógica do art. 16.º do RRCEE, encontrando no art. 62.º, n.º 2, da CRP,
concernente à indemnização por expropriação e por requisição por utilidade pública
(237
), e no Código das Expropriações a disciplina da indemnização de todos e quaisquer
(236) Neste sentido ver Carlos FERNANDES CADILHA, O Regime Geral da Responsabilidade Civil da Administração, cit., p. 30, e
O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado, cit., p. 301.
(237) Tal como nos narram GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA: «As figuras da requisição e da expropriação por utilidade pública (art. 62.º, n.º 2 da CRP) acolhem seguramente os conceitos correntes no direito administrativo e no direito civil e consistem
essencialmente na privação, por acto de autoridade pública e por motivo de utilidade pública, da propriedade ou do uso de
determinada coisa. A requisição abrange tipicamente o uso ou a propriedade de móveis, bem como o uso de imóveis; a expropriação designa a ablação da propriedade de imóveis e dos direitos a ela inerentes. A expropriação pode ser efectuada em favor de entidades
129
danos especiais e anormais de caráter patrimonial decorrentes de atos lícitos da função
administrativa (238
).
Destarte, coloca-se a seguinte questão: que danos especiais e anormais de
natureza patrimonial decorrentes de atos lícitos incluídos na função administrativa são
abarcados pela indemnização pelo sacrifício? Cabe-nos agora dar a resposta à questão
colocada. Assim, são, no nosso ponto de vista, aqueles que não resultam de qualquer
intencionalidade ablativa da Administração, antes são uma consequência indesejada,
incidental e não intencional da atividade lícita da Administração. Com efeito, se
estivermos perante danos especiais e anormais de natureza patrimonial provocados pela
Administração de modo intencional e consciente, por razões de interesse público,
estaremos perante atos ablativos de direitos patrimoniais privados, que estão sujeitos,
por força da nossa Lei Fundamental e da lei, a um regime jurídico próprio e estão
submetidos a princípios específicos (239
). Ora, é o que acontece com a expropriação por
utilidade pública (expropriação em sentido clássico e expropriação de sacrifício), a
nacionalização, a requisição por utilidade pública e a ocupação temporária de imóveis.
De referir que como acentua Diogo FREITAS DO AMARAL: «apesar de considerar
que o artigo 16.º do RRCEE consagra uma modalidade de responsabilidade civil
(responsabilidade objectiva por acto lícito, ou pelo sacrifício), indica como exemplos
de indemnização pelo sacrifício, para além dos actos ablativos referidos, as servidões
administrativas, o exercício do poder de modificação unilateral do contrato
administrativo e a existência de uma causa legítima de inexecução de uma sentença de
um tribunal administrativo proferida contra a Administração» (240
) (241
).
No entanto, a não abrangência pela indemnização pelo sacrifício, condensada no
art. 16.º do RRCEE, dos danos especiais e anormais resultantes de atos ablativos de
públicas (o que é o caso normal) ou a favor de particulares, desde que haja nisso um interesse público relevante (planos urbanísticos,
projectos industriais). A expropriação e a requisição podem atingir não apenas a propriedade de particulares, mas também a propriedade de cooperativas, de comunidades locais (bens comunitários) e até a propriedade de entidades públicas diferentes do
Estado, desde que verificados os seus pressupostos e mediante indemnização.
A CRP coloca lado a lado a expropriação e a requisição (nos termos do n.º 2 do art. 62.º da CRP), o que se justifica pelo facto de se tratar em ambos os casos de medidas ablatórias da propriedade ou do seu uso. Mas os institutos têm lógicas diferentes: o
fundamento da expropriação circunscreve-se a razões normais e permanentes de utilidade pública; as razões da requisição são
necessidades urgentes de interesse público nacional, caracterizadas pela excepcionalidade e anormalidade. Além disso, a requisição tem de obedecer a estreitos limites temporais (para não se «camuflar» uma expropriação), está vinculada à observância dos
princípios da adequação, indispensabilidade e proporcionalidade e implica cuidados particulares para a entidade beneficiária. É
constitucionalmente duvidoso que a requisição possa beneficiar instituições particulares no sentido amplo configurado na lei (cfr. L n.º 168/99, arts. 81.º e s.)». Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada,
Vol. I, 4.ª ed (revista), Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 806-807.
(238) Tese defendida por Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, ob. cit., p. 42 e pp. 57-65. (239) Em sentido oposto, defendendo que o art. 16.º do RRCEE, ao referir-se à imposição de encargos e à produção de danos, parece
abarcar também as situações que resultam da intencional imposição de encargos e da intencional provocação de danos, incluindo os
de índole patrimonial, ver Carlos FERNANDES CADILHA, O Regime da Responsabilidade Civil Anotado, cit., pp. 300-301. (240) Cfr. Diogo FREITAS DO AMARAL, ob. cit., pp. 742-744.
(241) Para uma caraterização destas figuras jurídicas ablativas dos direitos patrimoniais privados, ver Fernando ALVES CORREIA,
Manual de Direito do Urbanismo, Vol. II, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 131-167, 171-174 e 384-389, e As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, cit., pp. 47-76.
130
direitos patrimoniais privados encontra o seu fundamento não tanto no facto de a
disciplina jurídica dos mesmos constar da lei especial (cfr. os artigos 2.º, n.º 1, da Lei n.º
67/2007 e 1.º, n.º 1, in fine, do RRCEE), mas antes e sobretudo na circunstância de o
ressarcimento de tais danos ou encargos se alicerçar em princípios constitucionais e
legais que lhes são próprios. Assim, pode afirmar-se que os atos ablativos de direitos
patrimoniais privados delimitam de forma negativa o domínio da responsabilidade civil
da Administração, uma vez que neles a produção do dano e a correspondente
indemnização formam um momento constitutivo da própria atividade pública em causa
e, por isso, um requisito da respetiva legitimidade. Explique-se, contudo, que não é uma
qualquer indemnização que funciona como pressuposto de legitimidade da
expropriação. Há-de ser, pois, uma indemnização que, nos termos do art. 62.º, n.º 2, da
CRP, deve ser justa, isto é, uma indemnização que corresponda ao valor de mercado
(Verkerswert) do bem apropriado, entendido não em sentido estrito ou rigoroso, mas em
sentido normativo, de forma a que se alcance uma compensação integral do sacrifício
infligido ao expropriado e se garanta que este, comparativamente com outros cidadãos
não expropriados, não seja tratado de modo desigual ou injusto; uma indemnização que,
no que concerne ao momento do seu pagamento, tenha lugar contemporaneamente à
expropriação (princípio da paridade temporal da expropriação e do pagamento da
indemnização); e uma indemnização que, no que se reporta à forma do respetivo
pagamento, se verifique em dinheiro e de uma só vez, sendo inconstitucionais as normas
jurídicas que estabeleçam, sem o acordo do expropriado, o pagamento da indemnização
em espécie ou in natura ou o pagamento da indemnização pecuniária em várias
prestações (diversamente do que sucede com a indemnização correspondente à
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas e, por isso,
também com a indemnização pelo sacrifício, onde vigora, de harmonia com o disposto
no n.º 2 do art. 3.º do RRCEE, o princípio da preferência da reconstituição natural ou da
indemnização in natura relativamente à indemnização em dinheiro/pecuniária) (242
).
Convém realçar a ideia de que resulta do que viemos a expor que não é correta a
tese que afasta da indemnização pelo sacrifício o ressarcimento de todos e quaisquer
danos especiais e anormais de caráter patrimonial. Porém, é de frisar que também é de
rejeitar a opinião que, negando a autonomia da figura jurídica da expropriação de
sacrifício, devolve para o art. 16.º do RRCEE e para o tipo de responsabilidade civil
extracontratual nele acolhida a indemnização dos danos especiais e anormais resultantes
(242) Ver Fernando ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, Vol II, cit., pp. 202-204 e 209-229.
131
dos atos de poder público que afetem substancialmente, sem efeito translativo, um
direito privado de valor patrimonial.
Agora, parece-nos apropriado expor alguma jurisprudência relativa ao assunto
em abordagem. Assim, nas palavras de Carla AMADO GOMES: «No Acórdão do STA
de 30 de Outubro de 2003 (processo 0936/03), discutiu-se, entre outras coisas, a questão
de saber se o atraso de 5 anos da devolução, pela DGV, de uma carta de condução
apreendida a um condutor por alegada (e não provada) falsificação da mesma poderia
ser considerado dano especial e anormal – sendo certo que o tribunal a quo como tal a
qualificou. O STA recusou (algo ambiguamente) reconhecer em tal atraso um dano
relevante para efeitos de compensação por facto lícito, mas nunca pôs em causa que os
danos não patrimoniais que o condutor sofreu (desgosto; perda de ofertas de emprego)
pudessem ser computados no âmbito daquele tipo de compensação» (243
).
Porém, e como defendem, de forma aparente a contragosto, Marcelo REBELO
DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS (244
), ponto é saber se o art. 16.º do
RRCEE se circunscreve a este tipo de danos. Assim, analisando o excessivo
desdobramento de pretensões patrimoniais indemnizáveis que têm sido alocadas ao
instituto expropriatório, nomeadamente, mediante o conceito de expropriação de
sacrifício, defendida e trabalhada por Fernando ALVES CORREIA (245
), os autores
mencionados chegam à conclusão que tal amplificação do âmbito do art. 62.º, n.º 2 da
Lei Fundamental arreda do espetro do art. 16.º do RRCEE todo e qualquer dano
patrimonial, à propriedade e suas faculdades. Tal, diríamos, ao arrepio quer da própria
lei que, pontualmente e nessa sede, para tal regime remete para os artigos 48.º, n.º 1 do
RJUE, na sua versão atual, e 71.º do DL n.º 309/2009, de 23 de Outubro, quer da teoria
do gozo standard aplicada pela jurisprudência administrativa. Neste sentido, os autores
referidos guetizam o art. 16.º do RRCEE, prendendo-o, desta maneira, num enclave de
lesões a direitos pessoais.
Contudo, refletimos, exceto melhor reflexão, que o instituto da compensação
pelo sacrifício que o art. 16.º do RRCEE concretiza abarca tanto lesões pessoais como
patrimoniais, sendo certo que as lesões patrimoniais, por decisão do legislador, deverão
ficar submetidas ao regime mais garantístico do instituto expropriatório caso a afetação
de faculdades de acesso, uso, fruição e transmissão da propriedade seja de tal forma
(243) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in: «Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 29.
(244) Ver Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa…, cit., p. 59.
(245) Ver Fernando ALVES CORREIA, A indemnização pelo sacrifício, in: «Revista de Direito Público e Regulação», n.º 1, Maio, ed. Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre), FDUC, 2009, pp. 155 e segs.
132
intensa que descaraterize de forma intolerável o direito, traduzindo-se em
«expropriações materiais» ou, na formulação do art. 143.º, n.º 2 do DL n.º 380/99, de 22
de Setembro, com última alteração introduzida pelo DL n.º 2/2011, de 6 de Janeiro, em
«restrições singulares às possibilidades objectivas de aproveitamento do solo,
preexistentes e juridicamente consolidadas, que comportem uma restrição significativa
na sua utilização de efeitos equivalentes a uma expropriação».
Porém, achamos, que tal não implicará, um juízo de inconstitucionalidade acerca
do art. 16.º do RRCEE, cujos requisitos indemnizatórios diminuiriam de forma ilegítima
a garantia da Constituição da República Portuguesa. Ora, num Estado de recursos em
falta, a «norma» deverá ser a excecionalidade da compensação por atuações lícitas que,
salvo ingerência intoleravelmente desequilibrante da justiça distributiva, há-de ser
encarada como um preço a pagar pela integração numa estrutura social de gestão de
riscos múltiplos e extensos pela qual o Estado se não pode, sob pena de implosão,
constituir como salvaguarda universal. De referir ainda que nem o art. 16.º do RRCEE
se filia no art. 62.º, n.º 2 da nossa Lei Fundamental nem, na parte em que se ancore no
art. 62.º, n.º 1 da CRP (em relação a outros danos de cariz patrimonial excedentários em
face da definição clássica e média de expropriação), se deve entender que foge aos
cânones da proporcionalidade e da igualdade ao estabelecer os pressupostos da
especialidade e anormalidade do prejuízo. Trata-se, de resto, do entendimento pacífico
tanto da jurisprudência administrativa, como da jurisprudência comum.
Cabe acrescentar algumas observações em sede de cômputo da compensação,
nomeadamente para demarcar que a jurisprudência constitucional sobre o art. 62.º, n.º 2
da Lei Fundamental Portuguesa exclui a inclusão de lucros cessantes nessa avaliação e
que o art. 16.º do RRCEE, ao aludir à afetação do conteúdo substancial, parece conduzir
a semelhante conclusão. Como sugere Carla AMADO GOMES: «Embora insistamos
em que a filiação do artigo I6.º reside na conjugação entre os artigos 2.º, I3.º e I8.º, e
62.º/ I e 26.º/I (consoante a natureza da perda privada – e não no artigo 62.º/2 da Lei
Fundamental), todos da CRP, julgamos, em contrapartida, que não devendo o particular
aproveitar-se de uma expropriação em nome do interesse colectivo para obter uma
vantagem patrimonial superior ao estrito valor/rendimento actual da propriedade, por
maioria de razão tal hipótese se deve descartar em sede de compensação pelo sacrifício,
uma vez que se trata de uma situação constitucionalmente secundária e de pressupostos
133
mais lassos. Ou seja, a compensação será do dano emergente mas não forçosamente de
todo o dano emergente» (246
).
Como salienta Carla AMADO GOMES: «Identicamente, a lateralização da
compensação pelo sacrifício em face da compensação por expropriação implica um
desvio do pressuposto da contemporaneidade do ressarcimento relativamente ao
prejuízo, pelo que o pagamento poderá ocorrer, legitimamente, em momento posterior
(desde logo porque, por força da urgência, a actuação lícita pode revelar-se
imprescindível à salvaguarda do bem público e incompatível com a
negociação/proposição de um montante compensatório)» (247
).
Por fim, no que respeita ao nexo de causalidade, o Ac. do TCAN de 8 de Maio
de 2008 sublinha um aspeto importante, pontuando o caráter especial deste modelo de
compensação: o da imediatividade da relação comportamento lícito/prejuízo, que pode
justificar uma interpretação restritiva da teoria da causalidade adequada (regulada no
art. 562.º do Código Civil e já de si moderada nos resultados de imputação (248
)). O
mesmo é afirmar que o comportamento público não só tem de ser manifestamente apto à
produção do resultado lesivo como deve refletir-se de forma imediata na esfera jurídica
do alegado lesado, desconsiderando-se prejuízos remotos ou mediatos. Ora, tal como
diz Carla AMADO GOMES: «Acresce, como ressalta o Acórdão do STA de I I de
Março de 20I0 (processo 083/I0), que a continuidade do percurso causal pode ser
perturbada pela interferência da culpa do lesado: na verdade, se quem sofre o sacrifício
contribuiu, com o seu comportamento menos diligente, para o agravar, o montante
compensatório deverá variar em função desse facto» (249
).
Quanto à causalidade, releva ainda o Ac. do TCAN de 23 de Outubro de 2008
(Processo n.º 00992/05.3BEVIS). Como acentua Carla AMADO GOMES: «Tratou-se
de um pedido de compensação pela destruição de aves de uma exploração por suspeita
de contaminação com nitrofuranos, arbitrado pelo TAF de Viseu e confirmado pelo
TCAN com base na constatação de um dano especial e anormal sofrido pela sociedade
de avicultura, orçando em cerca de I00.000,00 euros e correspondendo à destruição de
27.560,00 kg de produtos. O tribunal deu por verificado o prejuízo especial e anormal e
(
246) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in:
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, pp. 31-32 (247) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in:
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 32.
(248) Acerca desta teoria, entre muitos, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., Coimbra, 1987, pp. 578-579 (anotações ao artigo 563.º); António MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, II, Lisboa, 1980, pp. 333 e segs;
Mário Júlio de ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 9.ª ed., Coimbra, 2005, pp. 707 e segs.
(249) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in: «Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 32.
134
o nexo de causalidade entre a ordem de destruição – lícita e assente num indirizzo do
sistema de alerta da União Europeia – e a perda patrimonial. Subtraiu-se, no entanto, à
análise de um (contra-) argumento esgrimido pelo Estado (Ministério da Agricultura)
que se traduzia em que, em face do alarme social causado pelas notícias sobre
contaminação de carne de aves por toxinas, o dano sempre se teria verificado ainda que
as autoridades sanitárias não tivessem cumprido o seu dever de prevenção de riscos para
a saúde pública.
É certo que uma avaliação deste tipo levaria à exclusão do dever de compensar,
apesar da verificação de um dano inquestionavelmente especial e anormal – porque a
magnitude do prejuízo vai muito além do risco normal de um negócio de avicultura no
âmbito do qual o abate de peças pode ocorrer, precisamente na sequência da detecção de
epidemias» (250
) (251
).
Iremos, agora, mencionar a extensão ou conteúdo da indemnização. Assim, os
pressupostos da indemnização pelo sacrifício são, nos termos do art. 16.º do RRCEE:
um ato lícito do Estado ou de outra pessoa coletiva de direito público; praticado por
razões de interesse público; um encargo ou um dano especial e anormal; e o nexo de
causalidade entre o comportamento e esse encargo ou dano. Ora, no que concerne aos
danos indemnizáveis ou, noutras palavras, à extensão ou conteúdo da indemnização,
determina o art. 16.º do RRCEE, in fine, que, para o cálculo da indemnização pelo
sacrifício, deve «atender-se, designadamente, ao grau de afectação do conteúdo
substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado».
Contudo, a interpretação do art. 16.º do RRCEE suscita dificuldades
relativamente ao âmbito dos danos abarcados pela indemnização. Como sublinha
Fernando ALVES CORREIA: «Consagra o mesmo um critério ou um guia para o
intérprete e, em último caso, para o juiz para a determinação do quantum indemnizatur,
que é específico da indemnização pelo sacrifício, ou deve aquele preceito ser conjugado
(250) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 33. (251) De referir que em face da sucessão de situações que têm aparecido nos últimos anos (crise das vacas loucas; gripe das aves;
contaminação de pepinos), é possível constatar, que mesmo que nem cheguem a ser tomadas medidas de prevenção, por
desnecessidade, os consumidores logo tomam consciência própria e abstêm-se de adquirir os produtos sobre os quais recai a suspeita de contaminação até as causas estarem solidamente esclarecidas – pela comunicação social. Na sociedade da informação em que
vivemos na atualidade e perante ameaças de risco globalizado, a suspeita chega para instalar o pânico/alarme social, mais ou menos
irracional. Destarte, aceitar tal linha de raciocínio, seria dar importância negativa à causa virtual, tese que, no nosso país, apenas
PESSOA JORGE defendeu. Cfr. PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Coimbra, 1968, pp.
417-418 (fazendo prevalecer a vertente reparadora do instituto da responsabilidade civil); Importa frisar que apesar de o CC acolher expressamente alguns casos de redução ou mesmo isenção de dever de indemnizar em casos deste tipo (v.g., nos artigos 491.º, 492.º,
n.º 1, 493.º, n.º 1, e 507.º), a relevância da causa virtual é considerada uma solução excecional, dado que se entende que o lesado
poderia, de facto, vir a sofrer um prejuízo parecido (ou até superior) mas não aquele concreto prejuízo, que sempre cumpriria indemnizar.
135
com o artigo 3.º do RRCEE, o qual, estando enquadrado nas disposições gerais, parece
ser aplicável a todas as modalidades de responsabilidade civil extracontratual do Estado
e demais entidades públicas?» (252
)
Ora, o art. 3.º do RRCEE, nos seus números 1, 2 e 3, respetivamente, estabelece
que «quem esteja obrigado a reparar um dano, segundo o disposto na presente lei, deve
reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à
reparação»; que «a indemnização é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural
não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa»; e
que «a responsabilidade prevista na presente lei compreende os danos patrimoniais e
não patrimoniais, bem como os danos já produzidos e os danos futuros, nos termos
gerais de direito».
Passaremos, neste momento a explicar cada um dos n.ºs 1, 2 e 3 do art. 3.º do
RRCEE, respetivamente.
Assim, o n.º 1 do artigo 3.º do RRCEE estabelece que na avaliação concreta do
dano, deve operar-se de acordo com a teoria da diferença: confronta-se a situação em
que o lesado se encontra (situação real) com a situação em que se encontraria se a lesão
não se tivesse verificado (situação hipotética), correspondendo a indemnização à
diferença entre as duas situações. Quer isto dizer que estão aqui abrangidos quer o dano
emergente – damnum emergens – (ou seja, tanto a perda ou diminuição de valores já
existentes no património do lesado), quer o lucro cessante – lucrum cessans – (ou seja,
os benefícios que ele deixou de obter em consequência da lesão, isto é, o acréscimo
patrimonial frustrado).
Por seu lado, o n.º 2 do art. 3.º do RRCEE dá preferência à reconstituição natural
ou à indemnização in natura relativamente à indemnização em dinheiro, determinando
que esta tem lugar apenas quando aquela não seja possível, quando não repare
integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa.
Por último, o n.º 3 do art. 3.º manda computar na indemnização os danos
patrimoniais e não patrimoniais, assim como os danos já produzidos e os danos futuros,
consoante se tenham verificado ou não no momento que se considera, designadamente à
data da fixação da indemnização, sendo certo que a indemnização dos danos futuros
apenas é possível se eles forem previsíveis.
(
252) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES CANOTILHO, in:
«STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 226.
136
Destarte, dando resposta à questão acima exposta, achamos que as normas dos
arts. 3.º e 16.º do RRCEE devem ser interpretadas conjugadamente e que, por essa
razão, na indemnização pelo sacrifício, os danos indemnizáveis não são somente os
associados ao «grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado
ou sacrificado» (o termo «violado» parece referir-se aos casos em que se está face a um
acto jurídico ou um acto material da Administração que seria ilícito, mas que, por haver
uma causa de justificação, se torna lícito, como sucede nas actuações da Administração
em estado de necessidade).
Ora, são duas as razões que suportam tal posição. Primo, não se pode ver no art.
16.º do RRCEE uma cláusula limitativa da indemnização, legitimadora de uma
indemnização que não abranja a totalidade ou a integralidade dos danos suportados pelo
lesado, desde que sejam especiais e anormais. Uma interpretação, do art. 16.º do
RRCEE que possibilitasse o cálculo de uma indemnização que não abarcasse a
totalidade dos danos especiais e anormais infligidos ao lesado violaria um princípio
essencial desta matéria que é o princípio da igualdade perante os encargos públicos.
Secundo, como afirma Fernando ALVES CORREIA: «o art. 16.º do RRCEE não
estabelece um numerus clausus de danos indemnizáveis, como resulta da utilização do
advérbio “designadamente”. Desde que sejam especiais e anormais, devem ser
abrangidos na indemnização pelo sacrifício outros danos que não exclusivamente os
relacionados com o “grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse
violado ou sacrificado”. Assim sucede com os lucros cessantes, com os danos futuros
previsíveis e com os danos não patrimoniais ou morais (quanto a estes, desde que, nos
termos do artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, pela sua gravidade, mereçam a tutela do
direito)» (253
). Acreditamos que todos estes tipos de danos, desde que assumam as
caraterísticas de especialidade e anormalidade, devem ser abrangidos pela indemnização
pelo sacrifício, não nos parecendo legítimo transpor para esta modalidade de
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas os limites
da indemnização dos danos decorrentes da expropriação por utilidade pública,
traduzidos na não consideração, entre outros, dos danos de natureza não patrimonial
(254
).
(253) Fernando ALVES CORREIA, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES CANOTILHO, in: «STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6, Vol. I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 227-228.
(254) Para mais desenvolvimentos, vd. Fernando ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. II, cit..., pp. 230-231, nota 198, e As Garantias do Particular…, cit., pp. 137-138.
137
No entanto, opinião algo diferente tem Carlos FERNANDES CADILHA que diz
que: «a norma do artigo 16.º do RRCEE, ao referir-se ao conteúdo substancial do
direito ou interesse violado ou sacrificado, pretende limitar o montante indemnizatório
às consequências imediatas da perda de disponibilidade do bem ou da sua limitação,
excluindo quaisquer efeitos indirectos, como os ganhos que se frustraram em
consequência da lesão, e (…) defende a ressarcibilidade de danos morais, desde que
estes possam revestir, no condicionalismo do caso concreto, um considerável carácter
de gravidade» (255
).
Neste sentido, por exemplo, temos: os casos de morte de familiares próximos
quando ocorrida na sequência de intervenções estaduais de natureza sanitária.
A nível conclusivo, não são admissíveis, no domínio da responsabilidade civil
extracontratual do Estado e demais entidades públicas, indemnizações não
correspondentes à reparação integral dos danos causados, mesmo nos casos em que se
exija que estes tenham caráter especial e anormal. Porém, há uma única exceção que é a
que consta do n.º 6 do art. 15.º do RRCEE, respeitante à indemnização de danos
anormais decorrentes do exercício da função legislativa, quando os lesados forem em
número muito excessivo. Assim, perante um caso destes, por motivos de interesse
público de excecional importância, justifica-se a limitação do âmbito do dever de
indemnização, em termos de esta poder ser fixada de forma equitativa em montante
inferior ao que corresponderia à reparação total dos danos provocados.
Agora e tendo em conta uma importantíssima pesquisa feita por Carla AMADO
GOMES (256
), torna-se relevante referir a relevância de alguma jurisprudência nacional
nestas matérias. Neste sentido, importa mencionar que o Ac. do STA de 23 de
Novembro de 2010 (Processo n.º 0444/10), caraterizou o art. 9.º do DL n.º 48 051, na
atualidade substituído pelo art. 16.º do RRCEE, como sede de um regime geral de
compensação por facto lícito que cederia perante regimes especiais assim qualificados
pelo legislador. Como evidencia Carla AMADO GOMES: «O aresto fundamentava-se
no disposto na norma do artigo Iº do Decreto de I967, o qual determinava a preferência
de leis especiais face ao seu próprio regime. O art. Iº/I do RRCEE contém a mesma
(255) Cfr. Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades
Públicas Anotado, cit., pp. 303-304;
(256) Ver Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in: «Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012.
138
directriz, sendo certo que se refere a responsabilidade civil extracontratual, instituto que
o RRCEE relega para outra dimensão, no seu Capítulo V. - excluindo-o, portanto, desta
lógica. Julgamos, todavia, que o princípio geral plasmado no artigo 7º/3 do Código
Civil, em sede de revogação – e do qual o artigo Iº/I do RRCEE constitui um reflexo-,
deve aplicar-se neste contexto, só se chamando o artigo I6.º do RRCEE a suportar casos
de compensação por facto lícito quando o legislador não tiver previsto modelo especial
de aferição dos pressupostos de ressarcimento e/ou cálculo do mesmo» (257
).
Tal como explana Carla AMADO GOMES: «O caso de indemnização por
inexecução legítima da sentença administrativa é um exemplo de regime especial de
compensação por facto lícito – por restrição legítima do direito à tutela jurisdicional
efetiva. Ponto está em saber se os danos remanescentes, a apurar em acção autónoma, se
devem considerar identicamente lícitos ou se resvalam para a ilicitude. Pensamos, salvo
melhor reflexão, que estes danos devem subordinar-se ao crivo do artigo I6.º do
RRCEE» (258
).
Para sermos precisos, impõe-se trazer aqui o texto de Carla AMADO GOMES:
«Precisamente, dentro do género compensação por facto lícito, que se filia no princípio
da igualdade da distribuição dos encargos públicos, podemos distinguir, por um lado,
um regime especial, que se filia na garantia (de valor) da propriedade privada –
sempre assente numa declaração de utilidade pública, operacionalizada através de uma
expropriação ou requisição e tendo como contrapartida uma “justa indemnização”
(artigo 62º/2 da CRP), da qual são por seu turno “declinações” as chamadas
indemnizações do plano (directamente remetidas para o Código das Expropriações no
artigo I43º do DL 380/99, em concretização da previsão do artigo 18º/2 e 3 da Lei
48/98, de I I de Agosto): a que se poderia chamar compensação por facto
expropriatório; e, por outro lado, a compensação pelo sacrifício, estrita tradução de um
princípio de justiça distributiva, com filiação directa no princípio da igualdade (artigos
2º e 13º da CRP) e indirecta nas garantias das concretas posições jussubjectivas
afectadas (artigos 62º/I e/ou 26º/I da CRP) – justificada por razões superiores de
interesse público, independentemente de expropriação ou requisição (formal), tendo
como contrapartida eventual uma compensação adequada aos sujeitos intoleravelmente
afectados (artigo I6.º do RRCEE).
(257) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in:
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 38.
(258) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in: «Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 38, nota 57.
139
Nesta segunda dimensão detectam-se, portanto, variadas hipóteses de afectação
de direitos que não se processam através da expropriação e que, por conseguinte (…), se
não pautam necessariamente pela atribuição de uma “justa indemnização”» (259
) (porque
se colocam à margem do já citado art. 62.º, nº 2 da nossa Lei Fundamental). Tal
justificação para tal dualidade prende-se não só com o liberalmente tradicional respeito
pelo valor da propriedade (sendo de notar que há ingerências no direito de propriedade
que não tramitam como expropriações, quer por determinação expressa da lei (260
), quer
por remissão implícita para o art. 16.º (v.g., destruição de aves contaminadas), e que
potencialmente merecem compensação, para além de outras intervenções em direitos
mais claramente fundamentais, tal como a integridade física -, mas e sobretudo releva
da relação de sacrifício/benefício que concretamente se estabelece, podendo,
porventura, fazer variar a solução compensatória.
Por fim, o facto de se tratar de uma realidade com fundamento e natureza
diversos da responsabilidade civil não impede que em aspetos de natureza não material,
a compensação pelo sacrifício se apoie em normas reguladoras daquela.
Exemplo: exemplo nítido de tal aproveitamento é o da aplicação do instituto da
prescrição, inscrito no art. 498.º do CC, em sede de compensação pelo sacrifício, como
a jurisprudência vinha já compreendendo na vigência do DL n.º 48 051, de 21 de
Novembro de 1967 e o art. 5.º do RRCEE, em sede de Disposições gerais, confirmou
(cfr. os Acórdãos do STA de 4 de Fevereiro de 2009 – Processo n.º 0522/08, e de 26 de
Maio de 2010 – Processo n.º 72/10).
3. As causas de exclusão da ilicitude e a compensação pelo sacrifício
Agora, iremos retratar as causas de exclusão da ilicitude, neste contexto.
Assim, apesar de termos afirmado não existir continuidade axiológica entre o instituto
da responsabilidade civil e a compensação pelo sacrifício, devemos realçar a aplicação
da (s) figura (s) da (s) causa (s) de exclusão da ilicitude no âmbito da compensação
pelo sacrifício. Destarte, e como defende Carla AMADO GOMES, no seu artigo na
Revista do Ministério Público, n.º 129: Janeiro: Março de 2012, como diz a autora
portuguesa Carla AMADO GOMES: «A aproximação pode surpreender, num
primeiro momento, na medida em que a motivação da ingerência é radicalmente
(
259) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in:
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, pp. 38-39. (260) Cfr., o exemplo do artigo 71.º do DL n.º 309/2009.
140
diferente, pois aquela situa-se num plano de antijuridicidade socialmente nefasta e a
última num quadro de juridicidade socialmente sustentada» (261
). Ora, a associação
pode ainda causar alguma resistência na medida em que, como é do nosso
conhecimento, o facto ilícito não conhece limites indemnizatórios, ao passo que o
facto lícito tem na medida da compensação, mais do que um limite, um verdadeiro
pressuposto de aplicação. Porém, haverá casos em que, demonstrada pela entidade ré a
não existência de ilicitude na ação de efetivação da responsabilidade por facto ilícito,
ainda sobrará ao autor, numa outra ação (ou então na mesma ação, caso tenho
deduzido um pedido subsidiário, com fundamentação específica, nomeadamente
relativamente à caraterização do prejuízo como especial e anormal), e se dentro dos
limites da prescrição, a hipótese de demandar a ré com outros fundamentos, orientando
a compensação para uma base de licitude.
Contudo, tal como acentua Carla AMADO GOMES: «O facto de a causa de
exclusão da ilicitude parecer apenas retroactivamente revestir de licitude a prática do
acto não deve perturbar a sua recondução ao instituto da compensação por facto lícito»
(262
). Porquanto, o paradigma do facto lícito é a expropriação, procedimento que, salvo
urgência, deve obedecer a uma ponderação prévia de valores e interesses, traduzido na
declaração de utilidade pública – mas as demais condutas potencialmente geradoras de
compensação por facto lícito tão pouco deixam de refletir tal ponderação,
eventualmente menos formalizada em razão da urgência de algumas atuações de tal
natureza.
Ora, a divergência entre as hipóteses de facto lícito de partida e as de facto lícito
à chegada por verificação de causa de exclusão da ilicitude será porém somente mais de
caráter processual do que substantiva, diga-se.
Todavia, em estudo bastante atual, Paulo OTERO alertou acerca das causas
liberatórias da responsabilidade administrativa, de entre as quais as causas de
justificação da ilicitude. Tal como adverte Paulo OTERO, este autor, explica que estas
causas de exclusão «atingem a realidade objectiva do dever, transformando em
juridicamente admissível ou justificável a conduta lesiva em questão e afastando, por
consequência, o dever de indemnizar os prejuízos gerados a título de comportamento
(
261) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in:
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 40. (
262) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in:
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 41.
141
ilícito» (263
). Algumas destas causas, tais como o cumprimento de um dever ou a
legítima defesa, estão nitidamente orientadas para a justificação de condutas pessoais;
porém, desde que o comportamento do agente revista um nexo funcional, deve
compreender-se que a causa exclui a ilicitude da manifestação de uma vontade
institucional e, assim, a ilicitude da conduta administrativa.
De referir que no plano da compensação por factos lícitos, pensamos de
imediato nos casos de estado de necessidade como situação modelar, muito por força da
reminiscência do art. 9.º, n.º 2 do antigo DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967 que
aludia aos casos de compensações por atuações em estado de necessidade como um
subtipo da compensação por facto lícito, mas esta hipótese normativa foi ignorada pelo
art. 16.º do RRCEE, e achamos que bem, dado que o estado de necessidade não
constitui uma categoria de atuações lícitas mas constitui sim uma causa de exclusão de
ilicitude, a par de outras, que pode justificar a ilicitude de qualquer atuação
administrativa (264
) (nomeadamente, a tomada de decisão elaborada à margem de
procedimentos legalmente estabelecidos, por força da urgência inadiável de ponderação
do sacrifício de interesses privados (ou públicos) em nome da proteção de interesses
públicos superiores, ameaçados por uma causa externa à vontade do agente) (265
). Ora, a
inclusão dessa hipótese na norma poderia ter o significado de remeter os termos da
indemnização para o CC, cujo art. 339.º, n.º 2, 2.ª parte prevê o recurso à equidade na
fixação da eventual compensação pelo julgador (e não o sentido de assimilar atos lícitos
e estado de necessidade como institutos de semelhante natureza) (266
).
Importa salientar que a atual não alusão ao estado de necessidade no art. 16.º do
RRCEE poderia ter dois sentidos: por um lado, sublinhar a autonomia dos institutos; por
outro lado, remeter para o regime do art. 339.º do CC, dispositivo que deixa a atribuição
de indemnização nas mãos do juiz. O primeiro parece-nos evidente, o segundo nem por
isso, desde logo porque o CPA, nos artigos 3.º, n.º 2 e 151.º, n.º 1, refere o estado de
necessidade, acarinhando-o no seio do Direito Administrativo, sendo certo que, na
preterição de tal previsão, ele sempre se imporia como princípio geral de Direito (desde
(263) Cfr. Paulo OTERO, Causas de exclusão da responsabilidade civil extracontratual da AP por facto ilícito, in: Estudos em
homenagem ao Prof. Doutor José Manuel Sérvulo Correia, II, Coimbra, 2010, p. 971.
(264) Cfr. Acerca do estado de necessidade, ver José Manuel SÉRVULO CORREIA, Revisitando o estado de necessidade, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, 2010, pp. 719 e segs, e Diogo FREITAS DO AMARAL e
Maria da Glória DIAS GARCIA, O estado de necessidade e a urgência em Direito Administrativo, in «ROA», 1999/II, pp. 447 e
segs. (265) Ver, assim, o Acórdão do STA de 4 de Março de 2004 (Processo n.º 01353/03), caraterizador do comportamento em estado de
necessidade como a «actuação sob o domínio de um perigo iminente e actual para cuja produção não haja concorrido a vontade do
agente». (266) Em sentido contrário, Carlos FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade civil…, cit., pp. 366-367.
142
logo, as figuras do estado de emergência e do estado de sítio (267
), ancoradas no art. 19.º
da Lei Fundamental, são concretizações do mesmo, no plano do Direito Constitucional).
Todavia, a invocação do regime de justificação da ilicitude que o n.º 1 do art. 339.º do
CC acarreta não implica necessariamente o regime indemnizatório descrito no n.º 2 do
mesmo preceito, precisamente porque, uma vez aí caraterizado um ato lícito, entra em
cena o art. 16.º do RRCEE, onde se encontram determinados os pressupostos de
aplicação e os critérios de arbitramento da compensação por facto administrativo lícito.
Assim, a norma especial tem preferência sobre o regime geral (e civil) do CC.
Porquanto, demarque-se que a causa de exclusão da ilicitude se não presume,
devendo ser processualmente clarificada pela Administração (ré), para se furtar à
responsabilização por facto ilícito, muito mais penalizante (quer nos termos do art. 7.º
do RRCEE, quer nos termos, literais pelo menos, do art. 11.º, do mesmo diploma legal).
Há um Acórdão que se pronunciou nesse sentido. Trata-se do Acórdão do STA de 17 de
Maio de 1988 (Processo n.º 025003), onde se pode ler que : «Para que se possa afirmar
a existência de um dano causado por estado de necessidade administrativa, ou seja de
um dano lícito, indemnizável nos termos do (…) artigo 9.º/2 do DL 48.051, de 67-11-
21, é necessário que se alegue e prove que a Administração agiu, ou omitiu, de forma
consciente e querida com o fim de causar esse específico dano para evitar um dano
maior».
Porém, outra causa de exclusão da ilicitude, mesmo sendo de verificação menos
comum, será o cumprimento de um dever.
Exemplo: imagine-se uma situação em que um assaltante barricado e
visivelmente desesperado, estando mesmo muito atormentado, ameaça matar um refém
(267) Como acentuam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA: «As situações de «excepção constitucional» previstas na CRP - «estado de sítio» e «estado de emergência» (n.º 1) – caracterizam-se ambas pela verificação de perigos graves para a existência do
Estado, a segurança e a organização da colectividade, que não podem ser eliminadas pelos meios normais previstos na Constituição,
mas apenas através de «medidas excepcionais». A caracterização constitucional não coincide, porém, com as tradicionais figuras do «estado de guerra» e «insurreição interna».
O «estado de sítio» e o «estado de emergência» são mais extensos que o «estado de guerra» ou «estado de insurreição» (que, aliás,
não têm autonomia constitucional e são, portanto, consumidos por aqueles). A fórmula constitucional engloba os clássicos état de siége réel (estado de sítio militar) e état de siége politique (estado de sítio político), mas sem se limitar a eles, abarcando outras
situações de emergência (calamidade pública) que não se reconduzem a estados de sítio político ou militar.
A Constituição reconhece duas figuras distintas – o «estado de sítio» e o «estado de emergência» - mas não define as diferenças entre o regime de cada uma. São as mesmas as situações que podem motivar um e outro (n.º 2); é igual a forma e o processo de
declaração de ambos (arts. 134.º/d, 138.º, etc.); são comuns os limites materiais e temporais dos dois (n.º 5). A única diferença
constitucionalmente assinalada é a que decorre do n.º 3, em termos do qual o estado de emergência é declarado quando os pressupostos exigidos no n.º 2 «se revistam de menor gravidade e apenas pode determinar a suspensão de alguns direitos, liberdades
e garantias». Trata-se de um afloramento da ideia de que o estado de emergência é um menos em relação ao estado de sítio, menos
gravoso para os direitos fundamentais, afectando menor número deles e restringindo o seu exercício menos intensamente. Essa diferença de regime existirá também quanto aos outros aspectos em que se traduz o estado de excepção constitucional, e pressupõe
que o estado de sítio exija uma situação de crise ou perturbação mais grave e intensa do que o estado de emergência». Cfr. J.J
GOMES CAMOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed. (revista), Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 399-400;
143
em troca de um veículo de fuga. A proporcionalidade exigiria outro procedimento num
quadro menos emergencial, mas o agente das forças especiais alveja o assaltante e
sequestrador na cabeça, matando-o e salvando desta maneira o refém (a vida da pessoa
refém).
Ora, nas palavras de Carla AMADO GOMES: «O acto, que noutras
circunstâncias seria ilícito, surge aqui justificado, arrastando um eventual pedido de
ressarcimento por parte da família do vitimado assaltante para o plano da compensação
por acto lícito» (268
). Será um exemplo extremo, mas porventura concebível. Como
salienta Carla AMADO GOMES: «Questionável se afigurará, porém, a atribuição
efectiva de compensação, não em virtude da inverificação de dano especial e anormal
(que é cristalino), mas antes por via da concorrência de culpa do lesado. No Acórdão do
STA de I I de Março de 20I0, (…) discutiu-se precisamente a admissibilidade de
invocação da culpa do lesado (artigo 570º do Código Civil) no plano da compensação
por factos lícitos, tendo-se o Tribunal pronunciado pela positiva com base num
raciocínio baseado no argumento ad maiori ad minus: se no plano da ilicitude, a culpa
do lesado reduz ou mesmo elimina o dever de indemnizar por parte do lesante, por
maioria de razão isso sucederá no âmbito da actuação lícita» (269
).
Porém, o consentimento do lesado, fórmula consagrada no art. 340.º do CC,
serviu ao STA para afirmar a obrigação de compensar por ato lícito num caso, que
passamos a sumariar. Assim sendo, tratou-se de um pedido de efetivação da
responsabilidade por facto ilícito decorrente da violação do princípio da boa fé que, em
sede de recurso, o STA rechaçou. O que estava em causa era um pedido de
compensação por facto lícito a liquidar em execução de sentença, numa ação
apresentada por um promotor de loteamento que cedera ao Município áreas do terreno a
lotear, no quadro de uma operação de loteamento em curso e na expetativa que o pedido
apresentado viesse a ser deferido. Ora, tal como expressa Carla AMADO GOMES:
«Perante o insucesso do procedimento e a manutenção da ocupação dos terrenos pelo
Município, o promotor peticionou judicialmente o ressarcimento dos danos sofridos,
que lhe foi arbitrado, na primeira instância, assente em violação do princípio da boa fé»
(
268) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in:
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 44. (
269) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in:
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 44.
144
(270
). O Acórdão de 20 de Maio de 2009 (Processo n.º 0333/08) do STA, ainda à luz do
antigo regime do DL n.º 48 051, afastou a fundamentação encontrada pelo tribunal a
quo, tendo-se pronunciado pela viabilidade da compensação por facto lícito, dado que
se verificara uma ocupação autorizada, embora sob condição resolutiva: «se o Alvará de
loteamento não vier a ser emitido, se os terrenos não forem restituídos e [se] se
verificarem os demais pressupostos do artigo 9º do DL 48.05I, de 2I de Novembro de
1967 (especialidade e anormalidade dos danos)».
Todavia, é de mencionar que estamos, decerto, num quadro atípico de
verificação desta causa de exclusão, dado vez que o consentimento atua normalmente a
priori sobre um ato que seria ilícito, formando-se como condição de validade da sua
emissão. Duplamente atípico mesmo, dado que no Direito Administrativo, enquanto
ramo do Direito Público, estaremos tendencialmente perante direitos indisponíveis, dos
quais os particulares não poderão abrir mão.
Exemplo: de entre os raros exemplos «típicos», conta-se o consentimento dos
destinatários de atos constitutivos de direitos válidos relativamente à sua revogação, nos
termos do art. 140.º, n.º 2 do CPA. Ora, questionável será saber se tal consentimento
deve conter de forma implícita uma renúncia a qualquer modalidade de compensação
por facto lícito. Exceto melhor entendimento, entendemos que a não menção expressa
do direito ao ressarcimento por facto de revogação consentida traduz uma implícita
renúncia a qualquer compensação, porque o titular do direito não cumpre o ónus de
caraterização do dano sofrido como especial e anormal.
Destarte, em contrapartida, paralelamente ao consentimento não está a aceitação
do ato administrativo, conforme defendia Margarida CORTEZ (271
), à luz do regime
processual anterior. O disposto no artigo 38.º, n.º 1 do CPTA não deixa atualmente
margem para dúvidas de que o incumprimento do ónus de impugnação de atos anuláveis
no prazo estabelecido no artigo 58.º, n.º 2, alínea b) (e excecionalmente, no n.º 4) do
CPTA não convalida o ato que se tornou diretamente insindicável, restando ao lesado a
possibilidade de efetivar a responsabilização do seu autor por facto ilícito, muito
(
270) Cfr. Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in:
«Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro/Março, 2012, p. 45. (271) Ver Margarida CORTEZ, Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado, Coimbra, Coimbra editora, 2000, pp. 85-90.
145
embora, de forma natural, a inação processual possa ser ponderada contra o
peticionante, em termos da culpa do lesado.
4. A indemnização pelo sacrifício pode também constituir uma das formas de
responsabilidade civil da função administrativa
A indemnização pelo sacrifício pode também constituir uma das formas de
responsabilidade civil da função administrativa, correspondendo, em certa medida, à
responsabilidade por atos lícitos que antes estava regulada no art. 9.º do DL n.º 48 051.
A circunstância de ter sido objeto de tratamento legislativo autónomo no art. 16.º do
RRCEE deve-se ao fato de se ter pretendido estabelecer, como pressuposto da
indemnização, a existência de quaisquer razões de interesse público, independentemente
de a ação causadora do dano se inserir na função administrativa ou em qualquer das
demais funções estaduais. De referir ainda que, em consonância com esse mesmo
princípio, o CPTA autonomizou a indemnização pelo sacrifício como um dos tipos de
pretensões que podem ser deduzidas através da ação administrativa comum (artigo 37.º,
n.º 2, alínea g)), distinguindo-a da ação de responsabilidade civil extracontratual por
fato ilícito ou pelo risco, a que alude a alínea f) do mesmo preceito legal.
Porém, ao referir-se à imposição de encargos e à produção de danos, o legislador
pretende abarcar as situações que resultam da intencional imposição de encargos (ações
de proteção sanitária, medidas de direção económica, trabalhos públicos de
requalificação urbana, intervenções de cariz ambiental, certas medidas de polícia), e
também os danos ocasionalmente ocorridos no exercício de uma atividade lícita ou que
resultem de ações praticadas em estado de necessidade administrativa.
No entanto, apenas são indemnizáveis os encargos ou danos especiais e
anormais, o que quer dizer que esta categoria de responsabilidade civil, procurando
assegurar o pagamento de uma compensação a quem tenha sido afetado na sua esfera
jurídica por razões de interesse comum, visa essencialmente dar concretização prática a
um princípio de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, desvalorizando a
ocorrência de danos generalizados ou de pequena gravidade que devam ser
compreendidos como um encargo normal exigível como contrapartida dos benefícios
que derivam do funcionamento dos serviços públicos.
No regime transato, semelhante exigência resultava do art. 9.º do DL n.º 48 051
para a responsabilidade por factos lícitos, que era também tornada extensiva à
responsabilidade pelo risco (art. 8.º do DL n.º 48 051). Relativamente ao conceito de
146
danos ou encargos especiais e anormais, releva neste sentido, na atualidade, o artigo 2.º
do RRCEE.
Todavia, a especialidade e a anormalidade são requisitos do prejuízo
indemnizável, enquanto pressuposto da responsabilidade civil, e não propriamente um
critério do cálculo da indemnização. Isto é, apurado que determinados prejuízos são
indemnizáveis, por preencherem as caraterísticas de especialidade e anormalidade, há
lugar à indemnização pelo sacrifício desde que se verifiquem os restantes requisitos
materiais do dever ressarcitório. Nestes termos, a exigência de um prejuízo ou encargo
especial e anormal não obstaria só por si a que se fixasse uma indemnização
correspondente à integralidade dos prejuízos ou encargos dessa natureza que tivessem
sido produzidos ou impostos. No entanto, o art. 16.º do RRCEE manda atender, para o
cálculo da indemnização, designadamente, ao «grau de afetação do conteúdo substancial
do direito ou interesse violado ou sacrificado» (272
). Tal indicação legislativa pressupõe
que se efetue uma apreciação equitativa do valor do encargo ou do dano, e que, dessa
forma, poderá não corresponder ao montante económico que esteja efetivamente em
causa. De referir que, evidencia, por outro lado, o caráter compensatório, e não
meramente reparatório da indemnização, o que se compadece com a consideração de
que os direitos ou interesses que possam ser sacrificados, em muitas situações, pela sua
própria natureza, serão só suscetíveis de uma avaliação pecuniária indireta.
Destarte, em qualquer caso, compete ao tribunal o controlo da legitimidade do
interesse público invocado, havendo que diferenciar entre os atos ablativos ou
praticados em estado de necessidade administrativa, que se encontram legitimados pela
realização do interesse público – e que, por isso justificam a indemnização limitada nos
termos do art. 16.º do RRCEE – daqueles outros atos que, de alguma forma, importam
um desvio aos critérios de legalidade e que caem sob a alçada da responsabilidade por
facto ilícito, como é o caso da medida policial que viola os princípios da necessidade e
da proporcionalidade, ou do ato expropriativo que excede o necessário para os fins de
utilidade pública em causa.
(272) Cfr., consultar www.csm.org.pt/ficheiros/eventos/6encontrocsm_carloscadilha2.pdf.
147
5. O regime das expropriações em sede de Direito do Urbanismo
Iremos agora abordar um ponto importante que é o concernente à complexa
diferença entre a figura da indemnização pelo sacrifício, enquanto modalidade de
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas de direito
público, e a expropriação de sacrifício. Assim, pode-se distinguir dois sentidos de
expropriação: a expropriação em sentido clássico ou expropriação clássica (klassiche
Enteigung) e a expropriação de sacrifício (Aufopferungsenteigung), também
denominada expropriação substancial ou larvada.
Contudo, passaremos agora às definições dos tipos de expropriação citados.
Assim sendo, a expropriação clássica pode ser definida como um ato de privação ou de
subtração de um direito de conteúdo patrimonial e na sua transferência para um sujeito
diferente, para a realização de um fim público. Estamos perante uma noção elaborada
pela doutrina e jurisprudência germânicas, mas que hoje é perfeitamente aceite pela
doutrina e jurisprudência portuguesas, para expressar fenómenos expropriativos nos
quais se verifica simultaneamente um momento privativo e um momento apropriativo
do direito de propriedade. Ora, a expropriação clássica apresenta-se como um
procedimento de aquisição de bens (Guterbeschaffungsvorgang), visando a realização
de um interesse público. Subscrevendo Fernando ALVES CORREIA: «O principium
individuationis do conceito clássico de expropriação é a mudança de titular do direito»
(273
).
Destarte, a expropriação pelo sacrifício também tem uma noção. Assim, a
expropriação pelo sacrifício carateriza-se por uma destruição ou uma afetação essencial
de uma posição jurídica garantida como propriedade pela CRP, à qual falta, no entanto,
o momento translativo do direito, bem como a relação tripolar: entidade expropriante –
expropriado - beneficiário da expropriação. Estamos perante atos do poder público cujo
escopo não é o da aquisição de um bem para a realização de um interesse público, mas
que produzem modificações especiais e graves na utilitas do direito de propriedade e
que devem ser qualificados como expropriativos e, consequentemente, ser
acompanhados do dever de indemnizar. Ora, a caraterização dos atos mencionados
como expropriativos tem como base a evolução expansiva que, nas últimas décadas,
sofreu o conceito de expropriação e a consequente superação da definição de
expropriação enquanto transferência coativa de um bem.
(273) Fernando ALVES CORREIA, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES CANOTILHO, in: «STVDIA
IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6, Vol. I, Responsabilidade entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 229.
148
Porém, os contributos mais importantes para tal evolução vieram da doutrina e
da jurisprudência germânicas, embora o conceito alargado de expropriação não seja
desconhecido de outros ordenamentos jurídicos, como, por exemplo, o italiano, onde,
desde há alguns anos, a jurisprudência e a doutrina elaboraram a definição de
expropriação substancial, larvada ou anómala, aplicada aos atos da Administração que
aniquilam a índole mínima, essencial ou intangível do direito de propriedade (274
).
Todavia, no Direito Internacional Público, também se utiliza uma definição
ampla de expropriação, na medida em que se inclui nesta, como dispõe FAUSTO DE
QUADROS: «os actos que consistem em medidas de diversa natureza, adoptados pelos
Estados, de fonte legislativa, regulamentar ou administrativa, que afectam (diminuem
ou esvaziam) as faculdades incluídas no direito de propriedade de estrangeiros, isto é, as
faculdades de usar, de fruir e de dispor do bem, sem todavia retirarem formalmente ao
particular o direito de propriedade […]». Assim, a grande finalidade da jurisprudência e
doutrina internacionais, ao elaborarem um conceito amplo de expropriação, é a de
determinar quais os atos que dão ao particular direito a ser indemnizado e qual o critério
a que deve obedecer o particular (275
).
Contudo, na mesma linha, a Jurisprudência do TEDH vem utilizando uma noção
ampla de expropriação, a propósito da interpretação do art. 1.º do 1.º Protocolo
Adicional, de 20 de Março de 1952, à Convenção Europeia dos Direitos do Homem
(recebido in foro domestico com a Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, que o aprovou para
ratificação), cuja índole é a seguinte: «Qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito
ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade, a não
ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais de
direito internacional. As disposições precedentes entendem-se sem prejuízo do direito
que os Estados possuem de aprovar leis que julguem necessárias para a regulamentação
do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de
impostos ou outras contribuições ou de multas». De referir que foi no Ac. «Sporrong e
Lonnroth», de 23 de Setembro de 1982, que aquele Tribunal lançou mão, pela primeira
vez, de um conceito amplo de expropriação (muito embora sem o referir
expressamente).
(274) Cfr., para mais desenvolvimentos, vd. Fernando ALVES CORREIA, As Garantias do Particular, cit., pp. 77-86, O Plano
Urbanístico…, cit., p. 473-476 e 491-492, A Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre Expropriações por Utilidade Pública e o Código das Expropriações de 1999, in: «Separata da Revista de Legislação e de Jurisprudência», Coimbra, 2000, pp. 12-21, e
Manual de Direito do Urbanismo, Vol. II, cit., pp. 131-138, bem como a bibliografia nelas citada.
(275) Cfr. FAUSTO DE QUADROS, A Protecção da Propriedade Privada pelo Direito Internacional Público, Coimbra, Almedina, 1998, pp. 190 e segs., em especial, p. 205.
149
Todavia, relativamente ao ordenamento jurídico nacional, por um lado, o
legislador assumiu de forma nítida o conceito de expropriação de sacrifício, envolvendo
atos do poder público cujo escopo não é o da aquisição de um bem para a realização de
um interesse público, mas que aniquilam o conteúdo mínimo, essencial ou intangível do
direito de propriedade, e cujo cálculo da indemnização é efetuado nos termos do Código
das Expropriações (CE), desde logo, no art. 8.º, números 2 e 3, do citado diploma legal,
relativo às servidões que dão lugar a indemnização, e nos artigos 18.º, n.º 2, da Lei de
Bases da Política de Ordenamento do Território (LBPOTU), aprovada pela Lei n.º
48/98, de 11 de Agosto, alterada pela Lei n.º 54/2007, de 31 de Agosto, e 143.º do
Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), aprovado pelo DL n.º
380/99, de 22 de Setembro, alterado, por último, pelo DL n.º 46/2009, de 20 de
Fevereiro, pelo DL n.º 181/2009, de 7 de Agosto, e pelo artigo 8.º do DL n.º 2/2011, de
6 de Janeiro, relativo às «expropriações do plano»; por outro lado, a jurisprudência do
TC (276
) e de outros tribunais tem utilizado, com frequência, a ideia de expropriação de
sacrifício. Neste sentido, veja-se o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 9 de
Janeiro de 2005 (Processo n.º 2118/2000), que decidiu, inter alia, que, «atentos os
princípios constitucionais de igualdade, de justa indemnização e do Estado de direito
democrático, deve, a par da expropriação clássica, ser também considerada a
expropriação de sacrifício, a demandar igualmente uma justa indemnização».
Porém, embora haja quem defenda um retorno (no nosso entender e de Fernando
ALVES CORREIA, será um retrocesso) a uma definição formal de expropriação e
advogue a superação das noções de expropriação em sentido clássico e expropriação de
(276) Não resistimos a colocar aqui a nota de rodapé vinda da obra: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES
CANOTILHO, in «STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, nota 38, p. 232: «Assim, nos Acórdãos n.ºs 341/86 e 131/88 (publicados no DR, II Série, de 19 de Março de 1987, e I Série, de 29 de Junho de 1988, e em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 8.º Vol. (1986), p. 507 e segs., e 11.º Vol. (1988), p. 465 e segs., respetivamente), foi acentuado que, “mesmo
naqueles casos em que a Administração impõe aos particulares certos vínculos que, sem subtraírem o bem objecto do vínculo, lhes diminuem, contudo, a utilitas rei, se deverá configurar o direito a uma indemnização, ao menos quando verificados certos
pressupostos”. No Acórdão n.º 184/92 (publicado do DR, II Série, de 18 de Setembro de 1992, em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 22.º Vol. (1992), p. 425 e segs.), vincou-se que “a diminuição das utilidades da coisa, por virtude da imposição de certos vínculos administrativos (maxime de uma servidão non aedificandi), é susceptível de fazer nascer uma obrigação de
indemnizar” e que, “por isso, resultando a servidão non aedificandi do acto expropriativo, tem ela de ser levada em conta na
determinação do montante a pagar, a título de indemnização”. Por sua vez, no Acórdão n.º 52/90 (publicado no DR, I Série, de 30 de Março de 1990, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15.º Vol. (1990), p. 49 e segs.), referindo-se à definição de expropriação
apresentada por Marcello Caetano, acrescentou-se que tal é uma “noção clássica” de expropriação. Por seu lado, no Acórdão n.º
262/93 (publicado no DR, II Série, de 21 de Julho de 1993, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24.º Vol. (1993), p. 643 e segs.), esclareceu-se que, “no caso de constituição de servidão non aedificandi, como o que é referido pela decisão recorrida à norma
do art. 3.º, n.º 2 (do CE de 1976), aqui em apreço, não se configura uma expropriação em sentido clássico, ou seja, uma
expropriação translativa do direito de propriedade do solo do particular para a Administração. Está antes em causa uma expropriação que sacrifica o jus aedificandi do proprietário do solo por motivos de interesse geral”. E, por último, os Acórdãos n.ºs
329/99 e 517/99 (publicados no DR, II Série, de 20 de Julho de 1999, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44.º Vol. (1999),
p. 129 e segs., e no DR, II Série, de 11 de Novembro de 1999, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44.º Vol. (1999), p. 89 e segs., respetivamente) têm subjacente a ideia de que “a declaração da incompatibilidade de licenças e aprovações urbanísticas com
as regras constantes de um PROT que é utilizado como padrão de juízo de compatibilidade, tendo tal declaração como consequência
a cessação dos efeitos das referidas licenças ou aprovações, constitui uma expropriação de sacrifício ou uma expropriação em sentido substancial de “direitos urbanísticos” conferidos por actos administrativos válidos», de Fernando ALVES CORREIA.
150
sacrifício, através da introdução do conceito de «determinação do conteúdo do direito
de propriedade envolvendo um dever de compensação» (277
) – com a consequente
devolução para o art. 16.º do RRCEE da indemnização dos danos resultantes de atos do
poder público que afetem de modo substancial, no todo ou em parte, as «faculdades» de
um direito privado de valor patrimonial -, entende-se que a definição de expropriação de
sacrifício é uma relevante definição operativa, indispensável, portanto, para o
fundamento e explicação de algumas soluções adotadas pelo legislador português. Ora,
a posição defendida por M. NOGUEIRA DE BRITO, baseia-se na
Nassauskiesungsbeschluss do Tribunal Constitucional Federal Alemão de 15 de Julho
de 1981, na qual foi redefinido o conceito constitucional de expropriação, aproximando-
o da noção de expropriação clássica. Nos termos daquela decisão judicial, o critério
decisivo para a noção de expropriação é a ablação, total ou parcial, de uma posição
jurídica de valor patrimonial por um ato jurídico de autoridade direcionado para fins
públicos determinados. Decisivas para a noção de expropriação são, desta forma, a
forma e a finalidade, não a intensidade e a qualidade da intervenção.
Todavia, o Tribunal Constitucional Federal Alemão deu-se conta de que a
expropriação, assim definida, e a determinação do conteúdo e limites do direito de
propriedade sem indemnização não abarcavam todas as situações. Daí que tenha
recorrido à definição de «determinação do conteúdo do direito de propriedade que
envolve um dever de compensação» (die ausgleichspflichtige Inhaltsbestimmung),
precisamente para responder àqueles casos em que o particular suporta um dano
especial (singular) e anormal (grave) no seu direito de propriedade, por motivos de
interesse público. Podemos questionar-nos, se, por esta via, não terá o Tribunal
Constitucional Federal Alemão ressuscitado o conceito amplo de expropriação, nele
incluindo a expropriação de sacrifício, que tinha abandonado com o conceito restrito de
expropriação da Nassaukiesungsbeschluss.
No entanto, há que referir que é o que sucede, em primeiro lugar, com as
servidões administrativas, resultantes ou não de expropriações, que dão lugar a
indemnização. Nos termos do art. 8.º, n.º 2, do CE – e deixando, agora, de lado as
questões que este preceito suscita -, dão origem a indemnização as servidões
administrativas que inviabilizem a utilização que vinha sendo dada ao bem, considerado
globalmente; ou anulem completamente o seu valor económico. De mencionar, ainda,
(277) Ver M. NOGUEIRA DE BRITO, A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 993-1032, e Fernando ALVES CORREIA, O Plano Urbanístico…, cit., p. 484, nota 44.
151
que o n.º 3 do art. 8.º, do CE, prescreve que a determinação da indemnização é feita nos
termos dom CE, com as necessárias adaptações. Quer dizer: o legislador nacional não só
como devendo ser acompanhadas de indemnização as servidões administrativas que
constituem verdadeiras expropriações de sacrifício (embora tenha feito de modo
incompleto), como ainda determinou que o critério de cálculo do montante da
indemnização deve ser o estabelecido no Código das Expropriações (278
).
Destarte, a mesma situação acontece com o que se vem denominando, há alguns
anos já, expropriações do plano, a que se reportam o art. 18.º da LBPOTU e o art. 143.º
do RJIGT. Trata-se de certas disposições dos planos direta e imediatamente vinculativos
dos particulares que produzem danos especiais (singulares) e graves (anormais) no
direito de propriedade do solo e que, por isso, devem ser consideradas como tendo um
caráter expropriativo, as quais, no caso de os danos delas resultantes não poderem ser
compensados através dos «mecanismos de perequação», devem ser acompanhadas de
indemnização. Assim, o art. 18.º, n.º 2, da LPBOTU estabelece que, sempre que aqueles
planos determinem «restrições significativas de efeitos equivalentes a expropriação» e,
bem assim, «restrições significativas a direitos de uso do solo preexistentes e
juridicamente consolidados», existe a obrigação de indemnizar, desde que a
compensação daquelas restrições não possa ter lugar através dos «mecanismos de
perequação» dos benefícios e encargos dos mesmos resultantes. Porém, o art. 143.º, n.ºs
2 e 3, do RJIGT, sem curar, agora, dos problemas de constitucionalidade que estas
normas suscitam, prescrevem, respetivamente, que «são indemnizáveis as restrições
singulares às possibilidades objectivas de aproveitamento do solo, preexistentes e
juridicamente consolidadas, que comportem uma restrição significativa na sua utilização
de efeitos equivalentes a uma expropriação» e que «as restrições singulares às
possibilidades objectivas de aproveitamento do solo resultantes da revisão dos
instrumentos de gestão territorial vinculativos dos particulares apenas conferem direito a
indemnização quando a revisão ocorra dentro do período de cinco anos após a sua
entrada em vigor, determinando a caducidade ou a alteração das condições de um
licenciamento prévio válido» (279
) (280
).
Todavia, de modo idêntico se passam as coisas no domínio das situações de
indemnização dos danos especiais (singulares) e graves (anormais) das medidas
(278) Ver Fernando ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2008, pp. 332-337. (279) Ver Fernando ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I., cit., pp. 764-791.
(280) Em todos estes casos de expropriação do plano (que são verdadeiras expropriações de sacrifício, o valor da indemnização
corresponde à diferença entre o valor do solo antes e depois das restrições causadas pelos instrumentos de gestão territorial, sendo calculado nos termos do CE. É o que resulta do n.º 4 do art. 143.º do RJIGT.
152
preventivas dos planos municipais (e especiais) de ordenamento do território, tipificadas
nos artigos 112.º, n.ºs 6 e 7, e 116.º, n.º 2, do RJIGT (281
).
A diferença entre a indemnização pelo sacrifício, como modalidade de
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas, e a
expropriação de sacrifício revela-se relevante por diversas razões.
Primo, o fundamento da indemnização. Na indemnização pelo sacrifício, o
fundamento, encontra-se, nos princípios do Estado de Direito e da igualdade perante os
encargos públicos. Na expropriação de sacrifício, o fundamento vai buscar-se não só a
estes dois princípios constitucionais, mas também ao princípio da justa indemnização
por expropriação, condensado no art. 62.º, n.º 2, da CRP.
Secundo, a natureza da indemnização. Na indemnização pelo sacrifício, a
indemnização é uma consequência do ato impositivo de encargos ou causador de danos
especiais e anormais, enquanto na expropriação de sacrifício a indemnização é um
pressuposto de validade do ato expropriativo, como resulta de forma nítida do art. 62.º,
n.º 2, da nossa Lei Fundamental (282
). Relativamente à indemnização, trata-se do quarto
pressuposto de legitimidade da expropriação por utilidade pública. Nas palavras de
Fernando ALVES CORREIA: «Esta não é somente a principal garantia do expropriado.
É também um requisito de validade do acto expropriativo» (283
). Os outros três
pressupostos de legitimidade da expropriação por utilidade pública são: o princípio da
legalidade (art. 62.º, n.º 2 da CRP), o princípio da utilidade pública e o princípio da
proporcionalidade em sentido amplo ou da proibição do excesso. Assim, de facto, desde
as revoluções liberais começou a entender-se que, quando fosse desferido um ataque tão
grave na esfera jurídica patrimonial do particular, devia ser previamente reconhecido
pelo ordenamento jurídico-constitucional o direito de o expropriado ser ressarcido dos
danos que lhe eram causados. Ora, as Constituições dos diversos países passaram a
consagrar o princípio segundo o qual a indemnização é um pressuposto de legitimidade
da expropriação. Tal princípio é o condensado no art. 62.º, n.º 2, da CRP, segundo o
qual a expropriação por utilidade pública só pode ser efetuada mediante o pagamento de
justa indemnização».
Tetrio, o critério da indemnização. Na indemnização pelo sacrifício a
indemnização é calculada com base nos critérios elencados e definidos nas normas
(281) Cfr., para mais desenvolvimentos, vd. Fernando ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, cit., pp. 548-550.
(282) Cfr., para mais desenvolvimentos, vd. Fernando ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. II, Coimbra,
Almedina, 2010, pp. 202-204 e 209-269. (283) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. II, cit., p. 202.
153
conjugadas dos arts. 16.º e 3.º do RRCEE. Na expropriação de sacrifício, a
indemnização apura-se com base no critério definido no CE, devendo, todavia,
corresponder ao valor de mercado (Verkehrswert) do bem expropriado, compreendido
não em sentido estrito ou rigoroso, mas em sentido normativo (valor de mercado
normativamente entendido) (284
).
Porém, e como lembra Maria Lúcia C. A. AMARAL PINTO CORREIA,
convém frisar que o n.º 2, do art. 62.º da Lei Fundamental (285
), «se destina tão somente
(284) Ver Fernando ALVES CORREIA, A Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre Expropriações por Utilidade Pública e o
Código das Expropriações de 1999, cit..., pp. 32-54, e Manual de Direito do Urbanismo, Vol. II, cit., pp. 209-269.
(285) Tal como sublinham GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA na Constituição da República Portuguesa Anotada…cit...,: «A norma consagradora da requisição e da expropriação é, simultaneamente, uma norma de autorização e uma norma de garantia.
Por um lado, confere aos poderes públicos o poder expropriatório autorizando-os a procederem à privação da propriedade ou de
outras situações patrimoniais dos administrados; por outro lado, reconhece ao cidadão um sistema de garantias que inclui designadamente os princípios da legalidade, da utilidade pública e da indemnização.
Porém, valem aqui, inteiramente, os princípios constitucionais relativos à restrição de direitos fundamentais,
nomeadamente o princípio da necessidade e da proporcionalidade. O recurso à expropriação apenas deve ter lugar quando se gorar a aquisição por via negocial, que deve ser previamente explorada, salvo porventura em caso de urgência excepcional.
Todavia, note-se que a nível histórico o instituto da expropriação sofreu duas relevantes mudanças desde as primeiras
constituições liberais, em que ela só era admitida em caso de necessidade pública e mediante prévia indemnização (cfr. art. 6.º da Constituição de 1822). Hoje, diante da CRP, basta a utilidade pública para justificar a expropriação e, embora o pagamento da
indemnização não possa ser arbitrariamente protelado, não é condição o seu prévio pagamento.
O princípio da legalidade (art. 62.º, n.º 2 da CRP) não é mais do que a aplicação geral de que as intervenções no âmbito de protecção dos direitos, liberdades e garantias só podem ser estabelecidas por lei (art. 18.º, n.º 2, da CRP).
A expropriação carece sempre de uma base legal (princípio da legalidade). No caso de expropriação através de lei, a
autorização reside na própria lei expropriatória (expropriação legal); na hipótese de expropriação administrativa, a lei há-de estabelecer com suficiente rigor os requisitos do acto expropriatório, que exige uma prévia declaração de utilidade pública da
expropriação a efectuar.
Através da declaração de utilidade pública, especifica-se o fim concreto da expropriação e individualizam-se os bens sujeitos a ela. A expropriação é, desta forma, uma medida concreta, tornando-se mais transparente o controlo do pressuposto da
utilidade pública. Problemática é a admissibilidade de declaração implícita de utilidade pública (v. g., aprovação de um plano
urbanístico de pormenor), o que de qualquer forma, não poderá admitir-se senão em termos muito limitados. Não é isento de dúvidas o conceito de utilidade pública. O texto constitucional pressupõe o conceito no âmbito do direito
administrativo e que se traduz no acto através do qual a autoridade competente (em geral, o ministro do respectivo departamento)
atesta o interesse público da obra ou trabalho legitimador do sacrifício de bens ou direitos patrimoniais dos particulares. Todavia, utilidade pública não significa exclusivamente utilidade em benefício do interesse de entidades públicas, podendo tratar-se de
utilidade pública na prossecução de interesses privados («utilidade pública desportiva», «utilidade pública turística») sendo então os
bens expropriados transferidos para entidades privadas, mas este alargamento de utilidade pública deverá, como é óbvio, estar sujeito a requisitos especiais, sob pena da expropriação se transformar numa forma de ablação de bens particulares a favor de outros
particulares. O pagamento de justa indemnização (n.º 2, in fine, do art. 62.º da CRP) é o terceiro pressuposto constitucional da
requisição e da expropriação. Na verdade, não passa de uma expressão particular do princípio geral, ínsito no princípio do Estado de
direito democrático, de indemnização pelos actos lesivos de direitos e pelos danos causados a outrem. Em certo sentido, o direito de propriedade (e os demais direitos reais sobre os bens expropriados) transforma-se, em caso de requisição ou expropriação, no direito
ao respectivo valor.
É certo que, determinando a Constituição que a indemnização há-de ser «justa», ela não estabelece, porém, qualquer critério indemnizatório («valor venal», «valor de mercado», «valor real», etc.); mas é evidente que os critérios definidos em lei têm
de respeitar os princípios materiais da Constituição (igualdade, proporcionalidade), não podendo conduzir a indemnizações irrisórias
ou manifestamente desproporcionais em relação à perda do bem requisitado ou expropriado. Por outro lado, a justa indemnização deve respeitar o princípio da equivalência de valores, expulsando desta equivalência valores especulativos ou ficcionados,
decisivamente perturbadores da «justa medida», que deve existir entre as consequências da expropriação e a sua indemnização.
(Maior liberdade parece gozar a lei no caso de «apropriação pública», por via de nacionalização, como decorre do art. 83.º da CRP). É de mencionar ainda que a Constituição, embora não imponha expressamente que a indemnização seja prévia à expropriação,
parece exigir que ela seja um elemento integrante do próprio acto de expropriação («mediante pagamento de justa indemnização»).
Menos exigente parece ser, também aqui, o regime das indemnizações por efeito de nacionalização (cfr. art. 83.º da CRP). A ideia de justa indemnização comporta, deste modo, duas dimensões relevantes: (a) uma ideia tendencial de
contemporaneidade, pois, embora não sendo exigível o pagamento prévio, também não existe discricionariedade quanto ao
adiamento do pagamento da indemnização; (b) justiça de indemnização quanto ao ressarcimento dos prejuízos suportados pelo expropriado, o que pressupõe a fixação do valor dos bens ou direitos expropriados que tenha em conta, por exemplo, a natureza dos
solos (aptos para construção ou para outro fim), o rendimento, as culturas, os acessos, a localização, os encargos, etc.; ou seja, as
circunstâncias e as condições de facto. Dado que a garantia da propriedade contra a expropriação arbitrária se estende também à propriedade de pessoas
colectivas de direito público dotadas de independência patrimonial e financeira (ex: municípios, ordens profissionais), também elas
têm o direito a uma compensação pela desapropriação dos seus bens a favor do Estado ou pela sua afectação definitiva a outros fins de utilidade pública.
154
a consagrar o instituto da expropriação por utilidade pública, mero detalhe jurídico-
administrativo e mera zona periférica face à sede capital dos princípios que já se
encontram alojados no n.º 1, do referido diploma legal. Contudo, o n.º 2, do art. 62.º da
CRP deve ser lido conjuntamente com o n.º 1, assim interpretado. Ora: «A requisição e
a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e
mediante o pagamento de justa indemnização». Dizer isto é o mesmo que afirmar -
ninguém poderá ser privado da sua «propriedade» a não ser em casos de utilidade
pública legalmente verificada e mediante o pagamento de justa indemnização. De
mencionar que a norma que aqui se inclui é, portanto, uma norma inicial de proibição –
fica em princípio proibida a prática de atos que conduzam à «privação» da
«propriedade» – que é completada pela enumeração das condições que consentem a sua
própria exceção, ou, o que é o mesmo, pela enumeração das condições que legitimam a
prática do ato em princípio proibido. Tais condições, ou requisitos de legitimação do ato
de privação da propriedade, são três. É em primeiro lugar necessário que o ato seja
justificado por razões imperiosas de «utilidade pública»; é em segundo lugar necessário
que o ato seja efetuado «com base na lei»; é em terceiro lugar necessário que o ato seja
praticado «mediante o pagamento de justa indemnização». Reunidas, estas três
condições originam a «requisição» e a «expropriação por utilidade pública»: a privação
da propriedade será portanto no Direito Português conduta lícita, se e apenas se integrar
no seu seio todos os elementos típicos que formam estes dois Tatbestanden» (286
).
No entanto, o Código das Expropriações não contém só a disciplina da
expropriação por utilidade pública dos bens imóveis e direitos a eles inerentes (art. 1.º),
abrange também o regime da requisição por utilidade pública dos mesmos tipos de bens
Embora a Constituição não o explicite, a garantia da propriedade implica o reconhecimento do direito de reversão a
favor dos proprietários expropriados, se os bens não forem utilizados ou aplicados ao fim justificativo da expropriação durante um
lapso de tempo razoável (cfr. L n.º 168/99, art. 5.º), pois isso mostra que, afinal, não havia uma necessidade actual da expropriação
para a realização do interesse público invocado. Se a expropriação só pode ser justificada pela utilidade pública, então a falta de destinação dos bens expropriados aos fins que a motivaram torna injustificável a expropriação. Sendo assim, a consumação da
expropriação fica dependente da efectiva aplicação dos bens expropriados a fins de utilidade pública. Controversa é a questão de
saber se a entidade beneficiária da expropriação pode destinar os bens expropriados a outros fins de utilidade pública, diferentes dos que motivaram a expropriação, ou se terá de proceder a uma renovação da expropriação.
O direito de propriedade cabe naturalmente também a pessoas colectivas, pois não se verifica nenhuma
incompatibilidade com a personalidade colectiva (art. 12.º, n.º 2, da CRP). A Constituição não sugere nenhum eco da primitiva aversão liberal à «propriedade de mão morta» - que limitava fortemente a propriedade imobiliária de associações e outras
instituições -, em homenagem à propriedade livre, aberta ao comércio jurídico. Mas isso não quer dizer que a lei, no âmbito geral
das restrições ao direito de propriedade, não possa estabelecer limitações à propriedade imobiliária das pessoas colectivas. Do direito de propriedade «privada» (para além dos bens do domínio público) não estão excluídas as pessoas colectivas
públicas, salvaguardada a necessidade dos bens para o desempenho das suas atribuições (o que limita a sua liberdade de aquisição e
alienação, podendo determinar a sua indisponibilidade), bem como a salvaguarda do interesse público (o que limita a sua liberdade de uso e fruição). Por isso, embora o Estado e as pessoas colectivas públicas possam ter propriedade privada, ela está em geral
sujeita a um regime específico («direito privado administrativo»).
Igualmente protegido está o direito de propriedade dos estrangeiros (art. 15.º, n.º 1, da CRP), embora o interesse público possa justificar algumas restrições específicas, por exemplo em matéria de propriedade fundiária, o que porém está excluído, em
princípio, em relação aos cidadãos de outros Estados-membros da EU». Cfr. J.J GOMES CAMOTILHO/VITAL MOREIRA,
Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed. (revista), Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 807-810; (286) Cfr. Maria Lúcia C. A. AMARAL PINTO CORREIA, ob. cit., pp. 553 e 559.
155
e direitos, incluindo os estabelecimentos comerciais ou industriais (arts. 80.º a 87.º)
(287
).
De mencionar que, a identidade substancial da expropriação e da requisição
esteve certamente na base da previsão conjunta destes dois institutos no art. 62.º, n.º 2,
da CRP e da sua subordinação a semelhantes princípios constitucionais de legitimidade:
princípios da legalidade, da utilidade pública, da proporcionalidade em sentido amplo
ou da proibição do excesso e da justa indemnização.
Ora, a natureza substancialmente expropriativa da requisição por utilidade
pública não impediu o legislador de compor o regime deste instituto com algumas
especificidades, sendo elas bem visíveis, desde logo, nos domínios das causae
requisitandi, dos efeitos da requisição, dos requisitos de validade do ato de requisição,
do critério da indemnização e da entidade competente para a fixação do montante desta.
Deste modo, o n.º 1 do art. 80.º do CE estabelece requisitos mais rigorosos para
o exercício do jus requisitandi do que para a expropriação. A causa da requisição é a
realização e um interesse público e nacional em caso de urgente necessidade (art. 80.º,
n.º 1). O ato de requisição visa fazer face a necessidades extraordinárias, urgentes e
transitórias (288
). Quanto aos efeitos, a requisição tem uma eficácia puramente
obrigacional, na medida em que impõe ao proprietário do bem objeto de requisição a
obrigação de entregar à entidade a favor de quem se operar a requisição o bem
requisitado e de assegurar-lhe o gozo (temporário) deste, dentro dos limites da
requisição (art. 86.º, n.º 2). Porém, o art. 82.º estabelece particulares exigências no que
tange à validade do ato de requisição. Como alertava Rogério SOARES: «O acto
constitutivo do procedimento da requisição (a portaria do membro do Governo que tiver
a seu cargo a tutela do interesse público e nacional justificativo da requisição) é
precedido de um acto instrumental com conteúdo deliberativo, justamente uma
(287) Porém, encontram-se, pois, atualmente congregados, num mesmo diploma legal, os regimes dos dois mais importantes atos ablatórios dos direitos de conteúdo patrimonial do particular (a expropriação e a requisição por utilidade pública), quando o seu
objeto é constituído por bens imóveis e direitos a eles inerentes (saliente-se que a regulamentação do Código de 1999 deixa de fora a
requisição de bens móveis e semoventes e de serviços). Ora, a inclusão, no Título VII do Código, do travejamento jurídico da requisição de bens imóveis e direitos a eles inerentes, tal como o fez o anterior Código de 1991, não teve qualquer eco na
denominação do mesmo, que continuou a ser apelidado Código das Expropriações. O fundamento do acolhimento no Código do
regime da requisição por utilidade pública – regime claramente inspirado na regulamentação da requisição de infra-estruturas desportivas, operada inicialmente pelo DL n.º 153-A/90, de 16 de Maio – reside, tal como diz Fernando ALVES CORREIA, «na
interiorização por parte do legislador da ideia, já por este defendida noutra altura, de que a requisição de bens ou direitos de
conteúdo patrimonial cabe, como figura ablatória, num conceito amplo de expropriação, não sendo mais do que uma forma especial desta». Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, Parecer de 2 de Fevereiro de 2009, in: A Requisição Estadual e o Autódromo do Estoril,
Autodril, S.A. (sem data), p. 14, e ver Fernando ALVES CORREIA, As Garantias do Particular…, cit., pp. 64-67.
(288) De mencionar que a requisição, interpolada ou sucessiva, de um mesmo bem tem uma duração temporal máxima, que o n.º 2 do art. 80.º fixa em um ano, e que se conta nos termos do art. 279.º do CC.
156
deliberação preliminar, na forma de resolução do Conselho de Ministros, que serve de
pressuposto ao acto de requisição e que não tem autonomia em relação a este» (289
) (290
).
Quanto à requisição, a justa indemnização a conferir ao requisitado tem como
parâmetro o prejuízo que para aquele advém da requisição (artigo 84.º, n.º 2 do CE),
sendo a indemnização fixada mediante acordo expresso entre o beneficiário da
requisição e o proprietário do bem requisitado. Porém, na falta de tal acordo, a
competência para a determinação do quantitativo indemnizatório é cometida, em
primeira instância, ao ministro responsável pelo setor, sob proposta do serviço com
atribuições na área (artigo 84.º, n.º 4, alíneas a) e b) do CE). A opção do Código em
atribuir a um órgão da AP – o ministro – a competência, ainda que com possibilidade de
recurso para os tribunais judiciais, para fixar o montante da indemnização por
requisição, na ausência de acordo entre a entidade requisitante e a entidade requisitada,
suscita-nos reservas. O dissenso entre requisitante e requisitado acerca do quantum da
indemnização consubstancia, assim como no caso da expropriação, um conflito de
interesses ou de pretensões entre dois sujeitos jurídicos, cuja dirimição deve caber ao
poder judicial. Ora, a composição de tal conflito de interesses entre o requisitante e o
requisitado configura uma atividade materialmente jurisdicional, já que ela, para nos
expressarmos com Afonso QUEIRÓ, constitui expressão de um ato que, tal como dizia
Afonso QUEIRÓ: «não apenas pressupõe, mas é necessariamente praticado para
resolver uma questão de direito» (291
).
Voltando ao assunto da expropriação, iremos agora fazer referência à
competência. Assim, relativamente à competência para conhecer dos litígios
concernentes à indemnização pelo sacrifício, a questão não se apresenta tão clara. Com
efeito, se dúvidas inexistem em relação à competência dos tribunais administrativos
para julgar os litígios relativos à indemnização pelo sacrifício, desde logo em
consequência do disposto no art. 4.º, n.º 1, alíneas g), h) e i), do ETAF, bem como do
estabelecido no art. 37.º, n.º 1, alínea g), do CPTA, que determina que seguem a forma
de ação administrativa comum os processos que tenham por objeto litígios relativos à
«condenação ao pagamento de indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios
por razões de interesse público», o mesmo não sucede com a noção da competência para
(289) Ver artigos 82.º, n.º s 1 e 2, 82.º, n.ºs 3 e 4 e 87.º todos do CE. Ver também o art. 84.º, n.º 3 do mesmo diploma legal.
(290) Cfr. Rogério SOARES, Direito Administrativo, Coimbra, 1980, p. 130; (291) Ver Afonso QUEIRÓ, Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 1976, pp. 43, 44 e 51, e A Função Administrativa, in:
«Separata da RDES», XXIV (n.ºs 1, 2 e 3), Coimbra, 1977, pp. 30 e 31. Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Código das
Expropriações e Outra Legislação sobre Expropriações por Utilidade Pública, Introdução, Lisboa, Aequitas/Diário de Notícias, 1992, pp. 30-34.
157
o conhecimento dos litígios relacionados com a expropriação de sacrifício. Na verdade,
poderá compreender-se que, sendo as expropriações de sacrifício uma modalidade de
expropriações, estão estas sujeitas ao regime global definido e elencado no CE (que,
num certo ponto de vista, pode considerar-se que configura um regime especial
salvaguardado pelo art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007), nele incluindo as normas que
atribuem aos tribunais judiciais competência para a discussão litigiosa sobre o valor da
indemnização (arts. 38.º e segs. do CE) – normas essas que não enfermam de qualquer
vício de inconstitucionalidade, em face do art. 212.º, n.º 3, da Lei Fundamental, não
obstante a natureza administrativa da relação jurídica expropriativa, como decidiu o TC
no seu Ac. n.º 746/96. Assim acontece com a indemnização dos danos decorrentes da
constituição, por meio de um ato de declaração de utilidade pública, de servidões
administrativas, que, nos termos do art. 8.º, n.º 2, do CE, devam ser acompanhadas de
indemnização, as quais são, como referimos, autênticas expropriações de sacrifício.
Diferente é, no entanto, o cenário apresentado pelas expropriações do plano, as
quais constituem um exemplo impressivo das expropriações de sacrifício. A propósito
delas, o art. 143.º, n.º 4, do RJIGT estatui que «o valor da indemnização corresponde à
diferença entre o valor do solo antes e depois das restrições provocadas pelos
instrumentos de gestão territorial, sendo calculado nos termos do CE». Poderia
interpretar-se esta norma como contendo uma remissão em bloco do regime das
expropriações do plano para o regime do CE, abrangendo não só as normas quanto ao
cálculo do valor indemnizatório, mas também as concernentes à competência dos
tribunais judiciais para conhecerem dos litígios respeitantes ao montante da
indemnização e às respetivas normas processuais.
Tal interpretação parece não ser compatível com a letra da lei, uma vez que,
como ressalta dos próprios termos usados pelo legislador, aquela norma opera uma
remissão para o CE, para efeitos exclusivos do critério do cálculo indemnizatório. Desta
forma, são os tribunais administrativos os competentes para conhecer das ações de
condenação ao pagamento da indemnização por expropriações do plano, e tem vindo a
ser esta a solução que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a adotar.
Exemplos: o Ac. do Pleno da 1.ª Seção do STA, de 11 de Maio de 2005
(Processo n.º 616/2004) o qual decidiu, inter alia, que são competentes os tribunais
administrativos de círculo para conhecer de uma ação de condenação ao pagamento de
indemnização decorrente de sacrifícios resultantes da aprovação do Plano de
158
Ordenamento da Orla Costeira (POOC) de Sintra/Sado pelo Conselho de Ministros,
devido ao facto de o mesmo ter proibido a construção em determinado local do Portinho
da Arrábida. No mesmo sentido, decidiu o Ac. da 1.ª Seção do STA, de 26 de Março de
2009 (Processo n.º 039/09), podendo ler-se, em determinado trecho do mesmo, o
seguinte: «Resulta do exposto que a primeira e decisiva questão a resolver é a de saber
se, efetivamente, a Autora tem razão quando considera que a aprovação do POOC
significou uma quase expropriação do seu prédio e se, por isso, lhe assiste o dever de
ser indemnizada. Isto é, primeiro que tudo, haverá que decidir se a RCM acima
identificada – a Resolução do Conselho de Ministros n.ºs 123/98, que aprovou o POOC
– significou para a Autora uma quase expropriação do seu terreno e se, por isso, a
mesma fez nascer na sua esfera jurídica o direito indemnizatório reclamado – a
chamada indemnização por sacrifício. E se assim é, como é, o que ora está em jogo é
um conflito de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas
administrativas e que será em função da análise de normas de direito administrativo que
o mesmo irá ser resolvido. E tanto assim é que, ao formular a sua pretensão, a Autora
pediu que, em primeiro lugar, se declarasse o seu direito à indemnização e, apenas
depois, em execução de sentença, que esta fosse determinada». Ora, é a jurisdição
administrativa a competente para dirimir aquele conflito.
Cabe-nos perguntar se existe algum critério que tenha sido adotado pelo
legislador para, nuns casos, considerar que os atos administrativos impositivos de
encargos ou causadores de danos especiais e anormais devem ser indemnizados de
acordo com o regime da indemnização pelo sacrifício e, noutros casos, segundo os
ditames da expropriação de sacrifício. Mas, esta questão é difícil. Como realça
Fernando ALVES CORREIA: «E nem sempre o legislador se tem mostrado coerente.
Mas cremos que, pelo menos tendencialmente, o legislador optou pela indemnização de
acordo com os cânones da expropriação de sacrifício naquelas situações em que o acto
do poder público revelar uma intencionalidade ablativa de um direito de conteúdo
patrimonial ou de alguma ou algumas “faculdades” ou “irradiações” desse direito, (…)»
(292
).
(
292) Cfr. Fernando ALVES CORREIA, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim GOMES CANOTILHO, in:
«STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6,Vol I, Responsabilidade entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 238.
159
6. A relevância jurisprudencial do Tribunal Constitucional
Uma importante referência a ser feita é a de que também o Tribunal
Constitucional não foi alheio aos termos literais e ao tratamento sistemático dispensado
à responsabilidade do Estado no artigo 16.º do RRCEE.
Ora, neste prisma, torna-se conveniente evidenciar que no Acórdão n.º 525/2011
do TC (293
), reconhecendo existirem indícios no sentido de uma vontade do legislador
de autonomizar o mecanismo da compensação pelo sacrifício do instituto da
responsabilidade civil, o mesmo TC, sem tomar qualquer posição relativamente a esta
questão dogmática, considerou, e contra a interpretação muito restritiva que limita o
campo de aplicação do supra mencionado artigo à responsabilidade civil pelo sacrifício
de bens pessoais, não haver «objeção de princípio a que o preceito, dada a sua
localização sistemática e os termos amplos em que vêm formulados os seus
pressupostos aplicativos, constitua suporte normativo adequado de «pretensões
indemnizatórias pelo sacrifício de direitos patrimoniais privados» que não caibam
noutras previsões legais, de fundamento ou de recorte mais específico […]. Parece
dominante, na verdade, a conceção doutrinal que só exclui do regime da indemnização
pelo sacrifício «as situações especialmente reguladas na lei», como é o caso da
requisição e da expropriação, que têm fundamento constitucional próprio, no princípio
do pagamento da justa indemnização (artigo 62.º, n.º 2, da Constituição), e regime
indemnizatório fixado no Código das Expropriações […]» (294
) (295
).
Destarte, o sublinhado artigo 16.º do RRCEE desempenharia, de tal forma, e nos
termos do mesmo aresto, o papel de uma «“norma de receção” (Auffangsnorm) das
situações merecedoras de indemnização não especialmente reguladas, ou [funcionais],
por outras palavras, como cláusula geral de «salvaguarda para cobrir aquele «resto» de
atuações causadoras de danos que, num Estado de direito, não podem deixar de dar
lugar ao pagamento de indemnização» (296
). Se a indemnização pelo sacrifício tem uma
causa e um âmbito genéricos, não sendo restrita à afetação do direito de propriedade,
também a abarca, quando não é operativa a garantia específica de que este direito goza.
Se não se limita a esse campo operativo, também não o exclui» (297
).
(293) Acórdão publicado no DR, 2.ª série, de 21 de Dezembro de 2011.
(294) Cfr. o respetivo n.º 11. (295) Neste sentido ver Pedro MACHETE, Artigo 16.º - Indemnização pelo sacrifício, in: Rui MEDEIROS (org.), Comentário ao
Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, Universidade Católica Editora,
2013, p. 437. (296) Maria da Glória DIAS GARCIA apud Pedro MACHETE, Artigo 16.º - Indemnização pelo sacrifício, in: Rui MEDEIROS
(org.), Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa,
Universidade Católica Editora, 2013, p. 437. (297) Cfr. o respetivo n.º 14.
160
Importa explanar que sendo a imposição do sacrifício legítima, uma vez que, em
caso de ilegitimidade, opera a responsabilidade por facto ilícito, a única solução que é
de se aceitar a nível jurídico no quadro de um Estado de Direito é a de compensar o
particular lesado na sua esfera jurídica, visando a reposição da igualdade com os seus
concidadãos, ou seja, se para o benefício da comunidade alguém tem de contribuir com
mais do que todos os outros, então é esse contributo acrescido que tem de ser
compensado, sob cominação do resultado de uma intervenção originariamente legítima
se demonstrar ilegítimo neste sentido.
Ora, a própria ideia de sacrifício especial induz a deslocar a atenção da intervenção
enquanto conduta para a sua incidência na esfera jurídica lesada. Tendo em vista tal
consideração, o sacrifício ou prejuízo sofrido numa determinada esfera jurídica, que
reside o fator de integração num sistema unitário da indemnização pelo sacrifício
legitimamente imposto em nome do interesse público: não tem relevância a
censurabilidade da atuação lesiva própria da responsabilidade por facto ilícito, nem o
perigo por ela originado, como acontece nas situações de responsabilidade pelo risco
que, como sugere VIEIRA DE ANDRADE: «no contexto do direito público,
corresponde a uma responsabilidade pelo perigo criado associado a deveres estritos de
prevenção e de vigilância» (298
); que, por isso, reconduz a responsabilidade pelo risco a
uma responsabilidade pelo perigo; Assim, o que interessa é fulcrar no aludido
contributo acrescido exigido, direta ou indiretamente, por ato intencional ou por efeito
colateral de atuação pública, ao lesado-sacrificado, traduzindo-se tal contributo tanto no
caso de sacrifícios intencionais, como no caso de sacrifícios colaterais numa afetação de
direitos, que pode ser máxima ou total e definitiva, como no caso da expropriação ou da
destruição de coisas, meramente parcial ou ainda, mesmo que total, somente temporária,
a nível de exemplo temos a requisição (299
).
Em sentido contrário, evidenciando que não só a expropriação, como a
indemnização pelo sacrifício e a responsabilidade por ato lícito, «embora estejam
contidas no mesmo preceito legal e ainda que ambas se distingam, pelas mesmas razões,
(298) VIEIRA DE ANDRADE apud Pedro MACHETE, Artigo 16.º - Indemnização pelo sacrifício, in: Rui MEDEIROS (org.), Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 2013, pp. 438-439.
(299) Para mais desenvolvimentos vd. Pedro MACHETE, Artigo 16.º - Indemnização pelo sacrifício, in: Rui MEDEIROS (org.), Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 2013, pp. 439 e segs.
161
da responsabilidade civil em sentido estrito, […] são, em rigor, institutos distintos, aos
quais devem corresponder diferenças práticas de regime jurídico» (300
) (301
).
Importa ler relativamente à jurisprudência do STA: os Acórdãos de 2 de
Dezembro de 2004, Processo n.º 670/04; de 26 de Abril de 2006, Processo n.º 120/06;
de 2 de Dezembro de 2009, Processo n.º 1088/08; de 9 de Fevereiro de 2012, Processo
n.º 678/11 e de 28 de Fevereiro de 2012, Processo n.º 1077/11 (302
) (303
).
Certa jurisprudência constitucional foi adotada pelo STA, de entre outros, no
Acórdão de 26 de Abril de 2006, Processo n.º 120/06 que nos relata o seguinte: «[s]
e o particular, por ato normativo lícito [um decreto regulamentar] que não prevê
expressamente o dever de indemnizar, é privado de faculdades ou direitos que antes lhe
foram validamente constituídos e do gozo económico fundamental do seu prédio e,
assim, fica colocado numa posição jurídica que, pela gravidade e intensidade do dano
seja injusto não equiparar à expropriação para efeitos indemnizatórios, o artigo 9.º do
DL n.º 48 051, de 21 de novembro de 1967, à luz do disposto nos artigos 13.º, 18.º, 22.º
e 62.º da Constituição, haverá de interpretar-se por forma que imponha ao Estado o
dever de indemnizar, nos termos nele previstos».
(300) VIEIRA DE ANDRADE apud Pedro MACHETE, Artigo 16.º - Indemnização pelo sacrifício, in: Rui MEDEIROS (org.), Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 2013, p. 439.
(301) Para mais desenvolvimentos vd. Pedro MACHETE, Artigo 16.º - Indemnização pelo sacrifício, in: Rui MEDEIROS (org.), Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 2013, pp. 439 e segs.
(302) Consultar: www.dgsi.pt. (303) Assim em sentido convergente ao disposto no Acórdão de 26 de Abril de 2006, Processo n.º 120/06, ver Maria da Glória DIAS
GARCIA, apud Pedro MACHETE, Artigo 16.º - Indemnização pelo sacrifício, in: Rui MEDEIROS (org.), Comentário ao Regime
da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2013, p. 444.
162
CONCLUSÕES:
1. As modalidades de responsabilidade civil administrativa por facto lícito são: a
responsabilidade pelo sacrifício de bens pessoais e por danos causados em estado de
necessidade (artigo 16.º do RRCEE) e a responsabilidade civil pela legítima não
reconstituição da situação atual hipotética (artigos 45.º, 49.º, 102.º, n.º 5, 166.º e 178.º
do CPTA);
2. O artigo 16.º do RRCEE inserido no Capítulo V do referido diploma legal, com
a epígrafe «Indemnização pelo sacrifício» filia-se num princípio de justa repartição dos
encargos públicos, que emana dos artigos 2.º, 13.º e 18.º da nossa Lei Fundamental.
Destarte, conforme a posição jurídica privada concretamente sacrificada pela ingerência
administrativa, poderão estar também em questão os artigos 26.º, n.º 1 ou 62.º, n.º 1 da
CRP, isto é, mediante encargos de cariz não patrimonial (danos morais) ou patrimonial,
de forma respetiva;
3. Relativamente à responsabilidade pelo sacrifício de bens pessoais, o art. 16.º do
RRCEC reporta-se à responsabilidade pelo sacrifício em termos excessivamente
amplos: por interpretação conforme com a Constituição, as pretensões indemnizatórias
pelo sacrifício de direitos patrimoniais privados devem ser apartadas do seu âmbito e
enquadradas em termos substancialmente diversos dos nele consagrados. Assim sendo,
o âmbito do art. 16.º do RRCEC fica reduzido à responsabilidade pelo sacrifício de bens
pessoais (designadamente a vida, a integridade física, a saúde e a qualidade de vida,
bem como os direitos de personalidade referidos no art. 26.º, n.º 1 da CRP) e por danos
causados em estado de necessidade;
4. Os pressupostos da responsabilidade civil pelo sacrifício de bens pessoais são o
facto voluntário, a licitude, o dano e o nexo de causalidade;
5. O artigo 2.º do RRCEE dá-nos a noção de danos especiais e anormais. Assim,
«Para efeitos do disposto na presente lei, consideram-se especiais os danos ou encargos
que incidam sobre uma pessoa ou um grupo, sem afectarem a generalidade das pessoas,
e anormais os que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam,
pela sua gravidade, a tutela do direito»;
163
6. Quanto à figura da responsabilidade pelo não restabelecimento legítimo de
posições jurídicas subjetivas violadas é de ter em atenção que, em regra, os particulares
lesados nas suas posições jurídicas subjetivas por condutas administrativas têm direito à
eliminação daquelas condutas e à reconstituição na sua esfera jurídica da situação que
existiria se aquelas condutas não tivessem ocorrido. Por vezes, a lei admite que a
reconstituição não ocorra, por tal ser impossível ou manifestamente inconveniente, mas
impõe à administração – que, recorde-se, praticou a conduta ilegal – a obrigação de
indemnizar o lesado;
7. Porém, há na doutrina portuguesa administrativista quem entende que a
indemnização pelo sacrifício não configura uma situação de responsabilidade, mas sim
algo que está mais próximo de uma situação como a expropriação por utilidade pública
do que um caso de responsabilidade civilística;
8. Quanto ao perímetro de aplicação da indemnização pelo sacrifício, esta inclui
os danos especiais e anormais decorrentes do exercício da função administrativa,
designadamente os derivados de atos administrativos lícitos e ações praticadas em
estado de necessidade administrativa, a que se reportavam os n.ºs 1 e 2 do art. 9.º do DL
n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967;
9. Todo o contexto sistemático do art. 9.º do DL n.º 48 051 (antigo diploma legal)
evoluiu de forma clara em termos que tornaram ainda mais manifesta a necessidade de
ler aquele preceito no sentido de prever também a responsabilidade por atos
regulamentares legais;
10. A falta de controlo jurisdicional da legalidade de (certos) regulamentos
não constituía motivo para considerar excluída a responsabilidade por danos
diretamente causados por regulamentos legais;
11. Nos dias de hoje, na responsabilidade civil administrativa por facto
lícito, o facto voluntário, pode ser um ato administrativo ou um ato material; a exclusão
164
dos regulamentos do conceito de ato voluntário prende-se com a sua impossibilidade
natural para produzir danos ressarcíveis no âmbito deste tipo de responsabilidade civil,
em virtude do caráter necessariamente especial do dano. Os regulamentos são normas
gerais e abstratas;
12. Nas palavras de Carla AMADO GOMES: «O Acórdão Fratelli Costanzo,
ao afirmar a vinculação de todas as funções do Estado ao dever de lealdade comunitária,
aponta para um quadro de predominância da responsabilização da função administrativa
face à legislativa e jurisdicional». No §31 desta decisão, pode ler-se, com muita clareza:
«Seria por outro lado contraditório entender que os particulares têm o direito
de invocar perante os tribunais nacionais, as disposições de uma directiva que
preencham as condições acima referidas, com o objectivo de fazer condenar a
administração, e, no entanto, entender que esta não tem o dever de aplicar aquelas
disposições afastando as de direito nacional que as contrariem. Daqui resulta que,
preenchidas as condições exigidas pela jurisprudência do tribunal, para as normas de
uma directiva poderem ser invocadas pelos particulares perante os tribunais nacionais,
todos os órgãos da administração, incluindo as entidades descentralizadas, tais como
as comunas, têm o dever de aplicar aquelas disposições».
13. Devemos frisar a aplicação da (s) figura (s) da (s) causa (s) de exclusão
da ilicitude no âmbito da compensação pelo sacrifício. Destarte, e como adverte Carla
AMADO GOMES, no seu artigo na «Revista do Ministério Público», n.º 129: Janeiro:
Março de 2012, «a aproximação pode surpreender, num primeiro momento, na medida
em que a motivação da ingerência é radicalmente diferente, pois aquela situa-se num
plano de antijuridicidade socialmente nefasta e a última num quadro de juridicidade
socialmente sustentada»;
14. Ora, a associação pode ainda causar alguma resistência na medida em
que o facto ilícito não conhece limites indemnizatórios, ao passo que o facto lícito tem
na medida da compensação, mais do que um limite, um verdadeiro pressuposto de
aplicação. Haverá casos em que, demonstrada pela entidade ré a inexistência de ilicitude
na ação de efetivação da responsabilidade por facto ilícito, ainda restará ao autor, numa
165
outra ação (ou então na mesma ação, caso tenho deduzido um pedido subsidiário, com
fundamentação específica, nomeadamente relativamente à caraterização do prejuízo
como especial e anormal), e se dentro dos limites da prescrição, a possibilidade de
demandar a ré com diferentes fundamentos, orientando a compensação para uma base
de licitude;
15. Contudo, o facto de a causa de exclusão da ilicitude parecer apenas
retroativamente revestir de licitude a prática do ato não deve perturbar a sua recondução
ao instituto da compensação por facto lícito. Porquanto, o paradigma do facto lícito é a
expropriação, procedimento que, salvo urgência, deve obedecer a uma ponderação
prévia de valores e interesses, traduzido na declaração de utilidade pública – mas as
demais condutas potencialmente geradoras de compensação por facto lícito tão pouco
deixam de refletir essa ponderação, eventualmente menos formalizada em razão da
urgência de algumas atuações dessa natureza. Ora, a divergência entre as hipóteses de
facto lícito de partida e as de facto lícito à chegada por verificação de causa de exclusão
da ilicitude será porventura somente mais de caráter processual do que substantiva;
16. Quanto às causas de justificação da ilicitude, tais causas de exclusão
atingem a realidade objetiva da obrigação, transformando em juridicamente admissível
ou justificável a conduta lesiva em causa e afastando, consequentemente e de forma
inevitável, o dever de indemnizar os prejuízos gerados a título de conduta ilícita.
Algumas destas causas, assim como o cumprimento de um dever ou a legítima defesa,
estão orientadas para a justificação de condutas pessoais; porém, desde que o
comportamento do agente revista um nexo funcional, deve entender-se que a causa
afasta a ilicitude da manifestação de uma vontade institucional e, portanto, a ilicitude da
conduta administrativa;
17. Todavia, a especialidade e a anormalidade são requisitos do prejuízo
indemnizável, enquanto pressuposto da responsabilidade civil, e não propriamente um
critério do cálculo da indemnização. Isto é, apurado que determinados prejuízos são
indemnizáveis, por preencherem as caraterísticas de especialidade e anormalidade,
estamos perante uma situação merecedora de indemnização pelo sacrifício desde que se
verifiquem os restantes requisitos materiais da obrigação de ressarcimento. Nestes
166
termos, a exigência de um prejuízo ou encargo especial e anormal não obstaria só por si
a que se fixasse uma indemnização correspondente à integralidade dos prejuízos ou
encargos dessa natureza que tivessem sido produzidos ou impostos. No entanto, o art.
16.º do RRCEE manda atender, para o cálculo da indemnização, designadamente, ao
«grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou
sacrificado». Tal menção legislativa pressupõe que se efetue uma apreciação igualitária
do valor do encargo ou do dano, e que, desse modo, poderá não corresponder ao
montante económico que esteja efetivamente em causa. De referir que, demarca, por
outro lado, a natureza compensatória, e não meramente reparatória da indemnização, o
que se compadece com a consideração de que os direitos ou interesses que possam ser
sacrificados, em muitos casos, pela sua própria natureza, serão unicamente susceptíveis
de uma avaliação pecuniária indirecta;
18. A indemnização pelo sacrifício é tida enquanto modalidade de
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas de direito
público; porém, é diferente da expropriação em sentido clássico, que por sua vez, difere
da expropriação de sacrifício, esta última também denominada expropriação substancial
ou larvada;
19. A expropriação clássica pode ser definida como um ato de privação ou de
subtração de um direito de conteúdo patrimonial e na sua transferência para um sujeito
diferente, para a realização de um fim público. A chamada expropriação clássica
apresenta-se como um procedimento de aquisição de bens, cuja finalidade é a da
realização de um interesse público. O principium individuationis do conceito clássico de
expropriação é a mudança de titular do direito;
20. A expropriação pelo sacrifício carateriza-se por uma destruição ou uma
afetação essencial de uma posição jurídica garantida como propriedade pela CRP, à qual
falta, no entanto, o momento translativo do direito, bem como a relação tripolar:
entidade expropriante – expropriado – beneficiário da expropriação. Estamos perante
atos do poder público cujo escopo não é o da aquisição de um bem para a realização de
um interesse público, mas que produzem modificações especiais e graves na utilitas do
direito de propriedade e que devem ser qualificados como expropriativos e,
consequentemente, ser acompanhados do dever de indemnizar que lhes assiste;
167
21. As expropriações do plano são verdadeiras expropriações de sacrifício, e
às expropriações do plano reportam-se o artigo 8.º da LBPOTU e o artigo 143.º do
RJIGT;
22. Na indemnização pelo sacrifício, o fundamento encontra-se, nos
princípios do Estado de Direito e da igualdade perante os encargos públicos;
23. Na expropriação pelo sacrifício, o fundamento vai buscar-se não só nos
princípios do Estado de Direito e da igualdade perante os encargos públicos, mas
também ao princípio da justa indemnização por expropriação, comtemplado no artigo
62.º, n.º 2 da CRP;
24. Quanto à natureza da indemnização, na indemnização pelo sacrifício, a
indemnização é uma consequência do ato impositivo de encargos ou causador de danos
especiais e anormais;
25. Na expropriação de sacrifício a indemnização é um pressuposto de
validade do ato expropriativo, como resulta do n.º 2, do art. 62.º da nossa Lei
Fundamental;
26. Quando nos reportamos ao critério da indemnização, na indemnização
pelo sacrifício a indemnização é calculada com base nos critérios definidos nas normas
conjugadas dos arts. 16.º e 3.º do RRCEE;
27. Na expropriação de sacrifício, a indemnização é apurada com base no
critério definido no CE, devendo corresponder ao valor de mercado do bem
expropriado, entendido não em sentido estrito ou rigoroso, mas em sentido normativo
(valor de mercado normativamente entendido);
28. Na realidade, poderá entender-se que, sendo as expropriações de
sacrifício uma modalidade de expropriações, estão as mesmas sujeitas ao regime global
definido no CE (que, num determinado ponto de vista, pode considerar-se que configura
um regime especial salvaguardado pelo art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007), nele incluindo
168
as normas que atribuem aos tribunais judiciais competência para a discussão litigiosa
sobre o valor da indemnização (arts. 38.º e segs., do CE) – normas essas que não
enfermam de qualquer vício de inconstitucionalidade, em face do art. 212.º, n.º 3, da
CRP, não obstante a natureza administrativa da relação jurídica expropriativa, como,
aliás, decidiu o TC no seu Ac. n.º 746/96;
29. Como explana Fernando ALVES CORREIA, «cremos que, pelo menos
tendencialmente, o legislador optou pela indemnização de acordo com os cânones da
expropriação de sacrifício naquelas situações em que o ato do poder público revelar
uma intencionalidade ablativa de um direito de conteúdo patrimonial ou de alguma ou
algumas «faculdades» ou «irradiações» desse direito»;
30. Na figura da requisição, a justa indemnização a atribuir ao requisitado
tem como parâmetro o prejuízo que para aquele advém da requisição (artigo 84.º, n.º 2
do CE), sendo a indemnização fixada mediante acordo expresso entre o beneficiário da
requisição e o proprietário do bem requisitado. Na falta de tal acordo, a competência
para a determinação do quantitativo indemnizatório é cometida, em primeira instância,
ao ministro responsável pelo setor, sob proposta do serviço com atribuições na área
(artigo 84.º, n.º 4, alíneas a) e b) do CE).
169
BIBLIOGRAFIA:
ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de – Direito das Obrigações, 9.ª ed., Coimbra, 2005.
- Direito das Obrigações, 10.ª ed., Coimbra, Almedina, 2006.
AMADO GOMES, Carla – Contributo para o estudo das operações materiais da
Administração Pública e do seu controlo jurisdicional, Coimbra, 1999.
- As novas responsabilidades dos tribunais administrativos na aplicação da Lei
67/2007, de 31 de Dezembro: primeiras impressões, in: Três textos sobre o Novo
Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades
Públicas, Lisboa, AAFDL, 2008.
- Três textos sobre o Novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do
Estado e Demais Entidades Públicas, Lisboa, AAFDL, 2008.
- O Livro das Ilusões: A responsabilidade do Estado por violação do Direito
Comunitário, apesar da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, in: «Separata Revista do
CEJ», 1.º Semestre – n.º 11, Responsabilidade civil extracontratual do Estado,
Almedina, 2009.
- O Livro das Ilusões: A responsabilidade do Estado por violação do Direito
Comunitário, apesar da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, in: Textos Dispersos sobre
Direito da Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas, Lisboa,
AAFDL, Publicação CarbonoZero, 2010.
- Textos Dispersos sobre Direito da Responsabilidade Civil Extracontratual das
Entidades Públicas, Lisboa, AAFDL, Publicação CarbonoZero, 2010.
- A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de
jurisprudência, in: «Revista do Ministério Público», n.º 129, Janeiro: Março, 2012.
- A responsabilidade civil do Estado por actos materialmente administrativos
praticados no âmbito da função jurisdicional, no quadro da Lei 67/2007, de 31 de
Dezembro, texto em curso de publicação na Revista «O Direito».
- A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de
Jurisprudência in: Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Vol. IV,
(Direito Administrativo e Justiça Administrativa), Coimbra Editora, FDUL, 2012.
AMADO GOMES, Carla / ASSIS RAIMUNDO, Miguel – Topicamente – e a quatro
mãos… - sobre o novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e
170
demais entidades públicas, in: «Revista de Direito Público e Regulação», n.º 5, Março,
ed. Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre), FDUC, 2010.
AROSO DE ALMEIDA, Mário – Manual de Processo Administrativo, Coimbra,
Almedina, 2010.
AROSO DE ALMEIDA, Mário/FERNANDES CADILHA, Carlos A. – Comentário ao
Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2010.
ANTUNES VARELA, J. M. – Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed.,
(reimpressão), Coimbra, Almedina, 2000.
ASCENSÃO, José Oliveira – Estudos sobre expropriações e nacionalizações, Lisboa,
1989.
AZEVEDO, Bernardo - Servidão de direito público. Contributo para o seu estudo,
Coimbra, 2005.
BLANCO DE MORAIS, Carlos - As Leis Reforçadas, Coimbra, Coimbra Editora.
CABRAL, Pedro/CIMA CHAVES, Mariana – A responsabilidade do Estado por actos
jurisdicionais em Direito Comunitário, in: «ROA», 2006/II.
CABRAL DE MONCADA, L. – Responsabilidade Civil Extra-contratual do Estado,
A Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, Lisboa, Abreu & Marques Vinhas, 2008.
CAETANO, Marcello – Manual de Direito Administrativo 9, II, Lisboa, Coimbra
Editora, 1972.
- Manual de Direito Administrativo, 9.ª e última edição, Tomo III, Lisboa,
Coimbra Editora, 1972.
- Manual de Direito Administrativo 10, I, Lisboa, Coimbra Editora, 1973.
- Curso de Direito Administrativo 2, I, Coimbra: Almedina, 1994.
171
CARDOSO DA COSTA J. M. – Sobre o Novo Regime da Responsabilidade do Estado
por Actos da Função Judicial, in «RLJ», n.º 3954, Ano 138.º.
CAUPERS, João - Introdução ao Direito Administrativo, 10.ª ed., Lisboa, Âncora,
2009.
- A Responsabilidade do Estado e outros entes Públicos, Capítulo VIII,
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2012.
CHANCERELLE DE MACHETE, Rui – A acção para efectivação da
responsabilidade civil extracontratual, in: Estudos de Direito Público, Coimbra, 2004.
CORREIA, Fernando Alves – As Garantias do Particular na Expropriação por
Utilidade Pública, Coimbra, Almedina, 1982.
- O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, Almedina, 1989.
- Formas de Pagamento da Indemnização na Expropriação por Utilidade
Pública, Algumas Questões, Separata do Número Especial do BFDUC – in: Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor António Arruda Ferrer Correia - 1984, Coimbra, 1991.
- Código das Expropriações e Outra Legislação sobre Expropriações por
Utilidade Pública (Introdução), Lisboa, Aequitas/Diário de Notícias, 1992.
- Estudos de Direito do Urbanismo, Coimbra, Almedina, 1997.
- A Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre Expropriações por
Utilidade Pública e o Código das Expropriações de 1999, in: «Separata da RLJ»,
Coimbra, 2000.
- O Direito do Urbanismo em Portugal (Síntese), in: «RLJ», n.º 3937, Ano 135.º.
- Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2008.
- A indemnização pelo sacrifício, in: «Revista de Direito Público e Regulação»,
ed., Cedipre, Maio de 2009, n.º 1, FDUC.
- Manual de Direito do Urbanismo, Vol. II, Coimbra, Almedina, 2010.
- A indemnização pelo sacrifício: contributo para o esclarecimento do seu
sentido e alcance, in: «RLJ», n.º 3966, 2011.
- A Indemnização pelo Sacrifício: contributo para o esclarecimento do seu
sentido e alcance, in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes
Canotilho, in: «STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6, Vol I,
172
Responsabilidade: entre Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2012.
- Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, in:
«STVDIA IVRIDICA», 102, AD HONOREM – 6, Vol I, Responsabilidade: entre
Passado e Futuro, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
Coimbra Editora, 2012.
CORREIA, Maria Lúcia C. A. Amaral Pinto – Responsabilidade do Estado e Dever de
Indemnizar do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1998.
CORTEZ, Margarida – Responsabilidade Civil da Administração por Actos
Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado, Coimbra, Coimbra
Editora, 2000.
- Contributo para uma Reforma da Lei de Responsabilidade Civil da
Administração, in: Responsabilidade Civil Extra-contratual do Estado, Trabalhos
Preparatórios da Reforma, Coimbra, Coimbra Editora, 2002.
Decreto- Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967.
DIAS GARCIA, António – Da Responsabilidade Civil objectiva do Estado e Demais
Entidades Públicas, in: FAUSTO DE QUADROS (coord.), Responsabilidade Civil
Extracontratual da Administração Pública, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2004.
DIAS GARCIA, Maria da Glória – A Responsabilidade civil do Estado e Demais
Pessoas Colectivas Públicas, Lisboa: Conselho Económico e Social, Série «Estudos e
Documentos», 1997.
- A responsabilidade civil do Estado e das regiões autónomas pelo exercício da
função político-legislativa e a responsabilidade civil do Estado e demais entidades
públicas pelo exercício da função administrativa, in: «Revista do CEJ», n.º 13, 2010.
DIMAS DE LACERDA, J. A. – Responsabilidade civil extracontratual do Estado
(alguns aspectos), in: Contencioso Administrativo, Braga, 1986.
173
ESTEVES DE OLIVEIRA, Mário/ESTEVES DE OLIVEIRA, Rodrigo – Código de
Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais, Anotados, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2004.
ESTORNINHO, Maria João – A reforma de 2002 e o âmbito da jurisdição
administrativa, in: «CJA», n.º 35, Setembro/Outubro, 2002.
Estudos sobre Expropriações e Nacionalizações, Lisboa, Imprensa Nacional, 1989.
Expropriações por Utilidade Pública, Jurisprudência, Coimbra, Associação de
Solidariedade Social «Casa do Juiz», 2007.
FERNANDES CADILHA, Carlos – O novo regime de responsabilidade civil do
Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa;
- A responsabilidade da Administração Pública. Intervenção no Colóquio
promovido pelo Ministério da Justiça subordinado ao tema Responsabilidade civil
extra-contratual do Estado – Trabalhos preparatórios da reforma, Coimbra, 2002.
- Regime Geral da Responsabilidade Civil da Administração Pública, in:
«CJA», n.º 40, Julho/Agosto, 2003.
- Os poderes do juiz e o princípio da tipicidade das formas processuais, in:
«Revista do CEJ (Centro de Estudos Judiciários)», n.º 7, 2.º Semestre de 2007.
- Regime da Responsabilidade civil Extracontratual do Estado e das demais
Entidades Públicas, Coimbra Editora, 2008.
- Regime da Responsabilidade civil Extracontratual do Estado e demais
Entidades Públicas, Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 2008.
- Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
entidades públicas, Anotado, Lisboa, 2008.
- Regime da Responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
entidades públicas, Anotado, 2.ª ed., Coimbra, 2011.
- O Regime Geral da Responsabilidade Civil da Administração, in: «CJA», n.º
40.
FONSECA, Isabel Celeste M. – Código de Procedimento Administrativo, in:
«Caderno de Legislação Administrativa», Braga, Almeida & Leitão, Lda, 2010.
174
- «Caderno de Legislação Administrativa», II, Braga, Almeida & Leitão, Lda,
2010.
FONSECA, J. Vieira – Um Percurso no Âmbito das Expropriações por Utilidade
Pública, Tese Mest., polic., Lisboa, 1998.
FREITAS DO AMARAL, Diogo (coord.) – Direito do Urbanismo, Lisboa, INA, 1989.
- Direito Administrativo III, Lisboa, polic.
FREITAS DO AMARAL, Diogo - Curso de Direito Administrativo 2, I, Coimbra,
Almedina, 1994.
- Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2011.
FREITAS DO AMARAL, Diogo/ DIAS GARCIA, Maria da Glória – O estado de
necessidade e a urgência em Direito Administrativo, in: «ROA», 1999/II.
GARCIA, Maria da Glória – A Responsabilidade civil do Estado e Demais Pessoas
Colectivas Públicas, Lisboa: Conselho Económico e Social, Série «Estudos e
Documentos», 1997.
GOMES CANOTILHO, J. J. – O problema da responsabilidade do Estado por actos
lícitos, Coimbra, 1974.
- Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, 2003.
- Parecer de 2 de Fevereiro de 2009, in: A Requisição Estadual e o Autódromo
do Estoril, Autodril, S. A. (sem data).
GOMES CANOTILHO, J. J. / VITAL MOREIRA – Constituição da República
Portuguesa, Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007.
- Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. I, 4.ª ed., (revista),
Coimbra, Coimbra Editora, 2007.
GOMES, José Osvaldo – Expropriações por utilidade pública, Lisboa, 1997.
175
Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17/07.
MACHETE, Pedro – A Responsabilidade da Administração por Facto Ilícito e as
Novas Regras de Repartição do Ónus da Prova, in: «Cadernos de Justiça
Administrativa», n.º 69, 2008.
- Artigo 16.º - Indemnização pelo sacrifício, in: RUI MEDEIROS (org.),
Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais
Entidades Públicas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2013.
MEALHA, Esperança – Responsabilidade civil nos procedimentos de adjudicação dos
contratos públicos (notas ao artigo 7.º/2 da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro), in:
«Julgar», n.º 5, 2008.
MEDEIROS, Rui – Ensaio sobre a Responsabilidade civil Extracontratual do Estado
por Actos Legislativos, Coimbra, Almedina, 1992.
- A Decisão de Inconstitucionalidade, Lisboa, Universidade Católica Editora,
1999.
- Anotação ao Artigo 22.º, in: JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS,
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra, Wolters Kluwer/Coimbra
Editora, 2010.
MENEZES CORDEIRO, A. – - Direito das Obrigações, II, Lisboa, 1980.
- A Responsabilidade Civil do Estado, in: Homenagem ao Professor Doutor
Diogo Freitas do Amaral, Coimbra, Almedina, 2010.
MENEZES LEITÃO, Luís – Direito das Obrigações, II, Coimbra, 2002.
- Arrendamento urbano, Coimbra, 2005.
MIRANDA, Jorge / MEDEIROS, Rui – Constituição da República Portuguesa
Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra, 2010.
MOREIRA DA SILVA, Da Impugnação Contenciosa de Regulamentos
Administrativos, Tese de Mestrado, polic., Faculdade de Direito de Lisboa, 1992.
176
NOGUEIRA DE BRITO, M. – A Justificação da Propriedade Privada numa
Democracia Constitucional, Coimbra, Almedina, 2007.
PAES, Pedro Cansado/PACHECO, Ana Isabel/BARBOSA, Luís Alvarez – Código
das Expropriações Anotado, Coimbra, Almedina, 2000.
PEREIRA DA SILVA, Vasco – O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise. Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.ª ed., Coimbra,
2009.
PESSOA JORGE – Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Coimbra,
1968.
PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA – Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra,
1987.
QUADROS, Fausto de – A Protecção da Propriedade Privada pelo Direito
Internacional Público, Coimbra, Almedina, 1998.
QUEIRÓ, Afonso – «Revista de Legislação e Jurisprudência», 97.º.
- A Função Administrativa, in: «Separata da Revista de Direito e de Estudos
Sociais», Ano XXIV, n.ºs 1, 2 e 3.
- Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 1976.
- Comentário de Jurisprudência, in: «RLJ», n.º 3664, 1-15, Agosto, 1980.
RANGEL DE MESQUITA, Maria José – Da responsabilidade civil extracontratual
no ordenamento jurídico-constitucional vigente, in: FAUSTO DE QUADROS (coord.),
Responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, Coimbra, 1995.
- Responsabilidade do Estado por incumprimento do Direito da União
Europeia: um princípio com futuro, in: «CJA», n.º 60.
- Responsabilidade do Estado por incumprimento do Direito da União
Europeia: um princípio com futuro, Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação do
Porto de 6 de Março de 2003 (Agravo 0650624), in: «CJA», n.º 60.
177
- O regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
entidades públicas e o Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2009.
RAPOSO, João – Novas Fronteiras da Responsabilidade Civil Extracontratual da
Administração, in: «Cadernos de Justiça Administrativa», n.º 58, 2006.
REBELO DE SOUSA. Marcelo/SALGADO DE MATOS. André – Responsabilidade
Civil Administrativa, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1.ª edição, Lisboa, D.
Quixote, 2008.
- Responsabilidade Civil Administrativa, Direito Administrativo Geral, Tomo
III, 1.ª edição, (reimpressão da 1.ª edição: Julho de 2010), Lisboa, Dom Quixote, 2008.
- Direito Administrativo Geral – Actividade administrativa, Tomo III, 2.ª ed.,
Lisboa, 2009.
«Revista de Legislação e Jurisprudência», 87.º.
SÉRVULO CORREIA, José Manuel – Da sede do regime de responsabilidade
objectiva por danos causados por normas emitidas no desempenho da função
administrativa, in: «Revista da Ordem dos Advogados», Ano 61, Lisboa, Dezembro de
2001.
- Direito do Contencioso Administrativo, Vol. I, Lisboa, 2005.
- Revisitando o Estado de Necessidade, in: Homenagem ao Prof. Doutor Diogo
Freitas do Amaral, Coimbra, Almedina, 2010.
SOARES, Rogério – Direito Administrativo, Coimbra, 1980.
OLIVEIRA, L. Perestrelo de – Código das Expropriações Anotado, Coimbra,
Almedina, 2000.
OSVALDO GOMES, J. – Expropriações por Utilidade Pública, Lisboa, Texto
Editora, 1997.
178
OTERO, Paulo – Causas de exclusão da responsabilidade civil extracontratual da
Administração Pública por facto ilícito, in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
José Manuel Sérvulo Correia, II, Coimbra, 2010.
VIEIRA DE ANDRADE, J. C. – A Responsabilidade por Danos Decorrentes do
Exercício da Função Administrativa na Nova Lei sobre Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, in: «Revista de Legislação e
de Jurisprudência (RLJ)», n.º 3951, Ano 137.º.
- A Justiça Administrativa (Lições), 10.ª ed., Coimbra, Almedina, 2009.
179
JURISPRUDÊNCIA:
De Direito Comunitário:
- Acórdão Loheac, de 31 de Março de 1977;
- Acórdão Von Colson, de 10 de Abril de 1984, caso 14/83;
- Acórdão Fratelli Costanzo, de 22 de Junho de 1989, caso 103/88;
- Acórdãos Francovich e Brasserie du Pêcheur, de 19 de Novembro de 1991, casos C-
6/90 e 9/90;
- De 5 de Março de 1993, casos C-46/93 e 48/93;
- Acórdão British Telecommunications, de 26 de Março de 1996, caso C-392-93;
- Acórdão Konle, de 1 de Junho de 1999, caso C-302/97;
- Acórdão Haim, de 4 de Julho de 2000, caso C- 424/97;
- Acórdão Köbler, de 30 de Setembro de 2003, caso C- 224/01;
- De 14 de Outubro de 2004, caso C-275/03;
- Acórdão de 10 de Janeiro de 2006, caso 70;
- Acórdão Traghetti, de 13 de Junho de 2006, caso C-173/03, 44.º.
STA: Supremo Tribunal Administrativo
- De 28 de Novembro de 1966, ADSTA 51 (1966), 321;
- De 17 de Maio de 1988, Processo n.º 025003;
- De 12 de Julho de 1990;
- De 18 de Março de 1993, Processo n.º 030914;
- De 2 de Novembro de 1993 (Processo n.º 31842), in: AP-DR de 15 de Outubro de
1996;
- De 16 de Maio de 1996, BMJ 457 (1996), 423;
- De 3 de Dezembro de 1996, BMJ 462 (1996), 470;
- De 7 de Dezembro de 1999, BMJ 492 (2000), 236;
- De 2 de Fevereiro de 2000, AD 473 (2001), 635;
- De 10 de Fevereiro de 2000, BMJ 494 (2000), 150;
- De 25 de Maio de 2000, 1.ª Seção, Processo n.º 41420;
- De 22 de Janeiro de 2002, Processo n.º 044308;
- De 20 de Fevereiro de 2002, AD 487 (2002), 1023;
- De 10 de Outubro de 2002, Processo n.º 048404;
- De 13 de Fevereiro de 2003, Processo n.º 01961/02;
180
- De 30 de Outubro de 2003, Processo n.º 0936/03;
- De 5 de Novembro de 2003, 1.ª Seção, Processo n.º 01100/02;
- De 13 de Janeiro de 2004, Processo n.º 040581;
- De 4 de Março de 2004, Processo n.º 01353/03;
- De 4 de Março de 2004, 1.ª Seção, Processo n.º 1353/03;
- De 25 de Março de 2004, Processo n.º 01718/03;
- De 3 de Novembro de 2004, Processo n.º 0811/03;
- De 2 de Dezembro de 2004, Processo n.º 670/04;
- De 25 de Janeiro de 2005, Processo n.º 01116/04;
- De 1 de Março de 2005, Processo n.º 01610/03;
- De 15 de Março de 2005, Processo n.º 036/04;
- De 7 de Abril de 2005, Processo n.º 856/04;
- De 26 de Abril de 2005, Processo n.º 245/05;
- De 3 de Maio de 2005, Processo n.º 745/04;
- De 11 de Maio de 2005, Pleno da 1.ª Seção, Processo n.º 616/2004;
- De 19 de Maio de 2005, Processo n.º 590/04;
- De 31 de Maio de 2005, Processo n.º 0127/03;
- De 29 de Junho de 2005, Processo n.º 566/04;
- De 19 de Outubro de 2005, Processo n.º 394/05;
- De 3 de Novembro de 2005, Processo n.º 792/05;
- De 9 de Fevereiro de 2006, Processo n.º 0294/05;
- De 16 de Fevereiro de 2006, Processo n.º 1039/05;
- De 9 de Março de 2006, Processo n.º 837/03;
- De 4 de Abril de 2006, Processo n.º 1116/05;
- De 26 de Abril de 2006, Processo n.º 120/06;
- De 10 de Maio de 2006, Processo n.º 121/06;
- De 16 de Maio de 2006, Processo n.º 0121/06;
- De 28 de Setembro de 2006, Processo n.º 0855/04;
- De 24 de Outubro de 2006, Processo n.º 0539/06;
- De 29 de Novembro de 2006, Processo n.º 843/06;
- De 6 de Março de 2007, Processo n.º 1143/06;
- De 21 de Junho de 2007, 1.ª Seção, Processo n.º 0110/06;
- De 17 de Dezembro de 2008, Processo n.º 348/08;
- De 4 de Fevereiro de 2009, Processo n.º 0522/08;
181
- De 26 de Março de 2009, 1.ª Seção, Processo n.º 039/09;
- De 20 de Maio de 2009, Processo n.º 0333/08;
- De 2 de Dezembro de 2009, Processo n.º 1088/08;
- De 11 de Março de 2010, Processo n.º 083/10;
- De 20 de Maio de 2010, Processo n.º 0390/09;
- De 26 de Maio de 2010, Processo n.º 72/10;
- De 23 de Novembro de 2010, Processo n.º 0444/10;
- De 2 de Dezembro de 2010, 1.ª Seção, Processo n.º 0629/10;
- De 9 de Fevereiro de 2012, Processo n.º 678/11;
- De 28 de Fevereiro de 2012, Processo n.º 1077/11.
STJ: Supremo Tribunal de Justiça
- De 20 de Setembro de 2010, Processo n.º 1229/05. 0TVLSB. LI. SI.
TC: Tribunal Constitucional
- 211/86;
- 236/86;
- 333/86;
- 341/86;
- 340/87;
- 404/87;
- 115/88;
- 131/88;
- 317/89;
- 52/90;
- 153/90;
- 182/90;
- 188/91;
- 184/92;
- 193/92;
- 257/92;
- 10/93;
- 210/93;
- 262/93;
182
- 283/94;
- 306/94;
- 516/94;
- 578/94;
- 154/95;
- 314/95;
- 451/95;
- 452/95;
- 589/95;
- 4/96;
- 746/96;
- 866/96;
- 194/97;
- 267/97;
- 329/99;
- 45/99;
- 517/99;
- 331/99;
- 4/00;
- 205/00;
- 187/01;
- 391/02;
- 411/02;
-157/03;
- 333/03;
- 425/03;
- 461/03;
- 353/04;
- 5/2005;
- 13/2005;
- 385/2005;
- 683/2006;
- 6/03/2007, Processo n.º 1143/06;
- 17/12/2008, Processo n.º 348/08;
183
- 444/2008;
- 20/05/2010, Processo n.º 0390/09;
- 525/2011.
TCAN: Tribunal Central Administrativo Norte
- De 8 de Maio de 2008, Processo n.º 00155/06. 0BEPNF;
- De 23 de Outubro de 2008, Processo n.º 00992/05. 3BEVIS.
Tconf: Tribunal de Conflitos
- 10/07/1969, ADG 4/11/1971.
Tribunal da Relação de Coimbra:
- De 2 de Março de 2004, Processo n.º 4142/03;
- De 9 de Janeiro de 2005, Processo n.º 2118/2000.
184
SÍTIOS DA INTERNET:
www.csm.org.pt/ficheiros/eventos/6encontrocsm_carloscadilha2_pdf.
www.dgsi.pt www.fd.uc.pt/cedipre/revista/revista_1.pdf
www.google.pt
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/