Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6Cadernos PDE
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
Literatura e Identidade Negra: questões de cor ou de raça?
Autora: Fabiana Curioni de Medeiros1
Orientadora: Profa Dra Aparecida de Fatima Peres2
Orientador: Prof. Dr. Marciano Lopes e Silva (in memoriam)3
Resumo. O objetivo deste artigo é levantar discussões a respeito das funções do livro didático mesmo sabendo que nenhum livro didático é perfeito, há falhas, mas devemos sempre lembrar, que vários, obedecem ao principal objetivo escolar: oferecer informações corretas e coerentes a respeito dos temas e assuntos abordados. No que se refere à literatura afro-brasileira, poucos livros abordam esse tema e sabe-se que é um tema social extremamente importante e obrigatório. As questões relacionadas à história do negro brasileiro, enquanto agente ativo da sociedade brasileira, é um tema que merece muito destaque na nossa literatura. A Literatura Afro-brasileira, uma literatura que está em plena construção, tem o intuito de criar uma identidade negra ao destacar o negro como agente de sua própria obra literária e que se assume como negro. É necessário, então, com a obrigatoriedade de se contemplar as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, repensarmos em novas concepções em relação à abordagem dada nos livros didáticos no que se refere à Literatura Afro-brasileira. Palavras-chave: Literatura Afro-brasileira; identidade negra; negritude; poesia; livro didático público.
1. INTRODUÇÃO
A arte da literatura existe há alguns milênios. “A literatura como qualquer
outra arte, é uma criação humana, por isso sua definição constitui uma tarefa tão
difícil” (AMARAL, 2000, p. 17).
O homem, como ser histórico, tem anseios, necessidades e valores que se
modificam constantemente, sendo assim, as obras literárias refletem o nosso modo
1 Professora de Língua Portuguesa e de Língua Inglesa da Rede Estadual de Ensino do Estado do Paraná, atuante no Colégio Estadual Marechal Costa e Silva – Ensino Fundamental e Médio e Colégio Estadual Castro Alves – Ensino Médio. Integrante do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE/Turma 2013, graduada em Letras – Português/Inglês e suas Literaturas e especialista em Língua Portuguesa: Metodologia e Técnica em Produção de Textos. E -mail: <[email protected]>.
2 Professora Adjunta do Departamento de Língua Portuguesa da Universidade Estadual de Maringá. Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina.
3 Professor Adjunto do Departamento de Teorias Linguísticas e Literárias da Universidade Estadual de Maringá (in memoriam). Este professor iniciou a orientação deste trabalho. Infelizmente, porém, faleceu aos 17 dias de outubro de 2013.
de ver a vida e de estar no mundo. A literatura tem o poder de refletir as relações do
homem com o mundo e com os seus semelhantes. Na medida em que essas
relações se transformam historicamente, a literatura também se transforma.
Ler uma obra literária nos conduz a compreender melhor as relações
humanas e os contextos sociais nos quais se desenvolvem, abrindo caminhos para
compreendermos o mundo que nos cerca. Uma das necessidades fundamentais do
homem é dar sentido ao mundo e a si mesmo, e a literatura é um provável veículo
para trilharmos por esse caminho.
Segundo Amaral (2000) as funções de uma obra literária dependem dos
objetivos e das intenções do autor, mas os leitores também têm maneiras diferentes
de ler e são levados a abrir um livro por motivos diferentes. Alguns buscam nas
obras literárias apenas um divertimento, sem grandes consequências para a vida,
outros, buscam um instrumento de transformação e de aperfeiçoamento. Uns
consideram a obra literária apenas um artefato estético, criado para a contemplação
da beleza; já outros, esperam que seja um veículo de análise e de crítica em relação
à sociedade, aos temas contemporâneos e à vida.
A obra literária é resultado das relações dinâmicas entre escritor, público e
sociedade, porque através de suas obras o artista transmite seus sentimentos e
ideias do mundo, levando seu leitor à reflexão e até mesmo à mudança de posição
perante a realidade, assim a literatura auxilia no processo de transformação social.
A literatura também pode assumir formas de crítica à nossa realidade e de
denúncia social, transformando-se em uma literatura engajada, servindo a uma
causa em defesa de ideias que podem ser políticas, filosóficas ou religiosas.
Sendo as obras literárias uma representação das ações e transformações
humanas, os temas relacionados à sociedade também são abordados. As questões
relacionadas à história do negro brasileiro, enquanto agente ativo da sociedade
brasileira, é um tema que merece muito destaque na nossa literatura. Neste caso, a
literatura afro-brasileira, uma literatura que ainda está em construção, vem de
encontro com os temas ligados à história do negro brasileiro.
Sabemos o quanto é necessário e obrigatório, incluirmos nos currículos
escolares, a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em todas as disciplinas, e
frente a isso, realizarmos práticas cotidianas, em sala de aula, para que a lei seja
cumprida. É importante contemplar as Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que
dizem respeito à obrigatoriedade de se trabalhar questões étnico-raciais na escola e,
além desses aspectos, sempre resgatar a importância de elementos da literatura
afro-brasileira e do movimento da negritude que auxiliaram e continuam auxiliando
na construção do povo brasileiro, e apesar da contribuição cultural e étnica,
continuam relegados a um plano inferior na escala de valores sociais.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
As palavras podem ultrapassar os seus limites de significação, conquistam
novos espaços e passam ao leitor novas possibilidades de sentir e perceber a
realidade. Este é o caminho que a literatura percorre. As palavras são manipuladas,
escolhidas e sentidas pelo artista. O escritor vive, questiona e dotado de uma
percepção muito aguçada, capta a realidade através dos sentimentos. Usando sua
imaginação e poder criativo faz uma leitura sensível do real.
Nesse contexto, os temas relacionados à sociedade são abordados nas
obras literárias. O tema negro e tudo que o envolve sempre foi abordado nas obras
literárias e, dependendo da época literária, o negro era visto de acordo com o que o
momento histórico exigia. O negro não foi eleito modelo de brasileiro, mas isso não
significou que ele tenha sido totalmente esquecido pelos escritores. Muitos
escritores aproveitaram a temática do negro para elaborar uma série de estereótipos
eficazes e perigosos sobre o negro. Razões políticas e culturais fizeram com que a
representação da imagem do negro no Brasil fosse vista como uma população negra
dócil e subordinada, ou do negro como um ser exótico e inferiorizado.
Sendo assim, é interessante ensinar literatura a partir de uma abordagem
diacrônica, que estuda o texto literário por meio de uma perspectiva histórica que
resgata as obras do passado; também por uma abordagem sincrônica, ou seja, a
análise da obra considerando as manifestações sociais e culturais numa
determinada época que influenciam a produção e a recepção do objeto literário. “A
literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto
pleno de toda a cultura da época” (Bakhtin, 2006, p. 360).
Segundo Alves (2011) a literatura permite entrar em contato com as
realidades culturais diferentes no tempo e no espaço, uma vez que a mesma registra
acontecimentos de uma sociedade numa determinada época. Ela nos transporta
para um mundo imaginário, onde tudo é possível. Ela tem o poder de diversificar o
modo de como se enxerga e compreende o mundo, pois através da leitura e
interpretação de uma obra literária pode-se incluir na imaginação uma interpretação
diferenciada dos acontecimentos. Lendo é possível o indivíduo sair do mundo
concreto e se transpor para o universo imaginário, onde ali ele é capaz de conhecer,
compreender, experimentar e enfrentar diferentes realidades, tornando-se capaz de
explicitar suas idealizações e criticar indiretamente o que lhe incomoda.
Em relação à história dos negros ainda há muitos questionamentos e
contribuições que surgirão para abrilhantar a literatura afro-brasileira, uma literatura
que está em plena construção, como afirma Eduardo de Assis Duarte. Além dele
vários são os escritores que estão contribuindo para a construção de uma literatura
afro-brasileira, considerando o negro como sujeito e que assume sua condição
negra.
Octavio Paz ressalta na introdução do livro de Zilá Bernd que,
Já é tempo de se questionar a forma como foi escrita a história do negro no Brasil, assim como sua contribuição nos domínios literários, e esperar que o surgimento de uma anti-história e de formas de contra literatura possam tirar da clandestinidade muitos fatos que, por ora, a cultura triunfante mascara (BERND, 1988, p. 18).
Mas, afirma Octavio Paz no livro de Zilá Bernd (1988) que não devemos ser
ingênuos a ponto de ignorar os processos de manipulação que sofrem os textos
literários e que se sucesso ou seu esquecimento podem ser forjados de acordo com
determinados interesses. Ler a história literária não como uma totalidade fechada,
mas como possibilidade. Percebê-la permanentemente inacabada deverá permitir
que autores ou movimentos possam transitar da esfera da sombra para a esfera da
consagração.
No Brasil, alguns movimentos contribuíram e estão contribuindo para a
formação de uma literatura afro-brasileira, em especial, o movimento chamado como
“negritude” que tem como principal objetivo permitir que o negro assuma sua
condição de negro como sujeito ativo, atuante e participativo na construção das
obras literárias e na sociedade.
O termo Negritude surgiu pela primeira vez por volta de 1934 em Paris e foi
definido, segundo Bernd, como uma revolução na linguagem e na literatura que
permitia reverter o sentido pejorativo da palavra negro para dele extrair um sentido
positivo e só foi batizado com o nome negritude em 1939 quando ele é utilizado em
um trecho do poema de Césaire.
Para Bernd (1988),
Historicamente, a negritude, considerada em seu sentido amplo, isto é, como momento primeiro de tomada de consciência de uma situação de dominação e/ou discriminação, pode ser situado em solo americano quase que simultaneamente à chegada dos primeiros escravos oriundos da África. Nesta medida, podem ser considerada como manifestações da negritude a revolta dos escravos no Haiti, onde liderados por Toussaint Louverture os negros chegaram a obter a independência do país em 1804, e os quilombos brasileiros, que representaram o primeiro sinal de revolta contra o dominador branco (BERND, 1988, p.21).
O Haiti foi, portanto, o país onde a negritude ergueu-se pela primeira vez,
pois essas rebeliões de escravos e suas tentativas de organização política e social
representaram o início de uma luta por uma vida autônoma, longe da vigilância
implacável dos senhores.
O Brasil, segundo Bernd (1988, p.7 a 8), foi o último país da América a
proceder à abolição do ultrapassado sistema escravocrata com a finalidade de
beneficiar mais uma vez a classe dominante, não criando condições mínimas para
que o negro fosse absorvido pelo mercado de trabalho urbano da época.
Os enredos já cantados pelas tradicionais escolas de samba do carnaval
Carioca comprovam que a abolição é mais uma data para refletirmos sobre o que
ainda devemos analisar: o movimento de tomada de consciência de “ser negro”.
Segundo Munanga (2006), durante muito tempo, quando se realizava
alguma comemoração sobre a questão do negro no Brasil, somente a data do dia 13
de maio, dia da assinatura da Lei Áurea, em 1888, abolindo a escravatura no Brasil
era lembrada. Nas escolas da educação básica, o mais comum era que as crianças
negras se fantasiassem de escravos e sempre uma menina branca e, de
preferência, loura, era escolhida para representar a princesa Isabel. Os livros
didáticos também apresentavam essa data com o dia da libertação dos negros, e
nada se estudava ou discutia sobre a luta por parte dos africanos escravizados e
seus descendentes nascidos no Brasil, sob o regime da escravidão.
Não é sem razão, portanto, a escolha no Brasil, por grupos negros
organizados, da data da morte de Zumbi – o grande líder do maior e mais conhecido
dos quilombos, o dos Palmares - dia 20 de novembro, como o Dia Nacional da
Consciência Negra (BERND, 1988, p. 22).
Sobre o dia 13 de maio, Munanga afirma que
Um dos papéis importantes do movimento negro da atualidade foi denunciar que o dia 13 de maio não deveria ser comemorado como uma data que enfatizava a suposta passividade do negro diante da ação libertadora do branco. Durante a escravidão, os movimentos de luta e resistência negra foram muitos e variados e aconteceram em diversas
regiões do país. Dessa forma, os movimentos negros atribuem, atualmente, um significado político ao 13 de maio, vendo-o como o dia Nacional de Luta contra o racismo (MUNANGA, 2006. p. 130).
No Brasil, em pleno período escravagista (Bernd, 1988, p. 44 a 46) um
negro liberto, filho de escrava, chamado Luiz Gama, assume pela primeira vez o
termo Bode com que pejorativamente eram chamados os negros com o poema
intitulado “Quem sou eu?”, também conhecido por “Bodarrada” para afirmar com
ironia que, no Brasil, com o processo de miscigenação poucos são os brasileiros que
podem ter certeza de não ter sangue negro correndo em suas veias.
Bernd afirma:
Isso nos autoriza a considerar a poesia de Luiz Gama como precursora em nosso país de uma linha de afirmação de identidade negra que pode, no limite, ser considerada uma negritude antes do tempo (BERND, 1988, p.45).
A negritude continua Bernd (1988, p. 52 a 53), foi basicamente um
movimento que pretendeu provocar uma ruptura com um padrão cultural imposto
pelo colonizador como único e universal. Essa revolução, operando um
deslocamento de perspectiva, oportunizou a revalorização de outras culturas, como
as de origem africana e indígena, que haviam resistido à voragem assimilacionista.
A literatura negra se constrói não como um discurso da gratuidade, ou unicamente
da realidade estética, mas para expressar a consciência social do negro. Nessa
medida, a literatura negra se aproxima da linguagem mítica que recupera a origem e
narra a emergência do ser. Como o mito, a literatura negra também nasce da ruptura
que se cria entre o homem e o mundo, originando-se do esforço de superar essa
fragmentação. Ao recordar o que foi esquecido ela recupera o mundo perdido. Da
crise de identidade, que originou a Negritude, o movimento evoluiu para um
processo contínuo de afirmação identitária que se caracteriza pela ruptura
permanente de equilíbrios estabelecidos.
Duarte, por sua vez, confirma observando que,
No alvorecer do século XXI, a literatura afro-brasileira passa por um momento extremamente rico em realizações e descobertas, que propiciam a ampliação de seu corpus, tanto na prosa quanto na poesia, paralelamente ao debate em prol de sua consolidação acadêmica enquanto campo específico de produção literária – distinto, porém em permanente diálogo com a literatura brasileira tout court. Enquanto muitos na academia ainda indagam se a literatura afro-brasileira realmente existe – e assinalemos aqui até mesmo a perversidade de uma pergunta que às vezes não deseja ouvir resposta –, a cada dia a pesquisa nos aponta para a vigor dessa escrita: ela tanto é contemporânea, quanto se estende a Domingos Caldas Barbosa, em pleno século XVIII; tanto é realizada nos grandes centros, com dezenas de poetas e ficcionistas, quanto se espraia
pelas literaturas regionais, a nos revelar, por exemplo, uma Maria Firmina dos Reis escrevendo, em São Luiz do Maranhão, o primeiro romance afro descendente da língua portuguesa – Úrsula – no mesmo ano de 1859 em que Luiz Gama publica suas Trovas burlescas... Enfim, essa literatura não só existe como se faz presente nos tempos e espaços históricos de nossa constituição enquanto povo; não só existe como é múltipla e diversa (DUARTE, Literafro, p. 1).
Lorenzo (2006, p. 3) também confirma afirmando que “o objetivo de romper
com a invisibilidade do negro e questionar o propalado mito da democracia racial, o
movimento social negro brasileiro investiu, no final da década de 70, em uma série
de manifestações corporificadas em denúncias e protestos públicos”. Tencionava
esse movimento, tendo como data oficial o dia 20 de novembro, data que foi
marcada pelo assassinato do líder negro: Zumbi dos Palmares. Ao propor essa
mudança no campo da simbologia nacional, suas lideranças anunciavam uma nova
postura diante da realidade social brasileira: a construção de novos discursos e de
novas práticas protagonizados, agora, pelos próprios negros e, não mais por
narrativas encenadas por brancos. Em meio a esses fatos, nascia em 25 de
novembro de 1978, Cadernos Negros, uma antologia com oito autores, trazendo a
marca do esforço de superar a “geração do mimeógrafo”.
Sarteschi (2011, p. 7) afirma que ao longo da existência dos Cadernos
Negros, surgiram diferenciadas concepções de escritores pertencentes ao
movimento a respeito de expressões como “literatura negra” ou “literatura afro-
brasileira”, retomando questões abordadas pelo movimento da Negritude. Importam-
se também com outros temas, tais como a produção, circulação e recepção de seus
textos e a respectiva marginalidade dessa produção.
Nessa linha de entendimento, nas palavras de Sarteschi (2011, p. 2), Zilá
Bernd considera a existência de uma literatura negra, que se diferencia daquela
literatura que apenas tematiza o negro, pelo surgimento de um "eu enunciador" que
se quer negro, assumindo posicionamentos políticos e ideológicos.
Neste sentido o único critério possível para conceituar uma escritura negra
seria o critério discursivo: a emergência do “eu enunciador” que se quer negro é o
elemento-chave que singulariza essas obras. O surgimento de um emissor que
assume sua condição de negro constituir-se-á no marco divisório entre um discurso
sobre o negro, de alguma maneira presente na literatura brasileira, e um discurso do
negro, que traria em sua gênese a marca de reinvenção da representação
convencional construída ao longo do tempo.
Desta forma, entendemos, segundo Sarteschi (2011, p. 4), “que o discurso
da literatura negra é o discurso da identidade, o discurso que almeja precipuamente
a desconstrução e reconstrução identitária dentro desse sistema de significações,
colocando como ponto fulcral o equacionamento da noção de identidade nacional
homogênea e uniforme”. Cabe ainda salientar que a importância da emergência do
“eu enunciador” que se quer negro, como destaca Zilá Bernd, não está apenas no
fato de assinalar uma ruptura com o discurso social que negava os negros, mas
também por marcar, de maneira categórica, a tentativa de compreender o que
significa ser negro no Brasil pelo resgate de uma história e tradição há muito
ocultado.
A negritude surgiu para desmascarar a ideologia racista branca que
impunha como verdade a tese da inferioridade do negro e correu o risco de
cristalizar-se como ideologia e passar a ocultar outras realidades (Bernd, 1987. p.
33).
Para Zilá Bernd (1988), literatura negra é aquela produzida por um sujeito
de enunciação que se afirma e se quer negro. Pois é preciso que o negro ao fazer
literatura negra deixe escorrer para o papel a sua identidade, e não falar do afro-
descendente como se estivesse em outro plano, fora do contexto histórico, sem citar
que o mesmo faz parte da formação cultural do Brasil.
A preocupação central sempre foi a de legitimar uma escritura negra. Para
os poetas, a poesia negra foi aquela que exprimia os sentimentos profundos do
negro, se construía num processo de questionamento, contava uma nova história
convertendo o sentido pejorativo da palavra negro e acima de tudo, desobedecia a
padrões consagrados, revelando tonalidades camufladas. O que caracterizava a
poesia não era a cor da pele do autor, mas o fato de retratar o negro enquanto raça
possuidora de determinada cultura e valores (Bernd, 1987).
Bernd (1987) continua afirmando que o principal compromisso do poeta era
com a denúncia e o protesto contra as situações de discriminação que ainda ocorre
na sociedade brasileira, devendo despertar, através da palavra poética, a
consciência do negro para seus próprios valores.
Em relação à poesia negra brasileira o principal representante foi Luiz Gama
que em pleno período pré-abolicionista, um negro liberto, filho de escrava, que
assumiu pela primeira vez o termo Bode com que pejorativamente eram chamados
os negros com o poema intitulado “Quem sou eu?”, também conhecido por
“Bodarrada” foi a precursora de uma linha de afirmação de identidade negra que
pode, no limite, ser considerada uma negritude antes do tempo porque ele assumiu
seu discurso em primeira pessoa (Bernd, 1992).
No período pós-abolicionista, a poesia de Cruz e Souza situa-se em um
período caracterizado pela tomada de consciência da situação do preconceito. Com
seu poema, “Emparedado”, há uma postura crítica face à preconceituosa sociedade
da época, feita por um negro que assume sua condição de negro emparedado no
mundo branco.
No período contemporâneo, explicita Bernd (1992), a poesia negra brasileira
enuncia-se como uma literatura de resistência, construindo-se a partir da cultura
africana que sobreviveu na América em presença das culturas européias e indígena.
Neste período vincula-se Solano Trindade, grande representante da negritude
popular. Nos seus poemas, o eu-lírico emerge no poema para evocar com orgulho
suas raízes africanas e afirmar sua vinculação à América numa busca de identidade
solidária com todos os negros da América. A produção poética de Solano Trindade é
a que melhor apresenta o maior número de elementos comuns com a melhor poesia
negra.
Nesta fase, destacam-se, com igual valor, os poetas Eduardo de Oliveira a
qual sua poesia tem o mérito de tentar o resgate dos referentes ligados à História do
negro no Brasil, além de denunciar o ocultamento constante do papel do negro na
América; Oswaldo de Camargo que reflete a crise do poeta que toma consciência de
seu hibridismo cultural (de um lado suas raízes africanas e de outro lado o apelo
cultural do mundo branco e dos valores morais do ocidente); Domício Proença Filho
que com sua obra Dionísio esfacelado mostra a consciência do negro oprimido; Luiz
Silva (Cuti), a qual contribui de forma decisiva para revelar os problemas
fundamentais do negro brasileiro ainda vítima de preconceito e de discriminação.
A escritora Miriam Alves, também faz parte desta fase e talvez seja a figura
feminina mais expressiva da literatura negra atual. O autor Oliveira Silveira por sua
vez, também se integra à corrente formada pelos demais poetas brasileiros
engajados na valorização do negro e de sua cultura, distinguindo-se apenas pela
busca simultânea de uma identidade negra e gaúcha.
Também estão integrados nesta fase, segundo a autora Bernd (1992) os
poetas Antônio Vieira que não só assume o fato de ser negro como procura
conscientizar sua comunidade para que o povo negro seja exaltado; Paulo Colina a
qual constrói sua poesia em torno do simbolismo do vôo que remete à liberdade e
por fim, Abdias do Nascimento a qual enfatiza a importância que representa para o
povo brasileiro a recuperação da palavra, para dizer o que precisa ser dito e que
ainda não foi suficientemente dito sobre o negro brasileiro.
Os Cadernos Negros que tem o compromisso com a causa do negro no
Brasil, foi um dos maiores representantes da literatura negra porque consiste em
uma antologia que reúne produções artísticas dos afro-brasileiros. De autoria
variada, com escritoras e escritores oriundos dos diversos estados brasileiros, essa
antologia poética, que surgiu em São Paulo em 1978, possui mais de trinta volumes
publicados, sendo os números ímpares dedicados aos poemas e os números pares,
aos contos.
Algumas figuras nos poemas são representadas por mulheres fortes que
participaram ativamente na construção da história do movimento da negritude
brasileiro.
Para Ferreira,
A poesia negra é um discurso de fronteira que se propõe a recuperar a identidade, a história, a memória, „a imagem lembrança‟ dos nossos antepassados negros, abrindo caminhos para a reconstrução da identidade e a autoestima de homens e mulheres da diáspora negra nas Américas (FERREIRA, 2004, p. 31).
Bernd confirma dizendo que o caráter revolucionário da poesia negra está
no discurso poético o que a torna lugar da “criação do conceito de negritude e da
tomada de consciência de ser negro”. Aqui, o conceito não se constitui como
entidade diferente ou anterior ao fato poético, mas desenvolve-se em e através dele.
A poesia negra é o próprio local de geração de ideologia, pois tenta enfocar o
discurso literário negro.
Bernd continua esclarecendo que,
A identidade da poesia negra brasileira é dada principalmente pela intenção que contém de recriar e de reconstruir um mundo que seja diferente do mundo dos brancos. Este ato não deve, entretanto, o desejo de auto-segregação e de rejeição à integração ao Brasil ou à América Latina. Ao contrário, para que esta interação possa se dar, é preciso que, em um primeiro momento, o negro recupere a noção de partilha de uma determinada situação histórica. Assim, sua consciência de brasilidade, americanidade, etc. é forjada através – não da negação – mas do enfretamento de sua condição negra. Se a literatura é um instrumento privilegiado para atingirmos a melhor compreensão de nós e dos outros , ela só realizará esta sua distinção de usar como matéria-prima a vivência fundamental de cada um que, no caso do negro, se traduz pela experiência essencial de ser negro em um mundo de brancos (BERND, 1988).
Os poetas mostram os caminhos para desconstruir a imagem negativa
construída pela história e os poemas revelam “a preocupação dos poetas em
ancorar a questão da construção de sua identidade no sentimento de pertencer a um
grupo o qual desejam valorizar, através da palavra poética” (Bernd, 1988, p.78).
A poesia negra configura-se no autoconhecimento de reconstrução de uma
imagem positiva do negro, ela está relacionada com “um mesmo signo – negro –
que foi submetido a ofensa e a humilhação, mas também pode ser assumido com
orgulho” (BERND, 1988, p. 96).
O caráter revolucionário da poesia negra não é apenas o cenário de
transposição do conceito de negritude, ao contrário, o discurso poético é que torna o
lugar da “criação do conceito de negritude e da tomada de consciência de ser negro”
(Bernd, 1988, p. 97). A poesia só se completará quando ela conseguir alcançar o
mundo com o intuito de aceitação da diferença e quando se extinguir, por definitivo,
o atual processo de representação mútua, “onde um é sempre o bárbaro do outro”
(BERND, 1988, p. 99).
Devemos sempre lembrar que a escola sempre foi vista como uma fonte
importante de difusão de identidades nacionais. As aulas de história, segundo
(Magnoli, 2009, p. 333 a 335) em seu livro: Uma gota de sangue: história do
pensamento racial, “inscrevem a nação no tempo, por meio da narrativa de um
passado pontilhado de façanhas, dramas, tragédias e personagens históricos” e a
literatura, por sua vez, “oferece uma torrente de ícones que compõem o imaginário
nacional”. Na “hora do triunfo do racialismo, a escola aparece, uma vez mais, como
uma linha de produção de identidades”. Uma das funções da escola é servir como
“uma fábrica de identidades raciais”. No Brasil, essa nova função foi estabelecida
por uma Resolução do Conselho Nacional de Educação que instituiu diretrizes para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e da História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana para o ensino médio e fundamental.
O autor Magnoli complementa que,
São pressupostos da Resolução a existência de raças, de uma história e uma cultura afro-brasileiras e, ainda, de uma história e uma cultura africanas. O primeiro pressuposto implica uma abdicação: a escola não denunciará a raça como um fruto do racismo, mas tratará como entidade histórica e social. O segundo institui a figura dos afro-brasileiros, que seriam os sujeitos de uma história e os produtores de uma cultura. A contrapartida implícita, mas inevitável, é a instituição das figuras dos euro-brasileiros e dos nativos brasileiros, que complementam o panorama racializado da sociedade brasileira. O terceiro pressuposto condensa o
paradigma do pan-africanismo, que descreve a África como pátria de uma raça (MAGNOLI, 2009, p. 334).
Não se trata, segundo Magnoli (2009), portanto, de discutir na escola o
racismo ou o mito da raça, mas de elaborar uma identidade, “imprimindo-a na
história e na cultura”. A Resolução consagra oficialmente a categoria racial dos
afrodescendentes e estabelece como objetivo para o ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana “o reconhecimento e valorização da identidade, história e
cultura dos afro-brasileiros”.
3. MÉTODO DE INTERVENÇÃO REALIZADO
O trabalho aqui descrito foi realizado com a participação de alunos do 3º ano
do Ensino Médio, período matutino, do Colégio Estadual Marechal Costa e Silva –
Ensino Fundamental e Médio, município de Cidade Gaúcha, pertencente ao Núcleo
Regional de Educação de Cianorte, estado do Paraná.
No decorrer das atividades – período de março a junho de 2014 – a intenção
foi o desenvolver o senso crítico dos alunos através das leituras dos poemas que
abordaram a temática: literatura afro-brasileira, propiciando assim, aos alunos, um
conhecimento mais aprofundado dos poetas afro-brasileiros no decorrer da história
da literatura brasileira.
O trabalho foi pautado pelo estudo dos poemas dos autores afro-brasileiros
no decorrer da história da nossa literatura. Para a implementação da proposta foi
distribuída aos alunos apostilas com informações teóricas sobre o tema, como
também poemas apresentados respeitando a cronologia literária. Os poemas
trabalhados também constavam nesta apostila.
Todos os alunos foram informados sobre a proposta de estudo e a intenção
de trabalhar com os poemas dos autores afro-brasileiros, bem como sobre o
desenvolvimento do projeto. O projeto fez parte do PTD da turma relacionada ao
primeiro semestre de língua portuguesa.
A primeira etapa teve início por meio de exposição oral e um breve
comentário a respeito da temática classificando teoricamente os conceitos sobre
literatura, literatura afro-brasileira e de negritude. Dando continuidade à
implementação, os alunos foram convidados a responderem questionamentos
direcionados, na qual, o objetivo principal, estava nas respostas, sendo algumas de
cunho objetivo e algumas de cunho subjetivo a respeito dos autores negros
mencionados nos poemas, paralelo à apresentação de poemas da mesma época
literária, na qual, não abordavam da mesma maneira a personagem negra.
Seguindo a implementação, houve a abordagem crítica em relação ao livro
didático público em relação ao capítulo intitulado “Discursos da negritude”, capítulo
este que abordava de maneira errônea a mulher negra e o conceito de negritude.
Os poemas de todos os poetas negros citados no projeto foram projetados
através de slides na televisão Pendrive aos alunos para que estes, além de terem os
poemas na apostila, acompanhassem de maneira mais dinâmica os poemas, e é
claro, opinassem conforme eram provocados para tal tarefa. Nesta etapa, o
momento histórico foi bem mencionado, levando-se em conta a época literária, o
momento histórico da qual o negro como autor e personagem estava envolvido.
Para que os alunos tivessem mais senso crítico em relação à história do
negro em relação à literatura, foi passado o filme:“12 Anos de Escravidão”. O filme
abordava a história de um negro liberto mas que acabou sendo alvo de uma
quadrilha que sequestrava negros com o intuito de obrigá-los a trabalhos escravos e
consequentemente ao mundo de violências que eles suportaram.
Para avaliar os alunos, foi proposto que eles produzissem poemas,
abordando temas que mostrassem os negros como protagonistas de suas histórias e
acima de tudo, que os alunos demonstrassem o quanto a literatura afro-brasileira
está em plena construção.
Para abrilhantar a implementação, os alunos envolvidos com o projeto, ou
seja, toda a turma do 3º ano, pediu que a professora os orientasse a redigir uma
carta de reclamação direcionada a uma emissora de televisão com o intuito de
questionar um determinado programa que iria ao ar, deteriorando a imagem da
mulher negra.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As estratégias aqui apresentadas oportunizaram aos alunos conhecer
poemas de autores negros, autores estes totalmente desconhecidos pelo mundo
literário apresentado em nossas aulas de literatura, e acima de tudo, a leitura destes
poemas propiciou o diálogo, a discussão, o senso crítico e o debate em relação a
assuntos considerados raciais no âmbito escolar, como também, no meio social. As
práticas aqui sugeridas resgataram a identidade negra associada ao conhecimento
literário com o principal intuito de promover atividades pedagógicas para aprimorar o
conhecimento sobre o assunto e desenvolver um material didático para as aulas de
literatura afro-brasileira.
Considerando que o ensino de literatura no ensino médio deve estar
comprometido com o desenvolvimento crítico do aluno, a fim de transformá-lo num
leitor competente, capaz de exercitar sua cidadania e atuar no meio em que vive, a
proposta deste trabalho alcançou o seu objetivo.
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