Eloah Marcondes Faria
O Corpo Fala Daquilo que não se Tem Os Entraves no Desenvolvimento Psicomotor nas Creches Comunitárias do
Município do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2003
2
Universidade Cândido Mendes
O Corpo Fala daquilo que não se Tem Os Entraves no Desenvolvimento Psicomotor nas Creches Comunitárias no
Município do Rio de Janeiro
Por
Eloah Marcondes Faria
Rio de Janeiro - RJ
2003
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meu marido, a meus filhos,aos companheiros da creche Patinho Feliz e do PETI que tanto me incentivaram para a construção deste trabalho.
4
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao futuro das crianças pelas quais me propus a ajudar a se desenvolver.
5
RESUMO
Este trabalho aborda a questão do desenvolvimento psicomotor em
crianças na faixa-etária de 0 a 6 anos, acompanhadas em algumas creches
comunitárias do Município do Rio de Janeiro. O objetivo é investigar as
implicações existentes entre a qualidade de relação da criança em seu seio
familiar e as privações vivenciadas por estas, o que leva a entraves na
psicomotricidade.
As dificuldades das famílias oriundas das comunidades em ter acesso aos
serviços básicos de assistência, educação e saúde, prejudicam a manutenção da
qualidade de vida, desencadeando um empobrecimento material e nas relações
que se cristalizam e se repetem por gerações.
Propomos pensar ainda sobre a forma como o espaço da creche poderá
servir como instrumento reestruturante da relação entre responsável e criança,
bem como prevenir futuros comprometimentos no desenvolvimento psicomotor
desta, evitando assim a cronicidade dos problemas apresentados atualmente,
expressos na aprendizagem ou nas relações interpessoais, onde as possibilidades
de encontro ficam sempre adiadas para um dia que nunca vem.
6
SUMÁRIO
paginas
INTRODUÇÃO ........................................................................................ 07
Capítulo I : As Crianças da Favela e os Técnicos que Falam Delas ........ 09
Capítulo II: As Leis ..................................................................................... 17
Capítulo III: As Creches da e para as Comunidades: em busca de um futuro
melhor ................................................................................................... 23
Conclusão ................................................................................................... 26
Bibliografia .................................................................................................. 29
7
INTRODUÇÃO
As comunidades carentes do Município do Rio de Janeiro contam, há
alguns anos, com a criação de creches comunitárias, atendendo crianças de 0 a 6
anos. O objetivo básico é acolhê-las em local seguro enquanto seus responsáveis
trabalham. Na prática,no entanto, em muitas instituições a proposta vem se
aperfeiçoando ao longo dos anos e o espaço deixou de ser apenas um local de
abrigo para transformar-se em centro de estimulação e busca de atingir o
desenvolvimento integral das crianças.
Tenho a oportunidade de participar das atividades de uma creche. Nesta
instituição, nós da equipe, discutimos freqüentemente sobre as crianças
acompanhadas, bem como mantemos um trabalho de conscientização com os
pais sobre a importância de sua participação no desenvolvimento de seus filhos.
Observamos que algumas crianças necessitam de um olhar particularizado
por não estarem com o desenvolvimento psicomotor compatível com sua idade
cronológica e deste modo, vislumbramos possíveis comprometimentos no futuro,
por não estar bem integradas com seu corpo, o que poderia levá-las a dificuldades
em todos as áreas de suas vidas. Ao colhermos dados destas crianças com seus
responsáveis, detectamos que a falta de estimulação, empobrecimento dos
vínculos afetivos e privações são fatores que fazem parte integrante da realidade
das mesmas.
A correlação de entraves no desenvolvimento psicomotor e a privação em
todos os níveis vivenciadas pela criança no seio familiar, habitantes de
comunidades à margem do acesso aos serviços e direitos básicos de todo o
cidadão, é a tônica deste trabalho.
Proponho pensar esta temática sob a luz das formulações teóricas da
Educação Psicomotora e da Psimomotricidade Relacional, além de outros teóricos
8
que dêem subsídios para desenvolver o tema da privação e suas implicações no
processo evolutivo integral da pessoa. Este caminho possibilita pensar a
estimulação e incentivo ao desenvolvimento das potencialidades da criança no dia
a dia do trabalho na creche. Remete ainda a importância dos vínculos afetivos
estabelecidos entre as crianças, seus pais e profissionais da creche, bem como
amplia a discussão para a relação bio- psico- social.
Procurei coletar dados à pesquisa utilizando o recurso de entrevistas com
profissionais da área, de comunidades diversificadas, visando assim, entrecruzar
dados relevantes para o estudo.
9
Capítulo I.
As Crianças da Favela e os Técnicos que Falam Delas.
A Psicomotricidade saiu do discurso médico, refém do olhar organicista,
neurofisiológico que a fundou. Deixou de ver o homem como uma máquina,
objeto passível de ser manipulado pelo especialista bem intencionado em reparar
os danos causados por uma disfunção motriz. Enriqueceu-se quando incluiu em
seu campo de observação, o corpo, expressando o mundo interno, emocional,
fantasmático e cognitivo. O movimento passa a ter uma significação simbólica que
fala sobre a história da pessoa.
A aplicação da Psicomotricidade no campo educacional e terapêutico, sem
a caracterização exclusiva de uma posição reeducativa, foi um grande avanço
para a atuação profissional. Atualmente o psicomotricista observa as disfunções
psicomotoras incluindo-se em um campo relacional para acompanhar os
movimentos da pessoa lado a lado, fazendo parte de seu processo de mudanças.
Ë neste ponto que podemos introduzir o trabalho realizado nas creches
comunitárias de algumas favelas do Município do Rio de Janeiro.
E., fonoaudióloga de uma creche localizada Complexo dos Macacos, favela
do Rio de Janeiro, comenta:
“O grande vazio que trazem essas crianças me parece ser a falta
de estímulo em casa. As histórias familiares confusas, sendo
muitas vezes as necessidades mais básicas ausentes, a falta de
estabilidade familiar, a falta de estrutura muito precária, às vezes
nenhuma, a baixa escolaridade dos pais, a maioria dos familiares
sem apoio emocional, a violência vista de muito perto na
comunidade e muitas vezes dentro da própria casa. Os pais não
têm muito com que contar, com o que sonhar.” ( o grifo é meu).
10
E. pode perceber que o “vazio” trazido pelas crianças se contextualiza em uma
história de vida cujas famílias não “têm apoio emocional, com que contar ou
sonhar”. Sua fala remete a pesquisa realizada em 1951, pelo psiquiatra e
psicanalista John Bowlby, em vários países da Europa e nos Estados Unidos,
sobre os efeitos causados pela privação do vínculo materno- infantil em períodos
distintos na vida da criança. Embora a pesquisa tenha sido realizada há muitos
anos e apesar de sermos um país de terceiro mundo, infelizmente a nossa
realidade atualiza, diariamente, as constatações do pesquisador e especialista em
saúde mental infantil.
Bowlby distingue três situações nas quais a criança sofre privação da mãe:
a) Privação parcial: a mãe ou sua substituta (permanente) vive com a criança,
mas sua atitude para com ela não é satisfatória.
b) Privação total: perda da mãe ou substituta ( permanente) por morte, doença
ou abandono, sem que ninguém da família possa assumir este papel.
c) Privação total: a criança é retirada da mãe ou sua substituta (permanente) e
entregue a estranhos por intervenção da justiça ou serviço de saúde pública
ou assistência social.
O pesquisador dá maior ênfase aos dois últimos itens, pois busca justificar a
importância de manter a criança no seio familiar para a sua integridade mental.
Naquela época, a política de assistência reforçava a internação ou doação
quando a família natural era insatisfatória ou inexistente. Apesar disso, ele
descreve as causas do fracasso do grupo familiar natural ao cuidar da criança
e neste sentido, vislumbramos as famílias aqui tratadas.
Diz ele, que as causas do fracasso agrupam-se em 3 categorias, de acordo
com a situação do grupo familiar:
“...(1) Grupo familiar natural não estabelecido:
Ilegitimidade.
(2) Grupo familiar natural intacto, mas sem funcionar eficazmente:
11
Condições econômicas que levam ao desemprego do arrimo da
família, resultando em situação de miséria.
Doença crônica ou incapacidade de um dos pais.
Instabilidade ou desequilíbrio mental de um dos pais.
(3) Grupo familiar natural dissolvido, e portanto, não funcionando:
Calamidade social: guerra,fome.
Morte de um dos pais.
Enfermidade de um dos pais, com necessidade de
hospitalização
Prisão de um dos pais.
Abandono por um ou ambos os pais.
Separação ou divórcio.
Pai trabalhando em outra localidade.
Mãe trabalhando em horário integral.” (Bowlby,1988,
págs.80 e 81).
O pesquisador afirma ainda que “qualquer família que apresente uma ou
mais destas condições pode ser considerada como uma possível fonte de
crianças com privação” (idem). Acrescenta que ela sofrerá ou não privação,
dependendo das condições de cada família, isto é, se a situação de perda,
incidentes traumáticos ou comprometimento mental, além da miserabilidade,
atinge ambos ou apenas um dos pais. Outra questão levantada é a existência
ou não de auxílio para atender a carência dos membros atingidos e a
possibilidade de acolhimento à criança feita por outros parentes ou vizinhos.
Como vimos, as crianças de nossas comunidades estão representadas em
vários destes itens, forçando-nos a pensar no compromisso que uma
instituição como a creche pode ter para amenizar esta dura realidade.
Bowlby procurou levantar os fatores subjacentes que levariam a privação
infantil, pois considera que a negligência, o desajustamento e o abandono do lar, a
ilegitimidade e a crueldade física não são exclusivamente um câncer inevitável
12
dos problemas sociais mas também são reações sintomáticas, desajustamentos
emocionais e psíquicos. Coloca ele:
“... o maior conhecimento atual da natureza humana e da parte
que a família representa no desenvolvimento da pessoa fornece
muitas e valiosas chaves para a compreensão dos fatores
atuantes. Todas estas forças podem ser agrupadas, de uma
maneira ampla, sob os fatores econômicos, sociais e médicos: o
fator econômico inclui as possibilidades – ou impossibilidades –
de a família se sustentar adequadamente; o social inclui o sistema
social no qual o indivíduo se insere e que lhe dá maior ou menor
amparo; o fator médico inclui a saúde física e mental dos pais,
que determinará o uso que será feito das oportunidades
oferecidas...”
Mas afinal, em que estes fracassos e a privação resultam? Em que medida
estes fatores traduzem em entraves no desenvolvimento psicomotor das
crianças de nossas creches comunitárias? Para responder a essas questões,
recorro ao depoimento dos profissionais atuantes na área.
L. foi diretora de uma creche na Barreira do Vasco e atuou como pedagoga
em mais duas outras instituições de comunidades diferentes – Comunidade Boa
Esperança no Caju 00e Complexo do Borel. Segundo a mesma, há vários
fatores evolvidos nesta questão: a ausência dos pais no acompanhamento do
filho, dentro e fora da creche, comprometimentos ligados à saúde física e mental
dos pais que impossibilitam um vínculo qualitativo com o filho no sentido de seu
desenvolvimento integral, a preocupação das recreadoras em privilegiar os
cuidados físicos do bebê, evitando críticas por parte da mãe, em detrimento do
fornecimento de estimulação. Esta ultima informação é interessante, pois
sinaliza que, para a recreadora, a estética ilusoriamente indica o “bem cuidar”
aos olhos críticos da mãe. L. comenta que as recreadoras são , em geral,
13
moradoras da própria comunidade e por isso preocupam-se tanto em manter as
crianças de suas “vizinhas “bem arrumadas. Acrescenta que esta problemática é
foco de um intenso trabalho no sentido de conscientizá – las que as crianças
precisam ser olhadas como seres em desenvolvimento e que para isso os
cuidados deve se concentrar na possibilidade de contato inter-humano para o
seu desenvolvimento psicomotor e emocional.
E., pedagoga com vasta experiência em creches do Complexo do Turano e
da Comunidade da Formiga no Bairro da Tijuca, observa que o empobrecimento
psicomotor apresentado por algumas crianças deve-se também ao temor dos
pais em deixar seus filhos brincando livremente com outras crianças fora de
casa por causa das eventuais balas perdidas. Com isso elas ficam confinadas
em casa, enquanto a mãe sai ou encontra-se envolvida com as tarefas
domésticas. A falta de lazer é uma questão relevante nas comunidades,
constituindo um canal de alienação cultural de seus moradores , reforçando a
“cultura da violência”, a desinformação e cerceando a liberdade de criar
alternativas para a vida.
A fonoaudióloga que trabalha no Complexo dos Macacos concorda com esta
questão. Comenta que :
“... a criança é pouco estimulada, pouco requisitada, que conhece
pouco do mundo. Muitas são excluídas quase que totalmente da
vida fora das comunidades (passeios, atividades culturais, lazer).
Pela carência econômica, tem pouco estímulo dentro de casa
como brinquedos educativos e até mesmo espaço físico para
brincar”.
As casas destas famílias são apertadas, geralmente divididas por muitas
pessoas. Não há delimitação clara deste espaço, pois a sala muitas vezes
servem de dormitório e local de refeição. Não é difícil encontrar habitações sem
banheiro ou cozinha. Nestes espaços reduzidos e numerosos, somos levados a
14
pensar que a criança tenha dificuldade em desenvolver a percepção espaço-
temporal, além de, possivelmente ter dificuldade em delimitar seu espaço, pois
os irmãos se aglomeram e invadem limites pertencentes ao outro. Além disso,
é comum observarmos que os responsáveis batizam as crianças por apelidos
que passam a ter mais reconhecimento que os nomes, o que dificulta ainda mais
a construção da identidade.
Estas crianças costumam reagir agressivamente, parecendo assim tentar
brigar para preservar algo de si. Estas histórias se repetem na creche através de
disfunções psimotoras, total falta de limites, desatenção e baixa auto –estima.
A pedagoga e fonoaudióloga Helena Krause Lipet Slipoi, em conferência no 1o
Congresso Brasileiro de Psicomotricidade, enfatiza que o pensamento constrói-
se a partir da atividade motora exploratória de seu meio externo, proporcionando
experiências concretas para o desenvolvimento intelectual. A liberdade de
vivenciar prazerosamente e conhecer o mundo que a cerca é de fundamental
importância para o desenvolvimento afetivo. O corpo da criança é o recurso
intermediador entre o mundo e a si própria. Ë por esse motivo que o
reconhecimento de seu corpo é fundamental.
Lê Boulch (1992), utiliza o termo “esquema corporal” criado pelo
neurologista Henry Head, em 1911, para pensá -lo como a construção de um
modelo postural da própria pessoa. Este modelo compreende os gestos do
corpo, seja em contato com o próprio corpo ou com os objetos externos.
Meur (1989), coloca que o esquema corporal é um fator fundamental para o
desenvolvimento da personalidade da criança. Ë ainda a base que estrutura as
percepções temporo-espacial.
A construção do esquema corporal sofre interferência de processos
evolutivos do campo sensório – motor, da maturação neurológica e dos vínculos
inter - humanos. Seu desenvolvimento passa por etapas gradativas, mas sua
elaboração parece ocorrer antes mesmo que a criança consiga nomear as partes
de seu corpo. Isto é, ao lado da construção de um corpo “objetivo“, estruturado e
15
representado como objeto físico, existe uma experiência precoce, global e
inconsciente de um corpo subjetivado que será a base estruturante da forma como
o indivíduo irá desenvolver a imagem e representação de si.
Retornando às crianças das creches comunitárias em foco neste trabalho,
constata-se que diante do contexto bio-psico–social no qual observamos
empobrecimento nos aspectos cognitivos, afetivos, nutricionais e carências
outras inerentes à realidade que a pobreza impõe, detecta-se perturbações do
esquema corporal que, por sua própria concepção, interfere em todas as áreas
do desenvolvimento da criança:
Entende-se estas perturbações como um mau conhecimento ou
desconhecimento do corpo além da baixa qualidade da regulação tônica e
respiratória e uma desarticulação perceptual quanto ao tempo e o espaço. Há
influência direta da afetividade nestes processos, normalmente perturbadas,
resultando em bloqueio à aprendizagem.
Meur (1989) descreve alguns sintomas resultantes do comprometimento do
esquema corporal.
- Não reconhece as partes do corpo: o desenho da figura humana é pobre e
inadequada para a idade cronológica, com representação das partes do
corpo de forma confusa. Não consegue nomear as partes do corpo.
- Não coordena bem seus movimentos: não consegue ter o domínio do corpo
quando em ação, resultando em lentidão, necessidade de pensar para
acompanhar o ritmo do movimento e muitas vezes, acaba se atrapalhando,
tentando agir rápido ou não concluindo a ação.
- Não posiciona bem seus membros ao gesticular: Por conta de ignorar as
possibilidades espaciais de seu corpo ou por ter dificuldade em concentrar-se
e perceber a posição de seu corpo, observa-se uma desarmonia em seus
movimentos ou dificuldade em imitar alguma ação.
Também para Masson (1985), quando não há deficiência mental ou motora
que justifique tais perturbações, o componente afetivo possui forte interferência.
Tais dificuldades poderão influenciar na capacidade da aquisição do simbolismo
16
e conceituação, no relacionamento, no sentido de associar o desejo de
expressão e comunicação.
As crianças que moram nestas comunidades possuem muitas restrições por
tudo que foi exposto. Compreendemos que a base de todos estes problemas,
remonta de muitas gerações de pessoas marcadas pelas carências em todos os
níveis, que transmitem a seus filhos os (des) valores que aprenderam com seus
pais, revivem neles, as próprias dificuldades que passaram com a aprendizagem
ou com o domínio de seus corpos.
Atualmente, qualquer cidadão tem assegurado constitucionalmente o acesso
à saúde, à educação e a participação de políticas públicas de assistência. Esta
questão será mencionada no próximo capítulo.
17
Capítulo II.
As Leis.
Antes de pensar sobre as leis que asseguram os direitos do cidadão
comum e da criança em particular, devo introduzir a concepção de cidadania no
sentido de como é vista na atualidade.
Ao longo da história, os valores de uma sociedade podem modificar-se em
função do surgimento de novos estilos de vida, mudanças de pensamento
operante ou acontecimentos que redimensionam a forma de viver das pessoas.
Atualmente, o valor liberdade é constituinte de nossa sociedade, o que
significa dizer que as pessoas possuem o livre arbítrio para decidirem seus
próprios valores,expressarem suas opiniões e definirem seu modo de vida.
Como todos são livres, independente de classe social, raça, religião ou sexo,
o valor igualdade vem complementar tal concepção. Ë sob a idéia de que todo o
ser humano é livre e igual que repousa a noção moderna de cidadania. Somos
todos iguais perante as leis, possuímos os mesmos direitos, deveres e
oportunidades, merecendo o mesmo tratamento e consideração.
Marcelo A. Sousa (2000) situa a idéia de cidadania como:
“ ... a transposição da noção moderna de humanidade para o
plano da política e do direito. Os valoras fundamentais que
organizam as sociedades modernas – liberdade e igualdade –
são, assim, “traduzidos” para o sistema de direitos e para as
relações políticas, originando o papel social “cidadão”.
As mudanças produzidas pela nova visão sobre a representação de
humanidade e todos os valores que a acompanham disseminaram-se em todo o
mundo. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 abriu espaço para a
18
implementação de novas diretrizes pautadas nestas novas concepções. Com a
passagem do regime militar para a democracia, houve uma grande mobilização
popular e a criação de representatividade da sociedade civil nos meios políticos,
resultando em avanços significativos para a condução do convívio em
sociedade.
As instituições educacionais e de saúde, as políticas públicas em todos os
níveis devem respeitas estas regras. A nova regulamentação de diretrizes para a
educação e para a garantia de direitos à crianças e adolescentes têm sua
expressão nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação e o Estatuto da Criança
e do Adolescente.
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
O ECA foi promulgada em 1990, recebendo o nº 8.069. ë um instrumento
fundamental para nortear qualquer cidadão sobre os direitos da criança e
adolescente, além de definir os deveres do Poder Público, da sociedade civil da
família e da comunidade quanto as medidas protetivas sobre os mesmos.
Artigo 4o – “ ë dever da família, da comunidade, da sociedade em
geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a
efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária”.
A regulamentação do Estatuto se deve, em grande parte, a mobilização de
segmentos sociais voltados para a assistência infanto- juvenil que reivindicavam
maiores direitos para nossa infância. Com isso, a Constituição Federal de 1988,
no artigo 227, define a criança e o adolescente como “prioridade nacional”. O
ECA veio assim, regulamentar esse artigo.
A visão de infância e adolescência cunhada no Estatuto atende às
expectativas daqueles comprometidos com o a defesa e atendimento de nossas
19
crianças, pois enfatiza a especificidade desta fase da vida humana, assegurando
seu desenvolvimento integral, como mostra no artigo 3o :
Artigo 3o – “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo de
proteção integral de que trata esta Lei, assegurando- se- lhes, por
lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a
fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social em condições de liberdade e dignidade.”.
Vê-se portanto, que ao ser assegurado direitos, prevê também deveres e
impõe medidas para a sua efetivação. Esse processo impulsionou a criação de
órgãos que desenvolvem projetos voltados para a assistência e
acompanhamento às crianças / adolescentes e suas famílias, bem como as
políticas públicas também intensificaram -se. Juridicamente, observamos a
organização de setores especiais de proteção à criança e adolescente.
No campo da educação as diretrizes pedagógicas também estão
respaldadas nas determinações do ECA.
No Capítulo IV – do Direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer,
Artigo 54, item IV, consta que “atendimento em creche e pré – escola às
crianças de zero a seis anos de idade;”
Leis de Diretrizes e Bases da Educação
A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, recebeu
o nº 9384 e define dois níveis de educação escolar:
Artigo 21 – “a educação escolar compõe-se de”:
I. Educação Básica – educação infantil, pelo ensino
fundamental e ensino médio;
II. Educação superior – cursos de graduação e pós-
graduação (mestrado, doutorada,
20
especialização,aperfeiçoamento e outros), extensão e
cursos seqüenciais por campo do saber.”
Interessa – nos enfocar a educação infantil, que divide-se em : creche –
atendendo crianças de zero a 3 anos e 11 meses e a pré-escola, que matricula
crianças de 4 a 6 anos.
Vê-se que a Lei coloca o processo educacional de forma abrangente e que,
embora a creche e a pré –escola façam parte do sistema educacional, a família
e instituições de ensino são parceiras e responsáveis pela formação da criança,
o que demanda um bom relacionamento entre ambos.
Embora ainda não seja obrigatória, atribui um valor maior à educação dos
primeiros anos de vida do que na LDB anterior. Nesta, no Capítulo 2o do Artigo
19 diz que: “os sistemas de ensino valerão para que as crianças de idade inferior
a sete anos recebam conveniente educação em escolas maternais, jardins de
infância e instituições equivalentes”.
O grande destaque na LDB em relação à educação infantil refere-se ao
reconhecimento da importância dos primeiros anos de vida para a formação do
indivíduo, o que implica na compreensão de que esta fase deve ser foco de
prevenção contra males futuros, tanto no processo de aprendizagem quanto na
integração do sujeito no campo social. Neste nível de educação, o enfoque recai
sobre o desenvolvimento integral da criança, abrangendo os aspectos físicos,
psicológicos, intelectual e social.
Outra questão importante a apontar é a descentralização administrativa.
Isso quer dizer que as instituições são responsáveis por suas propostas
pedagógicas, o que favorece o maior intercâmbio com a comunidade, mantendo
coerência com a sua realidade, distribuição de responsabilidades sobre as
competências ( tanto a nível de órgãos governamentais quanto aos membros da
própria instituição).
A Lei prevê que daqui a alguns anos, a formação dos professores que
trabalham na educação básica será de nível superior (artigo 62). Este item é
21
polemico, exigindo mais discussões e esclarecimentos. A qualificação
profissional envolve custos, valorização da profissão em termos de mercado de
trabalho, diferenciação de categorias. As nomenclaturas: educador social,
recreadores de creche, agente educador etc não possuem o mesmo peso que o
professor em termos de nível de escolaridade, salário, atribuições etc. No
entanto, daqui a três anos, todas as creches e pré-escolas serão integradas ao
sistema municipal e estadual de educação de ensino. Com isso, o que
acontecerá com os educadores que trabalham nas favelas? Terão acesso ao
ensino superior? Não se discute que com a qualificação destes, há a
possibilidade de sua promoção social e aumenta a qualidade nos cuidados à
criança. Embora a Lei tenha sido formulada sob a concepção da igualdade,
sabemos que na prática, o risco de se reforçar a exclusão é grande, uma vez
que para esta equiparação o investimento é muito alto. Há portanto muitas
questões a serem discutidas para conseguirmos chegar a uma sociedade
realmente justa e não idealizada.
Os artigos 30 e 31 determinam que as crianças deverão desenvolver seu
potencial em creches ou entidades equivalentes e a avaliação neste estágio de
escolarização “far –se –á mediante acompanhamento e registro de seu
desenvolvimento, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino
fundamental”. Esta proposição nos faz pensar que o método de avaliação deixa
de ser discriminatório e seletivo para tornar-se globalizante e comprometido com
o estágio de desenvolvimento da criança. Tal perspectiva possivelmente lavará a
uma necessidade crescente de aprofundamento teórico e técnico de
conhecimentos ligados a infância. Neste aspecto a Psicomotricidade impõe sua
presença.
Para concluir, é importante assinalar que a Lei chama também à
responsabilidade participativa, o sistema de saúde e os órgãos da assistência
social. Esta questão é muito positiva, pois não podemos conceber o
funcionamento de uma creche, em especial a creche comunitária, desarticulada
destes setores da sociedade.
22
Capítulo III.
As Creches da e para a Comunidade: em busca de um futuro melhor.
Historicamente, podemos dizer que até a Constituição de 1988, a questão da
infância pobre foi pensada como questão de inferioridade, carência ou doença.
Após a Constituição, ela foi colocada como questão de cidadania.
Os movimentos pró-criança iniciaram no fim da década de 80, com a
abertura política, a regulamentação do ECA e com o surgimento das
organizações da sociedade civil. As Organizações Não Governamentais (ONGs)
e as políticas públicas oficiais contribuíram para o delineamento de uma nova
panorâmica na atenção à criança.
No Município do Rio de Janeiro, as creches comunitárias vinculavam-se a
Secretaria Municipal do Desenvolvimento Social. O trabalho da secretaria teve
início no final da década de 70 e início de 80, mas oficializou –se como Projeto
Especial ligada à Gerência de Projetos da Secretaria, em 1994, sendo batizada
como “Rio Creche”.
Com o incremento do trabalho da mulher fora de casa, aumentou a demanda
de ‘mães crecheiras nas comunidades“ gerando questionamentos sobre o
fornecimento de tratamento adequado às criança. Houve assim uma mobilização
da representatividade nas comunidades, reivindicando apoio formal dos órgãos
públicos. As creches beneficiam crianças de 0 a 3 anos e 11 meses em vistas a
retirá-las da situação de risco social e/ ou pobreza absoluta.
Uma outra proposta de trabalho é o PROAP II/ Favela Bairro. Com a
urbanização das favelas, há o desenvolvimento de vários projetos sociais
mantidos sobre a aprovação de uma comissão técnica e supervisão da SMDS.
O trabalho é realizado por organizações da sociedade civil (OSCs) conveniadas
com o município.
23
Com a LDB (9384/96), as creches estão se integralizando, gradativamente, à
Secretaria Municipal de Educação. Com esta mudança, os objetivos de
atendimento deixam de pender para a assistência e ganha uma evidencia maior
da questão educacional. Neste sentido, a comunidade ganha, uma vez que a
probabilidade de construção de um processo formativo destas crianças é maior,
em termos de desenvolverem suas potencialidades a partir de uma atuação
mais especializada por parte dos educadores. Para isso no entanto, os
profissionais atuantes também deverão passar por mudanças significativas, pois
enquanto a creche voltava-se para a proteção de riscos, qualquer pessoa bem
intencionada e dedicada, poderia assumir tal função.
Ë fato que as “mães crecheras” enquadravam-se nestas características, pois
geralmente não possuíam um nível de instrução que possibilitasse ter
conhecimento sobre o processo de desenvolvimento infantil.
Com a perspectiva educacional, o olhar deve ser mais especializado, sendo
este fator, como vimos, garantido por lei.
A faixa – etária que as creches acompanham possuem uma abrangência muito
grande e cada período do desenvolvimento requer uma atenção específica. A
área psicomotora perpassa por todas elas assinalando as características de
cada uma delas. A Psicomotricidade não se restringe, como vimos, aos aspectos
motores, nem no estudo exclusivo dos movimentos, mas implica os fatores bio-
psico- social.
Eny Maria José apresentou seu trabalho realizado em um berçário de uma
creche comunitária do Município de Porto Alegre, no 1o Congresso Brasileiro
de Psicomotricidade no Rio de Janeiro em 1982. Fez algumas considerações
relevantes sobre esta questão levantada:
“Os objetivos que se teve, quando se decidiu trabalhar no
berçário do Centro Infantil Érico Veríssimo, foram o de
acompanhar e controlar o desenvolvimento das crianças com
atraso de desenvolvimento e fazer encaminhamento a serviços
24
especializados, quando necessário. Mas, ao constatar a
realidade, observou-se que muito deveria ser feito na área de
prevenção da saúde física e mental. Sentiu-se que os objetivos
traçados deveriam ser ampliados, de modo a atingir a todo o
adulto que lidasse com a criança. Não bastava fazer o controle do
desenvolvimento se o ambiente não era motivado para facilitar
esse desenvolvimento.” ( Eny Maria, 1982, pág.159).
O desenvolvimento de novos saberes implica na inclusão dos aspectos
psicomotores. Neste sentido, até os educadores especializados que a LDB
postula deverão estar inteirados das idéias básicas desta área. Além disto, como
foi constatado nos depoimentos transcritos no trabalho e na avaliação da
psicomotricista Eny Maria José, os usuários das creches comunitárias possuem
realidades diferenciadas das creches da classe média. O trabalho deve estar
entrelaçado com serviços que respondem pela área da saúde e assistência,
visando efetivamente um processo de mudança.
25
Conclusão
O movimento no espaço traça a rota de um ato. No ato está implícito o jeito
de ser, a forma de se expressar e a possibilidade de usar o corpo como
instrumento de comunicação. O movimento portanto é muito mais que ato.
Carrega em si uma mensagem.
O bebê gradativamente vai transformando seus movimentos em expressão
de afeto, de fantasias, de reconhecimento e descobertas. Para esta grande
conquista precisa fundamentalmente do vínculo com o humano. Para se saber
indivíduo precisa primeiro misturar-se, reconhecer-se através do olhar do outro,
através do amor do outro.
Neste trabalho procurei colocar em foco as conseqüências que pode
ocorrer quando falta esse olhar. O movimento se interrompe ou se apressa, o ato
não se harmoniza e nos dá a impressão de que alguma coisa está para ser
concluída ou então algo de muito importante ficou para trás.
André Lapierre (1982) nos fala que:
“ quando a criança apresenta problemas de aprendizagem que
são, aparentemente, problemas de nível intelectual, sempre se
encontra sobre esses problemas, no nível mais profundo,
problemas de ordem afetiva, problemas de relação com o próprio
corpo, problemas de relação com o outro, conflitos mal resolvidos,
mal assumidos na primeira infância.” ( Lapierre, 1982, pág.41)
Muitas mães que vão à creche quando solicitadas, sentem-se acolhidas e
choram e lamentam por não se olharem. Às vezes essas pessoas não têm tempo
ou não querem parar e pensar na vida. Os profissionais da creche convocam
alguns responsáveis por perceberem nos filhos as marcas da negligencia,ou da
violência ou a total falta de investimento na criança.
26
Retornando a Bowlby :
“Pode-se portanto apontar pelo menos duas formas de
negligência: a física e a emocional. Embora as duas formas
freqüentemente coexistam,é muito importante distingui-las, visto
que necessitam de corretivos diferentes. De modo geral, vê-se
que, enquanto a negligencia física é causada, com maior
freqüência por fatores econômicos, enfermidade da mãe e
ignorância, a negligência emocional é resultante da instabilidade
emocional e doença mental dos pais. A deficiência mental pode
contribuir para ambos os casos.” ( Bowlby, 1988,pág.84).
“Além dessas desordens irreversíveis de personalidade que
podem conduzir a uma total negligência, encontram-se os estados
passageiros de ansiedade e depressão que, quando presentes na
mãe, pode levá -la a se desinteressar pelos afazeres domésticos,
fazendo com que o lar gradativamente se torne um pardieiro. Seu
amor pelos filhos pode desaparecer ou pode ficar mesclado com
impaciência ou severidade. Apesar desta situação ser de, fato
uma doença e necessitar de auxílio médico,ela permanece
freqüentemente sem diagnóstico até que o lar tenha decaído além
dos limites toleráveis e, então, é mais provável que a atitude da
mulher seja considerada um problema social.” ( Bowlby, 1988,
pág.86).
Diante do exposto, não é difícil concluir que o espaço da creche possui um papel
fundamental para as crianças e seus responsáveis. A capacitação daqueles que lidam
diretamente com eles, a perspectiva de tornar a instituição em promotor de saúde física
e mental para estas crianças que ainda possuem muita história a ser construída e que
convive com pais que não conseguem oferecer muito mais do que aquilo que são
capazes de dar, transformam a instituição em um pólo profilático, que ultrapassa
inclusive, os limites educacionais.
27
O processo educacional nas creches comunitárias é um facilitador para
transformar estas crianças em cidadãs e, por tabela transformar o futuro das
comunidades.
Como diz Rubem Alves:
“... a questão decisiva não é a compreensão intelectual, mas o ato
de amor e de paixão, fundadores de mundos; quando este se
esvai, com ele se esvai o ímpeto criador, capaz de gerar, amorosa
e maternalmente, um novo ethos civilizacional.” ( Alves, Rubem,
1982)
28
Bibliografia
Alves, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. Cortez Editora,
SP,1982.
Bowlby, John. Cuidados maternos e saúde mental. Ed. Martins Fontes,SP,1988.
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Estatuto da
Criança e do Adolescente. Junho / 2002.
Damatta, Roberto. “Cidadania; a questão da cidadania num universo
relacional”. In: A casa e a rua; espaço cidadania, mulher e morte no Brasil.
Brasiliense, SP, 1985.
SENAI. DN. Educação e Cidadania. Brasília, 2000 (série Formação para
Formadores).
Masson, Suzanne. Generalidades sobre a reeducação psicomotora e o exame
psicomotor. S.P. Manole,1989
Meur, A .de. Psicomotricidade: educação e reeducação: níveis maternal e
infantil. SP. Manole, 1989.
SENAI.DN. LDB e a educação profissional. Rio de Janeiro, 1997.
Sociedade Brasileira de Terapia Psicomotora. 1o Congresso de Terapia
Psicomotora. Anais, Uerj, RJ, 1982.
29
30