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Sou produto de uma geração que trocou osprazeres da vida calma, pelo fascinante mundoda vida sem manual - a vida que corre como
um rio em seu leito. Com remansos, nascentese cachoeiras lindas, misteriosas e
assustadoras.Os carrões e as motocicletas,sempre apresentados no meio de histórias desucesso, tanto entre mocinhos como entre
bandidos. O poder das máquinas.Imortalizados pelos seriados e filmes, na
maioria, norte-americanos, que povoaramminha mente desde as minhas primeiras
andadas, digo; rodadas por este mundo afora.
Oração do Motoqueiro e domotociclista?
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Viajei muito pelo país epor um ou dois países vizinhos.
Conheci o anjo da morte e os anjos da vidaeterna, estes no plural, porque
graças a Deus, são em maior número.
Salvaram-me de estradas esburacadas e dosanimais domésticos que,
num passe de mágica, surgiam e surgemà nossa frente, geralmente numa curva.
Testando nossos reflexos e a nossa fé.
Desde um tatu até um cavalo cansado de viver.
Sim. Vi coisas que até o Diabo dúvida.
Sobrevivi.
Até quando? Rezo todos os diaspara morrer de velhice.
Mas quem manda é o grande Arquiteto.
O jeito é viver para ver.
Agora, nos centros urbanos, a coisa fica pior.
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A luta selvagem pela sobrevivência,aliada ao estado de quase loucura em que
vivemos, acelera os acidentes.
Tudo parece normal. Com esforçoseguimos os quebra-cabeças criados pelo
mosaico de placas que mudam a velocidade atodo instante. Paramos no farol. Esperamos o
cego e a terceira idade passar.
Vai indo tudo bem. De repente. Um assalto.Uma bala perdida...
Na outra quadra; O homem da frentedesce do carro vermelho de raiva. O
motoqueiro, que no desespero de entregar suapizza, esbarrou no espelho retrovisor do
reluzente automóvel. Nem um risco. Nem umprejuízo físico ou material. Sem porquê.
Sem desculpas. A guerra começou.Pronto!Socos e pontapés.
Às vezes um saca uma arma,branca ou não, às vezes saca o inimaginável.
O resultado; morte e confusão.Num dia a razão é do motorista,
no outro é do motociclista.
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Quem se importa? Talvez Deus. Talvez oDiabo?
Corredores da morte nas grandes avenidas. Ociclista disputa com o motoqueiro, que disputacom o motorista, que disputa com o carroceiro.Todos querem passar. Poucos conhecem o efeito“gargalo”. Não dá para passar todos ao mesmotempo. Forma-se o corredor Polonês. Quempassa apanha. Rajadas de raiva. Cuspida por
olhares nada discretos.Sem falar das pragas nãoaudíveis por causa do ronco dos motores.
Roleta russa.
Bingo! Sem prêmios, apenas punições severas.
Tem quem pague com a vidahá quem termine em cadeiras de rodas e
tantos outros inimagináveis.
“Mas o espetáculo não pode parar”.Um bando de perdedores.
Sim. Somos todos perdedores!Uma matilha humana querendo a
“pole-position” da felicidade.Todos, sem exceção.
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A sociedade se cristalizou de uma formadesumana sem precedentes.
Bom, mas quem sou eu para julgar?
O que posso fazer? Também faço parte destamatilha, quero a felicidade!
Mas, confesso a todos que perdi a pressa,prefiro levar mais tempo e fazer a coisa certa.
Esquecer o manual social e praticar ações queemanam do meu coração-espírito, cuja matrix,
contém, do meu ponto de vista, a sementeúnica, semeada pelo criador - a semente do
amor universal. Única e incorruptível.
O autor.
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Km I
Deixamos a chupeta em algum lugar
Com elas as lembrançasdo cordão que nos segurava
Soltamo-nos no triciclo corredor abaixo
Juntamos com a brisa no rosto,a nossa primeira queda...
Nossa primeira máquina,cheia de cores e poderosa
Vermelho da nossa libido
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Amarelo da perseverança
Verde da esperançade sucesso em nossa vida
Plástico não quebra
Mas, rodas se soltam e se perdem
Vem uma nova e mais poderosa máquina
Agora, com quatro rodas e com um coração
Pequeno, mas capaz de batercinco quilômetros por hora
Nossos pais nos levam nas primeiras pistas
Jardins planos, cheios de arvores eflores em sua volta
Beleza que não vemos
Estamos escravos e obcecadospelo novo brinquedo
Agora, somos comandantes
Aceleramos, e a moto responde
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Anda! Pra nós éum circuito de fórmula um.
A pequena lufada de ventoé como rajadas em nosso rosto
Inclinamos nosso corpo, testando-nos etestando o equilíbrio da máquina
As curvas quase retas parecemcircunferências no nosso entender
Duas rodas, quase ficam no ar
As primeiras acrobacias
Nossos pais sorriem.Estamos felizes...
Dia, após dia voltamos aos treinos.
Sentimo-nos cada vez maispilotos profissionais.
Sentimo-nos poderosos.
Capazes de voar acima da razão
Capacidade que ainda não desenvolvemos.
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A máquina torna-se pequena demais...
Coisas de crianças...
Como os carrinhos de rolimã
Hoje nossos desejos se tornam maiores
A ansiedade por uma máquinamais potente aumenta
Ficamos rebeldes!Descontamos nas peladas de futebol
Aprendemos a fumar, beber,com a falsa idéia de que ficaremos felizes.
A tristeza aumenta...
Fazemos novas acrobaciascom nossas “magrelas”,
bicicleta de pneus largos ou finos.
Percebemos as meninasna frente da escola. Voamos
em duas rodas para chamar atenção.
Aterrisamos em queda livre. A dor dosarranhões dita as novas ordens.
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Levantamo-nos, rapidamente não choramos.Homem que é homem, não chora.
Sacudimos a poeira. Fazemos uma graça epedalamos a vida
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Km 18
Pensamos ser perito.Fizemos vários oitos em duas rodas.
Sem tocar os pés no chão.Passamos no vestibular
Acreditamos ter o domínio da velocidade
Mão direita no fundo
Estradas que passam, obstáculos?Que obstáculos?
Venceremos todos...
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Finalmente a nova máquina.Um sonho de brinquedo.
Cinqüenta cilindradas.Mais rápida que um maratonista.
Mais rápida que uma avestruz.
Mais rápida que um cavalo de corrida.
Na garupa. Princesas.Inocentes. Mas protegidas.
O espírito de Sancho Pança.Dom Quixote em alerta.
O mar como cenário. O céu como teto.
Pequenas barracas como ninho de amor.
Avante sempre.
O transito pára repentinamente.A pequena máquina não.
Com a velocidade da águia duranteo dia pegando a presa,
Ela desliza em ziguezague por entre os carros
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Algumas trombam.Ficam feridas. Outras morrem.
Mas morrem felizes. Em alto estilo.Em alta velocidade.
Sobrevivemos. Cegos a bençãodos anjos que nos protegeram.
Cegos aos avisos que pedem prudência.
Como parar para pensar.Somos mais rápido que o “Gato de botas”
Mais rápidos que o “The Flash“.
Sentimo-nos intocáveis.Homens invisíveis
Alcançamos os objetivos. Quais?
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Km 22
Acumulamos experiência.Entendemos tudo sobre duas rodas.
Queremos mais potência.
Nosso coração quer paixão.
Quer amor. Quer aventura.
Brigamos por nossas bandeiras. Quais?
A do país em que nascemos.
A do time de Futebol, Vôlei, Basquete...
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Prestação em quatro anos. Nova máquina.
Duzentos e cinqüenta cilindradas.
Viramos pilotos de um foguete,sem a NASA como suporte.
As estradas urbanas e interurbanas,nossos campos de prova.
Novas paixões. Brevê de vida ou morte.Quem se importa?
Reluzentes; prata, vermelho,preto e tantas outras cores.
Capacetes de guerreiros.Símbolo de símios vencedores.
Unidos e armados desentimentos até os dentes.
Ilusão. Palavra que não constaem nossos dicionários.
Somos reais. Senhores dos nossos destinos?
Agora podemos viajar.O mundo ao alcance da mão direita.
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Poderosa máquina quese acopla em nosso corpo.
Acopla-se em nosso espírito.
Extensão material de nossos sentidos ecapacidade motora...
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Km 32
Vivemos na era do terSer é um mundo misterioso...
Viva o capital! Viva o consumo!Viva a aparência!
O narciso que se via no lago,agora reflete puro metal.
Cheira borracha e gasolina
Viva Zappata!Viva a liberdade democrática!
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Viva a ditadura do consumo!
Escravos do prazer e da aventura
Somos pelo amor livre epelos romances eternos
Senhores da máquina do tempo
Somos imortais...
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Km 35
Fascinados pelo circuito das máquinas
Aprendemos comas bandeiras da vitória
O “V” da vitória. O “V” da vida
Vida de quem?
Será que da nossa?
Aceleramos a caminhada
João corre riscos para comprar arroz
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Faz roleta russa em cima da moto
Inicia a jornada todos os dias
Com a nevoa brancada manhã cheia de esperança
Ao amarelo-ouro do entardecer,cheio de poluição.
Prefere guidão baixopara aumentar a velocidade
da máquina 125cc
É como nadador que sacrificaos próprios pelos
para ganhar centímetros
Se benze ao entrarno corredor da morte entre os carros
Se benze ao sair vivo,agradecendo a todos os santos e a Deus.
Pelo milagre de estar vivo...
Já, Mister Fred, gosta de guidão alto,máquina tipo “custom”;
preferencialmente 1200cc
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Pilota tranqüilo e sem pressa...
Não precisa de riscos.Sua necessidade é lazer.
A dispensa física e psicológica esta cheia!
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Oração do motoqueiro
Bom dia meu Deus
No caso do Senhor permitir um acidente
Não deixe minha moto quebrar
Mantenha seu motor em funcionamento
Suas rodas sobre o eixo
Não me importo com as feridas em meu corpo
Apenas deixe tudo, meu corpo e minha motoem condições mínimas para funcionar
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Tenho uma família para cuidar
E só tenho esta moto
para trabalhar e passear
Obrigado meu Deus
Sei que o Senhor levaalguns dos meus colegas todos os dias
para seu reino
Sempre rezo por eles...
Mas, te peço, meu Deus, deixe-me aqui naterra, por mais tempo
Quero ainda poderajudar meus filhos a crescerem
Sou ainda, Senhor,muito jovem para morrer...
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Oração do motociclista
Obrigado Senhor por este dia lindo.
Vou poder pegar uma praia
Levarei minha namorada
Terei um fim de semana maravilhoso
Senhor, obrigado por permitir;
Que eu tenha o soldo
Pela minha boa casa,inclusive a da praia e a chácara
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Já paguei o seguro da motoe dos outros carros
Já providenciei toda a indumentária,
Inclusive o capacete importado
Obrigado Senhor, por todos os privilégios
Amém.
.
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Coração movido a perigo.
O vento bate forte
Na verdade grita emzumbidos nos meus ouvidos
Gosto. Fico em êxtase.
Um misto de medo e felicidade.
A reta é reta,não pelas aulas de geometria
Ela simplesmente aparece,assim com a curva fechada
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Por instinto acho a tangente certa
Inclino-me em diagonal
Meu ombro está lado a lado com meus olhos
Meus joelhos, não ajoelhados,passam raspando ao asfalto
Venci a reta e a curva e toda a geometria...
Mais adiante o inesperado
Ziguezague por entre pequenose grandes animais
Às vezes pedestres
No final do corredor,a princípio da morte, sinto- me vivo
cada vez mais vivo
O sol aparece
Diminuo a velocidade
Vejo a gazela que passa cheia de malícia e graça
Quero parar, mas não posso
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Meu lema é a velocidade
O som da buzina faz a reverência...
Atrás de mim toneladas sem freio
Não posso confiar
Tenho que acelerar e estar na frente
“Se parar o bicho pega”
Continuo a acelerando enquanto o
sol do meu coração me ilumina
As estrelas reverenciam a lua
Sozinho em algum lugar do planeta,finalmente paro
Olho ao meu redor e vejo a beleza terrestre
Árvores, flores, frutos, mar, rios praiastodas doces.Inclusive as salgadas.
Penso no meu grande amor, onde andará
Nascido a onze primaveras atrás
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Sinto saudade.Mas tenho que ir em frente
Preciso comer, dormir e me vestir
Preciso mandar um soldo para ele
Volto-me para meuganha pão de duas rodas
Como réstia de luz apareço aqui e ali
Invado retrovisores com minha imagem
Os motoristas às vezes nem percebem
E quando percebem.Levam um susto!
Parece pura magia.
Segundos e a imagem desaparece.
Às vezes o tempo escurece
Mas, faça sol ou chuva vou a labuta
Uma pele emprestada da tecnologiaprotege meu corpo e minha cabeça
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Há falhas, outros como eu, às vezesmorrem - “Ossos do ofício“.
Vivo no país da loteria e da esperança
De repente. Sobra um dinheiro
Investimos em casas, chácaras,carros e motos maiores
perdemos a pressa. Ganhamos razão.Bom senso.
A gazela passa novamente.
Reflexão! Será a voz divina.
Desta vez, paramos, pensamos
Caminhamos com nossos próprios passos
Oferecemos umaargola brilhante como o céu
Ela aceita...
Perdemos a pressa,e continuamos nossa viajem a
quatro mãos pela deliciasexistentes neste mundo afora
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Corpo fechado
Ah! As estradas da vida...
Quantos mistérios.Quantos tropeços
E os recomeços!As vezes assustam...
Mas sempre estou feliz.Sei que a lua é poesia
Das estrelas tiro alegria.Coisas de crianças, crianças
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Coisas de crianças adultas
No litoral reflito
Penso nos seres iluminadosque passaram por este planeta
Não os conheci pessoalmente
Mas aprendo a meditarcom seus ensinamentos
Deus existe! Deus é o Tao. Deus é tudo.
Quando ando por ai, de praia em praia
Tomando umas ou outras,confio no meu corpo fechado
Porque estar com pai e mãeem espírito é estar acima
do mau e do bem
É um estado de total invulnerabilidade
Meus pais deixaram-me um grande jardim
Nos seus cinco continentes.Mais belo impossível
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Para onde olho, os mistérios da criação!
Berço lindo, para nós,seres em desenvolvimento
Invenção da rodadescoberta do simples e do mágico
para toda a civilização
Percorri reinados distantese apaixonei-me por muitas princesas
com poderes divinos
Indumentárias com vermelho forte,azul do mar, amarelo solar...
Todas vestidas para dançar
O salão, toda a terra
Ah! Princesas! Sei queno lugar das pernas possuem rodas
No lugar do coração - um potente motor
Mas, inexplicavelmentevocês são, a mais pura
expressão dos meus desejos
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E também,a minha maior e eterna paixão.
Meu primeiro amor
Olhem! Ela é maravilhosa.
Fala a verdade!A cor é demais - personalizada
Mandei pintarsegundo meus desejos
Quer ver a potência do motor?
Olhem como ela corre.
Ultrapassei vários carros.
Vou alcançar aquele mais potente.
Ultrapassei... Viu, ela é demais!
Emprestar? Não posso.
“Mulher e moto, não se empresta”
Quer dar uma voltatudo bem, mas na garupa!
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Sou muito feliz.Agora posso ir e vir em alto estilo
Faça sol ou chuva não abrirei mãodesta minha paixão
Somos, eu e ela, um só corpo.
Nas retas, nas curvas e por toda a eternidade.
Cuidados especiais:
Verificar todos os diasembreagens, freios e pneus
Nunca sair sem capacete
Nunca passar farol vermelho
Nunca aproveitar o farol amarelo
Nunca andar no corredoracima de 30 km/hora
Sempre dar preferência ao pedestre
Nunca revidar hostilidades
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Nunca viajar sozinho
Nunca deixe de rezar por você
pelos antepassados
pelos pais e amigos
pelos que se foram
Jamais fure um bloqueio,ou discuta com a policia
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Inesperado I
O dia radiante
Sol, ar quase puro
Elas, minha namorada
Minha moto
Tudo perfeito
Domingo.
Poucos carros na avenida.
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Calor. Objetivo traçado.
Feliz felicidade.
Infelicidade infeliz.
O homem velho
Nas suas costas cabides de roupas.
De quem? Talvez um tintureirofazendo hora extra.
Cuidadosamente toco a buzina
Penso que ele escuta.
No ponto inesperadoentra em minha frente
O reflexo não foi capazde evitar o atropelamento.
A pergunta é?Ele me atropelou ou foi o inverso.
Sorte. Estando devagar só arranhões.
Minha namorada, garupa, sofreu mais
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Ficará com uma marca no joelhopara o resto da vida
Mas a vida passa...
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Inesperado II
Minha moto na oficina
Todo meu salário aplicado
Para-lamas e tanque de gasolina
personalizados com pintura especial
O capacete, obra prima
Motor mexido, o meu e o da moto
No farol, um playboy num carrão
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Ele acelera! Eu também.
Urro da vaidade.
Uivo dos lobos que mostram as garras
Parece um grande prêmio.
Olhos no farol, mãos no acelerador
Amarelo. Instantes de êxtase.
Verde. Partida.
O adversário foi.
Eu fiquei. Com o motor fundido
E o coração partido...
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Inesperado III
Alta velocidade.
380cc num balé entre os carros
Ziguezague de vida e morte
O conta-giros marcar sete mil
As vezes oito mil
O motorista abre a porta
Entro com moto e tudo
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dentro do carro
Choro de raiva
Quem é o culpado?
Quem sofreu os maiores prejuízos?
Inesperado IV
A rua é movimentada.
Ônibus e carros
Roncando subida a cima
Área de comércio
Lindas garotas indo e vindo
Esqueço dos perigos da cidade
Não penso em roubos
Sem acidentes de transito.
Estou no paraíso
Ela é magnifica
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Olha pra mim e sorri muito
Fico atordoado
Continuo a marcha como no exército
Olhando de ladopara o General que passa a vista
Meu coração esta apaixonado
Viajo...
O transito para.
Minha roda da frentesobe no capô de um fusca
Em algum lugar
Ela dá muita gargalhada