O COTIDIANONA SEPARAÇÃO ENTRE IGREJA E CEMITÉRIO
Um exercício de investigação metodológica
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Universidade de São Paulo
EESC - Escola de Engenharia de São Carlos
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HABITAÇÃO, METRÓPOLES E MODOS DE VIDA
SAP 5846
Prof. Dr. Marcelo Tramontano
MONOGRAFIA DE AVALIAÇÃO
O COTIDIANO NA SEPARAÇÃO ENTRE IGREJA E CEMITÉRIOUM EXERCÍCIO DE INVESTIGAÇÃO METODOLÓGICA
VVVaaalllééérrriiiaaa EEEuuugggêêênnniiiaaa GGGaaarrrccciiiaaa
Janeiro 2006
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – O DIÁRIO DE UMA MONOGRAFIA 4
1. OS ANNALES E A HISTÓRIA DA ARQUITETURA E URBANISMO NO BRASIL 8
1.1. Nova História, quando e como 8
1.2. A possibilidade de uma Nova História da arquitetura brasileira 13
1.3.Vida cotidiana e espaço urbano sob a perspectiva das atitudes diante da morte noBrasil do século XIX: o início de uma pesquisa 16
2. O COTIDIANO E A SECULARIZAÇÃO DOS CEMITÉRIOS 18
2.1. Um exercício de investigação metodológica 18
2.2. Ariès, seus caminhos e a espacialização das atitudes diante da morte 192.2.1. Século XIX – Cemitério na topografia 202.2.2. Igrejas para o culto e cemitérios para os mortos 252.2.3. Nave, campanário e cemitério – três corpos em um 29
2.3. Pelos caminhos de Ariès, o rebatimento brasileiro 332.3.1. A romantização do Ad Sancto ultramarino 352.3.2. Higienismo Iluminista no século XIX 402.3.3. Cronologia da secularização 412.3.4. Geografia da morte – uma questão de hierarquia social 42
CONCLUSÕES 45
REFERÊNCIAS 48
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INTRODUÇÃO - O DIÁRIO DE UMA MONOGRAFIA1
O plano de pesquisa elaborado para realização desta monografia tencionava o entendimento da
história e desdobramentos espaciais advindos de um contínuo processo de secularização.
A secularização era entendida nesse momento como um movimento característico das sociedades
ocidentais pós-renascentistas, que em tese alterou a estruturação e localização dos edifícios públicos e
religiosos, em malhas urbanas que ganharam complexidade ao longo dos séculos XVII e XVIII, mas
principalmente no século XIX, ao fim da Primeira Revolução Industrial.
O principal questionamento proposto era:
Como se deu o processo de secularização no que tange ao traçado da cidade e mais
especificamente na localização e na arregimentação hierárquica de edifícios públicos e
eclesiásticos?
Continuando:
A exemplo dos cemitérios, a partir de então, apartados tanto espacialmente quanto juridicamente, do
alcance das instituições religiosas também parece plausível perguntar:
Quais as transformações e deslocamentos urbanos que resultam desse processo?
Quais outras alterações de elementos e espaços importantes para a cidade são fruto desse
processo de secularização?
Existiriam elementos arquitetônicos que demonstrem esse processo de valorização do bem
público em detrimento aos espaços e edifícios religiosos?
O objetivo principal era adquirir conhecimentos que auxiliassem a interpretação de dados colhidos
durante a futura pesquisa de campo a ser realizada para a elaboração da dissertação de mestrado. No
entanto, agora, analisando as críticas do professor2 é possível identificar no plano, parágrafos confusos
que não delimitavam e nem esclareciam todos os objetivos da pesquisa.
Entre os objetivos carentes de um esclarecimento adicional é importante ressaltar a intenção de
ganhar familiaridade com trabalhos de renomados pesquisadores europeus e brasileiros3 que trilham o
caminho da Nova História. Esse objetivo particular visava amadurecer conceitos importantes para
conseguir estabelecer possíveis correlações entre os modos de vida e a história do espaço construído e
conseqüentemente da própria cidade. Logicamente é preciso chamar a atenção aqui ao recorte
trabalhado, o contexto que permeou a separação entre igreja (edifício) e cemitério assim como as suas
conseqüências espaciais.
1 Somente a Introdução foi redigida na primeira pessoa, para melhor explicar os objetivos e o desenvolvimento dotrabalho. Toda a abordagem subseqüente foi redigida no sujeito indeterminado conforme orientação obtidas em Eco(2005, p. 115-23).2 Prof. Dr. Marcelo Tramontano, docente da disciplina em questão. As críticas faziam referência à clareza do planode pesquisa e seu caráter muito abrangente.3 Parte desses pesquisadores foi apresentada no conjunto de referências da disciplina, Habitação, Metrópoles eModos de Vida. E outra parte é resultado de uma pesquisa bibliográfica empreendida para abarcar os objetivos dotema proposto.
5
Entre as várias observações destacadas pelo professor referente à elaboração do plano de
pesquisa, a mais importante referia-se à necessidade de um recorte preciso do tema, que se apresentava
então amplo e mal definido.
A partir daí tomei algumas decisões que serão explicadas nesta introdução.
1) Decidi ler e pesquisar o material levantado com a intenção de buscar o recorte adequado para o
tema. Nesse momento eu já tinha em mente a intenção de centrar as análises apenas na separação entre
igreja (enquanto edifício e marco central do meio urbano) e o cemitério (espacialização da morte na malha
urbana). Mas como se tratava de um tema desconhecido, seriam necessários alguns subsídios para
determinar locais precisos e datas para focar e ao mesmo tempo determinar claramente os limites da
investigação.
2) Mesmo assim decidi elaborar um conjunto de questionamentos e mesmo sem um recorte fechado
verificar sua aplicabilidade aos textos selecionados para estruturação desta monografia.
Tais questionamentos foram anotados graças às várias orientações de Umberto Eco em Como fazer
uma tese, mesmo não sendo ainda definitivos, funcionaram como balizas para melhor direcionamento a
leitura. Foram estes:
Como se deu o processo de secularização e separação dos espaços, hoje entendidos como
cemitério e igreja?
Qual o reflexo espacial na cidade do século XIX dessa separação de funções, culto e enterro?
Qual a importância do contexto político e econômico nesse processo de separação?
Qual a posição da hierarquia eclesiástica, frente a essa transformação?
Durante todo o processo de leitura uma direção parecia se estruturar em torno dos livros de Philippe
Ariès; História da Morte no Ocidente e do conjunto, formado por dois volumes, publicado pela Editora
Francisco Alves sob o título de O homem diante da morte e o mesmo conjunto, editado em Portugal
através das Publicações Europa-America, que adota o título O homem perante a morte4.
No entanto, surge um fato desafiador. Ariès não enxerga a separação entre espaço dos vivos e
espaço dos mortos apenas como resultado de um processo de secularização.Atendo-nos a Paris, o deslocamento dos cemitérios começara, sem dúvida, no final do século XVI [...]mas só aparece realmente no século XVII, para continuar no século XVIII. É devido à ampliação dasigrejas, tornada necessária pelas novas práticas de devoção e da pastoral, em conseqüência doConcílio de Trento. Essa transformação do e principalmente o desprendimento, o pouco cuidado emrelação aos mortos que a acompanharam, têm um sentido psicológico. (ARIÈS, 1982, p. 347).Percebe-se como, antes do Concílio de Trento, as funções pastorais do clero eram limitadas, salvo apregação reservada aos monges. A Contra-Reforma aumentou-lhes a ação, mas para as novasmissões era preciso lugar, que elas tomaram do cemitério sem qualquer escrúpulo. Isso explica acriação dos cemitérios do século XVII. (ARIÈS, 1982, p. 349).
Como um pesquisador ligado ao estudo do cotidiano e dos modos de vida ele entende esse
processo como uma lenta e continua transformação das atitudes do homem diante da morte.
4 Para mais detalhes sobre as publicações vide referências.
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É claro que não há como negar a secularização que marca, da Idade Média ao século XIX, a
continua transferência de poder e autoridade sobre a sociedade, da Igreja para o Estado laico. Mas a
abordagem de Ariès no que concerne às atitudes do homem diante da morte também demonstra uma
relação muito forte com as alterações que lentamente invadem o cotidiano e acabam por operar
transformações pouco perceptíveis quando analisadas em períodos históricos muito restritos.
Desta forma, no decorrer da leitura proposta os questionamentos novamente se mostraram
ineficazes, pois não circunscreviam o objeto pelo viés da história do cotidiano. A investigação nem se quer
propunha uma análise que privilegiasse o ponto de vista do cidadão comum, do sujeito anônimo, ou
melhor dizendo, do “consumidor”5 desses espaços.
Foi nesse momento que descobri o erro mais grave das avaliações e propostas que eu vinha
fazendo. O foco de análise que eu propunha para a elaboração desta monografia estava invertido. Eu
buscava as conseqüências espaciais do processo de secularização e não aventava a investigação das
prováveis razões que levaram a cabo essa efetiva separação (igreja/cemitério). Também não avaliava, o
que seria mais pertinente a uma pesquisa que se propõe a estudar o cotidiano e os modos de vida, a
participação silenciosa do sujeito comum, do usuário desses espaços, que não toma parte das decisões
que são impostas por uma hierarquia administrativa, seja essa; eclesiástica, governamental ou defensora
dos direitos de entidades organizadas e socialmente representadas. Mas esse sujeito comum protesta e
re-inventa sua própria maneira usar esses espaços, ação perceptível apenas quando se emprega uma
avaliação que englobe períodos temporais mais duradouros.
Essa flexibilidade temporal é respaldada pelo próprio Ariès (2003, p. 20-1) que afirma, “as
transformações do homem diante da morte são extremamente lentas por sua própria natureza ou se
situam entre longos períodos de imobilidade”. Para ele a “memória coletiva” se esvai quando as análises
ultrapassam algumas gerações. O perigo de uma pesquisa recortada em uma cronologia muito curta seria
a de arriscar-se “atribuir caracteres originais da época a fenômenos que são, na realidade muito mais
antigos”.
Nesse momento eu já tinha lido todo material levantado na pesquisa bibliográfica e decidi
estabelecer apenas uma questão para nela trabalhar em uma linha mais elástica de tempo.
Como se deu a transformação de uso da igreja e cemitério, até então um espaço único de
convívio pacífico entre vivos e mortos, face às alterações da postura do homem diante da morte?
A intenção era concentrar toda a atenção nas atitudes francesas descritas por Ariès. Mas isso tiraria
parte do sentido do trabalho, eu tinha o elemento de coesão, no entanto, para facilitar a redação e em
favor desse recorte em vias de ser estabelecido eu pensava em excluir todo um conjunto de pesquisas
brasileiras sobre as atitudes diante da morte que além de muito interessantes demonstravam uma parte da
genealogia da Nova História refletida sobre o estudo do espaço urbano brasileiro.
5 Associação utilizada por Michel de Certeau. Vide páginas 10 e 11.
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Parecia um labirinto sem fim. Apesar de prever uma série de dificuldades não abandonei a idéia de
utilizar as pesquisas brasileiras, que tinham entre outras qualidades uma ascendência direta aos trabalhos
de Ariès.
Iniciei a redação da pesquisa buscando um melhor entendimento da Nova História e dos Annales. O
primeiro problema que eu já tinha então vislumbrado foi que durante o levantamento bibliográfico, acreditei
que os trabalhos de Certeau, Ariès e os exemplares da História da vida privada seriam suficientes para
conseguir as pistas necessárias para entender melhor essa corrente historiográfica. Mas o que eu queria
também era realizar um estudo sobre suas origens e implicações. Como não havia tempo para uma re-
estruturação do levantamento bibliográfico, as lacunas foram suprimidas pela utilização de artigos
disponíveis na internet. Apesar da apropriação de segunda mão, os artigos e a crítica proporcionaram as
informações básicas sobre a “Nouvelle Histoire” que eu necessitava. É claro que para um aprofundamento
maior sobre o tema será necessária, no futuro, uma leitura atenta dos trabalhos de alguns de seus
fundadores6, assim como a pesquisa de Peter Burke e o rebatimento ao contexto brasileiro extensamente
estudado por José Carlos Reis.
Durante a redação dessa parte específica do trabalho a situação brasileira face à Nova História
emergiu com uma certa naturalidade. Mediante o conjunto de livros analisados para a pesquisa e do
vislumbrar dos métodos dos historiadores do cotidiano. Veio a idéia de transformar a monografia em um
exercício “filtro” do material estudado com os seguintes objetivos:
1- “Filtrar” pelo viés da Nova História somente as alterações espaciais advindas das
transformações nas mentalidades e na cultura. O recorte exato é a Paris oitocentista descrita
por Ariès e seu rebatimento, apropriação e possíveis invenções no universo cotidiano do Brasil,
exposto por pesquisadores herdeiros da “Nouvelle Histoire”.
2- “Filtrar” e organizar alguns rastros metodológicos deixados por Ariès e pelos pesquisadores
brasileiros utilizados nesta monografia.
Este é o perfil do trabalho, menos o desejo de abarcar toda uma situação complexa e dispersa em
um período cronológico bastante extenso e mais uma leitura crítica que possibilite o levantamento de
critérios, fontes de pesquisa, organização de idéias e estilo de narrativa, utilizados por renomados
pesquisadores da história do cotidiano. Mesmo assim não existe a objetivo de fechar todo o conjunto de
métodos por estes utilizados.
Esta monografia é assim exercício de leitura crítica, reflexão, organização de idéias e investigação
de métodos.
6 Febvre, Bloch, Braudel e talvez outros trabalhos que parecem interessantes como os de Vouvelle e Chartier.Um dos resultados de certa forma “imprevisto” foi a elaboração de um extenso levantamento bibliográfico que irácontribuir para estruturação de parte da dissertação de mestrado.
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1. OS ANNALES E A HISTÓRIA DA ARQUITETURA E URBANISMO NO BRASIL
1. 1. Nova História, quando e como
A “Nova História” instaura um novo tipo de interpretação historiográfica a partir de mudanças na
estrutura das análises teóricas e metodológicas. Sua principal difusão acontece a partir da associação
entre Lucien Febvre e Marc Bloch para a organização da Revista Les Annales d’Histoire Économique et
Sociale no ano de 1929. “O debate acerca da ‘Nova História’ situa-se, pois, como uma necessária
interlocução metodológica; diálogo cujo objeto remete-se ao repertório da escrita historiográfica e às
estratégias de sua produção” (BOTO, 1994, p. 23-4).
Marc Bloch na sua Apologie pour l’Histoire, obra na qual explicita o que compreende como história e aforma pela qual o historiador deve fazer o seu trabalho, ou seja, o método, dentre outras questões,clama por uma história-problema, profunda e total. Esta história seria alcançada pela formulação deperguntas pertinentes por parte do pesquisador, a partir das quais ele questionaria o passado,através da aliança com as ciências sociais. (RIBEIRO, 2000, grifo nosso).
Os objetivos eram eliminar o espírito de especialidade, promover a pluridisciplinaridade, favorecer a
união das ciências humanas, passar da fase dos debates teóricos para a fase das realizações concretas
(BIRARDI; CASTELANI; BELATTO, 200?). Os pesquisadores dos Annales7 propunham um novo estilo de
escrever a história que partia do “deslocamento do objeto investigado e das próprias estratégias
agenciadas para reconstituição do mesmo” a ponto de se chegar a uma “re-invenção do objeto”. Nesse
sentindo é preciso destacar a importância da “confluência entre o tempo do objeto investigado e o tempo
do sujeito investigador” (BOTO, 1994, p. 24).
O historiador está numa posição instável. Se dá prioridade a um resultado objetivo, se visa a colocarno seu discurso a realidade de uma sociedade passada e a reviver um desaparecido, ele reconhece,entretanto, nessa reconstituição, a ordem e o efeito do próprio trabalho. O discurso destinado a dizer ooutro permanece seu discurso e o espelho de sua operação. Inversamente, quando ele retorna àssuas práticas e lhes examina os postulados para renová-las, o historiador descobre nelas imposiçõesque originaram bem antes de seu presente e que remontam a organizações anteriores, das quais seutrabalho é o sintoma e não a fonte (Certeau apud BOTO, 1994, p. 24).
A Escola dos Annales, centro difusor da “Nouvelle Histoire”, é convencionalmente divida em três
períodos. Em primeiro lugar tem se a era dos fundadores Febvre e Bloch. Em seguida marca-se a época
da história demográfica, período em que Fernand Braudel dirigiu a revista nos anos 50 e 60, auxiliado por
Jacques Le Goff, Le Roy Ladurie, Robert Mandrou e Jacques Revel. E finalmente a multifacetada terceira
geração também conhecida como “Nouvelle Nouvelle Histoire” que se consolida a partir do final dos anos
60 (BIRARDI; CASTELANI; BELATTO, 200?).
7 Grupo dos Annales formado por historiadores ligados a revista Les Annales d’Histoire Économique et Sociale, quena busca da interface entre as diversas disciplinas das ciências sociais também tinha em seu quadro a presença deum geógrafo (Albert Demangeon), um sociólogo (Maurice Halbwachs), um economista (Charles Rist) e um cientistapolítico (André Siegried) (BOTO, 1994, p. 25-6).
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Será essa terceira geração a grande produtora de estudos pertencentes ao domínio da cultura
(criança, família, morte, sexualidade, criminalidade e delinqüência) questionando o primado até então
conferido aos estudos das conjunturas econômicas e demográficas (CORRÊA, 2004).
Todo o conjunto de trabalhos da “Nova História” se organiza como uma reação às correntes
positivistas da historiografia tradicional ou “Velha História” que organizavam fatos em linhas cronológicas,
pretensamente isentas de interpretação por parte do historiador. Assim predominavam as histórias, política
e econômica, marcadas por ações heróicas e grandes datas assim como as alterações nos modos de
produção, sempre sem levar em consideração o ponto de vista e a apropriação que o sujeito ou os grupos
envolvidos faziam desses fatos impostos por uma ação dominante.O Positivismo pregava a cientifização do pensamento e do estudo humano, visando a obtenção deresultados claros, objetivos e completamente corretos. Os seguidores desse movimento acreditavamnum ideal de neutralidade, isto é, na separação entre o pesquisador/autor e sua obra: esta, em vez demostrar as opiniões e julgamentos de seu criador, retrataria de forma neutra e clara uma dadarealidade a partir de seus fatos, mas sem os analisar. Os positivistas crêem que o conhecimento seexplica por si mesmo, necessitando apenas seu estudioso recuperá-lo e colocá-lo à mostra. Não forampoucos os que seguiram a corrente positivista: Auguste Comte, na Filosofia; Émile Durkheim, naSociologia; Fustel de Coulanges, na História, entre outros, contribuíram para fazer do Positivismo e dacientifização do saber um posicionamento poderoso no século XIX.Pode-se inclusive dizer que o Positivismo reduz o papel do homem enquanto ser pensante, crítico,para um mero coletor de informações e fatos presentes nos documentos, capazes de fazer-seentender por sua conta. "Os fatos históricos falam por si mesmos", dizia Coulanges, historiadorfrancês. Assim, para os positivistas que estudaram a História, esta assume o caráter de ciência pura: éformada pelos fatos cronológicos e o que realmente significam em si. São objetivos à medida quepossuem uma verdade única em sua formação (que é o seu sentido e sua única possibilidade decompreensão) e não requerem a ação do historiador para serem entendidos: como já dito, o papeldeste é coletá-los e ajeitá-los, constatando pela análise minuciosa e liberta de julgamentos pessoaissua validade ou não. O saber histórico, dessa forma, provém do que os fatos contêm, e assumeum valor tal qual uma lei da Física ou da Química, ciência exatas. (BIRARDI; CASTELANI;BELATTO, 200?, grifos do autor).
Em contraposição a essa perspectiva, Febvre afirma que “toda história é escolha”. As razões que
organizam esse pensamento são várias, seja o acaso que conservou ou salvou os vestígios do homem,
seja a ação do próprio homem que mediante a abundância de documentos, simplifica, resume, destaca e
até apaga, ou seja, porque o historiador cria e recria os seus materiais, partir da intenção precisa que
orientou sua pesquisa; “o problema a resolver”, a “hipótese de trabalho a verificar” (BOTO, 1994, p. 25).
Nessa linha Lepetit (2001, p.191) constrói sua metáfora “A história é uma boa menina, um pouco
indolente mas sempre pronta a seguir, sem muita discussão, quem acaba de seduzi-la”.
“Tendo principiado como uma ‘revista de seita herética’, os Annales, pouco a pouco, vêm a ganhar
o prestígio da intelectualidade francesa, consolidando-se no ‘establishment’ (o termo é de Peter Burke8) a
partir da segunda geração, cujo expoente é Braudel” (BOTO, 1994, p. 26).
8 Historiador britânico que pressupõe a matriz francesa dessa tendência historiográfica.
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Os historiadores dos Annales fizeram a revolução, reverteram a prioridade, nas palavras de Burke,
“history from below” ou uma história construída por baixo. A partir da mudança do ponto de observação o
enfoque será o circuito das atividades, as concepções, as crenças, as representações e as práticas
cotidianas “de um coletivo anônimo e aparentemente banal; miudezas, enfim que a historiografia
tradicional não pretendia contemplar”. “Busca-se, nessa fuga, compartimentalizar o saber, não apenas as
rupturas nas fendas do tempo, mas e talvez prioritariamente – as permanências, a resistência à mudança
no plano das subjetividades, a força de inércia das estruturas mentais, apresentadas por Braudel como
prisões de longa duração” (BOTO, 1994, p. 25).
Lepetit esclarece citando a predominância de novos objetos nas obras de Le Goff e nos trabalhos da
segunda fase de Le Roy Ladurie:O corpo (e não mais a mortalidade), a vida amorosa (e não mais a fecundidade legítima), as maneirasà mesa (e não mais as rações alimentares), as estruturas de parentesco e os ritos de passagem (e nãomais as categorias sociais, ordens ou classes), a línguas, as imagens, os mitos (e não mais astécnicas de produção, as condições das forças produtivas ou o produto) desenham agora o verdadeiroestado desta ou daquela sociedade antiga (LEPETIT, 2001, p. 232).
A mudança de objeto tem como resultado uma desqualificação do método quantitativo em favor da
atividade interpretativa. “Daí resulta ainda uma modificação dos esquemas temporais de referência: a
inércia das categorias fundamentais das culturas leva a prestar menos atenção à variabilidade dos tempos
sociais ou às rupturas de ritmos do que à eficácia duradoura de fenômenos extraídos de uma história
quase imóvel”. (LEPETIT, 2001, p. 232).
Philippe Ariès, annaliste da terceira geração, acerca
desse diálogo entre o eco do passado e a voz do
presente, enfatiza que foi a crise da modernidade que
acentuou a grande voga da Nova História a partir do
final dos anos 60. O declínio do sonho iluminista de
aperfeiçoamento eterno pelo curso do tempo leva ao
descrédito perante o progresso econômico e o fim da
crença ilimitada na irreversibilidade dessa evolução
humana (BOTO, 1994, p. 31). Figura 1: Philippe ArièsFonte: http://www.elortiba.org/aries.html
Ao remeter o vínculo de sua “Nova História” à busca da apreensão do inconsciente coletivo do períodopesquisado, Ariès procurará sua atmosfera mental, idéias correntes, códigos de conduta, práticas einterditos... Seja como for, no parecer do historiador francês, a “nouvelle histoire”, em seu estado atual,tem por suposto o abandono da crença na superioridade do presente e da cultura atual sobre a épocae a cultura do objeto investigado. Descobrir o passado persiste sendo, entretanto vasculhar a diferença(BOTO, 1994, p. 31).
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A compreensão também é difícil entre duas culturas distanciadas pelo tempo. Ela pode nascermediante o reconhecimento, na mentalidade estrangeira de elementos de similitude em relação ànossa, essa de hoje que é naturalmente conhecida: as permanências. Ela pode também nascer daconstatação de diferenças irredutíveis. A diferença torna-se, então, a condição da particularidade e dainteligibilidade da particularidade: ela separa essa cultura da nossa e lhe assegura uma originalidade.É assim, em princípio, pela relação perante nossa mentalidade contemporânea que uma cultura nosparece outra” (Ariès apud BOTO, 1994, p. 31-32).
Mas como essa nova história e seu novo conjunto de métodos e formas de interpretação do
passado modificam o entendimento do espaço, seja esse dividido em partes da habitação; o quarto, a
cozinha, a sala etc ou a própria casa, e aumentando a escala de observação o bairro e a cidade como um
todo?
Enquanto Certeau circunscreve sua pesquisa “nas maneiras de fazer”; morar, cozinhar até o habitar
um bairro, Lepetit (2001, p. 183) se apóia nas análises de Maurice Halbwachs para entender as “relações
dialéticas complexas entre os grupos sociais e os territórios que eles ocupam”.O espaço ratifica, desse modo, relações sociais, e num presente perfeito a sociedade é, em todas assuas dimensões, imediata a si mesma. Imobilizado nesse único momento, o processo valida todas asanálises funcionalistas, mas basta acrescentar uma segunda seqüência para que o encadeamentocasual se reverta em favor de um determinismo ecológico. A materialidade e a durabilidade dosobjetos que o grupo criou o oprimem, em contrapartida: “Ele se fecha no quadro que construiu”. Asociedade adere novamente, nessa segunda imagem, aos objetos que edificou e entre os quais seufuncionamento toma lugar, mas de acordo com uma nova temporalidade. Mas o processo não páraquando o fechamento se completa. O “desenvolvimento moderno”, diz Halbwachs, vem romper aproximidade perfeita entre as relações sociais e a organização material do espaço, que só subsistiráinalterada, a partir de então, se apartada das grandes correntes, nas pequenas cidades esquecidas dointerior ou nas periferias do mundo ocidental (LEPETIT, 2001, p. 183).
Figura 2: Michel de CerteauFonte: http://www.ihtp.cnrs.fr/publications/certeau.html
Sob essa perspectiva generalista, a “Nova
História” tem como característica principal uma
abordagem complexa da sociedade que colocam
em foco as alterações culturais e as interações
dos indivíduos entre si e com o espaço
circundante. Mas o objeto é a apropriação popular
dos “produtos” impostos pela cultura dominante
em uma espécie de “consumo” usando, aqui, a
definição de Michel de Certeau.
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Ele inverteu, aliás, o postulado usual de interpretações destas últimas. Em vez de uma supostapassividade dos consumidores, ele está convicto (e fundamenta com argumentos esta convicção) dacriatividade das pessoas ordinárias. Uma criatividade que se esconde num emaranhado de astúciassilenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si mesmo uma “maneira própria” decaminhar pela floresta dos produtos impostos (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 1996, p. 13)9.
Muitos trabalhos, geralmente notáveis, dedicam-se a estudar seja as representações seja oscomportamentos de uma sociedade. Graças ao conhecimento desses objetos sociais, parece possívele necessário balizar o uso que deles fazem os grupos ou os indivíduos. Por exemplo, a análise dasimagens difundidas pela televisão (representações) e dos tempos passados diante do aparelho(comportamento) deve ser completada pelo estudo daquilo que o consumidor cultural “fabrica” duranteessas horas e com essas imagens. O mesmo se diga no que diz respeito ao uso do espaço urbano,dos produtos comprados no supermercado ou dos relatos e legendas que o jornal distribui (CERTEU,1994, p. 39).
Essa “fabricação” é descrita pelo próprio Certeau (1994, p. 39) como uma poética que escondida,
pois não existe um espaço definido onde os “consumidores” possam marcar o que fazem com os produtos,
silenciosamente se insinua e dissemina nas regiões definidas e ocupadas pelos sistemas de “produção”
(televisiva, urbanística, comercial ou outra qualquer).A presença e a circulação de uma representação (ensinada como um código da promoção sócio-
econômica por pregadores, por educadores ou por vulgarizadores) não indicam de modo algum o queela é para os seus usuários. É ainda necessário analisar a sua manipulação pelos praticantes que nãoa fabricam. Só então é que se pode apreciar a diferença ou a semelhança entre a produção daimagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização (CERTEAU, 1994,p. 40).
Para Certeau as “maneiras de fazer” são a defesa, a contrapartida dos consumidores (ou
dominados?). Constituem em si “as mil práticas pelas quais se reapropriam do espaço organizado pelas
técnicas de produção sócio-cultural” (CERTEAU, 1994, p. 40-1).
Este é o panorama simplificado da Nova História que esta pesquisa conseguiu empreender.
O que se questiona agora é qual sua aplicação e contribuição para o estudo de da história e do
urbanismo brasileiro.
9 A invenção do cotidiano, introdução do volume 2. Texto de Luce Girard sobre a originalidade, profundidade econtemporaneidade do legado de Certeau.
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1.2. A possibilidade de uma Nova História da arquitetura brasileira
No Brasil enquanto o José Carlos Reis10 é unanimemente citado em todos os artigos que versam
sobre o rebatimento da “Nouvelle Histoire” no Brasil, a adesão enquanto organização de teoria e método
se dissemina em vários empreendimentos historiográficos. Entre os trabalhos, levantados pela pesquisa
bibliografia desta monografia, destacam-se os de José João Reis e o de Alzira Lobo de Arruda Campos,
que na descrição de métodos de seus estudos apontam claramente a afiliação aos métodos da nova
história.O historiador que hoje estuda um episódio como a Cemiterada tem a vantagem de pertencer a umtempo em que a historiografia nos permite formular, e talvez responder, questões mais complexas.Hoje já não há temas tabus para o historiador, que ajudado por outras disciplinas, como a antropologia,por exemplo, arrisca-se à investigação de aspectos muitas vezes obscuros do passado. O historiadorpassou a estudar as atitudes em relação ao gosto culinário, o amor, a religiosidade popular, as maisdiversas formas de sensibilidade física e espiritual. Os franceses chamaram essa nova história de“história das mentalidades”, outros estudiosos preferem falar da história cultura. Todos, entretanto,buscam perscrutar a alma dos antepassados. Foi assim que se chegou a uma história das atitudes doseuropeus em relação à morte. (REIS, 1991, p. 22).
Álvaro Cardoso Gomes é claro ao apresentar do trabalho de Alzira Lobo de Arruda Campos:Estudo interdisciplinar, Casamento e família serve-se de pressupostos sociológicos, antropológicos,etnográficos etc., cumprindo os princípios da “nova história”, segundo o conceito de Le Goff, que serefere ao “surgimento de ciências compósitas que unem duas ciências num substantivo e num epíteto:história sociológica, demografia histórica, antropologia histórica”. Essa visão mais abrangente dofenômeno histórico visa a tentar compreender o que foi a instituição do casamento no Brasil colônia esuas implicações, ou seja, ver como um modelo utópico, moldado de acordo com os valores dametrópole e determinada pelo Estado e pela Igreja, adaptou-se e se modificou às condições novas domundo colonizado. Como “o meio tropical promoveu o amolecimento do colonizador e suas regras”, oimportante é verificar contrates entre as determinações das elites, dos dominadores e o procedimentovelado, dissimulado dos dominados, entre as regras, as convenções, os estatutos e as contravençõesque apontam para o eterno conflito de classes e, ao mesmo tempo, dão a dimensão humana dosindivíduos submissos a um poder que, via de regra, procura ignorar essa mesma dimensão,construindo modelos utópicos de indivíduos, segundo padrões determinados pelo poder e pela moralcristã. (CAMPOS, 2003, p. 5).
Frente ao exposto resta a questão.
Qual a importância dessa re-organização metodológica para os estudos voltados para arquitetura e
urbanismo?
Nessa linha Marcelo Puppi (2005) também com base na emergência da história cultural que “já
constitui um deslocamento metodológico no conhecimento da história geral” afirma que “a história da
história da arquitetura do século XIX é um objeto revelador”.
10 Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=P64548.Conjunto de publicações acessado pelo sistema Lattes em 17/01/2006.Não confundir com José João Reis, historiador utilizado na estruturação bibliográfica desta monografia.
14
De um lado porque ela permite compreender melhor as fontes da nossa própria concepção histórica daarquitetura do período contemporâneo, concepção que foi moldada pelos primeiros historiadores domovimento moderno, os quais, como sabemos, estavam mais interessados em fabricar umagenealogia para as vanguardas do século XX que em compreender o passado. De outro lado porqueos estudos recentes sobre a arquitetura do século XIX operaram uma viravolta metodológica degrandes conseqüências para a pesquisa em história da arquitetura e cujos resultados ultrapassam odomínio da própria história para participar plenamente do debate atual sobre o destino da arquiteturano século XXI. Invertendo o processo ocorrido nas décadas de 70 e 80, quando a reabilitação dohistoricismo do século XIX foi em grande medida promovida simplesmente para fundamentar achamada arquitetura pós-moderna, a ampliação do conhecimento sobre o assunto está agora, aocontrário, contribuindo para a reflexão sobre a teoria e a prática contemporâneas da arquitetura. Longede ser simplesmente o reconhecimento de um problema já superado, o estudo da evoluçãometodológica da historiografia do século XIX é portanto uma maneira de compreendermos melhornosso próprio tempo (PUPPI, 2005).
Puppi (2005) busca em Roger Chartier a base conceitual para situar a história cultural no contexto
brasileiro. Definida então como “uma história das representações, isto é, a história da maneira como os
indivíduos e a sociedade concebem (representam) a realidade e de como essa concepção orienta suas
práticas sociais”. O método como já exposto nas acepções da nova história francesa implica na
valorização do “imaginário social como a fonte das ações individuais e coletivas, materiais e culturais” em
detrimento às abordagens tradicionais estruturadas na análise das produções materiais e culturais das
civilizações. Sendo o conceito de cultura redefinido, de maneira a extravasar os limites da chamada
cultura social e artística, para abarca as práticas populares entendidas como produto de uma determinada
representação de mundo.
Os anos 90 do século XX trazem então ao campo da pesquisa um programa de renovação
metodológica que envereda pelo território da nova história cultural:O estudo da arquitetura do século XIX atingiu um estágio no qual se opera uma virada metodológica;duas gerações de historiadores e de críticos da arquitetura reabilitaram esse século que havia sidoreduzido a uma caricatura pelas polêmicas do modernismo arquitetural. Esta reabilitação desembocouem uma representação muito mais complexa das questões teóricas e em uma redefinição formal doperíodo. Nestes últimos anos, vários pesquisadores – sobretudo os historiadores mais jovens atraídospelo século XIX – começaram a pôr uma série de questões cada vez mais interdisciplinares,procurando situar os principais temas e desafios do pensamento e da prática arquiteturais no contextodas preocupações culturais e epistemológicas mais vastas do período. Ao invés de uma época derevivalismo banal, o século XIX poderia agora ser caracterizado como um dos períodos deexperimentação mais dinâmicos da história da arquitetura, um período que explorou continuamente opróprio estatuto epistemológico da arquitetura enquanto disciplina, um período que pôs em questãosua própria autonomia procurando novas alianças ou inspirações em outras disciplinas, sejam modosde interrogação ou sistemas de classificação (L’Architecture, les Sciences et la Culture de l’Histoire auXIXe Siècle, Saint-Etienne apud PUPPI, 2005).
O conjunto desses estudos é para Puppi (2005) a constituição de “uma nova história da arquitetura
do século XIX” que além de uma re-estruturação operada no campo metodológico também redefiniu o
conhecimento produzido sobre essa história. “De período desprezado a uma das épocas mais dinâmicas,
complexas e esclarecedoras da história da arquitetura, eis em suma a fortuna crítica do século XIX”. Trata-
se da apropriação pelos arquitetos das teorias históricas contemporâneas que por sua natureza recriam o
objeto de estudo.
15
Esse novo objeto desvendou igualmente aspectos até então praticamente ignorados da teoria e daprática do período, e isso é tanto mais surpreendente que a história é uma preocupação evidente dosarquitetos no século XIX, sejam eles ecléticos ou racionalistas. Mas a história tinha sido até entãoconsiderada um refúgio formalista dos arquitetos para defender a autonomia do seu trabalho contra asameaças das transformações técnicas e sociais do presente. As novas pesquisas revelam exatamenteo contrário, isto é, que o mergulho na história visava justamente inserir a arquitetura no fluxo do tempoque conduzia ininterruptamente a humanidade para o futuro. Como participar das mudanças bruscas eaceleradas da história sem compreender o sentido desse fluxo, sem saber de onde viemos e paraonde estamos sendo levados? São essas interrogações que as teorias históricas e filosóficascontemporâneas procuravam responder, e são essas respostas que os arquitetos buscam nessasteorias que eles incorporam às suas próprias reflexões. Através da reconstituição dessas mediações,foi possível demonstrar que na teoria e na prática arquiteturais do período a visão histórica não era umfim, mas, uma vez mais, um meio essencial para, primeiro, compreender uma realidade dinâmica e,segundo, para assegurar a possibilidade da arquitetura participar ativamente desse fluxo cada vezmais dinâmico. Em suma, esse novo objeto contribuiu para revelar que o historicismo do século XIX foiuma concepção inteiramente nova e original da arquitetura, uma concepção que visava ultrapassar oslimites tradicionais da autonomia disciplinar para inseri-la plenamente no dinamismo técnico e culturalda sociedade moderna (PUPPI, 2005).
16
1.3. Vida cotidiana e espaço urbano sob a perspectiva das atitudes diante da morteno Brasil do século XIX: o início de uma pesquisa
Dentre as pesquisas brasileiras que figuram no levantamento bibliográfico desta monografia todos
de uma forma ou de outra demonstram sua filiação metodológica à nova historia cultural francesa.
Marcelo Tramontano em sua tese de doutoramento defendida em agosto de 1998 organiza
conceitualmente várias mudanças na organização da família para em seguida estabelecer seu objetivo
principal, enxergar o processo de alteração das relações espaciais no ambiente doméstico tanto quanto
nos espaços desse(s) novo(s) modelo(s) familiar(es), para em seguida “aventar critérios capazes de
contribuir para definir estratégias de intervenção”.Diante destes atores – Estado, Economia, Família, Transmissão de informações, ... – não é difícilsupor mudanças a acontecer também na Habitação, tanto quanto no Espaço Público, por exemplo.‘Quais mudanças?’, não é exatamente o que importa para os objetivos deste trabalho. Porque ele sepropõe, apenas, reconhecer este processo, enxergando-o a partir do interior do espaço doméstico, eaventar critérios capazes de contribuir para definir estratégias de intervenção. Não apresenta, comcerteza, respostas projetuais específicas e acabadas, porque considera que aos projetistas cabeprocurar estas soluções, caso a caso, a partir de suas próprias reflexões (TRAMONTANO, 1998, p. 5-6).
Renato Cymbalista entre outros objetivos consegue traçar um entendimento da expansão paulista
através do estudo do “papel dos mortos na urbanização”.Por muito tempo, não foram propriamente cidades, mas ralos arranjos humanos, cuja coesão era dadaprincipalmente pela organização religiosa, pelo tempo das missas, das procissões e dos funerais. Osvivos e os mortos, juntos e íntimos, sem qualquer estranhamento. Mais do que isso: os mortospesavam decisivamente na organização intra-urbana (CYMBALISTA, 2001, p. 26).
José João Reis estuda as atitudes diante da morte durante o século XIX. Assim as concepções
sobre o mundo dos mortos e seus ritos criavam símbolos que movimentavam devoções e negócios (REIS,
1997, p. 96).Aquele modelo de morte se baseava na maneira como as personagens do drama fúnebre sedistribuíam através do espaço e o papel que representavam a partir dos seus lugares [...]. Havia umainteração entre o teatro da vida e o teatro da morte: a casa estava perto da igreja, ambos faziam partede uma paróquia, que fazia parte de uma cidade. Vivos e mortos faziam companhia uns aos outros nosvelórios em casa, em seguida atravessavam juntos ruas familiares, os vivos enterravam os mortos emtemplos onde estes haviam sido batizados, tinham casado, confessado, assistido a missas ecometidos ações menos devotas – e onde continuariam a encontrar seus vivos cada vez que estesviessem fazer essas mesmas coisas, até o encontro final sob aquele chão e no além-túmulo (REIS,1997, p. 141).
Amanda Aparecida Pagoto (2004) apresenta o contexto que permeio a inauguração do Cemitério da
Consolação e a conseqüente proibição de nas igrejas da capital paulista. Evento que não se assemelha ao
caráter de revolta popular da Cemiterada descrita por José João Reis, mas que também enfrentou grandes
resistências documentadas por dois jornais de circulação na época, Correio Paulistano e o Publicador
Paulistano.
17
Vanessa Viviane de Castro Sial (2005) apresenta no ambiente do Recife do século XIX os caminhos
e descaminhos das recém instauradas políticas públicas sobre a morte.
Analisando as referências bibliográficas dos trabalhos ora citados encontra-se de maneira mais ou
menos similar a efetiva participação de alguns dos mais expressivos pesquisadores da nova história
francesa:
Phillipe Ariès é presença unânime seja com História da morte no ocidente ou com o conjunto O
homem diante da morte ou mesmo L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime nesse caso particular
utilizado mais especificamente por Tramontano, Campos e Homem. Seguindo esse paralelo também
notamos a ampla leitura de Michel de Vovelle; Ideologia e mentalidades e Mourir autrefois. Attitudes
collectives devant la mort aux XVIIe et XVIIIe sècles. E esporadicamente algumas referências a Fernand
Braudel, Roger Chartier, Michel de Certeau e ao inglês Peter Burke.
Mediante a essa rápida abordagem sobre a influência e possibilidade aplicação das estratégias de
produção da Nova História no estudo da arquitetura e urbanismo no Brasil propõe-se agora o início do
exercício “filtro” exposto na Introdução desta monografia.
18
2. O COTIDIANO E A SECULARIZAÇÃO DOS CEMITÉRIOS
2.1. Um exercício de investigação metodológica
O cotidiano é aquilo que nos é dado a cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia apósdia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimosao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com estafadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É umahistória a meio caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. Não se deve esquecereste “mundo memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que amamos profundamente,memória olfativa, memória de lugares da infância, memórias do corpo, dos gestos da infância, dosprazeres. Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou desta“não-história”, como diz ainda A. Dupront. O que interessa ao historiador do cotidiano é o invisível...(CERTEAU, 1996, p. 31).
Antes de iniciar o exercício proposto é preciso esclarecer que a utilização da palavra secularização,
não tem a conotação de declínio da fé ou religiosidade, mas apenas, indica a transferência de
responsabilidade e poder da autoridade religiosa para o Estado. Sem entrar em detalhes pormenorizados
da etimologia de Saeculum e Mundus comumente citados por teólogos na elucidação do conceito de
secular como um tempo presente, e melhor dizendo, o tempo do homem. Tem-se que a secularização em
sua difusão original tinha um significado restrito, designava o processo pelo qual um padre ordenado era
transferido para a administração paroquial. Gradualmente o significado do termo foi ampliado. Com a
divisão de poderes entre o papa e os impérios também a divisão entre espiritual e secular assumiu um
caráter institucional. Assim, a passagem de algumas responsabilidades da organização eclesiástica para a
autoridade política foi designada como secularização. Recentemente secularização tem sido descrita como
um processo cultural. Denota o desaparecimento da soberania da religião na determinação dos símbolos
que integram uma cultura (COX, 1990, p. 17).
Seguindo os objetivos expostos na Introdução desta monografia e mediante todo o conjunto de
análises até agora empreendido, o que se reforça aqui é o recorte da monografia proposto em forma de
um exercício de “filtro de leitura”:
1- “Filtrar” pelo viés da Nova História somente as alterações espaciais advindas das
transformações nas mentalidades e na cultura. O recorte exato é a Paris oitocentista descrita
por Ariès e seu rebatimento, apropriação e possíveis invenções no universo cotidiano do Brasil,
exposto por pesquisadores herdeiros da “Nouvelle Histoire”.
2- “Filtrar” e organizar alguns rastros metodológicos deixados por Ariès e pelos pesquisadores
brasileiros utilizados nesta monografia.
Para tanto se dividiu a abordagem em duas partes.
Em primeiro a situação européia concentrada na Paris de Ariès e em seguida algumas reflexões
desse processo no Brasil.
19
2.2. Ariès, seus caminhos e a espacialização das atitudes diante da morte
Ariès foi um pesquisador transparente na exposição de seus critérios. Para apresentá-los aqui não
foi preciso muito trabalho. Ele mesmo resumiu o seu caminho, suas fontes e seus questionamentos:Disse, na Introdução de Essais sur l’histoire de la mort, como fui levado progressivamente a escolher
e a estabelecer (sem a pretensão de esgotá-los) certos conjuntos documentários: literários, litúrgicos,testamentários, epigráficos e iconográficos... Mas não os explorei separadamente e sucessivamente –pronto a fazer, em seguida um balanço geral – ,e sim interroguei-os simultaneamente, segundo umquestionário que as primeiras sondagens me tinham sugerido: a hipótese, já proposta por Edgar Morin,era de que existia uma relação entre a atitude diante da morte e a consciência de si mesmo, de seugrau de ser, mais simplesmente, de sua individualidade. Foi essa linha que me dirigiu através damassa compacta e ainda enigmática dos documentos: ela traçou o itinerário que segui até o fim. Foiem função das questões estabelecidas que os dados armazenados nos conjuntos tomaram forma esentido, continuidade e lógica. Esse constituiu o critério que permitiu decifrar dados de outro modoininteligíveis ou isolados, sem relação entre si (ARIÈS, 1982, p. 657)11.
Na introdução do volume três da História da vida privada, Ariès dá mais pistas, agora sobre sua
maneira de abordagem histórica:Consistiria em modificar a periodização clássica e estabelecer como princípio que, de meados daIdade Média ao final do século XVII, não houve mudança real das mentalidades profundas. Não hesiteiem adotá-la em minhas pesquisas sobre a morte. Isso equivaleria dizer que a periodização da históriapolítica, social, econômica, e até cultural, não conviria à história das mentalidades. Todavia, há tantasmudanças na vida material e espiritual, nas relações com o Estado, depois com a família, quedevemos abordar o período moderno como uma época à parte, autônoma e original, não esquecendoo que deve a uma Idade Média remanejada e tendo em mente que anuncia a época contemporânea,sem no entanto ser a simples continuação de uma nem o esboço de outra (ARIÈS, 1991, p. 8).
E finalizando esta breve apresentação dos métodos de Ariès, é importante destacar os fatores que
no seu entendimento “vão modificar as mentalidades, em especial a idéia do indivíduo e de seu papel na
vida cotidiana da sociedade” (ARIÈS, 1991, p.9-10):
1- O Estado e seu novo papel. A partir do século XV e com freqüência cada vez maior ao longo do
XVIII ocupou o espaço social antes entregue às comunidades.
2- O desenvolvimento da alfabetização, da difusão da leitura e da impressa.
3- As formas novas de religião que se estabelecem nos século XVI e XVII
Esse é um resumo da estrutura metodológica e formas de abordagens de Ariès.
O que o trabalho propõe também, já que se trata de uma disciplina de Arquitetura e Urbanismo, é
buscar o rebatimento espacial dessa forma de investigação historiográfica nos livros: História da morte no
Ocidente e O homem diante da morte.
11 Uma descrição ainda mais detalhada dos critérios de Ariès pode ser encontrada em Ariès (2003, p. 13-23).
20
2.2.1. SÉCULO XIX – CEMITÉRIO NA TOPOGRAFIA
O século XIX reabilita a presença do cemitério na topografia. Imbricados ou não nas malhas urbanas
das cidades ocidentais, são reflexos de alterações culturais centenárias que remetem diretamente às
formas como cada contemporâneo se enxerga, e imprime “as suas maneiras de fazer” no universo
circundante.Ora, a partir do início do século XIX, o cemitério volta à topografia. Uma vista panorâmica das cidadese mesmo dos campos deixa hoje ver nas malhas dos tecidos urbanos manchas vazias, mais ou menosverdes, imensas necrópoles das grandes cidades, pequenos cemitério das aldeias, por vezes em tornoda igreja, muitas vezes fora da aglomeração. Sem dúvida, o cemitério de hoje não é mais a reproduçãosubterrânea do mundo dos vivos que era na Antiguidade, mas sentimos bem que ele tem um sentido.A paisagem medieval e moderna organizou-se em torno dos campanários. A paisagem urbanizada doséculo XIX e do início do século XX tentou dar ao cemitério ou aos monumentos funerários o papelpreenchido anteriormente pelo campanário. O Cemitério foi (e é ainda?) o sinal de uma cultura (ARIÈS,1982, p. 519).
Ao analisar essa situação apenas pela
perspectiva oitocentista é fácil atribuir
essa cristalização da necrópole
espalhada em grandes ou pequenos
quistos nas tramas urbanas como uma
conseqüência do processo de
secularização. Mas Ariès (1977, 1982,
2003) também credita esse fenômeno a
um processo paralelo que ele chama de
“a morte que se tornou selvagem”. É a
“morte domada12”, sua designação para a
morte aceita e ritualizada da Idade Média,
que se transforma no rastro do câmbio
das mentalidades dos séculos XVII, XVIII
e adentra o século XIX, permeada por um
conjunto de novos valores que dão ao
espaço destinado aos mortos,
características até então inéditas.
Figura 3: Cemitério Père-Lachaise – ParisConstruído em 1803
Constitui o resultado final, no início do século XIX, das reflexões e dosprojetos que se sucederam durante a segunda metade do século XVIII.
Fonte:http://francois.schreuer.org/photos/20041119_paris.html?id_document=52
12 “A atitude antiga em que a morte é ao mesmo tempo próxima, familiar e diminuída, insensibilizada, opõe-sedemasiado à nossa onde faz tanto medo que já não ousamos pronunciar o seu nome. É por isso que, quandochamamos a esta morte familiar a morte domada, não entendemos por isso que antigamente era selvagem e que foiem seguida domesticada. Queremos dizer, pelo contrário, que hoje se tornou selvagem quando outrora o não era. Amorte mais antiga era domada” (ARIÈS, 1977, p. 40).
21
Figura 4: Cemitério Père-Lachaise – ParisFonte: http://francois.schreuer.org/photos/20041119_paris.html?id_document=53
Figura 5: Cemitério Père-Lachaise – ParisFonte:
http://francois.schreuer.org/photos/20041119_paris.html?id_document=50
Figura 6: Cemitério Père-Lachaise – ParisFonte: http://francois.schreuer.org/photos/20041119_paris.html?id_document=51 Figura 7: Mount Auburn Cemetery MA –USA
Construído em 1832Fonte: http://gallery.prwdot.org/
Figura 8: Mount Auburn Cemetery MA –USAFonte: http://gallery.prwdot.org/
Figura 9: Mount Auburn Cemetery MA –USAFonte: http://gallery.prwdot.org/
22
Nesse sentido Ariès (2003, p. 41) observa que para a mentalidade da Antigüidade (único paralelo
possível ao cemitério na topografia do século XIX) “a construção funerária - tumulus, sepulcrum,
monumentum, ou simplesmente loculus - contava mais do que o espaço que ocupava, que era
semanticamente menos rico”. A civilização Antiga honrava o túmulo e não o cemitério. “Para a mentalidade
medieval, pelo contrário, o espaço fechado que abriga as sepulturas conta mais do que o túmulo”.
Figura 10: Via ApiaFonte: http://www.artifexbalear.org/img/romano1c.jpg
Figura 11: Via ApiaFonte: http://www.hotelcorallo-roma.com/roma/Appia_big.jpg
Com esse paralelo é possível vislumbrar como a cultura do século XIX europeu assimila a
transferência da reverência ao túmulo do mundo Antigo, para o espaço total do cemitério. O crédito é
dado, pelo menos em parte, à influência do pensamento positivista que remete ao cemitério um culto
cívico. Esse movimento de cunho nacionalista será iniciado pelos discípulos de Comte em torno do
polêmico projeto de Méry13. Um dos resultados é ao menos inusitado, a união de interesses católicos
essencialmente divergentes em uma mesma frente de combate (ARIÈS, 1982, p. 586-594).
Desde 1869, um deles, o Dr. Robinet, respondia a Haussmann num livro com título significativo:Paris sans cimetière. Então, “Paris já não seria uma cidade e a França estaria decapitada”. “Não hácidades sem cemitério”. Em 1874, Pierre Laffitte, “diretor do positivismo”, publicava suasConsidérations générales à propôs des cimetíères de Paris, onde afirmava que o cemitério “constituiuma das instituições fundamentais de todo o tipo de sociedade”. (ARIÉS, 1982, p. 589).
É preciso, portanto, incorporar o fetichismo ao positivismo. Este “sanciona a grande inspiração quefez do túmulo não apenas uma instituição pessoal e de família, mas também uma instituição socialpela fundação do cemitério que lhe dá um caráter coletivo. Então, o culto dos mortos adquire caráterpúblico, o que lhe aumenta imensamente a utilidade, porque o túmulo devolve o sentimento decontinuidade na família, e o cemitério o sentimento de continuidade na cidade e na humanidade”(ARIÉS, 1982, p. 590).
13 Méry-sur-Oise, projeto de Haussmann para afastar todos os cemitérios fora da malha urbana de Paris (ARIÉS,1982, p. 587).
23
Mas é necessário ressaltar também a interferência do poder público que através do decreto de 23
prairal ano XII (12 de junho de 1804) confirma definitivamente a interdição de se enterrar nas igrejas e vai
mais longe, determina a condição de que os corpos não mais sejam sobrepostos, mas sempre
justapostos. É definitivamente uma mudança de hábito. Mesmo os pobres, grande massa usuária das
valas comuns foram agraciados com a legislação que determina o tamanho, profundidade, prazos e regras
de utilização para as novas sepulturas. O resultado espacial é o crescimento da dimensão dos cemitérios,
que partir de então se espalham e ocupam grandes superfícies. Os cemitérios tornam-se assim um
elemento da paisagem urbana do século XIX (ARIÈS, 1982, p. 561-2).
O paisagismo, nesse momento aceito e recomendado, transforma o aspecto desses cemitérios que
adquirem o status de “parques” a serem visitados pelos familiares. O cemitério público no século XIX
tornou-se uma “instituição cultural”14. Ariès (1982, p. 561-578) dedica nada menos que 17 páginas, se
alternando entre poesia, literatura e algumas estatística para fundamentar, no ambiente francês, a
ascensão do romantismo na valorização do indivíduo na morte oitocentista.
O que Ariès não enfatiza é a possível influência da nuclearização da família no processo de
crescimento espacial do cemitério. Já que o modelo familiar burguês atribuiu um novo valor e um conjunto
de novos papéis a cada um de seus membros, é bem provável que cada perda fosse então sentida com
mais intensidade. Assim a visita ao cemitério e a qualidade de fruição desse espaço precisariam de
características especiais15.
No entanto, ao abordar o testemunho testamentário, desde 1660 até a primeira metade dos “1800”,
Ariès observa uma progressiva transformação nas preocupações post-mortem. Inicialmente
eminentemente religiosas comprometiam mais as fábricas16 do que os membros da família no
compromisso de realização dos rituais e serviços religiosos para salvação de sua alma. Essa preocupação
praticamente desaparece na transição do século XVIII para o XIX e os testamentos passam apenas a
assegurar a transmissão dos bens legados à família; cônjuge e filhos. Os testadores então renunciam a
tomar decisões para os próprios funerais e os confiam de melhor grado, aos seus executores numa
demonstração de confiança afetuosa (ARÈS, 1982, p. 353-5).Não se deve esquecer das grandes transformações da família que resultaram, no século XVIII, emnovas relações fundadas no sentimento de afeição. A partir de então, o “enfermo que jaz no leito”testemunhava ao que lhe eram próximos, uma confiança que lhes havia recusado até o fim do séculoXVII! Já não era mais necessário uni-los por um ato jurídico.Ei-nos, portanto, em um momento muito importante da história das atitudes diante da morte. Confiandonos que lhe eram próximos, o moribundo delegava-lhes parte dos poderes que havia ciosamenteexercido até então. Naturalmente, conservava ainda a iniciativa da cerimônia de sua morte. Nasnarrativas românticas, continuou sendo o principal personagem aparente de uma ação que presidia, eassim será até à primeira terça parte do século XX (ARIÈS, 2003, p. 70-1).
14 Designação do historiado americano S. French (ARÈS, 1982, p. 570).15 Note aqui que estou falando de fruição do espaço e não da monumentalidade das sepulturas. As característicasmonumentais dos túmulos advindas do culto dos mortos no século XIX são amplamente abordadas por Ariès.16 Fábrica: conselho constituído de clérigos e leigos para administrar os bens de uma paróquia (ARIÈS, 2003, p. 18).
24
É o que Ariès (2003, p.64) chama de “a morte romântica, retórica e antes de tudo a morte do outro –
outro cuja saudade e lembrança inspiram, nos séculos XIX e XX o novo culto dos túmulos e dos
cemitérios”. Este é o cenário do século XIX, a morte privada é cultuada no cemitério, entendido aqui com
espaço público e em constante simbiose com um ambiente maior, a própria cidade.
Mas seus antecedentes são muito mais importantes para o entendimento da espacialização da
morte no Brasil, que acontece de modo vigoroso a partir da separação do cemitério e do edifício igreja.
No entanto, antes de apreciar essa situação é preciso entender o contexto europeu e mais
especificamente o higienismo parisiense do século XVIII.
Figura 12: Mount Auburn Cemetery MA –USAFonte: http://gallery.prwdot.org/
25
2.2.2. IGREJAS PARA O CULTO E CEMITÉRIOS PARA OS MORTOS
Pensa-se, e mesmo sente-se, que a sociedade é composta ao mesmo tempo de mortos e vivos, e queos mortos são tão significativos e necessários quanto os vivos. A cidade dos mortos é o inverso dasociedade dos vivos ou, mais que o inverso, sua imagem, e sua imagem intemporal. Pois todos osmortos passaram pelo momento da mudança, e seus monumentos são signos visíveis da perenidadeda cidade. Assim, o cemitério retomou um lugar na cidade, lugar ao mesmo tempo físico e moral, quehavia perdido no início da Idade Média, mas que havia ocupado durante a Antigüidade (ARIÈS, 2003,p. 77).
Será o século XVIII o grande aglutinador das forças que efetivamente irão propiciar a separação
entre as diversas partes que efetivamente constituem o edifício religioso chamado igreja. “O caráter
insalubre dos cemitérios já era, portanto, conhecido. Os tratados de polícia – por exemplo, a Grande et
Nécessaire Police, de 1619 – davam conselhos para evitá-los”. Contudo tratam-se de preocupações
extraordinárias, reservadas para épocas de epidemias e não a afirmação do desejo de mudar a ordem
antiga das coisas (ARIÈS, 1982, p. 522).Vimos que o regime da sepultura não mudou desde o tempo em que se enterrava na igreja ou a seulado, desde que os corpos começaram a ser depositados em caixões de madeira ou sem caixão (naserapilheira), no lugar dos sarcófagos de pedra. Disso decorria um remanejamento constante decadáveres, de carnes e de ossadas nas igrejas de chão desigual e disjunto, e nos cemitérios. Ohomem de hoje compreende imediatamente quantos odores, emanações e insalubridades essasmanipulações deveriam acarretar. Sim, o homem de hoje. É forçoso reconhecer que o homem deoutrora acomodou-se perfeitamente à situação (ARIÈS, 1982, p. 519).
Em 1737, o Parlamento de Paris em uma primeira providência oficial, decreta a instalação de um
inquérito sobre os cemitérios. O parecer médico atesta a necessidade de mais “cuidado nas sepulturas e
mais decência na manutenção dos cemitérios”. Em 1745, o abade Porée, denuncia uma situação que
começa a ser julgada desagradável. É importante frisar suas “Lettres sur la sépulture dans le églises” por
se tratar de uma manifestação interna ao corpo eclesiástico. “A limpeza adquire o valor que ela terá no
século XIX”. A igrejas deveriam ser salubres, “limpas, bem arejadas, onde não se sinta senão o cheiro do
incenso queimado [...], onde não se corra o risco de quebrar o pescoço por causa da irregularidade do
chão”, exaustivamente remexido por coveiros. (ARIÈS, 1982, p. 522-3).
A década de 60 foi decisiva, desenvolveu-se verdadeira campanha de opinião com petições dos
vizinhos dos cemitérios, memoriais, livros impressos que descriam o estado de espírito então reinante. A
crença nos miasmas criou verdadeiros mitos a cerca do ar infectado. Não faltam histórias de coveiros que
desfaleciam ao manipular cadáveres e padres e beatas, mortos instantaneamente graça a covas abertas
no momento das orações. Por parte dos vizinhos, os testemunhos inclusive em processos civis dão conta
das ações perniciosas sobre metais como o aço e a prata e do apodrecimento de alimentos dentro dos
guarda-comidas; carne, sopa, cerveja e vinho eram atacados pelos “maus humores”. No entanto, os
pareceres médicos são mais consistentes, já que descrevia o estado de espírito reinante, o que se
desejava, o que se temia e o que se sugeria (ARIÈS, 1982, p. 523-6).
26
Figura 13: Galerias do Cemitério dos Inocentes – “charnier”Fonte: http://grande-boucherie.chez-alice.fr/Innocents.htm
Mediante a ampla constatação da insalubridade dos cemitérios e da fragilidade das medidas
clássicas para difusão dos miasmas; fogo, ar corrente e tiros de canhão, têm-se a ação secular já baseada
na extensa avaliação do inquérito sobre os cemitérios de Paris. O resultado jurídico dessa minuciosa
descrição da Paris fúnebre em meados do século XVIII é o radicalismo do decreto parlamentar de 12 de
março de 1763. Essencialmente esse decreto esboça um plano de fechar os cemitérios existentes e criar
fora e em torno de Paris, oito grandes cemitérios. Na cidade propriamente dita, subsistiriam apenas
depósitos perto das Igrejas, onde os corpos seriam colocados depois do serviço religioso de onde depois
seriam levados por carretas fúnebres para o cemitério comum. (ARIÉS, 1982, p. 527-529).Com essa concepção, o serviço na igreja, de corpo presente, constituiria a única e última cerimôniareligiosa pública. Na verdade, se os parlamentares tinham permitido que o padre acompanhasse ocortejo, tratava-se mais, a seus olhos, de vigiar os transportadores e os coveiros, do que cumprir umdever religioso. (ARIÉS, 1982, p. 528).
Figura 14: Cemitério dos Inocentes - ParisFonte: http://grande-boucherie.chez-alice.fr/Innocents.htm
27
As reservas em relação ao decreto vieram
justamente do clero e das fábricas das igrejas que
foram atingidos em seus interesses financeiros,
visto que as sepulturas representavam uma parte
importante de seus recursos. (ARIÉS, 1982, p.
530).
Os padres parisienses não têm papasna língua. Não estão de modo algumimpressionados pelo aparelhocientífico dos parlamentares redatoresdo decreto: são futilidades;contrariamente à opinião comum – eentão era preciso audácia para afirmá-lo tão decididamente -, não admitemque a vizinhança dos cemitérios sejainsalubre. (ARIÉS, 1982, p. 531).
Figura 15: Implantação - Cemitério dos InocentesFonte: http://grande-boucherie.chez-alice.fr/Innocents.htm
Figura 16: Implantação - Cemitério dos InocentesFonte: http://grande-boucherie.chez-alice.fr/Innocents.htm
28
A campanha para afastamento dos cemitérios persiste, embora o decreto de Paris não tenha sido
aplicado. O processo de secularização dos cemitérios caminhava por etapas sendo a maior delas o
fechamento do cemitério dos Inocentes em 1780. Vários projetos, acompanhados de extensos manuais
sonhavam o cemitério do final do século XVIII. Ariés (1982, p. 547) os analisa como um mapa da
sociedade global, hierarquizada em família real, eclesiásticos seguidos de duas ou três categorias de
distinção conforme o nascimento, ilustração, e praticamente a riqueza, já que os lugares estão à venda, e
enfim os pobres. Essa situação é abruptamente perturbada pela Revolução, que destitui o poder do clero,
mas não tem tempo de re-organizar as práticas funerárias. Será somente em 12 de junho de 1804,
mediante o decreto de 23 prairial do ano XII, que acorrerá uma regulamentação efetiva dos cemitérios e
funerais.
É importante enfatizar aqui a situação sui generis da Primeira República que passa por um processo
agressivo de secularização. A França, abalada pelo choque institucional da Revolução Francesa (1789-
1799), adentra os “1800”, regida por um novo regime autocrático representado então pela figura de
Napoleão17.
A Igreja católica que possuía privilégios que faziam dela um Estado dentro do Estado, perde a
autoridade que a estrutura do Antigo Regime mantinha sob sua jurisdição; o registro de nascimento,
casamento e morte; a tributação sobre produtos agrícolas; a censura de livros considerados perigosos à
religião e à moral; a administração de escolas e a distribuição de esmolas aos pobres. Napoleão em uma
manobra política conciliadora cria através da Concordata de 1801, uma situação de retomada de
equilíbrio, onde o catolicismo é reconhecido como religião da grande maioria dos franceses, e não como
religião oficial do Estado. Essa medida obtém aprovação da grande massa do povo francês e tranqüiliza
os camponeses e burgueses que haviam comprado as terras confiscadas da Igreja. (PERRY, 1999, p.
339-340).
Esse é o ambiente imediatamente anterior à expansão das necrópoles do século XIX. Mas esse
panorama também não esclarece totalmente o conjunto “maneiras de fazer”, plasmadas na arquitetura das
igrejas e cemitérios. Para se entender o peso da separação entre igrejas e cemitérios no Brasil é preciso
buscar a união medieval desses espaços.
Figura 17: Vista - Cemitério dos Inocentes – Século XVIIFonte: www.la-fontaine-ch-thierry.net/
17 Dados sobre a Revolução Francesa, Consulado e expansão napoleônica foram obtidos em Perry, M. CivilizaçãoOcidental: uma história concisa. Para mais detalhes vide as Referências.
29
2.2.3. NAVE, CAMPANÁRIO E CEMITÉRIO – TRÊS CORPOS EM UM
“Na Idade Média, os mortos eram confiados,
ou antes abandonados à Igreja, e pouco
importava o lugar exato de sua sepultura, que
na maior parte das vezes, não era indicada
nem por um monumento nem mesmo por
uma simples inscrição” (ARIÈS, 2003, p. 73).
A palavra cimeterium que o latim dos
clérigos emprestou do grego erudito
confundia-se então com a designação de
ecclesia. “Du Cange chama cimeterium a
‘uma igreja onde os corpos dos defuntos são
inumados’" (ARIÈS, 1977, p. 67).Figura 18: Churchyard Irlandês (NORMAN, 2005, p.101)
No contexto medieval, a palavra igreja não designava apenas seu edifício, mas todo o espaço a ela
adjacente.A função cemiterial começava no interior da igreja, dentro dos seus muros, e continuava para alémdela, no espaço que constituía os passus ecclesiastici, in circuitu ecclesiae. A palavra “igreja” nãodesignava portanto apenas o edifício, mas também esse espaço todo. Assim, os costumes de Hainautdefinem “as igrejas paroquiais”, “a saber a nave, o campanário e cemitério”. O cemitério propriamentedito, em sentido restrito, era portanto simplesmente o pátio da igreja: atrium id est cimiterium(comentários do decreto de Graciano). “Galerias” e “carneiros” são as palavras mais velhas quedesignam cemitério na língua falada. (ARIÈS, 1977, p. 67).
Para complementar a sustentação desta afirmação Ariès (1977, p. 68) lança mão de um instrumento
de pesquisa comum aos historiadores da Nova História o suporte literário. “Turpin pressiona Rolando para
que toque a trompa a fim de que o rei e o seu exército os venham vingar, chorar e ‘enterrar... em
galerias18 de mosteiros’”.
A palavra “cemitério” foi definitivamente incorporada ao vocabulário francês a partir do século XVII,
mas permaneceu churchyard, kirchhof, kerkhof, em inglês, alemão e neerlandês, respectivamente.
(ARIÈS, 1977, p. 68).
18 Texto traduzido pela editora portuguesa não esclarece totalmente o leitor brasileiro. A tradução de uma explicaçãosimilar em História da morte no Ocidente é mais clara. “Originalmente, charnier era sinônimo de aître. No fim daIdade Média, charnier designou apenas uma parte do cemitério, ou seja, as galerias que se alinhavam ao longo dopátio da igreja e que eram recobertas de ossários” (ARIÈS, 2003, p. 41, grifo nosso).
30
As formas de apropriação dos espaços vinculados à morte aqui apresentados têm seu rebatimento
direto na vida cotidiana e na assimilação que as pessoas, mesmo socialmente estratificadas em classes
diferentes faziam da cultura da morte; crenças, mitos e ritos.
Os Antigos apesar de sua familiaridade com a morte, temiam a sua vizinhança e por isso
enterravam os seus fora dos domínios urbanos, ao longo das estradas. “Honravam as sepulturas, em parte
porque temiam o regresso de seus mortos, e o culto que consagravam aos túmulos e aos manes tinha por
objetivo impedir os defuntos de ‘voltarem’ para perturbar os vivos”. A morada de uns devia estar separada
do domínio dos outros. “Era uma regra absoluta. A lei das Doze Tábuas prescrevia-a: ‘Que nenhum morto
seja inumado nem incinerado no interior da cidade’. É retomado o código de Teodósio, que ordena que se
levem para fora de Constantinopla todos os despojos funerários”. (ARIÈS, 1977, p. 41).É esta razão porque os cemitérios da Antiguidade eram sempre fora das cidades, ao longo dasestradas, como a Via Appia, em Roma: túmulos de famílias construídos em domínios privados, oucemitérios coletivos, possuídos e geridos por associações que talvez tenham fornecido aos primeiroscristãos o modelo legal das duas comunidades.Os cristãos seguiram no início, os costumes de seu tempo e partilharam as opiniões correntes arespeitos dos mortos. Foram enterrados primeiramente nas mesmas necrópoles que os pagãos,depois ao lado dos pagãos em cemitérios separados, sempre fora da cidade (ARIÈS, 1977, p. 42).
Mas o cristianismo em ascensão ao fim da hegemonia do Império Romano é paulatinamente
mitificado pelo culto dos mártires. “Esta associação começou nos cemitérios extra-urbanos, onde foram
colocados os primeiros mártires. Com base na crença do santo, foi construída uma basílica, cujas funções
eram exercidas por monges, e em torno da qual os cristãos queriam ser enterrados”. As cidades romanas
da África e da Espanha conservam o que o extenso crescimento urbano de outros locais apagou, “o
acúmulo de sarcófagos de pedra em várias camadas, contornando particularmente as paredes do altar-
mor [...]. Esta aglomeração testemunha a força do desejo de ser enterrado perto dos santos, ad santos”
(ARIÈS, 2003, p. 38).
A primeira leitura da mentalidade por trás desse novo costume é o medo da profanação da
sepultura. “Embora os autores eclesiásticos mais esclarecidos não deixassem de repetir que o poder de
Deus era tão capaz de reconstituir os corpos destruídos como criá-los, não conseguiram nos primeiros
séculos persuadir a opinião popular” que pautada por sentimento de unidade não distinguia a alma do
corpo, nem o corpo glorioso do corpo carnal. No entanto, é a proteção do mártir que desejavam evocar,
“não apenas o corpo mortal do defunto, mas também a todo o seu ser, para o dia do despertar e do juízo”
(ARIÈS, 1977, 44-5).Chegou um momento em que a distinção entre o subúrbio onde se enterrava desde os temposimemoriais, e a cidade, sempre interdita às sepulturas, desapareceu. O desenvolvimento de bairrosnovos em reder da basílica cemiterial testemunhava já uma grande mudança: os mortos, primeirosocupantes, não tinham impedido os vivos de se instalarem a seu lado. Observa-se portanto aqui, nosinícios, o enfraquecimento da repulsa que os mortos inspiravam na Antiguidade. A penetração dosmortos no interior dos muros, no coração das cidades, significa o abandono completo do antigointerdito e a sua substituição por uma atitude nova de indiferença ou de familiaridade. Os mortos, apartir de então e durante muito tempo, deixaram totalmente de meter medo (ARIÈS, 1977, p. 49).
31
Também é necessário ressaltar a ampliação do destino funerário da igreja cemiterial para a igreja
catedral. Os mortos então já misturados aos habitantes dos bairros pobres passam também a coabitar o
coração histórico das cidades. Assim todas as igrejas passam a receber sepulturas em seus muros. “A
relação osmótica entre igreja e o cemitério está definitivamente estabelecida” (ARIÈS, 1977, p. 50).
“A reunião dos corpos cristãos em redor das relíquias dos santos e das igrejas construídas sobre
estas relíquias tornara-se um traço específico da civilização cristã”. O período cronológico dessa mudança
é difícil de ser determinado, mas acredita-se que no século VIII já se enterrava dentro da igreja e em seu
redor (ARIÈS, 1977, 51-4).Um autor do século XVI reconhece que “os cemitérios não são simples sepulturas e reservatórios decorpos mortos, mas antes são lugares santos ou sagrados, destinados às orações pelas almas dosfalecidos que ai repousam”: lugares santos e sagrados, públicos e freqüentados, e não impuros esolitários. A oposição antiga do morto e do sagrado apagara-se portanto menos do que se alterara: ocorpo morto de um cristão criava só para si um espaço se não perfeitamente sagrado, pelo menos [...]religioso (ARIÈS, 1977, p. 55).
Figura 19: S. Zeno, Verona – Cripta(NORMAN, 2005, p.124)
O cemitério na condição de grêmio da igreja, ecclesia
gremiuns, prepara os mortos para vida eterna e como
uma espécie de batismo ao avesso, o faz nascer para o
mundo. O imaginário popular, nesse momento da história
teme a sepultura solitária. Os excomungados e os
malditos são abandonados nos campos ou simplesmente
tapados com blocos de pedras para não incomodar a
vizinhança. A sepultura ad santo precisava ser
conquistada em vida, caso isso não acontecesse, a
família substituiria o morto, na longa operação que tinha
por objetivo reparar os seus erros e “reconciliá-lo”,
somente depois dessa reparação, o caixão poderia então
descansar em solo santo (ARIÈS, 1977, p. 56-9).
É uma situação peculiar que denuncia uma fissura entre direito e prática, já que os concílios
repetiam monotonamente: “que nenhum morto seja enterrado dentro da igreja”. Mas as proibições dos
concílios eram cheias de exceções: “salvo os bispos e os abades, os padres, os fideles laici, com
permissão do bispo e do cura ou rector”. O concílio de Mayance em 813, não específica quem são esses
fiéis, mas os túmulos evidenciam; senhores das cidades e patronos das igrejas. O concílio de Ruão, 1581,
divide os fiéis com direito a sepultura eclesiástica em três categorias: os consagrados a Deus, aqueles que
receberam honra e dignidade na Igreja e aqueles que pela nobreza, ações e méritos se distinguiam ao
serviço de Deus e da coisa pública. O Concílio de Reims em 1683, faz um eco semelhante. “Parece que
os enterros dentro das igrejas foram contemporâneos dos textos que os proibiam: as proibições canônicas
não impediriam a sua durável extensão a toda a cristandade ocidental” (ARIÈS, 1977, p. 60-3).
32
Até o fim do século XVIII, nunca se deixou de enterrar em igrejas. No século XVII, estavampavimentadas com túmulos, o solo era formado por lajes tumulares [...]. Em Harlem, Saint-Bavonconservou intacto o seu lajeamento do século XVII, que é inteiramente formado por pedras tumulares.O espetáculo é interessante, porque nos mostra o que desapareceu ou foi alterado algures: toda asuperfície da igreja é um cemitério compartimentado: os fiéis caminham sempre sobre os túmulos(ARIÈS, 1977, p. 63).
Mas a temporalia, lugar seguro e honroso para a
sepultura dentro da igreja, poderia ser comprada. De
acordo com o direito canônico, o enterro e os
sacramentos não podiam ser vendidos, mas, alguns locais
específicos e pompas funerárias poderiam ser obtidos
mediante doações. Não é justo, no entanto, acusar
somente a autoridade eclesiástica por tal prática já que
não se obrigava o enterro dentro da Igreja e as sepulturas
no átrio eram gratuitas. Seriam também os ricos que
queriam alcançar uma especial distinção se fazendo
enterrar dentro das igrejas. Assim o sagrado e o profano
se misturam e convivem pacificamente num cotidiano
onde os limite de um e de outro haviam já se dissolvido.
“A fronteira mental entre o sagrado e o profano
permaneceu bastante imprecisa até às reformas dos
séculos XVI e XVII: o profano era invadido de
sobrenatural e o sagrado penetrado de naturalismo”
(ARIÈS, 1970, p. 65-6).
Figura 20: Abadia de Augustine’s(NORMAN, 2005, p.120)
Figura 21: Canterbury Cathedral – Cripta – Século XII(NORMAN, 2005, p.124)
33
2.3. Pelos caminhos de Ariès, o rebatimento brasileiroAriès é a referência comum a todas as pesquisas brasileiras19 utilizadas na elaboração desta
monografia. Além de um expressivo representante da Nouvelle Histoire, talvez seja a qualidade, amplitude
e a clareza de seu trabalho a razão de tamanha difusão. É claro que os diversos pesquisadores estudados
têm objetivos e critérios de trabalho próprios, mas nenhum esconde a importância da contribuição desse
autor.
De maneira resumida apresenta-se aqui um pouco da observação dos métodos e fontes dos
pesquisadores brasileiros que contribuíram para algumas reflexões contidas nesta etapa do trabalho.
José João Reis:
O autor não menciona suas fontes entrelaçadas com seus processos de pesquisa na introdução de
seu livro20, mas é fácil perceber o amplo emprego de documentos, advindos de pesquisa nos arquivos
públicos do Estado da Bahia e nos arquivos das diversas ordens e irmandades baianas que tomaram parte
do evento, conhecido como a Cemiterada, revolta popular contra a proibição dos enterros nas igrejas.
Utiliza fotos, mapas, atas, testamentos, jornais, recibos enfim todo um conjunto de documentos, que com
certeza são fruto de uma cuidadosa investigação de campo.
Estabelece na introdução de seu livro, A morte é uma festa, o roteiro seguido pela pesquisa.
Apresentação da Bahia, com especial atenção à elucidação de sua geografia, física, econômica, política e
humana dentro do contexto da Cemiterada. Em seguida discute os trabalhos sobre a história da morte
feitos na Europa, realçando os aspectos que interessam à compreensão do que se passou na Bahia em
1836. Aponta as estratégias do bem morrer baiano. Sinaliza para as primeiras pressões por mudanças,
discute a “Lei do Cemitério” e os interesses envolvidos. Apresenta o quadro social dos costumes fúnebres
baianos. E no final as conseqüências da revolta e um balanço geral dos acontecimentos.
Renato Cymbalista:
Arquiteto formado pela FAU-USP. Defendeu em 2001, dissertação de mestrado também na FAU--
USP, intitulada A cidade dos vivos: arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios paulistas. Seu
trabalho que tem como objetivo a análise do espaço urbano a partir da instauração dos cemitérios públicos
em várias cidades do interior de São Paulo. “Recupera a história do fim dos sepultamentos nas igrejas no
século XIX”. “O ponto de partida é o patamar cultural que orientou as relações entre vivos e os mortos
durante os três primeiros séculos da colonização portuguesa no Brasil”. Uma morte que segundo
Cymbalista, se aproxima da “morte domada” de Ariès. Declina suas fontes já na introdução; “cartas régias,
relatórios de políticos, regulação urbanística, notícias de jornais, bibliografia crítica” (CYMBALISTA, 2001,
p. 7-15).
19 Livros e teses. Nem todos os artigos utilizados têm Ariès como referência bibliográfica, no entanto, são textosmais ou menos sucintos que tratam de questões específicas da organização e difusão do pensamento que estrutura aNova História.20 Explicadas na introdução e alinhavadas aos procedimentos de pesquisa. Reis e todos os outros pesquisadoresestudados apresentam suas fontes pelo menos nas Referências.
34
Amanda Aparecida Pagoto:
O livro publicado pela Impressa Oficial em 2004, advém de uma dissertação defendida em 2002 no
Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Analisa as transformações fúnebres em São Paulo, destacando algumas das principais características que
marcaram a passagem do sepultamento do âmbito sagrado da igreja para o cemitério público. Segundo
Pagoto (2004, p. 13) “passagem heterogênea e descontinua, capaz de fornecer diversas pistas sobre o
cotidiano paulistano, numa época em que São Paulo ainda não havia se desvencilhado de seus ares
coloniais, nem adquirido os traços da cidade industrial florescente nas décadas posteriores à República”.
A autora faz ao longo da introdução de seu trabalho uma ampla descrição de suas fontes. Primeiro
apresenta os resultados de sua pesquisa na Biblioteca do Arquivo Municipal de São Paulo e na Biblioteca
da Cúria Metropolitana. Depois, descreve a situação e a qualidade do material coletado. Apresenta a
importância das polêmicas publicações de dois jornais da época, Correio Paulistano e O Publicador
Paulistano. Também faz uso de Ofícios do Arquivo do Estado que contêm atas das Assembléias
Provinciais de diversas Câmaras Paulistas. Declara a utilização de trabalhos de memorialistas e viajantes
e como Ariès também utiliza a literatura para ilustrar sua pesquisa, no caso dela, Álvares de Azevedo em
Noite na Taverna, Macário e Coleção de Cartas.
Vanessa Viviane de Castro Sial:
Sua dissertação, Das Igrejas ao Cemitério: políticas públicas sobre a morte no Recife do Século XIX,
foi defendida no Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da Unicamp. Seu objetivo foi analisar as
transformações fúnebres a partir da implantação de um conjunto de normas sanitárias.
Sial (2005, xi) argumenta que a proibição dos sepultamentos nas igrejas gerou múltiplos pontos de
discussão e conflitos na sociedade recifense do século XIX, assim como ocorreu em várias outras cidades
brasileiras: dentro do poder público, na elaboração de leis e regulamentos para as novas práticas
fúnebres, como também na população, que viu suas crenças mais íntimas ameaçadas, sobretudo entre os
membros de irmandades religiosas e os emergentes comerciantes dos novos serviços mortuários.
Suas fontes são apresentadas de forma detalhada nas Referências do trabalho. A quantidade de
documentos é bastante extensa e as fontes são variadas. Os mais importantes são; arquivos de
irmandades, arquivos das Assembléias Legislativas do Estado de Pernambuco, iconografias, periódicos,
folhetos e trabalho de cronistas e viajantes.
Esse conjunto de trabalhos para esta monografia não tem o objetivo de abarcar toda a situação
brasileira, mas apenas proporcionar material para algumas reflexões, a partir de seu ponto comum o
suporte das pesquisas históricas de Philippe Ariès.
35
2.3.1. A ROMATIZAÇÃO DO AD SANCTO ULTRAMARINOA diferença que define todo lugar não é da ordem de uma justaposição, mas tem à forma de estratosimbricados. São inúmeros os elementos exibidos sobre a mesma superfície; oferecem-se à análise;formam uma superfície tratável.Todavia, sob a escritura fabricadora e universa da tecnologia subsistem lugares opacos e teimosos. Asrevoluções históricas, as mutações econômicas, os caldeamentos demográficos aí se estratificam e aípermanecem, ocultos nos costumes, nos ritos e práticas sociais. Os discursos legíveis queantigamente os articulavam desaparecem, ou deixaram na linguagem apenas alguns fragmentos. Esselugar, na superfície, parece uma colagem. De fato, é uma ubiqüidade na espessura. Um empilhamentode camadas heterogêneas. Cada uma semelhante a uma página de livro, estragada, remete a ummodo diferente de unidade territorial, de repartição sócio-econômica, de conflitos políticos e desimbolização identificatória (CERTEAU, p. 1994, p. 309-10).
Esta afirmação de Certeau tem como objeto a cidade, mas facilmente poderíamos transferi-la para o
contexto brasileiro de espacialização morte e secularização cemitérios. A primeira “página de livro
estragada” seria o enterro ad sanctos e sobre esta, muitas outras se imbricariam formando um único
conjunto, historicamente simultâneo a todas as transformações já descritas por Ariès.
Relembrando, “enterro ad
sanctos, povoamento dos
subúrbios em redor das
basílicas cemiteriais,
penetração das sepulturas
nas cidades e vilas, entre
habitações: outras tantas
etapas de uma evolução que
aproxima os mortos e os
vivos outrora mantidos
afastados” (ARIÈS, 1977, p.
53). Figura 22: Jean Baptiste Debret – Catacumbas da Paróquia do Carmo 1834(REIS, 1997, p.125)
Essa era a única maneira concebível para o sepultamento até a metade do século XIX brasileiro.
Era indispensável ser enterrado em solo sagrado e perto de sua casa, para os luso brasileiros, esse lugar
ainda era a igreja. Por falta de uma tradição em mártires e relíquias geradores do conceito ad sancto seria
então a proximidade física entre cadáver e imagens de santos e anjos que representariam a proximidade
espiritual entre a alma e os seres divinos no reino celestial. “A igreja representava uma espécie de portal
do Paraíso. Ao mesmo tempo era o lugar perfeito e desejável para se aguardar a ressurreição no dia do
Juízo Final, uma concepção amplamente difundida no mundo católico desde a Idade Média” (REIS, 1997,
p. 124).
36
Figura 23: Jean Baptiste Debret – Rio de Janeiro 1834(REIS, 1997, p.124)
Assim os mortos vieram a ocupar os mesmos templos que freqüentavam em vida, onde haviamrecebido o batismo e o matrimônio, e onde agora testemunhariam e influenciariam os negócioscorriqueiros da comunidade – pois naquela época as igrejas serviam de recinto eleitoral, sala de aula,auditório para debates políticos e sessões de tribunal. Os vivos pisavam sobre sepulturas enquanto aliparticipavam dessas atividades ou “passeavam sobre os mortos” [...] (REIS, 1997, p. 125-6).
Figura 24: Jean Baptiste DebretFiéis se acomodam sobre as sepulturas nas igrejas
(REIS, 1991, p.175)
Em concordância com as idéias
explanadas por Certeau, o
Brasil associa em seu cotidiano
uma situação européia de pelo
menos dez séculos (VIII ao
XVIII). Aqui o século XIX agrega
todo o conjunto de
transformações na postura
perante a morte condensadas
em um período menor que cem
anos. É um contexto complexo
e rico em contradições.
Cymbalista (2001, p. 12) atesta essa miscelânea cultural e temporal:Além disso, devemos considerar a historicidade específica do cemitério secular brasileiro, distinta doeuropeu, incrustada em transformações sociais e políticas muito particulares. E, por cima dessascamadas históricas, ainda vai mais uma: a historicidade específica de cada localidade, a misturar nonível local as componentes brancas, negras e indígenas, “bárbaras”, “civilizadas”. Uma lasanha detemporalidades parece ser a figura que melhor descreve a situação que encontrei.
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Alargando as fronteiras culturais, para as contribuições étnicas, tem-se em Reis (1991, p. 90) que “o
culto dos mortos tinha uma relevância muito maior na tradição africana, embora não estivesse
absolutamente ausente da portuguesa”. Os africanos acreditavam na influência dos espíritos no dia-a-dia
e tinham rituais estabelecidos para a comunicação com os mortos. “Enquanto isso, a doutrina da Igreja
não se interessava especificamente em cultuar os mortos, concentrando-se em salvá-los”.
A preocupação africana com o corpo agrega aos nossos costumes um cuidado maior com o
cadáver. Era preciso corta-lhe o cabelo, as unhas, fazer a barba e dar banho. O defunto baiano devia
estar; limpo, bonito e cheiroso para o velório, esse último encontro com parentes e amigos vivos (REIS,
1991, p. 114-5).
Nessa “lasanha” de temporalidades, um dos
desacordos cronológicos com a cultura
européia, que esta monografia deseja apenas
aventar como hipótese, é a ampla difusão dos
ritos e costumes católicos do século XVII ao
mesmo tempo em que esboça preocupações
com o corpo e até apego aos entes queridos e
familiares falecidos. Esse comportamento é
estranho à mentalidade medieval do ad
sanctos, as pistas estão menos na fala dos
pesquisadores e mais em algumas
transcrições de textos da época. É uma leitura
de entrelinhas e no decorrer do trabalho
pretende-se ressaltá-las.
Figura 25: Igreja do Pilar e seus carneirosFonte:
http://www.conder.ba.gov.br/webnews/news/noticia.asp?NewsID=280
É certo que o evento mais turbulento e de maior conseqüência foi a Cemiterada de Salvador,
descrita por José João Reis. Mas outros pesquisadores apontam resistências bem menos agressivas, mas
documentadas nas atas das Câmaras e no caso específico de São Paulo publicadas nos dois jornais de
circulação na época; Correio Paulistano e O Publicador Paulistano.
Reis no contexto baiano de 1836 documenta a indignação dos irmãos do Pilar mediante a interdição
dos enterros nas igrejas em favor do novo cemitério de Campo Santo. Evento esse, gerador da revolta
popular conhecida como Cemiterada:Eles começaram seu requerimento, dizendo-se possuídos de sentimentos religiosidade, e amor pelobem do seu País, e no entanto foram construir um Cemitério aberto às profanas visitas, por ser do ladocercado de grades de ferro aberto, que torna aquele recinto, em vez de um lugar de solidão erecolhimento, teatro de divertimento, por ficarem expostos às públicas chincalhações e zombarias dosviandantes aqueles que, levados de um zelo religioso, e possuídos de amarga dor, forem chorarsobre o Túmulo de seus mais caros (REIS, 1991, p. 310, grifo nosso).
38
É interessante notar que não foram encontradas nos textos de Reis, menções específicas à família
nuclear. Se acompanharmos as exposições do autor trata-se de um evento em cuja base estavam as
irmandades e as ordens terceiras. De uma certa forma isso ainda remete às associações e a grupos
domésticos característicos das sociedades européias da Idade Média ao século XVIII21.
Já em seu texto no conjunto da História da vida privada no Brasil, Reis esclarece sua posição,
sempre tendo como base o cenário baiano:Essa proteção humana que cercava a hora da morte em nossa antiga cultura funerária era fruto deuma sociedade pouco individualista, em que a vida e a morte privada ainda não haviam sidoreduzidas ao pequeno mundo da família nuclear tipicamente burguesa. Isso valia mesmo para asclasses superiores, em que esse processo de privacidade iria aos poucos se instalando ao longodo século XIX, sempre com variações regionais, diferenças entre o rural e o urbano, além de outrasdiversidades (REIS, 1977, p. 108-9, grifo nosso).
Marcelo Tramontano (1998, p. 99) com base na historiada Leila Algranti, investiga o formato dos
grupos domésticos paulistas que “tendiam a extrapolar os limites da família nuclear”:[...] o espaço do domicilio reunia “em certos casos, apenas pessoas de uma mesma família nuclear eum ou dois escravos; em outros, somavam-se a essa composição agregados e parentes próximos,como mães, viúvas ou irmãs solteiras. Por vezes encontramos domicílios compostos de padres comsuas escravas, concubinas e afilhadas, ou então comerciantes solteiros com seus caixeiros. Em algunsdomicílios verificamos a presença de mulheres com seus filhos, porém sem maridos; também nosdeparamos com situações em que um casal de cônjuges e a concubina do marido viviam sob o mesmoteto. Isso sem falar nos filhos naturais e ilegítimos que muitas vezes eram criados como legítimos”.
Já que processo de nuclearização da família amadurece, no Brasil ao longo dos “1800” não é
totalmente estranha a situação descrita por Amanda A. Pagoto. A polêmica causada pela inauguração do
Cemitério da Consolação, documentada nos jornais da cidade, já continha preocupações “com os que lhe
eram caros”. Veja a carta publicada pelo O Publicador Paulistano em 11 de março de 1859:
O cemiterio público de São Paulo tem sido o theatro de scenas horrorosas que tememos descrever,mas que estão na memória de todos e na consciencia do publico. Não ha hoje em São Paulo uma sópessoa que tenha alguém que lhe seja caro, que além das outras razoes para temer a sua mortenão se venha juntar o temor de vel-o sepultado em um cemitério onde tão pouco os restos dochristão são respeitados, onde os seus restos são lançados em uma cova cheia de lama, em que sãolançados cadaveres de sexos differentes; em um cemiterio em fim onde os corpos permaneceminsepultados por longo tempo, expostos a irrisão dos coveiros e onde tem sido encontrados em umestado que não nos animamos á declaral-o (...) (PAGOTO, 2004, p. 116, grifo nosso).
Outra carta publicada no mesmo jornal em 9 de abril de 1859, já menciona a instalação de
conceitos da família nuclear, pelo menos os “paes":Entretanto apezar dos gritos que solta o povo, da aflição que a todos domina, vendo os restosmortaes de seus paes, parentes e amigos, expostos á voracidade dos animaes, á intempere dotempo e mesmo á profanação dos homens vis e ordinários, n’um bruto montanhoso pasto, continuaapezar seu, a ver ainda tremular nas terreas muralhas do cemitério, a bandeira oliguarchia nefanda (...)(PAGOTO, 2004, p. 117, grifo nosso).
21 Sobre a organização familiar dos grupos domésticos na Europa. Informação obtida em sala de aula: 14 desetembro de 2005. Disciplina Habitação Metrópoles e Modos de Vida.
39
No Recife Vanessa Sial (2005, p. 94) apresenta uma situação mais tranqüila, ao mesmo tempo,
destaca os melindres dos deputados da Câmara para tratar dos pontos polêmicos da transição
higienizadora dos cemitérios para fora das igrejas e do perímetro urbano. Com base na lição da
Cemiterada não permitiram naquele momento o monopólio do comércio mortuário22. No entanto, tal como
os concílios católicos descritos por Ariès legislam com base em exceções:
Artigo 5º. Logo que o cemitério estiver em estado de poder propiciar a receber os cadáveres, ficarãoproibidos os enterramentos em qualquer outro lugar, dentro da compreensão da cidade e de seussubúrbios; exceto os dos príncipes, bispos, párocos, cônegos, religiosos professos, padroeirose dotadores de capelas23.
Em 1850 o artigo é revogado na parte em que estabelece as exceções. “Não é difícil imaginar que
as demais pessoas, que foram obrigadas a sepultar seus mortos no cemitério, não vissem com bons olhos
a regalia aos religiosos e donos de capela de poderem continuar mantendo a tradição dos enterros em
igrejas”. Curioso também é o levantamento de Sial (2005, p. 95) que dá conta das oportunas suspensões
das sessões exatamente no momento das discussões mais polêmicas e também da falta de quorum do
legislativo no momento da votação da lei de proibição dos sepultamentos nas igrejas:
Não tendo até o presente comparecido dez Srs. Deputados, havendo na casa somente quatrosuplentes, donde resulta permanecer diariamente um pequeno número, e não haver casa ontem, o quemais de uma vez poder-se repetir-se, requeiro que se chamem os seis imediatos em votos, chamando-se entretanto os mais próximos, enquanto não chegam os que moram em grande distâncias24.
O elemento deflagrador de todo esse processo de partição do edifício igreja constituído de nave,
campanário e cemitério foi sem dúvida o rebatimento tardio da ação higienizadora européia, e
principalmente a francesa que durante o século XVII obrigou o Estado a investigar, legislar e policiar os
rituais que envolviam a morte.A igreja, então, era lugar no Brasil amplamente concebido como ideal para o enterramento dos mortos.Mas, da mesma forma que os médicos europeus do século XVIII, os nossos médicos do séculoseguinte não concordavam com isso. Depois da Independência, as idéias higienistas européias,sobretudo francesas, capturaram as mentes de nossa elite cultivada. Os doutores se acreditavamrepresentantes do iluminismo nos trópicos, e lutavam, como escreviam incessantemente, para elevar onosso país à altura da civilizada Europa. As reformas funerárias que prescreviam objetivavam trazer acivilização ao país (REIS, 1997, p. 132-3).
22 Reis (1991, p. 13-24) coloca o monopólio dos enterros e funerais como principal razão à revolta popular de 1836em Salvador. Também Pagoto (2004, p. 107-115) destaca na polêmica dos jornais paulistanos a extensa indignaçãoda população com o monopólio do comércio de artefatos e transporte funerário concedido em 1856 (por um períodode 15 anos) ao empresário fluminense Joaquim Marcellino da Silva.23 CLPPE, 1841. Lei n° 91 de 7 de maio de 1841. Apud Sial (2005, p. 94) grifos da autora.24 DP, Ata da 7ª Sessão Ordinária da Assembléia Legislativa Provincial de Pernambuco do dia 9 de março de 1841.Apud Sial (2005, p. 95).
40
2.3.2. HIGIENISMO ILUMINISTA NO SÉCULO XIX
O futuro professor da Faculdade de Medicina da Bahia, Manuel Maurício Rebouças, defendeu em
Paris no ano 1831 uma tese que condenava os enterros dentro das cidades e particularmente dentro das
igrejas. A base de seu trabalho foi a literatura médica francesa, estruturada na teoria dos miasmas e a
necessidade de locais específicos para os cemitérios, lugares altos, arejados, arborizados e fora do
perímetro urbano. “Os novos cemitérios deviam ser organizados e funcionar segundo normas técnicas”: o
número de covas deveria duas vezes maior do que o número de habitantes da cidade, os enterros na
mesma sepultura deveriam obedecer a um espaço mínimo de dois anos, além de medidas específicas de
profundidade e distância entre as covas (REIS, 1997, p. 133-4).
Sial (2005, p. 82) atesta o vigor intensificado a ação higienista na cidade de Recife em seguida a
inauguração da Sociedade de Medicina de Pernambuco (1841).A concepção sobre as teorias de contaminação do ar pelas emanações miasmáticas esteve presenteem todo o discurso de Rego Barros, e a interdição das inumações nas igrejas foi colocada como umaprioridade na higiene pública. Ele lembrava das recomendações expedidas na Ordem Régia de 1801,onde eram conhecidos “os danos a que está exposta a saúde pública, por se enterrarem os cadáveresnas igrejas que ficam dentro das cidades populosas, visto que os vapores que se exalam dos mesmoscadáveres, imprena [sic] a atmosfera, vem ser a causa de que os vivos respirem um ar corrupto einfeccionado, e que por isso estejam sujeitos e muitas vezes padeçam moléstias epidêmicas eperigosas”25.
Pagoto (2004, p. 100) resgata a situação da capital paulista:Os médicos reformadores, juntamente com algumas autoridades laicas, deram início a uma durabatalha visando medicalizar a cidade e, conseqüentemente, destruir todos os possíveis focos decontágio responsáveis pelas intermináveis epidemias que assolavam a cidade.Dentre esses focos de “miasmas pestilentos”, os corpos foram os maiores alvos de interdição médica.Eles se transformaram numa prioridade para os reformadores, que ambicionavam encontrarjustificativas científicas para bani-los definitivamente do seio da sociedade dos vivos e, assim, obter amodificação daquele tipo de sepultamento considerado danoso à saúde pública e contrário aospadrões de modernização esperados nas cidades que eram modelos de desenvolvimento e ilustraçãocomo a França e a Inglaterra.
Essa “batalha” para separação de espaço entre vivos e mortos será vencida, entre 1850 e 1880,
menos pela ação higienista e secularizadora das autoridades laicas, mas pelas grandes epidemias que
mais facilmente convenceram a população da necessidade do cemitério extra-muros.
Recife terá suas epidemias de febre amarela no verão de 1849-1850 e posteriormente surtos de
varíola, sarampo e cólera (SIAL, 2005, p. 82). Salvador enfrentará uma grande epidemia de cólera-morbo
em 1855, ano em que o cemitério de Campo Santo finalmente entra em completa operação (REIS, 1991,
p. 338). Já o Estado de São Paulo foi atingido pela febre civilizadora marcada pela cultura do café,
possível pela expansão ferroviária entre outras tantas inovações de transporte e tecnologia (HOMEM,
1996, p. 49-61).
25 Trecho citado é da Ordem Régia 10/1801. Apud Sial (2005, p. 81).
41
2.3.3. CRONOLOGIA DA SECULARIZAÇÃO
A sucessão de eventos que culminou na secularização do Estado brasileiro e conseqüentemente na
absorção pelo poder público da legislação e registro sobre a morte e seus espaços tem seu início já na
virada dos oitocentos. Mas devido a um conjunto de razões, sejam essas da permanência de costumes do
cotidiano, ou seja, essas econômicas e políticas, a efetiva separação somente ocorre com a Proclamação
da República e pela promulgação da primeira constituição republicana. Mesmo assim o poder eclesiástico
continuou por muito tempo a influenciar o poder laico.
Enquanto na Bahia a preocupação das autoridades com a ameaça dos mortos à saúde dos vivos,
data já do início do século XVIII (REIS, 1991, p. 273) em São Paulo, a primeira imposição legal foi a Carta
Régia de 14 de janeiro de 1801. Nela o Príncipe Regente de Portugal ordenava ao Governador da
Província que cada cidade do Estado escolhesse um local para construção de um cemitério. Ao que
parece a Carta Régia não produziu muitos efeitos, a incipiente vida urbana paulista (CYMBALISTA, 2001,
p. 40-2). Com a independência e a ascensão de uma ideologia liberal, tem-se em outubro de 1828, a
promulgação da lei imperial que regulamentava as atribuições de um novo braço governamental, a
Câmara Municipal.Em doze parágrafos se detalhava o universo a ser legislado: executar ou fazer executar a limpeza,alinhamento, iluminação, reparos, segurança dos logradouros públicos; retirar das ruas os “loucos,embriagados, animais ferozes ou danados” (observe a animalização dos marginalizados); impor limitesde velocidade aos caveleiros; impedir “vozerias nas ruas em horas de silêncio, e obscecidades contraa moral pública”; indicar lugares adequados e limpos para abate de gado e funcionamento de feiraslivres; reprimir atravessadores e especuladores; conceder licença para realização de espetáculospúblicos, “uma vez que não ofendam a moral pública”; obrigar os moradores a manter “o asseio,segurança e elegância, e regularidade externa dos edifícios e ruas” (REIS, 1991, p. 275-6).
A situação era difícil porque não havia designação de verbas para construção de cemitérios. Outra
dificuldade era a negociação com as Dioceses que emitiam ou não autorização para qualquer interferência
em questões religiosas (CYMBALISTA, 2001, p. 43). Em Recife, por exemplo, o início das obras do
cemitério público foi continuamente adiado de 1843 a 1850, por falta de verbas nos orçamentos municipais
(SIAL, 2005, p. 108). Em São Paulo, Cymbalista apresenta uma situação ainda pior, o prefeito de Franca,
apela para o auxilio da população em 1836, mas não é atendido (CYMBALISTA, 2001, p. 43).
Mesmo com atuação restrita por falta de verbas, as Câmaras iniciam a redação de sucessivos
códigos de posturas. Eventualmente não cumpridos em sua totalidade, sua repercussão é amplamente
citada nos trabalhos de Cymbalista, Pagoto Reis, e Sial. Os detalhes não serão abordados nesta
monografia. A partir da década de 1870 o movimento para retirada completa da Igreja da gestão dos
cemitérios foi significativamente intensificado. Isso significava também uma luta pela separação entre
Estado e Igreja. A “efetiva separação acontecerá com a proclamação da República e a Constituição de
1891”. (CYMBALISTA, 2001, p. 59).A incorporação do cemitério no programa da gestão secular e municipal traz outra demanda: ascidades agora deviam garantir um sepultamento a todos, independentemente de seu credo, cor ouposição social. Os cemitérios municipais teriam, obrigatoriamente, que apresentar um local desepultamento de indigentes, custeado pelo Estado (CYMBALISTA, 2001, p. 59-60).
42
2.3.4. GEOGRAFIA DA MORTE – UMA QUESTÃO DE HIERARQUIA SOCIAL
Como na Europa o enterro dentro da igreja no Brasil tinha um forte traço de afirmação social. Havia
“entre elas e dentro delas uma geografia da morte que refletia as hierarquias sócias e outras formas de
segmentação coletiva” (REIS, 1997, p. 127).
Na teoria da Igreja o lugar da sepultura não deveria ser tomado como possibilidade de salvação em
lugar das boas ações em vida, mas em contrapartida regulamentava o costume através das Constituições
Sinodais. “Segundo as leis do arcebispado da Bahia, todo católico tinha o direito de ser enterrado na igreja
de sua escolha”. Mas a forte estratificação social brasileira determinava dentro da igreja locais mais
abençoados do que outros. Nessa linha de privilégios estavam os jazigos perpétuos e os enterros na
capela-mor, local ainda mais próximo de Deus. Para tudo era preciso a licença dos párocos e quase
sempre a necessidade de uma contribuição financeira. “Mas, se a Igreja em troca de esmolas polpudas,
cedia à ‘vaidade humana’, também impunha limites”. Os túmulos de pedra ou madeira eram proibidos,
deveriam se restringir a apenas uma campa de pedra contígua ao pavimento (REIS, 1991, p. 172-4).De um modo geral, as pessoas de qualquer condição social podiam ser enterradas nas igrejas, mashavia uma hierarquia do local e do tipo de sepultura. Uma primeira divisão se fazia entre o corpo, parteinterna do edifício, e o adro, a área em sua volta. A cova no adro era tão desprestigiada que podia serobtida gratuitamente. Ali se enterravam escravos e pessoas livres muito pobres [...]. Mas também sobo chão das igrejas os mortos se dividiam de maneira que refletia a organização social dos vivos. Umaprimeira divisão se dava com a delimitação de locais específicos para os enterros promovidos pelasirmandades [...]. Ser enterrado próximo aos altares era um privilégio e uma segurança mais para alma,atitude relacionada com a prática medieval de valorizar a sepultura próximo aos túmulos de santos emártires da cristandade (REIS, 1991, p. 175-6).
A apropriação brasileira desse contexto aparece também na criação de irmandades negras que
reproduzem em escala menor as estruturas, social e cultural dominantes. As confrarias e ordens terceiras
já existiam na Europa e em Portugal desde o século XIII. Recebiam religiosos, mas eram formadas,
principalmente por leigos. Sua ação era assistencialista, e uma preocupação importante de acordo com os
costumes da boa morte, era a garantia de enterro digno aos seus membros. “Para que uma confraria
funcionasse, precisava encontrar igreja que a acolhesse, ou construir a sua, e ter aprovado seu estatuto
ou compromisso pelas autoridades eclesiásticas” (REIS, 1991, p. 49).
43
No Brasil estratificado não apenas socialmente, mas
também racialmente, as irmandades serviram para
propiciar os ritos necessários à morte oitocentista também
à população escrava do século XIX. Havia irmandades de
brancos, de negros e de pardos. As irmandades de
africanos por sua vez também “se subdividiam de acordo
com as etnias de origem, havendo, por exemplo, as dos
angolanos, jejes e nagôs. Imaginadas como veículo de
acomodação e domesticação do espírito africano, elas na
verdade funcionaram como meios de afirmação cultural”.
Foram ao mesmo tempo a família e a primeira forma de
inclusão social dos negros, fossem esses escravos ou
libertos. (REIS, 1991, p. 55).Figura 26: Cortejo fúnebre francês XVI e XVII
(REIS, 1991, p.75)
Figura 27: Enterro de um negro na Bahia - Johann Moritz Rugendas - 1833(REIS, 1997, p.97)
44
Por isso a revolta da Cemiterada em Salvador teve além do apoio das irmandades também a
adesão membros das elites que tinham como direito, a herança de jazigos perpétuos. Todos se sentiam
prejudicados pelas novas determinações civis. Em São Paulo os enterros e os cortejos fúnebres eram
praticamente os únicos eventos sociais da cidade. Tanto em Recife, como Salvador e São Paulo as
pompas fúnebres indicavam o status social e financeiro do morto e sua família. Nos textos sobre a morte
no Brasil fica clara a necessidade da classe dominante em manter sua hierarquia mesmo no momento final
da vida. Essa parece ser um dos focos de resistência, mas a solução chegou depressa. Cymbalista aponta
(2001, p. 75) o sentimento republicano, o surto progressista e a imigração como agentes do processo que
trouxe da Europa a moda burguesa dos túmulos monumentais.
Pagoto confirma:Após os primeiros impactos causados pela ruptura abrupta nos ritos fúnebres cultuados duranteséculos na capital paulistana, e pela imposição de um campo santo moldado segundo as normassanitárias vigentes nas províncias brasileiras mais desenvolvidas, o assunto foi gradativamente caindono esquecimento e, aos poucos, a população foi compreendendo a necessidade de se criaremespaços apropriados ao sepultamento dos mortos. Aliás mortos que, dia a dia, aumentavam emquantidade, pois a cidade iniciava a sua fase de crescimento, calcado, na economia cafeeira e naimensa chegada de imigrantes, convocados para as lavouras no interior de São Paulo e para trabalhosassalariados na capital.Depois de alguns anos, além de um equipamento urbano necessário à cidade, os cemitérioscomeçavam a ser entendidos como espaços de afirmação social, onde os barões do café e outrosmembros abastados da sociedade construíram grande mausoléus, visando demarcar seu poderioeconômico através de gerações (PAGOTO, 2004, p. 126-7).
Figura 28: Animada procissão do Viático, segundo Debret(REIS, 1991, p.104)
Mas a República, o surto progressista, o café e o desejo de civilização, já fazem parte de uma outra
história. O objetivo aqui era apenas circunscrever algumas das imbricações e re-apropriações cotidianas
que permearam a separação entre igreja e cemitério. Concomitantes à re-organização do poder laico,
tomaram parte no processo de secularização da morte e os seus espaços no Brasil do século XIX.
45
CONCLUSÕES
A ascensão da Nova história acontece nas duas primeiras décadas XX e sua difusão, em várias
etapas de re-avaliação e amadurecimento, ocorre dos anos 60 até o período contemporâneo. Essa nova
abordagem revolucionou a historiografia tradicional ao mesmo tempo em que propôs um conjunto de
novos métodos de trabalho e ampliou as fontes de investigação abrindo possibilidade para utilização de
novos critérios de pesquisa.
O sujeito anônimo que opera no cotidiano torna-se o foco das atenções. É uma nova abordagem
que relaciona o homem, o espaço e o conjunto de relações e atividades nele exercidas. Ao analisar as
relações do sujeito como o espaço, a Nova História, tornou-se um mecanismo importante para o estudo da
história da arquitetura e do urbanismo.
No Brasil os pesquisadores que adotam os métodos e abordagem historiográfica propagada pelos
Annales têm se dedicado a re-construção da historiografia brasileira. No caso específico da arquitetura e
urbanismo, aqui, como na Europa, grande parte, das narrativas tinham sido construídas para legitimar as
vanguardas do movimento moderno. Assim o século XIX passa, no período contemporâneo, por um
processo intenso de reavaliação historiográfica, e é um campo de estudo aberto para pesquisas que
propõem novas reflexões sobre o conjunto histórico brasileiro.
O problema proposto para o trabalho foi um exercício de investigação metodológica que tem como
tema a separação entre cemitério e igreja sob a perspectiva das atitudes diante da morte de Philippe Ariès
e o seu rebatimento brasileiro, condensado no século XIX, e impregnado por características históricas,
geográficas e humanas que lhe são próprias.
Além de um trabalho de filtragem dos métodos, fontes e possibilidades de abordagem do tema pela
perspectiva das relações do cotidiano foi possível vislumbrar a articulação dos três fatores relevantes que
segundo Ariès interagem na transformação das mentalidades:
1- O Estado e seu novo papel. A partir do século XV e com freqüência cada vez maior ao longo do
XVIII ocupou o espaço social antes entregue às comunidades.
No Brasil, com a Independência o Estado começa a estender seu braço para os núcleos urbanos
rurais antes relegados à administração paroquial.
2- O desenvolvimento da alfabetização, da difusão da leitura e da impressa.
3- As formas novas de religião que se estabelecem nos século XVI e XVII
A secularização que os teólogos acreditam ser um movimento que tem origem dentro da própria
Igreja e que posteriormente foi associada à transferência de poder e responsabilidades da autoridade
eclesiásticas para os Estados laicos, e finalmente foi entendida como um processo cultural, pode ser re-
avaliada com base na abordagem historiográfica da Nova História.
46
É preciso buscar nos meandros do cotidiano as apropriações e relações espaciais que “os sujeitos”
estabeleciam mediante as imposições do Estado, da Igreja e da própria cultura arraigada e estabelecida. É
essa fabricação que Certeau descreve como uma poética silenciosa que juntamente como os macro-
processos políticos e econômicos interferem na utilização dos espaços arquitetônicos e na própria vida da
cidade.
Nesse sentido o caso brasileiro é exemplo interessante porque consome as transformações
européias que no ambiente do século XIX são relações de dominação ainda mercantilistas que agem
sobre a economia, política e cultura. No entanto, o sujeito tem espaço nas práticas do cotidiano para re-
inventar suas relações inclusive espaciais e urbanas de maneira a adaptá-las à sua visão de mundo.
Na espacialização das atitudes diante da morte. Parece que o Ad Sanctos brasileiro é permeado de
atitudes românticas desconexas à sua difusão européia. A geografia da morte dentro das igrejas, elemento
de distinção de hierarquia social adaptou-se a uma nova organização de confrarias e irmandades e serviu
tanto a brancos como negros. A hierarquia permanece, mas a apropriação do costume e sua reprodução
em diversas outras escalas parece ser uma criação brasileira.
Os cemitérios ganham a topografia das cidades brasileira depois da metade do século XIX, mas
inicialmente com forte resistência da população que se sentiu usurpada em suas crenças e ritos. Mas
outras apropriações agora com base nos próprios modelos de cemitérios europeus não tardarão a chegar.
Entre os objetivos explicitados na Introdução, um em especial dizia respeito à interpretação de
dados obtidos em pesquisa de campo e livros de memorialistas e cronistas. A conclusão que se tem sob
esse aspecto específico, é a necessidade buscar as mais diversas fontes possíveis que possam fornecer
material farto para uma tentativa de reconstituição e interpretação dos modos de vida. Nenhum material a
princípio deve ser rejeitado. Mas a sua validade somente poderá se sustentar mediante a coerência do
conjunto.
Ao final do trabalho restam mais questões do que respostas:
Seria essa “fabricação” ou essa “poética” ou mesmo as “maneiras de fazer” uma espécie de
“antropofagia”?
No caso brasileiro, se colocássemos no “microscópio” da avaliação das operações do cotidiano seria
a re-apropriação da cultura européia, historicamente mais extensa do que pensava o grupo de 1929?
Seria essa “antropofagia” um traço cultural dos dominados? Como diria Certeau, a sua astúcia e ao
mesmo tempo a sua defesa?
No caso dos oitocentos: aceitar, buscar e aplaudir as transformações culturais européias para em
seguida reinventá-las nas ações, relações e espaços do dia a dia?
Mas essas questões extrapolam a abrangência da proposta para o trabalho, justificam-se, no
entanto, porque o objetivo do trabalho também era um exercício de reflexão.
47
Para encerar relembra-se aqui a palavras de Certeau:A diferença que define todo lugar não é da ordem de uma justaposição, mas tem à forma de estratosimbricados. São inúmeros os elementos exibidos sobre a mesma superfície; oferecem-se à análise;formam uma superfície tratável.Todavia, sob a escritura fabricadora e universa da tecnologia subsistem lugares opacos e teimosos. Asrevoluções históricas, as mutações econômicas, os caldeamentos demográficos aí se estratificam e aípermanecem, ocultos nos costumes, nos ritos e práticas sociais. Os discursos legíveis queantigamente os articulavam desaparecem, ou deixaram na linguagem apenas alguns fragmentos. Esselugar, na superfície, parece uma colagem. De fato, é uma ubiqüidade na espessura. Um empilhamentode camadas heterogêneas. Cada uma semelhante a uma página de livro, estragada, remete a ummodo diferente de unidade territorial, de repartição sócio-econômica, de conflitos políticos e desimbolização identificatória (CERTEAU, p. 1994, p. 309-10).
Figura 29: Cemitério da ConsolaçãoInaugurado em 1858
Fonte: http://www.helgeroe.com/Album/Brazil2/245_4529.JPG
48
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