O TERRORISMO DE ESTADO NO CHILE: REFLEXÕES A PARTIR
DO MANUAL DE OPERACIONES SECRETAS DA DIRECCIÓN DE
INTELIGENCIA NACIONAL (DINA)
Renata dos Santos de Mattos
Mestranda em História/ UFRGS
Resumo: Na década de 1970, apoiada na Doutrina de Segurança Nacional e no
Terrorismo de Estado, a ditadura Pinochet estabeleceu a perseguição, prisão, tortura e o
assassinato como mecanismos para eliminar opositores. Dessa forma, buscando
centralizar o sistema de informação e inteligência que efetivaria as mencionadas ações,
Pinochet e Manuel Contreras criaram a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA).
Constatando a necessidade de treinamento de agentes que atuassem conforme os
preceitos da doutrina dentro dos marcos da clandestinidade, desenvolveu-se um Manual
de Operaciones Secretas. Assim, a partir dessa fonte, pretende-se refletir sobre a
institucionalização da repressão e o papel da DINA, analisando brevemente a formação
de agentes, seu modus operandi, bem como seus objetivos dentro do regime.
Palavras-chave: ditaduras – Chile – Terrorismo de Estado – DINA - repressão
O pré-golpe
O início da década de 1970 no Chile foi marcado pela vitória eleitoral da Unidad
Popular (UP). A soma de 36,2% dos votos criou um ambiente de euforia e
simultaneamente, de apreensão na esquerda chilena. Apesar de a presidência estar nas
mãos de um político socialista, que fora antes Senador e dirigente partidário de longa
trajetória, com promessas revolucionárias, haveria de enfrentar os grupos dominantes,
setores das camadas médias e o imperialismo estadunidense, reticentes às políticas
sociais e às nacionalizações apontadas como fundamentais no programa da esquerda.
Durante os três anos em que governou, os embates entre Allende e o Congresso
foram constantes, a oposição não poupou críticas ao governo, tampouco permitiu que o
presidente implementasse, com alguma estabilidade, as propostas do Programa de
governo da UP. No entanto, desafiando os desmandos estadunidenses e a oposição
interna, a experiência chilena buscou ir além de tudo aquilo que se vira na América
Latina até então. O governo socialista procurou romper com as estruturas do passado,
dando ao país, através de mecanismos legais, a chance de se fazer a revolução. Os
trabalhadores estavam assumindo postos de comando dentro das fábricas (cordones
industriales e comandos comunales), a classe baixa detinha o acesso aos direitos básicos
como saúde e alimentação e parte da população estava convicta do poder popular e, por
isso, ocupava as ruas manifestando apoio ao governo da UP.1 Mas, com efeito, o país
enfrentava uma grave cisão. Assim como nos demais países do Cone Sul que tiveram
sua democracia defraudada, a burguesia e os EUA não aceitaram a transição em curso
liderada por Allende e sua Via Chilena ao Socialismo, apesar das suas incontáveis
tentativas de acordos com os grupos oposicionistas.
Nos anos que precederam o golpe de Estado no Chile, a CIA, as grandes
corporações multinacionais, aliadas à burguesia chilena, aos meios de comunicação e
aos militares desencadearam uma série de ações que impediram Allende de governar.
Traçada a conspiração desde os anos 1960, os EUA desenvolveram o que Luiz Alberto
Moniz Bandeira (2008) chamou de “fórmula para o caos” e que resultaria, mais tarde,
no 11 de setembro de 1973. O bombardeio do Palácio de la Moneda marcou o início de
uma ditadura que não preservaria o Chile da aplicação do Terrorismo de Estado (TDE)
em todas as suas esferas. Atuava-se em nome da missão de “extirpar o marxismo”,
como proferiu o general Gustavo Leigh na primeira transmissão da Junta ao público; era
preciso apagar a ideologia que ansiava por uma transformação social e revolucionária.
E, para tanto, foi criado um sistema de inteligência capaz de perpetrar as maiores
atrocidades vistas na América Latina, a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA).
Terrorismo de Estado
Ao se conjeturar acerca das ditaduras ou regimes de Terrorismo de Estado, se
está diante de uma reconfiguração do Estado, acentuando seu aspecto repressivo e
1 Um dos melhores estudos disponíveis sobre as lutas populares na conjuntura chilena de finais dos anos
1960 e os anos do governo da UP é o trabalho de CURY, Márcia. O protagonismo popular.
Experiências de classe e movimentos sociais na construção do socialismo chileno (1964-1973). Campinas, Editora da UNICAMP, 2017.
tornando-o Estado de dominante coercitiva2 para sustentar os interesses das classes
dominantes por meio de seus instrumentos de poder, ou seja, polícia, Poder Judiciário,
parlamento, Exército. Assim, o Estado pode assumir formas históricas específicas de
autoritarismo empregando sistematicamente o terror.
Segundo aponta Padrós, “é pertinente destacar que as ditaduras de SN
(Segurança Nacional) procuraram esconder, com seu discurso patriótico, moralista e
tecnocrático que o TDE se constituiu numa estratégia contextualizada de luta de
classes” (PADRÓS, 2005, p.123). Assim, a Doutrina de Segurança Nacional (DSN)3
levada ao Chile pelas forças armadas, transformou em “inimigo interno” da nação todo
aquele indivíduo identificado com alguma classe ou luta específica, já que um dos
sustentáculos dessa doutrina era justamente a noção de unidade, de coesão política.
Tendo em vista tal percepção, não apenas o militante ligado à luta armada ou político do
partido oposicionista representavam ameaças, pois ao ampliar o conceito inimigo
garantia-se uma atmosfera de permanentemente suspeição. Para os militares latino-
americanos advogados dessa visão, segundo discorre Comblin,
O Estado é o único intérprete da vontade da nação. Os partidos representam
necessariamente interesses particulares. O Estado não pode depender dos
partidos; situa-se acima deles. Os atuais militares não podem compreender
absolutamente nada de um sistema de análise do poder político que relacione
esse poder a classes ou grupos. A missão do Estado é justamente manter-se
acima da confusão e de fazer calar as visões e interesses particulares todas as
vezes que o bem comum o exigir. (COMBLIN, 1978, p.73)
Dos mecanismos implementados pelo Estado, a "cultura do medo” geradora da
autocensura, resignação e imobilização dos indivíduos, cumpria a função pedagógica do
Terrorismo de Estado, a alienação ou colaboração com o regime. Aberta ou
clandestinamente, os aparatos repressivos criados pelos regimes autoritários
empreenderam múltiplas ações com refinadas técnicas para atemorizar a sociedade
2 Ver LÖWY, Michael e SADER, Eder, A militarização do Estado na América Latina. In: Pedro Calil
Padis (org.). América Latina. Cinquenta anos de industrialização. São Paulo: HUCITEC, 1979. 3 Elaborada pelos Estados Unidos da América no contexto da Guerra Fria, a Doutrina de Segurança
Nacional foi exportada para América Latina através das escolas militares localizadas no canal do Panamá
e nas escolas militares dos países que sofreram golpes de Estado nas décadas de 1960-70. Concentrada na
contenção do comunismo e, sobretudo, na ideia de manter os mercados aliados aos interesses
estadunidenses, essa doutrina permitiu que os EUA intervisse nos países latino-americanos, assegurando
o poder das classes dominantes (favoráveis aos sistema capitalista), financiando e apoiando ditaduras de
segurança nacional e impondo a violência como método de eliminação da subversão.
como um todo e eliminar seus opositores de forma que pudessem justificá-las ou ocultá-
las.
A ideia de que "El tríptico que caracteriza la ideología del terrorismo de Estado
es: secreto, clandestinidad e impunidad" (REYNA;REYES, 1991) se evidencia com as
investigações realizadas pelas Comissões da Verdade instauradas nos países do Cone
Sul e a ausência de punição a muitos agentes estatais que comprovadamente violaram os
direitos humanos. Da mesma forma, é possível atestar, em breves análises como esta e
outros trabalhos acadêmicos de maior fôlego, que analisam a esfera repressiva das
ditaduras, que o elemento da clandestinidade é o que suporta além da impunidade, a
ausência de fontes documentais, haja vista a Dirección de Inteligência Nacional chilena
e as operações que desenvolveu desde 1973 até 1977, bem como, desenvolveram os
aparatos repressivos criados por países como o Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai.
O golpe civil militar no Chile
A movimentação golpista teve início, de fato, em 1972, apesar de as ações
encobertas estadunidenses ocorrerem no país antes mesmo da vitória da UP nas eleições
presidenciais4. De acordo com a narrativa do embaixador Nathaniel Davis (1990, p.184)
sobre os anos finais do governo de Allende, nesse período ocorreram inúmeras
tentativas de golpe envolvendo o grupo paramilitar Patria y Libertad, grandes
latifundiários e oficiais militares reformados e da ativa.
Previsto pelos oficiais conspiradores para o dia 14, o golpe derradeiro foi
adiantado em três dias por Pinochet para evitar que Allende tornasse pública no dia 11
de setembro sua resolução de convocar um referendo no qual seria votada a
permanência ou saída da UP do governo. O primeiro dos cenários, na visão do
presidente e do Partido Socialista significava a certeza de uma guerra civil que Allende
buscava evitar, embora independentemente do resultado, a vitória de uma classe sobre a
outra àquela altura indicasse o inevitável uso da violência como arma defender
quaisquer valores. No dia 8 de setembro, a CIA já possuía informações sobre o
4 Sobre o plano os EUA no Chile e o ITT-CIA ver MATTOS, Renata dos Santos. Make the economy
scream: o plano ITT-CIA e os impactos no governo de Salvador Allende (1970-1972). 2015, 74 f.
Trabalho de Conclusão de Curso. Departamento de História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.
planejamento do golpe. De acordo com o relatório desclassificado, a movimentação
golpista teria início a partir da ação da Marinha juntamente da Força Aérea, com a
ordem de rendição do presidente. Caso contrário, as forças armadas atacariam a sede do
poder político em Santiago.5
Assim como descreveu o relatório da inteligência estadunidense, em 11 de
setembro, às 6 horas da manhã a Marinha se sublevou. Tropas de Valparaíso se dirigiam
à Santiago e Allende, ainda crente na lealdade dos militares mais próximos, rumou ao
La Moneda. Simultaneamente, na costa, o tenente-coronel da marinha dos EUA, Patrick
J. Ryan reportava às centrais na zona do Canal do Panamá o prognóstico das ações
naquele dia. Marcado por mensagens de resistência do presidente ao povo chileno
através da única rádio em operação, por tentativas de negociação entre governo e forças
armadas, bem como por sons de bombas e aviões cortando o céu de Santiago, o dia do
golpe permanece um momento emblemático cristalizado na memória das chilenas e
chilenos, especialmente, entre aqueles sobreviventes das violações desencadeadas pela
ditadura instaurada posteriormente.
A proclamação militar, em cadeia radiofônica, anunciou o bombardeio ao
palácio do governo em resposta a negativa de Allende em deixar seu posto. Instantes
antes da sua morte, declarando seus sentimentos e esperança de superação daquele
“momento gris y amargo, donde la traición, pretende imponerse”6, Allende buscou
transmitir aos trabalhadores e trabalhadoras a ideia que o moveu ao longo de sua
trajetória política. Na perspectiva de Mario Amorós,
El golpe de estado del 11 de septiembre de 1973 significó una quiebra hasta
hoy irreparada en la historia de Chile. El derrocamiento del gobierno
constitucional, el bombardeo de la moneda y la muerte del Presidente
Salvador Allende marcaron para siempre al regimén de Pinochet y
anunciaron lo que sobrevendría desde aquel mismo dia y durante muchos
años: el absoluto desprecio por la dignidad de millones de seres humanos y la
vulneración de todas las libertades democráticas. Además, aquella
sublevación militar, respaldada por la derecha y la dirección del PDC, abrió
paso también a la refundación del país en términos políticos, culturales,
econômicos, sociales e incluso psicológicos. (AMORÓS, 2009, p.5)
5 FOIA. CIA Report. Claim that Navy to initiate Move to Overthrow the Government that Air Force will
support. 08/09/1973. Disponível em: < https://foia.state.gov/searchapp/DOCUMENTS/pcia/9c9b.PDF>
Acessado em: 02/05/2018 6 Últimas palavras de Salvador Allende. Disponível em: < http://www.blest.eu/biblio/terrazas/cap4.html>
Acessado em: 02/05/2018
A refundação mencionada por Amorós marcou as primeiras declarações da Junta
Militar estabelecida e tornou-se o objetivo maior da ditadura, que através do
apagamento do passado, ansiava pelo alegado nascimento de uma “nova pátria”, com
diferentes valores. A ata de constituição da Junta demonstra mais do que a vontade dos
militares de “restaurar la chilenidad”, apresenta a aversão pelo governo anterior
compreendido como uma “intromisión de una ideologia dogmática y excludente,
inspirada en los princípios foráneos del marxismo-leninismo”.7 No mesmo dia, José
Toribio Merino, membro da Junta, afirmou não se tratar de um golpe, já que a
“consciência legalista” e o espírito cívico” das forças armadas os impediam de fazê-lo.
Segundo o novo comandante, a partir da tomada do poder somente “gobernarán los más
capaces y honestos”, “formados en una escuela de civismo, de respeto por la persona
humana”8, fatos que o próprio processo histórico retifica em contrário.
Em setembro e outubro de 1973, milhares de pessoas que militavam nos partidos
e organizações de esquerda e que haviam apoiado o projeto de Allende foram detidas e
torturadas em locais públicos transformados em centros de detenção. Exemplo disso são
os estádios do Chile e de Santiago e a Ilha Dawson, verdadeiros campos de
concentração após outorgadas as leis que ordenaram dirigentes políticos a se entregarem
às autoridades militares que instauraram a censura.9 Centenas de pessoas foram
assassinadas, em alguns casos por pelotões de fuzilamento. Um dos casos mais
significativos nesses primeiros dias de repressão desenfreada foi do cantor Victor Jara,
assassinado no Estádio de Santiago,r símbolo de resistência e apoio à UP. Todos esses
crimes ocorreram de forma impune e no total estado de guerra interna e impunidade
impostos pela Junta Militar ao país.
Sob a lógica da Junta instaurada a partir do golpe de 1973, a implantação da
DSN em sua totalidade e do Terrorismo de Estado, dependia do componente coercitivo,
indispensável para impor mudanças sem resistência e eliminar os focos da ideologia
7CHILE. Acta de Constituición dela Junta de Gobierno, 11/09/1973. Disponível em: <
http://www.archivochile.com/entrada.html> Acessado em: 03/05/2018 8CHILE. Proclama. 11/09/1973. Disponível em: < http://www.archivochile.com/entrada.html> Acessado
em: 03/05/2018 9CHILE. Bando nº 10 e bando nº15. 11/09//1973. Disponível em: <
http://www.archivochile.com/entrada.html> Acessado em: 03/05/2018
comunista e de toda e qualquer ideologia de esquerda, de modo a suprimir lutas contra
os valores dominantes defendidos pelos autores do golpe e pelos EUA. Embora o setor
golpista tivesse se articulado desde os primeiros momentos do governo de Salvador
Allende para derrubá-lo, não demonstrava preparação para assumir a direção do país, ou
um contraprojeto para fazer frente aos programas desenvolvidos pela UP no passado.
Do mesmo modo, agiram sem coordenação na questão repressiva nos primeiros dias
pós-golpe, quando em diversos lugares do país as lideranças militares tomaram decisões
distintas, com maior ou menor intensidade de violência. Enquanto em Santiago, a
perseguição desenfreada caracterizou a ação policial, em outras cidades mais distantes
da capital não houve prisões ou tortura. Nesse sentido, a DINA, surge como um
elemento padronizador da violência estatal no Chile.
A Dirección de Inteligencia Nacional a partir do Manual de Operaciones
Secretas
Em novembro de 1973, Pinochet encarregou o coronel do exército Manuel
Contreras de executar o projeto de estruturação de um órgão de inteligência nacional
que, em poucos dias, já havia sido aprovado pela Junta Militar. A partir da criação desse
novo aparato repressivo, Pinochet tentava pôr fim às disputas entre os serviços de
inteligência das distintas esferas das forças armadas e carabineiros, pois, submetida
exclusivamente ao seu mando, a DINA realizaria todas as ações ordenadas diretamente
pelo ditador e, do mesmo modo, responderia unicamente ao seu superior. Ainda nesse
período, a DINA começou a assumir em suas propriedades, novas funções tais como
acumular, ordenar e processar as informações que chegavam pelos múltiplos canais,
realizar interrogatórios e fornecer cursos intensivos de contrassubversão.
Oficialmente criada em junho de 1974 a partir do Decreto- lei nº 521, a então
chamada Dirección de Inteligencia Nacional, principal instrumento de contenção dos
“inimigos internos” durante a ditadura, tornou-se pública. Conforme o decreto-lei
considerava-se a necessidade do “Supremo Governo” ter um organismo especializado
que lhe garantisse a entrega de informações devidamente processadas, adaptando suas
resoluções nos campos da Segurança Nacional e Desenvolvimento. Sob essa
justificativa, cria-se a DINA,
[…] organismo militar de carácter técnico profesional, dependiente
directamente de la Junta de Gobierno y cuya misión será la de reunir
toda la información a nivel nacional, proveniente de los diferentes
campos de acción, con el propósito de producir la inteligencia que se
requiera para la formulación de políticas, planificación y para la
adopción de medidas que procuren el resguardo de la seguridad
nacional y el desarrollo del país.10
Embora o decreto apontasse para funções ligadas ao processamento de
informações somente, o papel da DINA extrapolava a própria lei que a instituiu. Os
últimos três artigos, ocultos ao público, foram divulgados apenas no Diário Oficial de
circulação restrita, definindo mais claramente, o caráter repressivo que o órgão
realmente passou a adotar. O artigo 10º, ao afirmar que “la Junta de Gobierno podrá
disponer que las diligencias de allanamiento y aprehensión, fueran necesarias, sean
cumplidas además por la Dirección de Inteligencia Nacional”, permitiu que além do
âmbito da inteligência e informação, o órgão recém instituído atuasse em todo o
espectro de ações da segurança nacional ou atividades de repressão.
Assim, a fim de empregar as diretrizes da DSN e consequentemente do TDE,
conforme as especificidades locais, e repassá-las aos agentes chilenos, a Dirección de
Inteligencia desenvolveu seu próprio manual de operações. Em setembro de 2013, 40
anos após o golpe de Estado, foi enviado pelo historiador Danny Monsalvez da
Universidade de Concepción ao site The Clinic11, um documento intitulado Manual de
Operaciones Secretas. A partir da leitura dessa significativa fonte, à qual Monsalvez
teve acesso, mantendo sigilo sobre sua origem, é possível compreender mais
profundamente no que consistiu o aparato repressivo chileno e os objetivos do serviço
secreto desenvolvido pelo diretor geral, coronel Manuel Contreras e o ditador Augusto
Pinochet. Além disso, o manual, datado de 1976, auxilia enquanto prova da
institucionalização do terror de Estado no Chile.
Constituída por brigadas e grupos de trabalho, a DINA possuía uma estrutura
mutável que contou com a já mencionada diretoria, um Estado Maior, Subdireção e a
10 CHILE. Decreto- lei nº 521, 11 de junho de 1974. Archivo Chile Disponível em:
<http://www.archivochile.com/Dictadura_militar/html/dic_militar_leyes_dm.html> Acessado em:
03/05/2018. 11Manual de Operaciones Secretas. Disponível em: < http://www.theclinic.cl/2013/09/11/operaciones-
secretas-el-manual-inedito-de-la-dina/> Acessado em: 20/03/2018.
Direção de Operações, sendo essa última chefiada por Pedro Espinoza Bravo, conhecido
como “Don Rodrigo” e que antes de assumir tal posição, desempenhou o papel de chefe
do centro de detenção e torturas de Villa de Grimaldi12. Sob as ordens de Espinoza
estavam os departamentos de inteligência do Interior e Exterior e abaixo destas, as
Brigadas de Inteligencia Metropolitana (BIM), de Inteligência Regional (BIR) e de
Inteligência Cidadã (BIC). As Brigadas repressivas dividiam-se em três, Purén,
Caupolicán e Lautaro das quais faziam parte Raúl Iturriaga Neumann, Hermán Barriga
Muñoz, Ingrid Olderock, Marcelo Moren Brito e Miguel Krassnoff Martchenko, nomes
conhecidos entre os presos políticos da DINA em função dos papéis repressores
assumidos por eles. Segundo Priscila Antunes (2007, p.406), a DINA desenvolveu um
padrão típico de comportamento que incluía o uso de agentes descaracterizados,
recrutados no âmbito das Forças Armadas, mas agindo de forma institucionalizada por
fora da estrutura de mando oficial. Os grupos operativos Falcão 1 e 2, Águia,Vampiro e
Tucano além de militares, contavam com agentes civis.
Ligada à direção da DINA estava a Escola Nacional de Inteligencia (ENI), onde
agentes eram treinados e tinham suas técnicas de apreensão, interrogatório, tortura e
assassinato aprimoradas. Nesse local eram ministrados cursos como Relações
Internacionais, Criptografia, tiro, Inteligência e contra-inteligência, e Serviço secreto
como faz referência o próprio manual aqui analisado. (SALAZAR, 2011, p.112)
Embora não se tenha maiores informações sobre a estrutura da escola, ou registros que
confirmem os agentes que por ali passaram, essa fonte histórica esclarece sobre o
conteúdo das lições e consequentemente, sob que bases os civis e militares associados à
DINA foram treinados. De acordo com o Manual, a instituição tinha
por misión realizar todo tipo de operaciones de Inteligencia en el país y en el
extranjero mediante maniobras ocultas y clandestinas que no produzcan
comprometimiento al Estado o sus autoridades y que permita aprovechar sus
resultados en beneficio de los interses nacionales y de la propria
organización.13
E ainda operava
12 Atualmente, transformado em espaço de memória e educação para os direitos humanos Parque por la
Paz Villa Grimaldi. Disponível em: <http://villagrimaldi.cl/> Acessado em: 05/07/2018 13 Manual de Operaciones Secretas. op.cit. p.1
clandestinamente en cualquer lugar y todo tipo de objetivos. El S.S. (serviço
secreto) debe aprovechar que la gente piensa que la ley no será vulnerada.
Esta credibilidad nos dá la ventaja de vulnerar la ley. Lo interesante es que al
actuar clandestinamente hay que saber hacerlo a objeto de mantener esta
credibilid. Ahora bien, la ley tambien ofrece una serie de garantias, las cuales
deben ser explotadas con habilidad y en nuestro provecho.14
Excedendo os limites constitucionais com o objetivo de enquadrar a população e
defender os interesses dominantes, aspecto característico do TDE, a DINA converteu-se
em um aparato coercitivo altamente treinado e com amplos poderes, o que lhe custou,
até mesmo disputas internas com outros setores estatais ligados ao aparato de
inteligência e repressão do país. Utilizando a tática da clandestinidade e
semiclandestinidade, a DINA buscou não apenas legitimar-se dentro da sociedade
enquanto órgão dito defensor dos princípios da segurança nacional e da ordem, como
também cometeu crimes em nome desses valores e protegeu as identidades de seus
agentes, sinalizando a vulnerabilidade das leis em períodos ditatoriais.
Ainda sobre isso, um dos princípios de inteligência apresentados na fonte e que
caracteriza as ações desenvolvidas pela DINA ao longo de sua existência é justamente o
segredo, a clandestinidade, a qual “se consigue mediante la restrición del conocimiento
de una materia al menor número de personas y con el mínimo de reproducción de los
documentos”15 e que explica as lacunas documentais permanentes até hoje no que se
refere aos crimes praticados pela DINA.
Baseado na ocultação, esse aparato repressivo atuou em diferentes regiões do
Chile, criando centros de detenção, onde interrogaram, torturaram e assassinaram presos
políticos, além de desaparecerem seus corpos. Embora a fonte não traga,
especificamente, questões sobre as graves violações com o uso da força física pelos seus
agentes contra os perseguidos políticos - comprovadas e documentadas pelos Informes
Rettig e Valech16- é possível deparar-se com um alto nível de detalhamento do esquema
de inteligência e contra-inteligência arquitetado desde 1973, além de trazer a questão do
interrogatório - técnica amplamente difundida a partir da Doutrina de Guerra
Revolucionária francesa e da DSN estadunidense- como instrumento válido no contexto
14 Idem, p.4 15 Idem, p. 3 16 Informe Rettig. Disponível em: Disponível em: <http://www.ddhh.gov.cl/ddhh_rettig.html> Acessado
em: 04/05/2018 e Informe Valech. Disponível em:
chileno. Dos aspectos práticos, o interrogatório aparece como consequência da coleta de
dados contidos nas fichas, arquivos e históricos dos “suspeitos”, seguidos da vigilância
e da atuação de agentes.17 Assim,
Normalmente, el interrogatório de un sospecho por parte de la O/A
[Operación Activa] se efectua solo despues de haber pesado detenidamente
las ventajas y desvantajas de su arresto. Una vez que se há tomado la decisión
de arrestarlo, hay que interrogarlo de manera meditada, persistente y contínua
por interrogadores especializados, ló que casi siempre tendrá êxito. En
algunos países especialmente en los estados policíacos, los interrogadores no
dudan en emplear presiones físicas y mentales extremas incluídas las
amenazas contra la família del sospechoso.18
As pressões físicas e psicológicas referidas no manual com certa cautela, não
apenas fizeram parte do modus operandi da DINA, como, segundo Salazar (op.cit.,
p.204) agentes brasileiros do Serviço Nacional de Informações (SNI) dirigiram-se ao
Chile para auxiliar no refinamento das técnicas de interrogatório com uso de tortura.
Além disso, dentre os diversos temas tratados ao longo deste documento, pode se
sublinhar a caracterização do serviço secreto quando se aponta o êxito das operações
diretamente ligadas à capacidade e à lealdade dos agentes, que “sumados a la
instrucción, las cualidades personales, preparación y cultura”19 conferem ao organismo
coesão e sucesso. Assim, baseado no “deseo de realizar algo y el hecho de que este algo
no pueda realizarse abiertamente”, o serviço secreto desenvolveria ações encobertas,
ocultas ao público e até mesmo às demais forças pertencentes ao regime. Conforme
constam nas instruções da DINA ainda, seus agentes deveriam se referir a ela como um
“organismo que busca informação”, pois isso “la hace parecer publicamente como
inofensiva e inocente”.20
O Manual de Operaciones Secretas é minucioso, apresenta diversas ordens de
agentes, a forma como devem se portar a fim de camuflarem sua identidade e as
atividades desenvolvidas pelo órgão. O chamado “agente de controle”, por exemplo,
deveria recrutar informantes sem mostrar sua real identidade, fornecendo nome e
profissão falsos- princípios básicos da organização operativa da DINA e de outras
17 Nesse tópico, consta no Manual o exemplo de Angela Calomiris, informante do FBI infiltrada no
Partido Comunista na década de 1940. 18 Manual de Operaciones Secretas, op. cit., p. 87 19 Ibid., p.6 20 Manual de Operaciones Secretas, op.cit., p. 4
polícias políticas em contextos autoritários- o que se convencionou chamar de “história
fictícia”.21 No entanto, o que mais se sobressai na fonte são os aspectos do Terrorismo
de Estado delineados nas recomendações para recrutamento, tais como a quebra da
solidariedade (PADRÓS, 2005, p.35) exemplificada na página 85 do manual quando
menciona a
Oposición activa:
[…] compreende a todos los indivíduos que cooperar
com los servicios de seguridad, incluídos ciudadanos
particulares y grupos o indivíduos com cargo semioficial
(por ejemplo, el portero de una casa que vigila a los
vecinos) En este sentido es siempre aconsejable
considerar a cualquier persona (aunque no intervenga de
momento en la operación) como un colaborador
potencial, voluntário de la O/A.22
Ademais, o já explanado alargamento do conceito de “inimigo interno” também
aparece no excerto abaixo, deixando clara a permanente suspeição imposta a todos os
indivíduos pelo Estado:
La observación e investigación por la polícia e el próprio
servicio de seguridad de personas, grupos, instalaciones,
comunicaciones, etc, que sean sospechosos como
consecuencia de una hipotesis planteada por el susodicho
servicio de seguridad. Desgraciadamente en estos
casos,todos los que tengan relación com los
sospechosos, caen la sospecha lo mismo si son culpables
que inocentes.23
Constantemente, durante a ditadura chilena e em outros países da América
Latina, a todo e qualquer indivíduo se atribuiu a dúvida e, sobretudo, a culpa pelos
focos de resistência existentes nesse sistema autoritário que se pretendia uno e
indivisível. Como se não bastassem as violações individuais sofridas pelos cidadãos
chilenos, restou ainda aos considerados “inimigos internos” e suas redes a violência
física seguida da eliminação. Elemento criado acima de tudo, para justificar a existência
de aparatos como a DINA e impor o medo naqueles que ousassem desafiar o regime, o
“inimigo interno”, o “suspeito” deu aos agentes repressores significado. A ideia de que
21 Ibid., p. 40-45 22 Ibid., p.85 23 Ibid, p.86
militares e policiais das ditaduras de Segurança Nacional latino-americanas constituíam
verdadeiros “salvadores da pátria”, agentes que estavam agindo em prol da defesa
nacional, (PADRÓS, op.cit., p.100) se reproduziu por diversos meios, buscando reforçar
a importância do seu desempenho dentro da ditadura e ao mesmo tempo, manter sua
confiança nos ditadores e nas diretrizes militares. Nesse sentido, o caso do Chile não foi
diferente, pois além de veículos midiáticos como o jornal El Mercurio e militantes de
direita exaltarem a captura de oponentes políticos, o manual de operações secretas traz
esse aspecto da crença e da certeza de se estar agindo em nome de um bem maior
quando indica que
El líder hace sentir a sus I [informantes] las esperanzas que el
tiene por el futuro de su país, un futuro que bien vale los
numerosos sarificios que supone el cumplimiento de su misión
clandestina.24
Desse modo, tendo em vista esse e outros apontamentos realizados ao longo
desta breve reflexão sobre o TDE no Chile e seus desdobramentos, como a criação da
DINA e o treinamento de seus agentes repressores, destaca-se ao fim, a maneira como
Augusto Pinochet se valeu das diretrizes da doutrina estadunidense, da inteligência e
contra-inteligência na tentativa de remover no país todos os elementos ligados à
esquerda, ao marxismo e à UP, julgados como desagregadores desse novo Chile
refundado em bases autoritárias e liberais. O Manual de Operaciones Secretas, fonte
histórica ainda pouco desbravada, que interroga o passado traumático chileno, é apenas
uma pequena amostra da organização conhecida até mesmo como “o monstro”, dentro
das camadas do serviço de inteligência do Centro de Contrainteligencia de las Fuerzas
Armadas.25
Considerações finais
Ponderando os elementos expostos acerca da escalada autoritária e da
consequente aplicação do Terrorismo de Estado em todas as esferas da sociedade
chilena, é inevitável não elencar a DINA como um dos seus principais instrumentos.
24 Manual de Operaciones Secretas, op.cit., p.55 25Segundo consta no relatório secreto do Departamento de Defesa dos EUA. In: FOIA. DINA and
CECIFA internal conflicts and the treatment of deteinees. 05/02/1974.
Arquitetada como aparato repressivo, esse órgão de inteligência e informação gestado
logo após o golpe de Estado recebeu em suas camadas alguns dos agentes treinados
pelas escolas militares nacionais e estadunidenses, que além de interessados em conter a
julgada subversão comunista, iniciaram um agressivo processo contrarrevolucionário.
Embora a Escola das Américas26, localizada no canal do Panamá, tenha
fornecido instrução para alguns dos mais conhecidos torturadores e coordenadores das
brigadas da DINA, era necessário recrutar um corpo de agentes e informantes mais
amplo que dessem conta da complexa estrutura que se formara. Assim, a própria
Dirección desenvolveu sua escola e posteriormente, o Manual de Operaciones Secretas.
Descoberta há apenas cinco anos, essa fonte histórica se mostra esclarecedora no que se
refere aos aspectos da inteligência e segurança no contexto de total anticomunismo e
terrorismo estatal no Chile, pois além de se tratar de um organismo ainda cercado por
mistérios, traz justamente suas características operativas pouco conhecidas do público.
Alguns dos excertos do manual demonstram a ideologia da instituição e os esforços de
suas lideranças em formar agentes capazes de infiltrarem-se no seio dos grupos
opositores à ditadura, capazes de aliciarem informantes, de interrogarem suspeitos, de
violarem as leis em benefício da DINA e consequentemente, do próprio ditador.
As atrocidades cometidas pela Dirección de Inteligencia Nacional,
diferentemente do que almejaram Pinochet e Contreras, não se mantiveram ocultas ou
clandestinas, pois a despeito da quebra da solidariedade dentro de alguns círculos
sociais e da desmobilização, frutos do TDE, outros tantos elos se formaram a partir da
resistência à ditadura, permitindo que os relatos de violações dos direitos humanos
obtivessem alcance mundial através de Comissões da Verdade, sítios de memória, etc.
Apesar de ainda existirem lacunas e silêncio sobre aspectos operacionais e os registros
das atividades da DINA, vale destacar que, gradualmente, estão sendo desvelados seus
crimes e seus agentes julgados e condenados graças à outra importante fonte, os
sobreviventes dos porões da ditadura.
26 Sobre isso ver GILL, Lesley. Escuela de las Americas. Santiago: Lom Ediciones, 2005.
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