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Revista da Faculdade de Educação Ano IV nº 5/6 ( jan./dez. 2006)
APOSTILA: PARA NÃO LER
Pedro Demo1
RESUMO: A Apostila tem sido defendida por educadores atrelados a sistemasprivados que fazem disso bom negócio. O texto em si pode ser resultadopertinente de competentes pesquisadores e pode conter virtudes acadêmicas.Mas, tornando-se receita pronta, evita o estudo e a leitura pelos alunos, bemcomo por professores básicos. Conforme dados do SAEB-2005, que indicaramuma queda substancial no desempenho escolar também de escolas privadas,em especial nas regiões mais desenvolvidas, torna-se temerário sugerir queapostila é garantia de melhor desempenho escolar. Ocorre que não se toma asério o que é aprender, restando o instrucionismo como prática nacional, nasescolas públicas e privadas. Apostila é pretensa maneira de aprimorar o ensino.Sendo esse quase sempre instrucionista, seria mais inteligente aprimorar a
aprendizagem, não o ensino.
PALAVRAS-CHAVE: Apostila; Aprendizagem; Desempenho escolar.
ABSTRACT: The “Apostila” (recipe school text) has been defended byeducators bound to private systems which make it a good deal. The text itselfcan be a pertinent result of competent researchers and can contain academicvirtues. Yet, becoming ready recipe, it avoids study and reading in students, aswell in basic teacher themselves. According to data from Saeb-2005, whichindicate considerable fall in students’ performance also in private schools,specially at most developed regions, it becomes temerarious to suggest that“apostila” is a guarantee of better students’ performance. It happens that wedon’t take seriously what is to learn, remaining instruccionism as national practice,both in public and private schools. “Apostila” is alleged way of improvingteaching. Being this almost always instruccionist, it would be more intelligentto improve learning, not teaching.
KEYWORDS: Recipe school text (Apostila); Learning; Student performance
Continuo afirmando que professor bem preparado não precisa deapostila. Precisa de autoria. Saber pensar não é resultado de pacotes pré-1 Professor titular da UnB – Universidade de Brasília. Doutor em Sociologia pela Universität Erlangen-Nürngenberg - Alemanha.
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fabricados, mas da habilidade de questionar (DEMO, 2005). Busco aquiprecisamente questionar a apostila como fundamento didático do ensino eda aprendizagem, sem, no entanto, ir ao extremo de “satanizar” a questão(CASTRO, 2007). Os produtores de apostilas são gente que, via de regra,sabe pensar, tanto que são capazes de elaborá-las. Entretanto, dentro daregra de que, quem sabe pensar, nem sempre aprecia que outros tambémsaibam pensar, evitam que os usuários saibam pensar, atrelando-os a pacotestendencialmente fechados. Enquanto um lado é autor, o outro é beneficiário.Isto me lembra a lógica do “bolsa-família”: quem inventou o programa éex(s)perto, enquanto os atendidos são meros beneficiários. Embute-se aífacilmente um atrelamento imbecilizante, que tenho chamado de “pobrezapolítica” (DEMO, 2006). Não condeno a assistência devida a quem temfome (WEISSHEIMER, 2006); condeno o atrelamento subserviente.
Isto me lembra também a lógica do Banco Mundial: seus técnicos,entendendo-se muito modestamente como os mais ex(s)pertos do globo,em geral sabem pensar, mas tratam os parceiros do Terceiro Mundo comoindigentes intelectuais, tal qual acerbamente criticou Caufield (1998),chamando-os de “masters of illusion”. Visivelmente o Banco Mundial nãose interessa por parcerias autônomas, porque precisa vender suas ilusõesaos incautos. Por trás de “evidências tangíveis” - assim é que se define ciênciapor lá - esconde-se o evangelho neoliberal. Se estudassem melhor Hume esobretudo Popper, veriam que a base empírica, sempre importantíssima parafazer ciência, não desfaz o argumento de autoridade, porque, no fundo, éuma de suas faces mais abusadas. Toda base empírica mantém a teoriafalsificável, do que segue que não há propriamente “evidência empírica”,mas interpretação à base de dados construídos, por vezes inventados (Demo,1995, 2000). Deveriam estudar também epistemologia com fundamentobiológico, para verem que a realidade não entra tal e qual em nossa mente,mas no contexto de uma dinâmica autopoiética, reconstrutiva, interpretativa,do ponto de vista do observador auto-referente (Maturana, 2001; Demo,2002).
Analiso a defesa da apostila, bem retratada no texto de Castro(2007). Depois, apresento meus argumentos restritivos à apostila. Por fim,
evito “satanizar” a apostila.
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1. Apostila Esperta
Segundo Castro (2007), o estudo apostilado representa “escolas
bem-sucedidas” que transferem este sucesso a outras escolas associadas.
Valorizando também a “evidência tangível”, embora não dentro do cânone
positivista, haveria indicações de que a apostila não tem esse efeito tão
fantástico. Essas indicações são muito indiretas, não estabelecendo nada de
peremptório, porque são, a bem do termo, meras indicações. Busco a primeira
delas na queda catastrófica do desempenho escolar em 1999 (Tabela 1),
quando, em Língua Portuguesa, segundo o SAEB, a queda esteve por volta
de 16 pontos. Em Matemática foi bem menor, mas também acentuada, por
volta de 8 a 9 pontos (com exceção da 8ª série).
TABELA 1. Média de proficiência em LP e M - SAEB Brasil - 1995-2005.
Fonte: SAEB - 2005 (INEP, 2005). EF = Ensino Fundamental. EM = Ensino
Médio. LP - Língua portuguesa; M - Matemática. Média adequada para a
4ª série: 200 pontos; para a 8ª série: 300 pontos; para a 3ª série do ensino
médio: 350 pontos.
É certamente um risco especular sobre razões de tamanha queda,
porque podem ser inúmeras, além de encobertas. Mas ocorre-me que, tendo
sido aprovado o ano de 200 dias letivos em 1997, esta “inovação” ridícula
teve impacto efetivo em 1999. Uma possível hipótese seria que, aumentando
as aulas, o desempenho diminui, já que não faz sentido aumentar o que não
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tem sentido. A LDB aumentou as aulas, não a aprendizagem (DEMO, 1997).
O contra-argumento que interponho aqui é que, sendo apostila o signo da
aula instrucionista, representa no mínimo um investimento duvidoso. Bastaria
perguntar: quem precisa de apostila? O professor que não a sabe fazer... Ou
seja, professores incapazes de autoria própria, precisam desta bengala, e,
como não são construtores de conhecimento próprio, reproduzem o dos
outros. A Tabela sugere ainda mais, por conta da tendência geral de queda
na década (1995-2005): a continuar nesta marcha, parece inevitável que a
queda continue, como se insinua nos dados para 2005. Apenas a 4ª série
apresentou valores positivos: 2,9 para língua portuguesa e 5,3 para
matemática. Como, porém, o mundo da apostila é do ensino médio
principalmente, aí registraram-se quedas altíssimas, de 9,1 em língua
portuguesa e de 7,4 em matemática. Enquanto no ensino fundamental a escola
privada detém apenas 10% dos alunos, no ensino médio sua presença é
bem mais significativa. O mínimo que poderia aludir é que as escolas privadas
apostiladas não estão puxando as cifras para cima.
Observando melhor o desempenho na 3ª série do ensino médio
em língua portuguesa (Tabela 2), na comparação entre escola pública e
particular, ressalta-se a superioridade da escola particular já conhecida. Em
2005, a média de proficiência na escola pública do país como um todo foi
de 248,7 pontos (em 1995 fora de 284,0 pontos, caindo pois 35,3 pontos
na década), enquanto a da escola particular foi de 306,9 pontos (permaneceu
estável na década). A diferença de 58,2 a favor da escola particular é
considerável, mas, se levarmos em conta que nesta estuda a elite e na outra
a população em geral, a cifra poderia ser relativizada fortemente. Ademais,
os dados para 2005 indicam uma crise visível na escola particular, por conta
da queda notável, de 7,3 pontos para o país como um todo (apenas um
ponto abaixo da queda na escola pública). A escola particular caiu em todas
as regiões, acentuadamente mais nas regiões mais desenvolvidas, onde
medram principalmente as escolas apostiladas: no sul a queda foi de 10,5
pontos (mais do dobro em relação à queda na escola pública), no sudeste
foi de 9,3 pontos (um ponto acima da queda na escola pública) e no centro-
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oeste foi de 8,3 pontos (levemente abaixo da queda na escola pública).
TABELA 2. Médias de Proficiência em LP - 3ª série EM - Escolas
Urbanas Estaduais e Municipais (Públicas) e Particulares
Fonte: Inep, 2007. LP = Língua Portuguesa. EM = Ensino Médio.
Em matemática na 3ª série do ensino médio (Tabela 3), a configuração
é ainda mais drástica, por mais que a superioridade da escola particular seja
ainda maior: 73,3 pontos para o país como um todo em 2005. Leve-se
ainda em conta que, na década, enquanto a escola pública caiu por volta de
12 pontos, a escola particular subiu 26 pontos. No entanto, em 2005, caiu
mais que a escola pública: 7,2 pontos, contra 5,9 pontos na escola pública.
O desempenho particular caiu em todas as regiões, sobressaindo, de novo,
as regiões mais desenvolvidas, a Meca das escolas apostiladas: 11,8 pontos
no sul, 10,2, pontos no centro-oeste, 7 pontos no Sudeste.
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TABRLA 3. Médias de Proficiência em M - 3ª série EM - Escolas Urbanas
Estaduais e Municipais (Públicas) e Particulares
Fonte: Inep, 2007. M = Matemática. EM = Ensino Médio.
No mínimo, tomaria com maior cautela a alusão de que as escolas
apostiladas são “bem-sucedidas”, ou que “criaram uma solução brasileira
de grandes méritos e originalidade para a educação” (CASTRO, 2007). A
apostila “preenche um vácuo”, sim, mas não do saber pensar. Tende a
preencher o vácuo do professor vazio que, não tendo condições de autoria,
torna-se porta-voz. Castro fornece cinco argumentos sucintamente:
a) estruturação do ensino: as apostilas, quando bem feitas, são bem
estruturadas, apresentando “passo a passo... teoria, aplicação, exercícios e
provas”, permitindo, segundo Castro, o professor “sair da decoreba e botar
a cabeça dos estudantes para funcionar”. Sendo apostila, em geral, livro
único e “obrigatório” (por conta do atrelamento), é estranho imaginar que
isto seja proposta para abrir as cabeças, por mais que a apostila possa ser
pertinente; ocorre que se torna texto “oficial” e desanda facilmente em cartilha,
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como se pode ver na “Escola Múltipla Escolha” da Rede Globo2 ; “facilita a
vida do professor”, sim, mas principalmente inventa uma ciência fácil para
quem não pretende encarar o saber pensar com autonomia; nada é mais
ridículo no mundo da ciência do que “ciência oficial”, não só porque tem
dono, mas principalmente porque se investe do argumento de autoridade,
evitando florescer a autoridade do argumento que, ademais de praticar lógica
e raciocínio, planta a cidadania de quem sabe confrontar-se com os problemas
com autonomia;
b) integração curricular: funciona em quem faz as apostilas, mas
não em quem as engole; integração curricular é resultado de dinâmicas que
tecem habilidades construtivas inter e transdisciplinares, não caudatárias de
pensamentos únicos;
c) formação de professores: a idéia é correta, mas a ideologia de
fundo é abjeta - a preparação dos professores nas escolas associadas é feita
na direção da apostila, para a acolher e usar; nada tem a ver com a construção
da autoria do professor, já que, se assim fosse, dispensaria a apostila ou a
usaria apenas como referência de pesquisa;
d) janela para o mundo: a escola que se associa torna-se menos
isolada, mas, no fundo, troca um fechamento por outro, sob a ilusão de que
a escola mãe oferece uma janela para o mundo; muita pretensão, já que dela
se vê principalmente a elite, não o mundo;
e) avaliação do ensino: embora se avalie o instrucionismo, não a
aprendizagem, entendo que avaliar é função crucial da escola, se quiser garantir
a aprendizagem dos alunos e professores (DEMO, 2004).
Penso que tais argumentos não detêm profundidade satisfatória para
serem levados a sério. Posso entender que muitas escolas se sentem mais
amparadas e organizadas, quando aderem a tais redes apostiladas, elevando
os índices de proficiência. No entanto, é preciso levar em conta que o
instrucionismo é patrimônio comum no país, tanto na escola pública quanto
2 Refiro-me à Escola do programa “Malhação”, espécie de “novela” diária (às 17:30 hs): baseada emapostila, em jingles para decorar conteúdos, em provas programadas e de supetão que vão para oboletim, em aulas desbragadamente instrucionistas, embala a elite para passar no vestibular dasmelhores universidades públicas. Todos os alunos carregam debaixo do braço apostila, só apostila.
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particular, até porque, em muitos casos, os professores são os mesmos e o
sistema de formação de professores é o mesmo. Aprende-se certamente
“mais” na escola particular, porque tem dono e sofre pressão enorme dos
pais para que se garantam vagas nas melhores universidades públicas, mas
não necessariamente “melhor”. Tanto é assim, que em 2005 o SAEB mostra
visível crise da escola particular, em especial nas regiões mais desenvolvidas.
Mais que solução didática, a apostila é grande negócio, também porque
corresponde a um vácuo crucial: grande parte dos professores só consegue
dar aula com apostila na mão. Em vez de abrir-lhes a cabeça, a apostila
apossa-se da cabeça deles.
2. Restrições a Apostila
Não vejo, pois, que se trate de originalidade brasileira e algo que
mereça ser exportado, sugestões que servem apenas para tornar o texto de
Castro (2007) “propaganda” de apostila, não peça minimamente analítica.
Como trabalha numa instituição que fabrica apostila e mantém respectiva rede
(diz isso no texto), sua proposta já seria suspeita, por mais que recorra a
apelos de “evidência tangível”. Minha impressão é de que a apostila é, pelo
menos em parte, responsável, pelo vazio da leitura na escola, já que, vindo
pronta, basta engolir e não há mais o que ler. Num lado, vende-se a idéia
esdrúxula (mas esperta) de que conhecimento é pacote consumado e de
consumo; noutro, dispensa-se autoria do professor que se acomoda como
penduricalho da autoria de outrem. Esperteza, não expertise. Não condeno a
escola que fabrica apostila, mesmo sendo sinal de esperteza. Há apostila bem
feita, fruto de gente que pesquisa, estuda e elabora bem. Mas não está longe
da “auto-ajuda” (DEMO, 2005). Critico que este saber pensar não seja
compartilhado com as escolas associadas, assumindo que preparar os
professores se reduza “saber usar”.
Lemos pouco, sobretudo lemos mal, ainda que leiamos bem mais que
antigamente (DEMO, 2005b). Não descobrimos que leitura, em especial
contraleitura (DEMO, 1994), é parte da aprendizagem questionadora,
principalmente é caminho crucial da construção da autoria. Uma pesquisa da
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Unesco (2004), conforme a Tabela 4, sugere que apenas 17% dos professores
participariam habitualmente/sempre de seminários de especialização; sequer
50% leriam revistas especializadas; pouco mais de 50% leriam materiais de
estudo ou formação; menos de 15% estudariam ou praticariam idiomas
estrangeiros; 12% leriam livros de ficção; 23% comprariam livros não didáticos;
um terço freqüentariam biblioteca; e assim por diante.
TABELA 4. Proporção de professores, segundo atividades que atestam suas
preferências culturais - 2002.
Fonte: UNESCO, 2004:97. Não constam todas as atividades da tabela original.
A baixa leitura dos professores não se refere apenas à falta de hábito,
má formação, despreparo cultural, mas igualmente a ambientes profissionais
decadentes e a remunerações precárias, que não permitem investimento noaprimoramento pessoal e profissional. É um vasto imbróglio, que a apostila vem
agravar. O mal maior da apostila é a sugestão de que estudar é reproduzir. Oinstrucionismo da “formação” original é aí consagrado para sempre. A pesquisa
do Inaf (Tabela 5) sugere que a leitura mais comum na população (acima de 15anos até menos de 65) é da bíblia e congêneres, próxima dos 50% para o total,
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alfabetizados e nível rudimentar, alfabetizados de nível básico e alfabetizados de
nível pleno. Mesmo neste nível pleno, o manejo da leitura é canhestro. O quemais se lê são romance e similares (49%); livros técnicos, de teoria, ensaios são
lidos por apenas 22% dos plenamente alfabetizados. Um terço lê livros didáticos,e ainda 7% nunca lê.
Pode-se fazer um paralelo da apostila com bíblia. São leituras oficiais,quase obrigatórias, monitoradas mais pela fé do que pelo senso crítico. Não se lê
para pensar, mas para dizer “amém”. A leitura desafiadora, a contraleitura, éperegrina, por conta de ambientes instrucionistas vorazes inspirados em textos
pré-fabricados e consumados. Não critico quem lê a bíblia, porque não estoudiscutindo fé. Critico que se leia tão pouco e mal, sobretudo se evite a leitura
questionadora na escola. A Tabela 5 indica que até mesmo livros de auto-ajuda,em geral campeões de venda, só possuem 22% de leitores entre os alfabetizados
plenos. É por isso que, mesmo tendo a população universitária crescidoenormemente nos últimos anos, a leitura quase não saiu do lugar. A crise das
editoras persiste. Aprende-se escutando aula, manejando apostila, fazendo prova,não pesquisando, elaborando, argumentando, contra-argumentando, em ambiente
franco da autoridade do argumento.
TABELA 5. Livros que os alfabetizados costumam ler - INAF 2005
Fonte: INAF, 2005.
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É comum, em ambientes instrucionistas como os da apostila
compulsória, aduzir restrições à autonomia do professor, como se fosse
veleidade de pesquisadores descompromissados. Devo reconhecer que a
questão da autonomia é facilmente banalizada por professores que não sabem
nem conteúdo nem propedêutica, como é fácil observar em contextos da
teoria dos ciclos. Esta sempre apostou na autonomia do professor, bem
como na primazia do aluno e suas necessidades fundamentais, sem falar na
recusa de reprovação. Esta autonomia, porém, desandou em sinecura, à
medida que a avaliação desapareceu por conta da progressão automática,
refletindo-se em postura descompromissada ao extremo. Resultado disso é
a noção geral de que são necessários três anos para a alfabetização (consta
do próprio IDEB)3 , uma proposta pobre para o pobre. Só serve para os
pobres, já que as escolas apostiladas alfabetizam seus alunos no pré-escolar.
Este tipo de autonomia é farsa, primeiro porque grande parte dos
alfabetizadores não sabe alfabetizar (o Curso de Pedagogia não os
profissionalizou minimamente), segundo porque autonomia, no sentido legítimo
de Paulo Freire (1997), significando a construção histórica da competência
formal e política do professor, não pode escusar-se de garantir a aprendizagem
do aluno, terceiro porque, não sendo o professor autor, não consegue fazer
do aluno autor.
Em que pese esta crítica, é fundamental postular a autoria e a
autonomia do professor. Exemplo deste desafio é a alfabetização na 1ª série,
o que toda escola apostilada assume sem mais. O professor despreparado
coloca como primeira expectativa a prescrição de algum método de
alfabetização, já que ele mesmo não saberia forjar o próprio. Como na
apostila, em vez de adotar o aluno, adota a cartilha, e esconde-se atrás dela.
Cada professor vai desenvolver naturalmente seu método, à custa de estudo,
pesquisa e elaboração, além de aplicação prática, mas seria erro crasso
prescrever método oficial. Um método oficial teria, como na apostila,
conseqüência de estruturar o ensino, fazer todo o mundo falar a mesma
3 Decreto n. 6094, de 24 de abril de 2007. Veja livreto “Compromisso de Todos pela Educação -Passo a passo” - www.inep.gov.br
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língua, aplicar a mesma prova, integrar no mesmo instrucionismo, mas
impediria a formação de ambiente questionador de aprendizagem. Ainda, o
uso intensivo de uma cartilha poderia até melhorar os índices de aprovação,
por instruir mais, não por educar melhor. A apostila pode, de fato, instruir
mais, mas dificilmente educa melhor. Assim parece ser: que não sabe pensar,
acredita no que pensa; quem sabe pensar, questiona o que pensa. Professor
que sabe pensar não precisa de apostila, pois faz a sua e principalmente não
impõe aos outros.
3. Sem Satanás
Apostila pode sofrer duro golpe da internet. No contexto do já
clássico abuso da internet, nada se cria, tudo se copia. Não é, no fundo,
diferente da apostila. Estando pronta e sendo canônica, instila a expectativa
de reprodução infinita. Estudar se restringe a copiar. Pesquisar nem se fala.
Elaboração própria nunca. Tais habilidades ficam para o dono da apostila. A
internet repassa a falsa noção de que conhecimento disponível está aí
armazenado. Basta usar (BRECK, 2006). Ao mesmo tempo, sugere
liberdade quase sem limites dos usuários, quando se trata, na verdade, de
liberdade sob medida (GALLOWAY, 2004; LIU, 2004). A questão dos
jogos eletrônicos é bem ilustrativa, pois possui os dois lados.
De um lado, o jogo eletrônico é um mundo fechado, também para
salvaguardar a autoria dos seus fabricantes e vendedores. No contexto do
mercado capitalista não poderia ser diferente, por mais que autores já
indiquem a possível futura queda dos “direitos autorais” de materiais
veiculados na internet (TAPSCOTT/WILLIAMS, 2007). De outro, faz parte
de inteligência de “bons” jogos eletrônicos (GEE, 2003; 2007) abrir horizontes
de autoria para os jogadores, desde a construção do avatar, até a manipulação
das regras de jogos e criação de ambientes virtuais próprios. Esta condição
tem colocado tais jogos como espaços privilegiados da boa aprendizagem,
em especial do que se está chamando de “aprendizagem situada” (GEE,
2004). A aprendizagem aprimora-se visivelmente quando os aprendizes
podem manipular com autonomia ambientes virtuais, em geral em 3D, nos
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quais as situações são tangíveis, ainda que virtuais. Este contexto me interessa
para chamar a atenção para a relativa inutilidade da apostila para tais
jogadores. Como os autores observam (PRENSKY, 2001), os jogadores
como regra não lêem o manual de instruções. Começam jogando sem mais,
em especial jogam juntos permitindo a aprendizagem compartilhada, por
vezes “facilitada”. Depois lêem manuais para retirar algumas dúvidas que
restam ou para entender certos passos. O acento é colocado, com ênfase
inaudita, na habilidade de autoria, autonomia, através da pesquisa, elaboração,
argumentação e contra-argumentação. Assim, os “maus” jogos não passam
de apostila.
Esta contradição precisa ser apercebida nas escolas apostiladas.
Muitos dos alunos e alunas jogam tais jogos. Enquanto na sala de aula a
apostila é sua referência pétrea, no computador experimentam dinâmicas
bem mais abertas e desafiadoras, que os movem a construir soluções próprias,
abrir veredas criativas, compartilhar conhecimento questionador, confrontar-
se com desafios longos e duros, sentir motivação avassaladora.
Provavelmente exagera-se a potencialidade de tais jogos, porque, para muitos,
seu sentido é entretenimento, por vezes provocando dependência aguda.
No entanto, como sugere Sternheimer (2003), o problema maior não está
na mídia, que é instrumento apenas, mas no contorno educacional e social
que consagra tais exageros. Mesmo assim, agrava-se a esquizofrenia escolar:
enquanto na escola grassa o instrucionismo, no computador pode haver
ambiente questionador bem mais visível.
A questão do computador é ilustrativa. Em si, trata-se de máquina
linear, seqüencial, algorítmica, padronizadora. O que nela se processa é
alinhado em seqüências formais, como produtos repetitivos. É de utilidade
enorme, mesmo sendo máquina reprodutivista. É neste sentido que posso
ver a apostila como produto tendencialmente instrucionista e, mesmo assim,
aproveitável, desde que seja para pesquisar, não para colar. O computador
pode ser a maior biblioteca disponível para pesquisa ou para cópia. Assusta-
nos a cópia, que se torna praga geral, mesmo nas pós-graduações stricto
sensu. Mas isto não tolhe o bom uso. Cada escola não teria uma apostila,
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mas uma coleção delas, como simples material de pesquisa, entre outros,
para ser compulsado, comparado, questionado e sempre refeito. A boa
organização de conteúdos escolares é sempre um desafio importante, desde
que não se relegue o compromisso de os reconstruir indefinidamente. O
conhecimento organizado já é, em bom sentido, ultrapassado. Por isso, é
bem mais relevante saber desconstruir e reconstruir conteúdos, algo que a
apostila tende a obstaculizar.
No entanto, como a internet é bem mais completa que a apostila,
esta talvez venha a perder o papel de referência compulsória. Bastaria
manipular a wikipedia. Embora nela haja alhos e bugalhos, o repositório de
informação é imenso e crescente, tornando cada livro, isoladamente, uma
referência mais ou menos perdida. Mesmo que se produza apostila em coleção,
toda coleção é um mundo em si, no fundo fechado. A internet, contudo, tem
condições de manter-se aberta, por conta de sua dinâmica interativa. Não
tenho dúvidas de que a nova apostila se chama internet, com todos os seus
riscos e desafios. O problema é que não dá para exportar, vender, nem tem
propriamente dono. Saber pensar não tem dono, porque uma das
prerrogativas mais formidáveis do saber pensar é abolir dono.
No mundo da internet é também insinuante a tendência de seguir
instruções e de apenas consumir. É ótimo para quem não sabe pensar, ou
não quer queimar as pestanas com isso. De certa forma, na internet todas as
aulas já estão prontas. Com o tempo, tal qual nos jogos eletrônicos, formam-
se redes de interessados que permutam as habilidades, “facilitando” a
aprendizagem dos colegas. Os que geram habilidades tornam-se donos, os
que as seguem tornam-se vassalos (BARD/SODERQVIST, 2002; DIJK,
2005). A apostila esconde a trama de poder que se urde por trás, também
porque sua relação com o mercado é umbilical. Trata-se de educação à
venda, não necessariamente emancipatória. Como é constitucional, não
caberia sequer criticar. Deve poder ganhar a vida. Mas é fundamental
questionar de que formação se trata, quando a autoria dos professores é
facilmente evitada, em especial se trunca a leitura, sobretudo a contraleitura.
Assim como é possível lidar bem com a internet - os pais têm aí
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influência decisiva, ao lado da escola - é possível lidar bem com a apostila.
Trata-se de colocá-la no devido lugar, ou seja, como material supletivo de
pesquisa. Não necessário, nem desnecessário, mas disponível. O aluno precisa
estudar em várias fontes, compará-las, contrastar modos divergentes de
argumentação, aprender que a autoridade do argumento é que interessa e
forma. Para tanto precisa elaborar constantemente, tornando-se autor, não
serviçal da apostila. Não precisamos “satanizar” a apostila, também porque
há aquelas que são bem feitas. Fariam bem para todo professor, desde que
não o atrelassem. Diria o mesmo da auto-ajuda. Como todos precisamos de
ajuda - nossa fragilidade é espantosa - ler tais livros não precisa ser coisa do
satanás. Podem até ajudar, desde que sejamos coerentes: devem redundar
em “auto-ajuda”, não em dependência. Apostila como bíblia, além de não
substituir a bíblia, é imitação barata de livro sagrado que somente gente que
não sabe pensar iria adotar.
O signo maior da apostila é a aula instrucionista.
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