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7/30/2019 NAVEGAR () IMPRECISO: RECONHECENDO A ARTE DO SCULO XX A PARTIR DE NOME , DE ARNALDO ANTUNES
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ORLANDO LOPES ALBERTINO
NAVEGAR () IMPRECISO: RECONHECENDO A ARTE DO
SCULO XX A PARTIR DE NOME, DE ARNALDO ANTUNES
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO
Vitria, 1999.
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DEFESA DE TESE
ALBERTINO, Orlando Lopes. Navegar ()
impreciso: reconhecendo a arte do sculo XX apartir de Nome, de Arnaldo Antunes.Dissertao de Mestrado em Estudos Literrios,apresentada Coordenao do Programa dePs-graduao em Letras da UFES. Vitria,1999, fls.
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________________________Professor Doutor Wilberth Claython Ferreira Salgueiro (Orientador)
____________________________________________________________
Professor Doutor Andr Luiz de Lima Bueno
____________________________________________________________
Professor Doutor Alexandre Jairo Marinho de Moraes
____________________________________________________________
Professor Doutor Lino Machado
Defendida a tese
Conceito:
Em: ____/____/____
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ORLANDO LOPES ALBERTINO
NAVEGAR () IMPRECISO: RECONHECENDO A ARTE DO
SCULO XX A PARTIR DE NOME, DE ARNALDO ANTUNES
Dissertao de Mestrado em EstudosLiterrios apresentada Coordenaodo Mestrado em Estudos Literrios doPrograma de Ps-Graduao emLetras da Universidade Federal doEsprito Santo. Orientador: ProfessorDoutor Wilberth Claython FerreiraSalgueiro.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO
Vitria, 1999
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Os que sempre quiseram ver-me assim, depapel passado (& revisado), ei-los listados emcronolgio:
D. Vitria, mtria, e Cabelo Azul, ptria, queme deram luz e a calma. Marlcia e Zico, quetambm me foram pondo em bons caminhos.
Aos que me adotaram, por tantos tempos: Alex& Tania, extemporneos: ambos sempres, dois
presentes.
parte de todos, por tudo (e que tanto!), proBith, meu mano.
Aos que se irmanaram (sangues, suores,cervejas): Benja & Fbio.
Por meu amar amarrotado (algodo cru,spero, esgarado), o amor (colo macio, carne& alma esperadas) da Mrcia.
T-los por perto, minha chance de acerto.
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RESUMO
Discusso sobre a produo artstica do
final do sculo XX, em conexo com os
discursos da literatura, especificamente o
da poesia, e tentativa de localizao dotrabalho potico na contemporaneidade.
Comentrio de questes suscitadas pela
produoNome, de Arnaldo Antunes.
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A arte da linguagem era uma maneira defazer signo ao mesmo tempo de significaralguma coisa e de dispor, em torno dessa coisa,signos: uma arte, pois, de nomear e, depois,
por uma reduplicao ao mesmo tempodemonstrativa e decorativa, de captar essenome, de encerr-lo e encobri-lo por sua vezcom outros nomes, que eram sua presenaadiada, seu signo segundo, sua figura, seuaparato retrico. Ora, ao longo de todo osculo XIX e at nossos dias ainda de
Hlderlin a Mallarm, a Antonin Artaud aliteratura s existiu em sua autonomia, s sedesprendeu de qualquer outra linguagem, porum corte profundo, na medida em queconstituiu uma espcie de contradiscurso eremontou assim da funo representativa ousignificante da linguagem quele ser bruto
esquecido desde o sculo XVI.Michel Foucault, As palavras e as coisas.
(...) O pesquisador dessas verdades procura, nofundo, apenas a metamorfose do mundo emhomem, luta por um entendimento do mundocomo uma coisa semelhana do homem econquista, no melhor dos casos, o sentimentode uma assimilao.
F. Nietzsche, Sobre verdade ementira no sentido extra-moral.
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SUMRIO
I.NO CAIS................................................................................................................................................ 8
II.PONTOS DE PARTIDA (PARA PENSAR A ARTE CONTEMPORNEA) ...................................................... 13
1.O hbrido tornado paradigma..................................................................................................... 13
2. Literatura, teoria, esttica: tenses ............................................................................................ 38
3. A fora da visualidade (tela vista) ........................................................................................... 55III.NAVEGANDO EMNOME: ALGUNS VIDEOCLIPOEMAS ........................................................................ 65
1. Bssola ........................................................................................................................................ 65
2. Em Nome, o remoinho dos sentidos ........................................................................................ 73
3. Dentro: homem ex machina .................................................................................................... 81
4. Agora, ou o tempo menos o tempo .......................................................................................... 86
IV.QUID PRO QUO, RES NULIUS............................................................................................................. 93
V.REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................................................ 96
Bibliografia Geral ......... ........... .......... ........... .......... ........... .......... ......Erro! Indicador no definido.
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I. No cais
sUm som
A dor de ser algumDe longe vem
MarTrovo
De alm de alm de almAt aqui
Na voz de quem tambm sUm som
Arnaldo Antunes, Um som
Sculo XX. A poesia, lugar seguro, velho continente, deixou de ser terra
firme. Liqefez-se aps uma srie de abalos, bruscos terremotos. Da rocha
slida, sem fissuras, passou ao magma imprevisvel, avanando e recobrindo
todas as superfcies que toca. Expulsos do paraso, os poetas transformam-se
em peregrinos; em conquistadores; em guerreiros: saem a procurar a Terra
Prometida, ou a Terra Santa, ou o Novo Mundo, ou o Graal.
Esse pargrafo poderia ser a sinopse de algum filme B, lettering de
algum Star wars bastardo, o poeta-mor encarnado num tipo qualquer de
Indiana Jones mais eloqente, mas penso que ele serve para traduzir a minha
sensao diante do trabalho a ser apresentado nas prximas pginas. Afinal, o
que acompanhei nesta pesquisa foi a trajetria do slido ao lquido (ou ao
gasoso) por que passou a poesia a prpria arte, no fim das contas no
decorrer dos sculos XIX e XX. A srie aparentemente interminvel de
transformaes filosficas, tericas e tcnicas pode ter perdido grandiloqncia
no mbito das superestruturas sociais, em funo do processo de apagamento
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do pathos da novidade no panorama da histria recente1, mas suas
interferncias locais nos processos subjetivos, comunicacionais e poticos
provocam novas configuraes, circulao e recepo daquele fazer que
reconhecemos como artstico.
Nesse processo, a poesia replicou-se sobre si mesma, tomando-se como
objeto: foi-se emancipando cada vez mais da estrutura discursiva da
linguagem referencial, foi-se concentrando e reduzindo ao extremo2; e, ao
mesmo tempo em que se vai ainda hoje determinando como especificidade,
tenta compreender-se como veculo de mudana, perguntando-se sobre a
morte ou o devir3 de si mesma:A possibilidade de imaginar um comeo e um fim daliteratura abre de par em par um vasto campo deproblemas e abordagens. Esta nova histria das formasde comunicao necessita de um deslocamentoradical da prxis convencional at agora, na qual opolimorfismo de formas particulares de comunicao(determinadas pela mdia) fora relativizada pelo modeloremetente-receptor infinitamente simples. Estedeslocamento poderia talvez suspender as queixas quanto
aos supostos efeitos depravadores da nova mdia sobrea psique individual e coletiva e engavetar aquelepromocional louvor literatura que apenas umaatitude de conformidade intelectual da parte deinfatigveis estudiosos da literatura.4
De fato, as reticncias mais provveis, num trabalho realizado por um
acadmico da rea de Letras, residiriam na discusso isenta a respeito da
1 Em nosso tempo, a mudana no provoca mais choques perceptivos ou desorientaesirreversveis. A novidade incorporada pelos artefatos sociais como um traoconstitutivo. Cf. MENEZES, Philadelpho. From visual to sound poetry: thetechnologizing of the word. In: Revista FACE, 1 semestre de 1998.. Disponvel em 05/05/1999.
2 CAMPOS, Haroldo de. Poesia e modernidade: da morte da arte constelao. O poemaps-utpico.In: O arco-ris branco: ensaios de Literatura e Cultura. Rio de Janeiro:Imago, 1997. p. 255.
3 Ibid., p. 255.
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contemporaneidade da mdia literatura, dado o risco de se alcanarem
concluses apocalpticas a respeito da atualidade da literatura e dos conjuntos
de funes, sistemas e instituies a ela vinculados, pois no vivemos mais um
perodo em que os livros, como fatos materiais, como conceitos morais,
marcam um foco principal das energias da civilizao5.
Se no houver mais necessidade de literatura, no precisaremos mais de
escritores e difusores, e os literatos, os professores, as academias, os cursos de
Letras forosamente deixaro de ter sentido e existncia. A imagem em si a
de que eu sou anacrnico suficientemente assustadora, e permite at
mesmo compreender (embora no legitime) um certo hbito do pensamentoacadmico remunerado de somente refletir sobre o pensamento cotidiano de
maneira reativa6, que no raro traduz-se em discursos e atitudes negativistas
em relao s inovaes de tcnica e de suporte.
O contexto dessa imagem, entretanto, leva a crer que estamos diante de
um falso problema, ou que tomamos por equvoco, como causas, fatos que no
ameaam, efetivamente, os dinmicos estatutos da produo literria. Com
efeito, excetuando-se uma ou outra polmica7, nunca houve uma proposio
sria com o objetivo de substituir o sistema de expresso literria por algum
congnere de suporte diverso e de uma lgica funcional alternativa. O risco de
supresso por que passa a literatura talvez esteja, muito mais provavelmente,
4 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernizao dos sentidos. Traduo de Lawrence FloresPereira. So Paulo: 34, 1998. (Coleo Teoria) p. 92.
5 STEINER, George. Extraterritorial: a literatura e a revoluo da linguagem. Trad. JlioCastaon Guimares. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 149.
6 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Op. cit. p. 275. [Grifo do autor]7 Ana Oliveira faz notar, por exemplo, que no Renascimento, os artistas plsticos, para obter
o reconhecimento de seu ofcio, tiveram de se travestir de eruditos, submetendo-se ordem discursiva reinante. Como voz dissonante de sua poca, Leonardo Da Vincidesenvolve um paralelo entre as artes, para demonstrar a superioridade da pintura emrelao poesia. OLIVEIRA, Ana Lcia M. de. Deus Pictor: o visualismo patticoseiscentista. In: Cadernos de memria cultural. Rio de Janeiro: Museu da Repblica,1994-1995. Semestral. p. 26.
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relacionado aos procedimentos de manuteno de seu sistema, principalmente
na base social de sua circulao e recepo.
Assim, a rota aqui visualizada passa pela pressuposio de que a mdialiterria tradicional, baseada nos veculos do corpo e da escrita, no est em
conflito com as outras mdias mais recentes capazes de veicular o signo verbal.
No se trata de confronto entre icebergs, mas de transfuso de fluidos entre
corpos: reconhecimento da dinmica e da mutabilidade inerentes composio
dos horizontes da produo literria do incio de um novo sculo. Este trabalho
pretende, consoante os textos8 que intenta ler, corroborar a hiptese da
eficincia da conjugao de sistemas de significao diferentes para fornecerinformao e prover o sujeito que l de um aparelho de sensibilidade apurado e
abrangente.
O olhar aqui lanado busca compreender alguns caracteres dessa
literatura que se articula sob o peso de um tempo e espao fugidios, somente
possveis de serem transfixados em signos que, por sua vez, so apenas pontos
de passagem para novos signos, apontando a fuga de algumas cadeias de
sentidos, resguardando outras. Esse novo lugar em que se aloja a criao
potica modifica substancialmente o ato de fruio do texto, pois incorpora os
movimentos de desprivatizao e de pragmatizao da vida social em nossa
poca: como quase todo tipo de manifestao cultural em nosso sculo, a
escrita passa por um processo de espetacularizao. Tenta com sofreguido
ser capturada pela ateno das multides: para uma multido, maior, composta
pelos cidados em geral, preciso lanar mo dos fogos de artifcios,
transformar-se em entretenimento; para outra, composta pelos especialistas,
esses fogos apenas tero serventia se significarem problemasde pesquisa (eu,
por exemplo, no me atrevo a tentar lembrar qual o ltimo romance lido
8 A despeito das crticas comuns utilizao do termo texto para alm dos domnios dalingstica, optou-se pela manuteno de seu registro, em parte pela familiaridade em
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exclusivamente em nome de um prazer descompromissado). Entre a massa e a
academia, entre a cultura pop e a de vanguarda, o pathos da leitura, este se
perde, ou se transforma numa utilidade (mercadolgica para uns, intelectiva
para outros).
Entre a arte e a tcnica, este trabalho busca perceber, pela via da
produo de Arnaldo Antunes, a possibilidade de se desautomatizar o
movimento acima descrito; de mapear o ambiente onde esse autor est
instalado, e de onde tenta construir passagens, tneis, encontrar fissuras que
permitam unir os diversos materiais disponveis criatividade e desvencilhar o
prprio ato potico do engessamento nos limites do verbo.
relao a ele, e em parte porque a noo etimolgica de trama, nele inscrita, adequada ao quadro geral de perspectivas deste trabalho.
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II. Pontos de Partida (para pensar a arte contempornea)
1. O hbrido tornado paradigma
De meu prprio mal eu havia criado um bemfuturo. O medo agora que meu novo modono faa sentido? Mas por que no me deixo
guiar pelo for acontecendo? Terei que correr osagrado risco do acaso.
Clarice Lispector,A paixo segundo G.H.
Talvez nossa poca esteja, de fato, fatigada. Torna-se difcil e penoso
olhar para a frente e prognosticar a respeito da arte. Somos sinais dos tempos
os epgonos de uma poca ou os avatares de outra? Ou somos ambos?
Vivemos uma arte vampirizada, por um lado, pelo excesso de referncia e, por
outro, por um autocentramento narcsico e hedonista sem precedentes.
Ao encontrar o Espelho e mirar-se longamente por tantas dcadas, a artepde falar to aberta e intensamente de si que ganhou visibilidade de tema
diante de outros discursos da cultura, tal como os adolescentes que, enquanto
vo ganhando e descobrindo seu corpo, tornam-se o assunto predileto dos
vizinhos voyeurs, curiosos, violadores. O olho que passa a enxergar a arte por
dentro e se manifesta pela mo de literalmente todos os grandes artistas do
sculo XX sobrepe-se ateno que era dada ao mundo exterior, mesmo que
saibamos e valoremos sua potncia social (no caso da literatura, basta atentar
para as obras de cores realistas, somadas s poticas que as ladeavam, ou, mais
recentemente, ao peso dos estudos culturais no discurso acadmico, e
enfatizao das minorias como tema, o que transforma a literatura num local
estratgico para guerrilhas sociais, um campo para aes de curto alcance e
extenso que mantm um carter inalienvel de resistncia e revoluo).
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Num mbito mais formal dessa mesma perspectiva, uma mutao
profunda, no prprio nvel do sistema mais geral de modelizao da existncia:
de um mundo de signos mimticos passamos, velozmente, a um outro,
simulador. De uma tica analgica, a uma digital, com escalas hbridas de
diversos tons. O que antes reproduzia, agora produz. Era decalque, linha de
montagem, tornou-se usina, projeto, mapa9.
Atravessando esse panorama, encontramos, por fim, dois movimentos,
duas foras recorrentes na modernidade que se atualizam continuamente e que
ganham uma grande visibilidade entre os temas da produo e circulao dos
bens culturais contemporneos. Trata-se das linhas de ruptura e de tradio,que apontam para a ocorrncia de estabilidades ou de instabilidades nos
circuitos da cultura.
Os fluxos que determinam a manuteno ou o esfacelamento dos
cdigos estticos esto sempre alojados no corpo de algum movimento maior,
que o prprio movimento do corpo civilizacional. Especificamente no caso
da modernidade tardia, a ao dessas foras passa a estar colada (o que pode
ocorrer de forma relaxada ou tensa), ou impregnada, das emanaes do capital.
No se poderia querer discutir o estatuto da literatura desvinculando-o de seu
substrato histrico e social.
Tanto a cultura escrita e a esttica dela decorrente quanto a cultura
da discusso, ou da linguagem crtica, foram comumente corpos estranhos na
9 "O mapa aberto, conectvel em todas as dimenses, desmontvel, reversvel, suscetvelde receber modificaes constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se amontagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivduo, um grupo, umaformao social. Pode-se desenh-lo numa parede, conceb-lo como obra de arte,constru-lo como uma ao poltica ou como uma meditao. Uma destascaractersticas mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre mltiplasentradas (...)." DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Flix. Mil plats: capitalismo eesquizofrenia. V. 1. Trad. Aurlio Guerra e Clia Pinto Costa. Rio de Janeiro: 34,1995. (Col. TRANS). p. 22.
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sociedade brasileira10. A primeira questo pode ser apresentada nos termos da
difuso tecnolgica na Amrica Portuguesa: a imprensa, que se instala apenas
em fins do sculo XIX, encontra o obstculo do despreparo da populao
diante da letra11. Ainda assim, esta o veculo para as primeiras tentativas de
vulto no sentido de estabelecer e radiografar a identidade da nao. Entretanto,
antes que fosse possvel estreitar as relaes entre a populao e a escrita, o
mundo deu um novo salto e trouxe a lume a era do registro audiovisual, porta-
voz de um tempo que j escapa s definies do nacional, tal como comearam
a ser estabelecidas na Frana revolucionria.
Uma das principais diferenas entre a cultura perpetrada pelo livro e adestilada nos audiovisuais (particularmente a televiso) que o primeiro tende
a introjetar12 sua carga baseando-se num reforo da delimitao da identidade
daquele que l, articulando-se como ato singular13; os segundos, por sua vez,
estabelecem um regime de homogeneizao que tende a suplantar a percepo
individual, agregando o sujeito sua coletividade (mitificada como massa
10 Mas preciso considerar esse fato a partir de uma perspectiva relativista. O processo deincorporao da cultura da escrita levou sculos para aflorar na sociedade europia,tendo dependido enormemente da interferncia de fatores polticos (o direito cidadania envolve o desenvolvimento de uma conscincia que s pode ser obtida pelacompreenso do funcionamento de uma entidade abstrata, o estado. Como a grandetecnologia da informao disponvel era a escrita, ela se viu catapultada a uma posioprivilegiada, de elemento condutor das energias remanescentes da revoluodemocrtica). Os ndices de incorporao somente ganham corpo, em territrioeuropeu, a partir do final do sculo XIX.
11 Basta lembrar que a lngua portuguesa toma o territrio nacional somente no sculo XVIII(sobrepondo-se matriz tupi), e que, pela prpria perpetuao do corporativismo dopoder portugus ento instalado, Nossos literatos so Bares, Comendadores,Deputados e Diplomatas, quando no se tornam escritores puramente polticos e sobreque poltica!, dizia Sousndrade, numa expresso que hoje pode ser tomada emsentido figurado. Cf. LIMA, Luiz Costa. "Quem tem medo de teoria?". In: Dispersademanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. p. 78.
12 McLUHAN, Marshall. Aula sem paredes. In: CARPENTER, Edmund e McLUHAN,Marshall (org.).Revoluo na comunicao. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980 [1966].p. 17-20.
13 A interpretao quer escrever sempre, diferente cada vez que tocar um texto. Cf.SANTOS, Roberto Corra dos. Para uma teoria da interpretao: semiologia,literatura e interdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1989. p. 21.
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espectadora, passiva). Essa definio obviamente s faz sentido se se pensar
em termos de projetos institucionais nos quais esses objetos (o livro e o
audiovisual industrial) vem-se inseridos, pois, uma vez desligados de seus
ambientes histricos iniciais, no h dvidas de que livros possam ser usados
para lobotomizarleitores, ou de que o impacto da audincia de um vdeo possa
abrir perspectivas de compreenso em relao a questes afetivas, estticas,
filosficas, polticas, sociais etc.
Para resistir ou para se entregar, a ao cultural (de revoluo ou de
manuteno) incorpora mesmo refutando as lgicas do Mercado. A arte, no
sc. XX, transmuta-se em espetculo, acompanhando a mudana do paradigmacivilizacional (a saber, o prprio capital, reificado; os dois paradigmas ou
diretrizes anteriores formaram suas matrizes no teocentrismo e no
antropocentrismo): o que antes se fazia para satisfazer o Ego passa a produzir-
se em funo da satisfao no Consumo. Espetacularizada, a arte passa a
prever em seu estatuto o carter de mercadoria14 destinada sociedade de
consumo que vive imersa nos fluxos de uma memria da experincia e do
desejo da reexperincia15.
Aquilo que a modernidade conheceu como Arte, Tcnica e Folclore (em
sentido estrito), alta e baixa cultura, pela via do capitalismo transformou-
se em Arte de ponta, experimental, de vanguarda, cult, inovao de
14 No deixa de ser curioso verificar como a mediao valorativa do trabalho artstico (eintelectual) emprega, popularmente, critrios relacionados ao processo de produo do
primeiro capitalismo industrial: uma obra tende a valer mais em funo do esforoprodutivo a ela associado. Ou seja, ela deve valer mais em funo do tempo dispendidoe do material utilizado em sua execuo (e no necessariamente por suas caractersticasestticas).
15 JAMESON, Fredric. Ps-modernidade e sociedade de consumo. In: Novos estudosCEBRAP, n. 12, junho de 1985. p. 21. Cf. tambm GURIN, Michel. O que umaobra. So Paulo: Paz e Terra, 1995. p. 16-7. Este autor comenta ainda o fato de quevivemos uma poca em que o esquecimento se confunde com a existncia, sejaporque assume a forma de uma pressa desenfreada que (...) dispe de meios paraestocar arquivos (...), porm no tem tempo de consult-los. Em todo caso, pode-seentrever que o problema no uma imanncia, e sim um uso.
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um lado, e cultura de massa, entretenimento, trash, redundncia do
outro. A primeira, insistindo o quanto pde na marca da originalidade, da
novidade, foi cada vez mais sendo lanada nos espaos restritos dos pblicos
especializados: construiu-se de modo isolado, marcada pelo peso de um sujeito
que, romanticamente, precisa de todo modo opor-se aos mundos da cultura e da
natureza. A segunda, por sua vez, consolida-se no espao da comunicao
industrializada, da produo em srie, do gosto homogeneizado, da
massificao. Pretende ser a voz do corpo social, embora talvez tenha se
transformado numa fora que regula a prpria conscincia desse corpo.
medida que o espao de signo da produo cultural vai sendo minadopara o Homem e encampado pelo Capital, a ciso perde sua razo de existir,
em diversos nveis. Por um lado, a arte de ponta alimenta a cultura de massa
com cargas de procedimentos estticos e constri padres de subjetividade que
so aos poucos implantados pela indstria cultural (e assim torna-se possvel
encontrar jogos de cores Van Gogh em papis de parede, figuras de Mnch e
retratos de Kafka em vinhetas da MTV, o geometrismo de Mondrian em
comerciais de gel para cabelo, procedimentos poticos em campanhas
publicitrias ou derivaes de fotojornalismo sociologizado em outdoors de
fabricantes de roupa. Por outro, tambm a cultura de massa fornece matria
para a arte de ponta, sob a rubrica de fazer parte da mquina que engendra a
subjetividade da coletividade global: do atrito do sujeito (mesmo que alienado)
com as coisas do mundo tambm surgem novos padres de subjetividade e
procedimentos de construo da informao esttica (como o cinema B16 e
16 Que, com os seus vampiros, extraterrestres alegricos do incio da Guerra Fria, alibidinosidade dos sexploitation do fim dos anos 60 e dos filmes adolescentes,transformam-se, primeiro, em veculo para o discurso de subjetividades cristalizadas;,paulatinamente, entretanto, vo sendo desconstrudos para dar voz a padres desubjetividade recentes que procuram instalar-se no ambiente social. Muitos exemplospoderiam ser arrolados a ttulo de exemplificao: houve quem enxergasse alegoriassobre a AIDS em filmes como Alien, ou na complexidade de caracteres que umpersonagem como o vampiro pode ter, em filmes como Fome de viver, de Tony Scott;no item humanizar desumanizando, h farta produo (que no teria fcil
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as histrias em quadrinhos, que rompem com a Perspectiva ou a hiperbolizam,
ultrapassando as limitaes tcnicas da impresso, apropriando-se de toda sorte
de procedimentos artsticos, desde as tcnicas clssicas como o leo, a aquarela
ou a gravura, indo at o impressionismo, o expressionismo e s vanguardas).
A oficialidade institucional da literatura (na verdade, das artes
tradicionais) representou uma barreira para a gerao de novos territrios,
embora no pudesse impedir seu surgimento e instalao. Sua posio central
fez com que ela(s) se transformassem em receptculo para as aquisies
realizadas em outros espaos de produo (passando, assim, a sofrer influxos
procedimentais provenientes da cultura de massa, via cinema, televiso, sub-literatura).
preciso ressaltar, entretanto, que a configurao do autor e do leitor
que vai especificar (mais do que determinar) o mecanismo de leitura de certo
artefato. A potncia das linhas de fuga que se articulam no objeto acaba sendo
to grande, em virtude dos campos semnticos que atravessam a constituio
de sua malha sgnica, que cada autor e leitor podem apenas articular algumas
sries por vez (em alguns casos apenas as mesmas sries, infinitamente, pois
seu aparelho subjetivo cristalizado no capaz de agenciar novas linhas de
fuga e os campos de informao a elas adjacentes).
O leitor predisposto procura colaborar ao mximo com o artefato que
lhe exposto, procurando instintivamente angariar-lhe a maior quantidade
possvel de densidade sgnica, ou seja, tentando descobrir todos os seus
elementos como significativos, articulados (a partir de sua face sensvel ousemntica) com o mximo possvel de signos contextualizados. O leitor
classificao) em que a presena do humano praticamente apagada do artefato emnome de uma exacerbao de traos, processo de estereotipia empregado em largaescala nas pardias e comdias de humor negro, de John Waters a Peter Jackson. Almdisso, notrio o fenmeno de hibridao entre as tcnicas de manufatura de objetosculturais: a televiso influencia o cinema com novos tipos de enquadramentos e ritmosde edio, as histrias em quadrinhos influenciam as artes visuais emprestando-lhessua perspectiva, seu layoute seu imaginrio etc.
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resistente mas ainda leitor , ao contrrio, recusa-se a construir pontes e
conexes que no sejam explcitas, e no aceita a incumbncia de relacionar
suas linhas de fuga com as do artefato, nem de configurar um contexto de
leitura17. Ainda assim, em ambos,
A interpretao no um depois, nem mesmo um antes,mas um com, em que ambas descrio e interpretao se vem transformadas. A interpretao sofre a aodaquilo sobre o que atua. Do jogo das foras, elaboram-se as interpretaes e sua variedade tonal.18
Da aceitao desse corolrio advm uma primeira noo de
configurao de leitura, segundo a qual o texto um mbile (ou talvez sua
base) que aceita ser manipulado pelo leitor, ao mesmo tempo em que lhe impe
certos limites de extenso e volume (toda leitura finita: ela s capaz de
agenciar uma certa quantidade de informao a cada movimento). Como um
objeto de Lygia Clark ou um parangol de Hlio Oiticica, o texto aceita ser
modelado, mas o prprio material do qual se constitui impe limites para essa
modelagem.
Do lado da constituio do objeto, ele sempre uma carta marcada de
maneira a indicar, de modo mais ou menos incisivo, alguns de seus caminhos
de leitura:
Do lado da produo tomada consensualmente comopotica e ficcional, no so poucas as obras queincorporam de modo mais ou menos disfarado, de modomais ou menos evidente, o cdigo decifrador de suaprpria leitura e de sua prpria organizao, como se,
17 A noo de coerncia, segundo Michel Charolles, implica uma disposio do receptor paraencontrar unidade em quaisquer formaes que recebam o status de significantes. Cf.KOCH, Ingedore G. V., TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerncia. 4.ed. SoPaulo: Cortez, 1995. p. 32. Lembro-me do impacto, bastante negativo, de meu primeirocontato com o trabalho impresso de Arnaldo Antunes, numa livraria: eu me sentiaenganado diante das garatujas de Tudos, e ofendidssimo com a empfia do mtodo-cartilha de composio. No deixa de ser curioso (e irnico) que alguns anos depoiseu escreva uma dissertao a partir de sua produo.
18 SANTOS, Roberto Corra dos. Op. cit., p. 14.
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alm de se produzirem como discurso de algo, estivessemsempre deixando as pegadas para se percorrer um outrodiscurso: o da interpretao de si mesmas. (...) No tovasto o nmero de obras que ousaram ir partindo da
fico alm da leitura de seu prprio corpo ficcional,em direo a esse trabalho crtico sobre o corpo geral daliteratura, ou ainda, sobre o corpo geral das escrituras.19
O estatuto de autoconscincia da arte moderna opera de forma a
inscrever nos prprios artefatos algum procedimento de leitura: a ausncia
fsica do autor compensada por uma presena funcional, instauradora de
sentido, de intencionalidade que desqualificava como inadequada qualquer
modificao por meio de leitura, cpia, impresso ou recepo20. A literatura
de vanguarda assume o trao da elaborao desse trabalho crtico sobre o
corpo geral da literatura como uma de suas principais marcas, pois, na esteira
da onda de ruptura e da instaurao de um novo padro de sensibilidade, a
percepo do leitor precisa ser reeducada: ela precisa aprender a enquadrar
as novas formas contrapondo-as ao seu repertrio cultural.
A produo de Arnaldo Antunes , nesse sentido, exemplar por algunsfatores: 1) ela desloca fluxos emblemticos da cultura (a de vanguarda e a de
massa), fazendo-os transitar desde o ambiente do Mercado at o ambiente
acadmico; 2) o repertrio da cultura de massa tratado como um domnio
pblico (o que cancelaria a necessidade de apresentaes; entretanto, nem os
processos tcnicos da cultura de massa so auto-evidentes veja-se o fio
19Idem, p. 32.20 GUMBRECHT, Modernizao dos sentidos. Op. cit., p. 76. Diz ainda o medievalista
alemo, pgina 74, que no perodo anterior modernidade (...) o homem via-se a simesmo como capaz somente de expressar o sentido cosmolgico, mas jamais dedescobri-lo. Precisamente por esta razo, a palavra auctordo latim medieval conseguiuassumir tantos papis: auctorera, antes de tudo, Deus, provedor de toda significao;mas auctor era tambm o patrono que patrocinava um manuscrito; mas auctor era,provavelmente, tambm o inventor do contedo de um texto (embora a questo fossedificilmente levantada); auctor era a pessoa que copiava o texto no pergaminho;finalmente, era tambm a pessoa que emprestava sua voz recitando-o.
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dinmico de Nome e seu rearranjar de fragmentos , nem seu imaginrio
universal quem reconhece todos os personagens citados em Diferente?),
em oposio ao leitmotiv lingstico, que assume a funo de tema, tornando-
se cada vez mais perceptvel e sugestivo de uma perspectiva de leitura.
Uma das primeiras percepes de um leitor dos textos de Arnaldo
Antunes a de que ele um poeta Meta: cada texto seu oral, escrito, visual
se respinga de, e respinga sobre, um ou vrios textos outros (mas num processo
que ultrapassa o mecanismo bsico da referencia intertextual como citao
direta). No basta, claro, tomar cincia do alheio e faz-lo presente: preciso
dissecar o objeto texto e expor-lhe as "vsceras", sem, contudo, investir oesforo de um carter unicamente taxionmico.
Aos poucos vai-se dando luz um circular ir-e-vir entre a linguagem e a
noo de ser linguagem, e se observa que os nomes das coisas no so as
coisas, que o signo uma matria, e que se pode construir um objeto de
linguagem caminhando do significado ao significante, do mundo natural ao
mundo simblico, com algumas inmeras? escalas .
A discusso em torno das propriedades significativas e significantes do
signo volumosa, o que no permitiria uma discusso rigorosa acerca do
assunto, aqui. Basta apenas relembrar uma ou outra nota, apesar do didatismo
reducionista comum seco significante/significado: implicao profunda do
dualismoMatria/Idia, legado ao Ocidente pela cultura grega, o jogo binrio
quase sempre tendeu para o lado da Idia, relegando a Matria ao posto de
serva, de veculo. Na linguagem vivemos, at o sc. XIX, a teleologia Idia-Sentido. A equiparao (e, em alguns casos, suplantao) entre significante e
significado foi capitaneada pela Lingstica, e fortemente margeada pela
influncia dos ventos da arte e da cincia orientais entre os principais artistas e
pensadores dos ltimos dois sculos.
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No curso deste trabalho, pretendo verificar algumas noes e conceitos
que tm sido ou podem ser aplicados aos diversos tipos de textos
desenvolvidos por Arnaldo Antunes, a fim de contribuir para a elaborao de
um vocabulrio que auxilie na compreenso de artefatos vinculados ao signo
lingstico, mas cuja fatura extrapole os limites da especificidade verbal. Essa
preocupao parece tornar-se cada vez mais legtima quando a experimentao
potica promove um intercmbio entre suportes, inscrevendo o objeto-texto no
circuito esttico atravs do alinhamento com outros sistemas semiticos.
preciso atentar, ainda, para a escolha do vdeo como ponto de
convergncia deste estudo, assumindo os objetos livro e disco comosecundrios no conjunto (o que no significa dizer em momento algum que a
linguagem verbal perde sua importncia no conjunto da produo). Quando o
poetaArnaldo Antunes opta por uma possibilidade de amlgama de mdias e
lana, em 1993, o composto sgnico Nome, estabelecendo um dos grandes
pontos de referncia para a produo potica que se pretende contempornea
nos anos 90. O projeto , em si, a explicitao (e, mais, a popularizao) de
uma potica que se configura atravs da fuso entre diversos sistemas
semiticos, e dos estratos culturais a eles agregados. O livro aponta a
possibilidade de inscrio e dilogo numa tradio artstica. a prpria
memria da ao sobre a linguagem que caracteriza o fazer potico. O disco
a base de sustentao mercadolgica do projeto, pois a msica popular , no
conjunto, o objeto cultural mais vontade nos circuitos da indstria cultural. O
vdeo, enfim, o meio em que se d mais evidentemente a constituio de um
projeto de experimentao, a aspirao a um poien que se articula numa base
plstica capaz de enquadrar o lingstico e musical.
Livro-cd-vdeo, vdeo-cd-livro, cd-vdeo-livro... Que porta(s) usar para
penetrar essa manifestao mltipla (Trouxeste a chave?)? Os comentadores
e resenhistas, da poca do lanamento ou em data posterior, no estabelecem
juzos definitivos a respeito. Pareceram, contudo, hesitar numa encruzilhada:
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Nome (e, de resto, a prpria produo de Arnaldo Antunes) representa o
arremedo ou a realizao de alguma espcie de profecia, lanada pelas teorias
recentes sobre arte e tecnologia, ou sobre cultura contempornea.
Na nsia de se comprovar que essa produo seria o avatar da nova arte,
no Brasil, talvez se tenham confundido proposies tericas e realizaes
efetivas. O primeiro ponto de discusso, exaustivamente abordado quando da
poca do lanamento de Nome, diz respeito a seu sentido de leitura. A maior
parte dos resenhistas e dos estudiosos insistiu numa leitura centrada no livro,
mesmo que fosse pelo vis da imagem. Para Anelito de Oliveira, por exemplo,
o livro funcionaria como programa, espcie de guia para leitores de livro-livro:Nomelivro fundamental porque constitui a raiz do processo de concepo do
produto como um todo. ele que comprova que a base de NOME realmente
a poesia21. O analista de formao literria tende a perceber o conjunto numa
dinmica segundo a qual a poesia transborda do livro para o CD e para o
vdeo22.
A poesia de Arnaldo Antunes um cone paradigmtico das posturas
hibridizantes que tomaram de assalto a cultura durante o sculo XX. Com a
derrocada das metafsicas do Absoluto as fronteiras entre os mais diversos
tipos de discursos foram ruindo, e os purismos (tericos, artsticos,
ideolgicos) normalmente denunciam perspectivas (de observao e de
produo) ingnuas. Essa poesia (ao menos por enquanto assim, entre aspas)
explora e explicita redes de convergncias intra e intersemiticas, ao mesmo
tempo em que gera pontos de fuga que dinamizam exponencialmente as
construes de sentidos que comporo o ato instvel23 da leitura.
21 MEMELLI, Antonio Fbio. Arnaldo Antunes: os nomes do homem. R. contexto, n. 5, p.218
22Idem, p. 218.23 No sentido da interpretao como um ato musical, tal como descrita por Roberto Corra
dos Santos. Cf. SANTOS, Roberto Corra dos. Para uma teoria da interpretao. Op.cit., p. 15.
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Um olhar de reconhecimento que se lance sobre o panorama do final do
sculo XX aponta um fenmeno divisor de guas, em pleno desenvolvimento:
as artes ainda possuem limites? Se os possuem, quais sero? Se no existem
mais barreiras entre os fazeres artsticos, estes teriam ainda contornos nticos
efetivos? E a pergunta talvez mais ousada: ser necessrio mesmo que esses
limites existam?
H um carter dinmico na constituio do panteo das artes que no
pode ser percebido em sua manifestao sincrnica. As artes se fundem e se
fragmentam desde qualquer origem rastrevel. A literatura, por exemplo, nasce
mstica e musical na figura da poesia, at assumir-se arte da palavra; da seencorpa aos poucos no floreio de ser imagem, mas vai-se descarnando em
palavrapura, at que reencontra seu corpo e, para reconquist-lo, escorre para
os domnios de outras musas, gerando hbridos que esto baseados na
concomitncia de manifestaes significantes.
Nesses movimentos de contrao e expanso algumas caractersticas se
vo agregando ou desagregando do amlgama literatura24. Por exemplo:
materializando um ar do tempo, a lrica da modernidade mais recente vive de
provocar tenses, normalmente pela via do estranhamento, buscando, como
diria Baudelaire, uma glria na incompreenso. O poeta dessa lrica carrega
seu olhar com a potncia da transformao e no mais com a do sentimento
ou a da observao e o lana sobre o mundo e sobre a linguagem. Ele
prescinde da humanidade no sentido tradicional, daexperincia vivida, do sentimento e, muitas vezes, at
mesmo do eu pessoal do artista. Este no mais participaem sua criao como pessoa particular, porm comointeligncia que poetiza, como operador da lngua, comoartista que experimenta os atos de transformao de suafantasia imperiosa ou de seu modo irreal de ver umassunto qualquer, pobre de significado em si mesmo.25
24 E o problema parece ser percebido no discurso de praticamente todas as artes, cada umatentando reenfocar a questo pelo vis de sua identidade ou memria.
25 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lrica moderna. So Paulo: Duas Cidades, 1978. p. 17.
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O conjunto de possibilidades e convergncias da arte do sculo XX vai
progressivamente incorporando padres que, em ltima instncia, poderiam ser
reduzidos idia de simultaneidade ou multiplicidade. Jargo bvio do quartel
final do sculo XX, o termo multiplicidade chega at a encabear propostas
tericas:
(...) [Mil plats] uma teoria das multiplicidades porelas mesmas, no ponto em que o mltiplo passa ao estadode substantivo (...). [Mil Plats] tenta mostrar como asmultiplicidades ultrapassam a distino entre aconscincia e o inconsciente, entre a natureza e ahistria, o corpo e a alma. As multiplicidades so aprpria realidade, e no supem nenhuma unidade, noentram em nenhuma totalidade e tampouco remetem aum sujeito. As subjetivaes, as totalizaes, asunificaes so, ao contrrio, processos que se produzeme aparecem nas multiplicidades.26
Lembremos que significante e significado so noes estreitamente
relacionadas idia de sujeito. Uma vez que algo escape aos domnios do
aparelho cultural ativado por um sujeito, retorna ao estado de coisa pura, coisa
real, fora da linguagem, perdendo sua espessura simblica. Daisetz Suzuki,
comentando algumas caractersticas do haikai, aponta como fundamental para
a poesia oriental de contornos zen essa apropriao e converso do a-
significante em significante, partindo do clssico poema da r:
Furuike-ya!Kawazu tobi-komuMizu-no oto!
(Oh, velho tanque!Uma r salta para dentro;O som da gua)27
26 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Flix.Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Op. cit., p.8.
27 SUZUKI, Daisetz T. "Simbolismo budista". In: CARPENTER, Edmund e McLUHAN,Marshall (org.).Revoluo na comunicao.Op. cit., p. 56. Diversas outras traduesdo poema podem ser encontradas em portugus, e vrias podem ser encontradas nocaptulo A sala de espelhos (em torno metapoesia), da tese de doutorado deWilberth C. F. Salgueiro, Foras & formas: aspectos da poesia brasileira
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Essa observao leva a indagar se o signo, sendo ento uma extenso do
sujeito, no faz com que Bash e o tanque sejam, nessa percepo, um nico emultplice evento (tanque, aqui, assume sua funo de continente, o que
potencializa ainda mais esse carter de multiplicidade, "dentro e fora"): Foi no
instante em que Bash ouviu a r que o mundo inteiro, incluindo o prprio
poeta, brotou do Nada, ex nihilo28. Suzuki evoca, ainda, um exemplo bastante
interessante para ilustrar essa hiptese:
Quando escolhemos qualquer [um dos nmeros da srieinfinita de nmeros naturais], o 5, por exemplo, sabemosque 1 (um) repetido tantas vezes que essa repetio no meramente mecnica, mas originalmente relacionada;e, portanto, que a srie um todo orgnico to ntima esolidamente unido que quando um dos nmeros falta asrie total deixa de ser uma srie (grupo) e, alm disso,que cada unidade representa, assim, ou simboliza, otodo. Tomemos o nmero designado por 5. 5 no apenas 5. Est organicamente relacionado ao resto dasrie. 5 5 por estar relacionado a todos os outrosnmeros como unidades e tambm srie como um todo.Sem esse 5 o todo deixa de ser um todo, nem todas asoutras unidades (6, 4, 7, 8, 9 etc.) podem serconsideradas como pertencentes srie. Portanto, 5 nos contm em si todos os nmeros restantes na srieinfinita; tambm a prpria srie.29
Substitua-se o 5 pelo sujeito, e a srie de nmeros naturais pelas sries
descontnuas que afetam o sujeito e que so por ele afetadas, e eis o sujeito
imerso na multiplicidade que ele percebe parcialmente, e que na verdade ele
prprio . Entretanto, para que a percepo se d, preciso haver a conscincia
do sujeito, ou o mundo se lhe tornar opaco. Apenas quando se conhece um
contempornea (dos anos 70 aos 90), tese de doutoramento em Teoria Literria,apresentada Coordenao dos Cursos de Ps-graduao da Faculdade de Letras daUFRJ. Rio de Janeiro, 1996.
28Ibid., p. 58.29Ibid., p. 59.
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fato que ele se torna significante30. Assim, a significncia ser sempre um
processo parcial, interno s cadeias de multiplicidade a-significante segundo as
quais o mundo est disposto:
Na filosofia budista nada existe alm do velho tanque,porque ele completo em si mesmo e nada aponta alm,acima ou fora dele prprio. (...) Para os budistas, ser significar. (...) por causa dos sentidos e do intelectohumanos que temos que bifurcar a beleza e falar sobreaquele que v um objeto belo.31
Deleuze e Guattari apontam uma srie de caractersticas, ou princpios,
para delimitar a multiplicidade: seus elementos so singularidades; suas
relaes so devires; seus acontecimentos so hecceidades (individuaes sem
sujeito); seus espaos-tempos so livres; seu modelo de realizao o rizoma
(em oposio ao modelo arbreo, binrio); seu plano de composio oplat
(um conjunto de intensidades contnuas). A multiplicidade , ainda,
atravessada por territrios e sofre variados graus de desterritorializao32.
A multiplicidade acontece no rizoma, que se articula, ainda:
I.por conexo (qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado aqualquer outro e deve s-lo (...) [,] como um tubrculo que aglomeraatos muito diversos (...) (15-6);
II. por heterogeneidade ("Num rizoma, (...) cadeias semiticas de todanatureza so conectadas a modos de codificao muito diversos (...):no existe lngua em si, nem universalidade da linguagem, mas umconcurso de dialetos, de patos, de grias, de lnguas especiais.) (15-6);
III.por ruptura a-significante (um rizoma pode ser rompido, quebradoem qualquer lugar, e tambm retoma segundo uma ou outra de suaslinhas e segundo outras linhas. (...) No h imitao nem semelhana,
30 Talvez seja interessante, ainda, relacionar essa discusso com uma outra, tambm de largatradio no circuito do pensamento ocidental, sobre a alienao e a relao que osujeito alienado desenvolve como conhecedor do mundo.
31 SUZUKI, Daisetz T. "Simbolismo budista". Op. cit., p. 60.32 DELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Op. cit., p. 8. A
seqncia de citaes ser referida apenas pela indicao de pginas, feita entreparnteses.
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mas exploso de (...) sries heterogneas na linha de fuga composta deum rizoma comum que no pode mais ser atribudo, nem submetidoao que quer que seja de significante.) (18); e
IV.
por cartografia (um rizoma (...) estranho a qualquer idia de eixogentico ou de estrutura profunda (...). O mapa aberto, conectvelem todas as dimenses, desmontvel, reversvel, suscetvel de recebermodificaes constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por umindivduo, um grupo, uma formao social. (21).
Os dois pensadores franceses acreditam ainda que a multiplicidade no
tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinaes, grandezas,
dimenses que no podem crescer sem que mude de natureza (17), pela linha
abstrata, linha de fuga ou de desterritorializao. A multiplicidade encontra a
simultaneidade na figurao do ideal de um livro, que seria a exposio de
tudo o que ele contm sobre uma nica pgina (a semelhana com o Livro
mallarmaico imediata).
Alguns elementos de ordem histrica e tcnica33 tornam possvel a
efetivao desse procedimento como programa esttico. Tentemos elaborar umesboo panormico desse processo, lanando mo de abordagens realizadas por
autores como Hans Ulrich Gumbrecht34 e Joris Vlasselaers35, que demonstra
como o discurso literrio sofre interferncias da mdia tecnolgica. Sua
hiptese a de que os sistemas literrios se desenvolvem em inter-relao com
sistemas de outras mdias, o que provoca mudanas na localizao e no
funcionamento da literatura (como no caso da percepo do texto literrio e de
33 Para N. Luhmann, seria necessrio constituir uma histria das formas de comunicao edos meios de comunicao, a fim de se obter um substituto para a histria em simesma, de valor absoluto. Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernizao dossentidos. Op. cit. p. 71.
34 GUMBRECHT, Hans Ulrich.Modernizao dos sentidos. Op. cit.35 VLASSELAERS, Joris. Tecnologia meditica e inovao literria.In: ANTELO, Raul et
alii (Orgs.). Declnio da arte, ascenso da cultura. Florianpolis: Obra Jurdica /Letras Contemporneas / Abralic, 1998. p. 177-187.
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sua atualidade como artefato em relao a leitores miditicos36) e na
mentalidade daqueles que esto envolvidos pelas novas tecnologias (MS, p.
67).
Gumbrecht acredita que, com a prensa mecnica de Gutenberg, o corpo
humano declina da posio de veculo de constituio do sentido (MS, p.
75): ao mesmo tempo em que se desencarregava de veicular sentidos, o corpo
perdia, tambm, uma parte de sua funo de gerador de sentidos, e desligando-
se da conscincia da comunicao:
Repentinamente, em poucos anos, o autor espacialmente
ausente tornou-se o provedor de sentido na situaorelacional da leitura; repentinamente, a presena fsicado recitador, do escritor ou do impressor era colocadaentre parnteses; e, repentinamente, o receptor sentiu-seligado ao sentido intencional de um autor, quedesqualificava como inadequada qualquer modificaopor meio de leitura, cpia, impresso ou recepo.37
Assim, com o livro impresso, a copresena fsica dos participantes
tornou-se um evento excepcional. Isso gerou a necessidade de uma nova
orientao para dominar o risco de confuses entre os leitores, centrada nafigura do autor: No plano epistemolgico (...) a era do homem como
intencionalidade que se inicia (MS, p. 104), ou seja, resolve-se o problema da
instabilidade com a mscara da intencionalidade, fenmeno que somente se
ver abalado nos fluxos dos sculos XIX e XX.
ainda no universo do livro impresso que a idia de que o textos
refletem o mundo ressurge, materializando um contato que pode ser percebido,
36 (...) todo meio de comunicao novo em si mesmo transforma a mentalidade coletiva,imprimindo-se na relao que as pessoas mantm com seus corpos, com suaconscincia e com suas aes. Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernizao dossentidos. Op. cit. p. 71. As prximas referncias a essa obra sero feitas no corpo dotexto indicadas pela sigla MS, seguida do nmero da pgina consultada.
37 Um questionamento recorrente de Gumbrecht diz respeito a uma possvel conexo entre aimprensa e a conscincia como espao de significao, e a subjetividade como a novaestrutura mental da era moderna. MS, p. 75-6.
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tambm, na intensa influncia provocada pela Potica de Aristteles, e sua
ateno ao conceito de mmesis. A comunicao se d em cadeias de figuras
de sentido cada vez mais complexas e a literatura se assume como uma mdia
(MS, p. 297-319) baseada em grandezas como autoria, inteno, mmesis,
ficcionalidade e identificao (MS, p. 306-7). Para Gumbrecht, enfim, a
literatura talvez possa ser entendida como o conjunto de formas de
comunicao que se cristalizaram em torno do livro impresso, e cuja presena
distncia concretizou-se, em maior grau, durante o Iluminismo38. Com o
sculo XIX, o texto literrio cria a expectativa do ineditismo, o que afasta a
literatura cada vez mais do domnio social de uma possvel institucionalizao distanciando-a, a longo prazo, da competncia de compreenso de grupos
cada vez maiores de leitores (MS, p. 316).
Para Vlasselaers, a insero dos conceitos de velocidade e dinamismo
nas poticas romnticas tenta estabelecer uma ponte sinttica e imediata entre
idias e emoes contrastantes39, o que levaria a um novo tipo de literatura,
posteriormente retomada por Rimbaud. A dinmica das transformaes sociais,
absorvida pela dinmica literria, cria expresses e instncias que sero
modelares para a Modernidade tardia, assumidas nas figuras da novidade40 e da
velocidade41.
38 Isso no significa, porm, que o autor descarta a literatura como uma mdia legtima namodernidade e na ps-modernidade. Quer apenas dizer que as consideraes a respeito
dessa mdia, como ele denomina, precisam ser relativizadas a partir dessaobservao. MS, p. 310 e 318.39 VLASSELAERS, Joris. Tecnologia meditica e inovao literria. Op. cit. p. 178.40 E em Gumbrecht encontraremos a seguinte definio de ps-modernidade: a superao da
Alta Modernidade do incio do sculo, e isso significa v-la como a conseqncia daprpria obsesso por inovao que um legado do crontopo tempo histrico.GUMBRECHT, Hans Ulrich.Modernizao dos sentidos. Op. cit. p. 21.
41 O que nos lega um presente que desfaz, neutraliza e transforma os efeitos acumulados (...)[das] modernidades que tm se seguido umas s outras, desde o sculo XV. Ibid., p21.
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Os grandes escritores de ento como a trinca Baudelaire, Rimbaud e
Mallarm , entretanto, no se vem rivalizando com a nova mdia, imersos
que esto num contexto social no qual o processo de diferenciao funcional
repousa sobre uma base de autonomizao dos diferentes sistemas de arte42. A
sinestesia manifesta em suas produes fica restrita a uma gesamtkunstwerk
literria autnoma, ainda que de alguma maneira seja paralela aos
desdobramentos da mdia tecnolgica. Para Gumbrecht, os primeiros
movimentos de historicizao da literatura detiveram-se sobremaneira volta
da semntica e das formas dos contedos, no mximo entrevendo os mutveis
meios de comunicao como elementos constitutivos das estruturas, daarticulao e da circulao de sentido.43
Somente com os futuristas a nova mdia assumir relevncia esttica na
perspectiva de uma modernizao radical do medium literrio tradicional,
num projeto de sincronia entre as temticas literrias e tcnicas da nova mdia.
Com o advento da mdia digital e dos tipos de vnculos que ela cria entre
imagem, lngua e som, a midiatizao entra numa fase em que se explicita e se
evidencia a semiose infinita de Peirce: Com referncia prtica literria, isto
implica que a tirania linear do texto impresso quebrada em favor de um autor
e leitor associativo e livre zapeador44.
A inovao, em todo esse processo, uma fora que se v associada
tanto deteriorao cultural, segundo o olhar tradicionalista, quanto a um
ncleo constituinte de crenas progressivas. Em todo caso, ela provoca
deslocamentos vrios na localizao do discurso literrio no sistema cultural,desafiando o crtico literrio com questes que tocam (...) nas vises e
42 VLASSELAERS, Joris. Tecnologia meditica e inovao literria. Op. cit., p. 178.43 GUMBRECHT, Hans. U.Modernizao dos sentidos. Op. cit. p. 67.44 VLASSELAERS, Joris. Tecnologia meditica e inovao literria. Op. cit. p. 180-1. As
prximas referncias a este trabalho sero dadas no prprio corpo do texto, pela siglaTMIL, seguida do nmero da pgina citada.
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metodologias (...) utilizadas no estudo da produo literria e do sistema
literrio como um todo (TMIL, p. 183). A questo posta, ento, investigar
como os meios massivos impem novas codificaes,procedimentos e normas cultura literria (...), i.e. acombinao ou mesmo a substituio de cdigos ecritrios especificamente esttico-literrios porcategorias e estratgias que so inerentes ao novocontexto mediado. (TMIL, p. 183)
Nesse processo, uma das primeiras aes a serem tomadas uma
transferncia de status: o objeto de linguagem verbal texto declina ante o
processo de leitura. O leitor mediatizado tem outra percepo do texto: A
literatura apresentada e funciona como um item que altamente similar a
outros itens (TMIL, p. 184), perdendo sua autonomia e sendo forada a
adaptar-se s estruturas que tudo abarcam, s normas e s especificidades
idiomticas da nova mdia (TMIL, p. 184). A literatura transforma-se num
hbrido, submetido s regras sintagmticas da nova mdia e s tcnicas e
tratamentos que constituem o conjunto instrumental da mdia:
O texto literrio e o leitor-espectador encontram-se emum processo de apropriao criativa e codificaocompetitiva que resulta em um deslocamento e mistura deespecificidade genrica. O texto literrio confrontado efinamente adaptado aos idiomas e categorias da mdia.(TMIL, p. 185)
Nos ltimos anos, com a efetiva possibilidade de reproduo de mdias a
partir do suporte das tecnologias informacionais (baseado no tomo digital
que o bit), tornou-se moda integrar palavra, imagem e som para criar
textos de estrutura indissocivel cuja constituio era indita at ento. Ora,
qualquer objeto existe apenas quando empregado como referente discursivo, o
que fez com que um ou outro analista (profissionais de mdia, professores,
artistas, engenheiros) se dedicasse a explicar tais objetos, nomeados ento
multimdia.
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A possibilidade de sobreposio simultnea de meios fsicos para a
construo de signos complexos tornou-se, rapidamente, um fetiche entre os
entusiastas por novidades, na academia e fora dela. Como todo bom fetiche,
porm, um de seus constituintes foi reificado para servir de condutor para toda
a excitao gerada pelos procedimentos de produo da multimdia: o
computador, instrumento que possibilita a manipulao dos bits, tornou-se o
centro das atenes relativas compreenso dos objetos que ajuda a construir.
Esse fato torna-se relevante quando se escapa ao fetiche (pelo
computador e pela novidade) e se tenta perceber todo o fenmeno com
algum distanciamento. No caso das produes de Arnaldo Antunes, dada a suarelao com a tradio literria (evidenciada pela fora do signo verbal no
conjunto de seu trabalho e pelos contatos com algumas eminncias do cenrio
potico nacional), a possibilidade de um olhar objetivo, balizado por uma
tradio terica e literria, torna palpvel a compreenso histrica do objeto
multimdia, compreendido num sentido lato, pois o registro multimdia est
intimamente associado vanguarda histrica, na figura do audiovisual (a
colagem o exemplo imediato, e Marinetti chegou a planejar experimentaes
com a televiso).
O fetiche pelo computador pode estreitar a viso de quem se detm
diante de artefatos multimiditicos. Por isso, preciso moda do anjo klee-
benjaminiano lanar olhares ao passado, ainda que queiramos (ou nos
deixemos) ser levados pelos ventos do futuro.
Aqui, esse pressuposto torna-se o mote para uma recapitulao em tornodo carro-chefe de algumas das principais abordagens da literatura do sculo
XX, materializadas na figura genrica do formalismo: a recusa categrica das
interpretaes extraliterrias do texto para priorizar leituras que levassem em
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considerao seus elementos estticos, estabelecidos pelo vis do plano
lingstico45.
Ao partir para a elaborao de um repertrio de instrumentos quepermitissem a percepo dos elementos sensveis do signo lingstico e
convert-los em fontes geradoras de sentido, o formalismo (russo, estrutural,
semitico...) se props elucidar problemas que a crtica impressionista do
sculo XIX no podia sequer abordar, por no ter como apreend-los (afinal, os
estudiosos do poema no tinham como ir alm dos manuais de versificao)46:
tornadas visveis, as propriedades sensveis do signo multiplicavam as
possibilidades de compreenso e produo do texto literrio. Os primeirosformalismos literrios, entretanto, restringiram-se aos limites que
especificavam um signo como lingstico.
Essa postura gerou a reorganizao da articulao entre os artefatos
literrios segundo os caracteres genticos (levada a efeito por todo o conjunto
de classificaes formais e estruturais) baseados, no caso da poesia, nas
propriedades fsicas do fonema47. O outro nvel formal determinante para a
constituio do signo lingstico, tornado aparente somente a partir do ato da
escrita, o da visualidade do significante.
As propriedades imagticas do signo lingstico foram utilizadas de
maneira mais ou menos intuitiva no transcorrer de toda a tradio literria
escrita, at se transformarem em itens programticos para artistas do porte de
Mallarm, Pound, Joyce, Cummings, Apolinnaire, que acabaram recolhidos na
paidia concreta. O concretismo, estimulado pelos modernismos, pelas
45 Cf. SCHNAIDERMAN, Boris. Prefcio. In: TOLEDO, Dionsio de Oliveira (org.).Teoria da literatura formalistas russos. 2.ed. Porto Alegre: Globo, 1976. p. IX, XVIe XVII.
46 TOLEDO, Dionsio de Oliveira. Op. Cit., p. XXIII-XXIV.47 Cf. EIKHENBAUM, B. A teoria do mtodo formal. In: TOLEDO, Dionsio de
Oliveira. Op. Cit., p. 12.
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provocaes dos novos meios de comunicao48 e pela acelerao na
circulao de objetos culturais49, deu ateno ao corpo visvel do signo antes
que a televiso (entre as dcadas de 50 e 70) ou o computador (nas dcadas de
80 e 90) comeassem a instaurar seus processos especficos de codificao e
decodificao de textos. As possibilidades de intersemiose engendradas por
essas tecnologias so, em grande parte, atualizaes de procedimentos ou
posturas identificadas com o programa formalista.
curioso notar como, diante do fetiche pelo computador, parecem
anuladas as marcas distintivas das demais mdias, o que instaura uma nova
srie de descontinuidades ao olhar latino-americano, especificamente obrasileiro: apesar de sequer termos conseguido relacionar satisfatoriamente as
propriedades do vdeo, por exemplo, o interesse tcnico e especulativo foi
quase todo redirecionado para a compreenso da mdia digital. David Riesman,
em As tradies oral e escrita, notava, em meados dos anos 50, o fenmeno
da transio das culturas oralizadas da Amrica Latina para a percepo
televisiva, indagando-se sobre
1) quais so as diferenas entre culturas que dependeminteiramente da palavra falada, e as que dependem daimpressa; 2) qual ser o significado da palavra escrita,agora que foram desenvolvidos meios mais recentes decomunicao de massa; 3) o que provvel que aconteanaqueles pases em que a tradio dos livros no estplenamente estabelecida e as novas comunicaes demassa j esto exercendo um impacto decisivo. 50
48 Cf. CAMPOS, Augusto de. Declaraes dadas em Poema cidade, curta-metragem deTata Amaral e Francisco Csar Filho, 1989.
49 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Evoluo de formas: poesia concreta. In: Teoria da poesiaconcreta. 1957. p. 52. Apud PERRONE, Charles A. The imperative of invention:brazilian concrete poetry and intersemiotic creation. (15/06/97)
50 RIESMAN, David. As tradies oral e escrita.In CARPENTER, Edmund e MCLUHAN,Marshall (org.).Revoluo na comunicao.Op. cit. p. 136
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Essa questo um outro ngulo de situao semelhante abordada por
Luiz Costa Lima em Quem tem medo de teoria, e cria uma ponte entre a
situao atual da leitura (e da discusso acadmica) no Brasil e de seus
antecedentes como processo histrico que se formou atravs de hiatos e cujo
pice culminava na supresso da linearidade pela imagem televisiva em
relao matriz europia da cultura letrada e livresca. O fato teve, entre outras
conseqncias, o mrito de alargar o abismo entre cultura popular e de elite,
fenmeno cujas bases somente comearam a ceder a partir do final dos anos
60.
H, entretanto, que se considerar que essa heterodoxia damultiplicidade, da experimentao, das supresses e das adies no
suficiente, em si mesma: no deve ser vista como uma panacia esttica.
Deleuze e Guattari, ainda falando do rizoma, consideram que
nenhuma astcia tipogrfica, nenhuma habilidadelexical, mistura ou criao de palavras, nenhumaaudcia sinttica podem [substituir o mltiplo]. Estas, defato, mais freqentemente, so apenas procedimentos
mimticos destinados a disseminar ou deslocar umaunidade mantida numa outra dimenso para um livro-imagem. Tecnonarcisismo. As criaes tipogrficas,lexicais ou sintticas so necessrias somente quandodeixam de pertencer forma de expresso de umaunidade escondida para se tornarem uma das dimensesda multiplicidade considerada (...).51
Esse comentrio ganha especial relevo diante da profuso de objetos
estticos que atendem demanda dos malabarismos (grficos, sonoros,
verbais), a fim de ganhar visibilidade nos sistemas de circulao da cultura,mas que acabam concorrendo para um processo de anestesia dos possveis
fruidores, provocando a reduo de suas capacidades de percepo. Alm
disso, no se pode esquecer que o livro forosamente um decalque: (...)
51 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Flix. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Op. cit. p.33-4.
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reproduo do mundo presente, passado ou por vir52, e que no to fcil
livr-lo dessa carga definidora, segundo a qual o Estado [que se identifica
com o Uno] foi o modelo do livro e do pensamento53.
O rompimento da linearidade e a multiplicidade propostos pela arte do
sculo XX e ressaltados pelas mdias digitais, por outro lado, talvez ajudem a
formar uma sensibilidade que permita compor novos aparelhos de fruio
esttica (e, com isso, a formao de modelos de compreenso do mundo54) que
possam ser investigados a partir de uma reelaborao dos discursos sobre o
texto potico desde aquela matriz anterior popularizao do livro, quando a
lrica era fiel ao nome, e o texto do poema se constitua para alm do cdigoverbal escrito.
52Ibid., p. 36.53Ibid., p. 36.54 Grande parte da agitao intelectual do sculo V de Atenas relacionou-se com a
descoberta do mundo visual e com a transposio da tradio oral para os modosescrito e visual (provavelmente o novo papel dos olhos foi to excitante para os gregosquanto a televiso para ns). Cf. CARPENTER, Edmund e McLuhan, Marshall.Espao acstico. In: CARPENTER, Edmund e MCLUHAN, Marshall. Op. Cit., p.87.
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2. Literatura, teoria, esttica: tenses
Mquina
Mquina de signosGnosis de si mesmo
Ns cegos de nomesRota de desgnios
Ou mquina do sonoQue revira o corpo
Tudo gira em tornoDo nada onde somos
Sebastio Uchoa Leite,A uma incgnita
O discurso terico sobre literatura, neste final de sculo, parece ter
perdido seu foco55, ou talvez esteja simplesmente redefinindo seu objeto (ao
redefinir-se a si mesmo, continuamente). O modo de olhar para o texto
perpetrou um desvio que o oculta e dele d notcia apenas atravs do
comentrio vago e impreciso. Em tempos ps-tudo, como o nosso, afirmar
algo sobre qualquer coisa tornou-se uma heresia, e o signo principal do
estudioso parece ser, inexorvel, o possvel: vemos, cada vez mais, anlises
que apontampossveis interpretaes, quase sempre genricas, uma vez que o
texto no possui um cerne, um centro distinto e permanente. Passamos da
idia de elementos estruturados para a de foras configuradas, e o
sentido esfumou-se por entre as palavras.
Como (e por qu) falar da Palavra? Questo espinhosa, envolve
consideraes sobre as relaes entre o artefato literrio e seu carter utilitrioou inutilitrio. Afinal, para que as pessoas escrevem? (Para comunicar, diria
um Fama; para regozijar, arremedaria um Cronpio.) Por que as pessoas
55 Paulo Leminski diz: Incgnita, enigma, no mais uma certeza. No se sabe mais onde apoesia est. Nem aonde vai. Esse juzo acerca da literatura recorrente empraticamente todos os grandes estudiosos e escritores do sculo XX. Cf. LEMINSKI,Paulo.Anseios crpticos. Curitiba: Ed. Criar, 1986. p. 11.
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escrevem da forma como escrevem (eis o moto-contnuo da teoria da
literatura)? Para atrair o leitor, excitando-lhe56 os sentidos esteticamente.
Esteticamente: empregando aspectos sensveis do objeto-texto para despertar e
manter uma atitude interessada por parte do leitor. (As outras razes, mais ou
menos nobres como propaganda poltica ou postos na Academia ,
ultrapassam o texto, apenas capturando-o em determinado momento.)
Difcil, porm, transitar dos domnios da Esttica para os da Teoria da
Literatura. No meio do caminho, pedregulho, deixa-se cair a slex do prazer:
ele est l, mas sente-se incmodo nos jarges tericos (culpa da seriedade do
Mtodo?). Quando, barthesianamente, nos damos ao prazer do texto57, ficaquase sempre um qu defolie bergre, pois o ato escapa prpria linguagem,
fundado que est na experincia intransfervel do sujeito.
Empregando modelos gerais de representao (nas figuras do idealismo
e do materialismo), encontramos sistemas menores que se articulam em funo
de paradigmas especficos. A civilizao ocidental conheceu o Teocentrismo, o
Antropocentrismo e o Capitalismo (ou seja, sistemas de representao que
assumem como unidade mtrica a Divindade, o Homem e o Capital,
respectivamente). (Este ltimo item precisa ser melhor elaborado, pois seria
ingnuo cindir a torrente capitalista de sua fonte humanista. Entretanto, parece
claro tambm que, em dado momento, ocorrem deslocamentos materiais,
56 (...) outrora, o prazer justificava, como um modo de domnio do mundo e deautoconhecimento e, a seguir, como conceito da filosofia da histria e da psicanlise,
as relaes com a arte. Hoje, para muitos a experincia esttica s vista comogenuna quando se priva de todo prazer e se eleva ao nvel da reflexo esttica.. Cf.JAUSS, Hans Robert. O prazer esttico e as experincias fundamentais da poiesis,aisthesis e katharsis. In: _____ et alii. A literatura e o leitor: textos de esttica darecepo. Coord. e trad. de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 71.(Col. Literatura e teoria literria; v. 36)
57 O prazer (...) no um elemento do texto, no um resduo ingnuo; no depende de umalgica do entendimento e da sensao; uma deriva, algo ao mesmo temporevolucionrio e associal e no pode ser assumido por nenhuma coletividade, pornenhuma mentalidade, por nenhum idioleto. Cf. BARTHES, Roland. O prazer dotexto. So Paulo: Perspectiva, 1987. p. 39.
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simblicos e imaginrios provocados pela cristalizao a reificao, tal como
formulada pelo prprio Marx do elemento capital, que passa a reter sobre
si mesmo as foras que antes se viam destinadas a se inscreverem no e a
escrever o humano58).
Em todo caso, no difcil perceber o quanto cada sistema se encontra
inscrito em nossas mentalidades, e como incide sobre a produo da cultura e
sua dimenso esttica. O prprio surgimento do discurso esttico no seio da
Filosofia, por exemplo, tinha por funo tocar questes que durante muito
tempo se mostraram opacas, dado o carter hegemnico da tradio de
especulao metafsica.
Se partirmos da necessidade da instaurao de categorias que suportem
a modelizao do objeto de estudo (como se tem feito por toda a histria da
filosofia ocidental, de Aristteles a Kant e Hegel), consideraremos ento que a
mudana de escopo provoca a reconstruo (ou reposio) de uma ou mais
unidades padres na constituio do objeto. preciso sempre estabelecer uma
unidade de referncia, capaz de assumir a funo de "metro" e de fornecer ao
objeto a participao num tipo de escala.
Ora, a slaba potica foi, durante milnios, a unidade em que se
conformava a poesia. Nascida da articulao fsica da respirao com a
inflexo capaz de amplificar o sentido (com os elementos extratextuais da
dramatizao, como a entonao, o ritmo, a durao, etc.), ela acabou sendo
obnubilada pela fora da lngua escrita, e foi-se reduzindo a uma escanso cujo
58 Um exemplo antolgico para essa situao pode ser descrito a partir da arquitetura, emfuno dos esforos despendidos pela civilizao na construo deste ou daquele tipode obra: a coqueluche arquitetnica da Idade Mdia foram as catedrais; na IdadeModerna, os palcios ilustrados, a estruturao da casa como espao privado e areconfiguraoplanejada da urbanidade. com a passagem para o capitalismo que oespao privilegiado pela arquitetura passa a ser o espao do consumo (que, em ltimainstncia, o local em que se materializa o lucro), cuja meca o shopping center(queat no nome deixa mais que entrever traos hegemnicos da dominncia capitalista).
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valor fnico viu-se corrodo, chegando at a transmutar-se em um diagrama
convencional como se pode ver/ouvir/ler em "Soneto", pea deNome:
Embora essa pea no seja comentada mais a fundo neste trabalho,
interessante notar como a ranhura da multiplicidade aparece em cada estrato
semitico. Como visto acima, na pgina do livro sobrepem-se versos at que
estes se transformem em resqucios, apontando o esqueleto da forma potica;
num certo sentido talvez a pgina possa a ser entendida como um local de
sepultamento. No vdeo, a multiplicidade uma multiplicidade de caminhos
(como borgianos jardins a se bifurcarem infinitamente), que seguem em todas
as direes, dispensando a referncia de um centro organizador e da
bidimensionalidade da pgina:
IMAGEM
E, por fim, no cd, o artista cola seqncias de palavras, rompendo a progresso
e formao de um sentido semntico global: as palavras esto l, mas no
oferecem possibilidades de conexes frasais (muito embora resguardem um
ritmo fixado por uma seqncia decassilbica e os habituais quatorze versos
inscritos na tradio).
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Com a entrada da Lingstica moderna na cena dos discursos sobre a
linguagem, em finais do sculo XIX, uma nova unidade o fonema foi sendo
estabelecida, a partir de Saussure. Da segunda metade do sculo em diante,
porm, uma outra linha de compreenso da linguagem comeou a se formar
nas abordagens de pesquisa, tomando no mais o fonema a "unidade de
sentido em abstrato" , e sim o texto a "unidade de sentido em ao" como
o ponto de partida para a relao entre o sujeito que l e o mundo que o rodeia.
Num certo sentido, parece que deixou de ser essencial considerar qual o
fragmento realmente atmico da lngua (embora esse nvel de categorizao
no deixe de ter uma importncia decisiva em vrios procedimentos deconstruo e leitura), pois mesmo ele apenas passar a ter importncia quando
engajado numa potncia de produo de sentido efetivo, que somente o texto
pode oferecer.
Em todo caso, a lngua que se constri com base no fonema o adotou
como seu objeto de estudos (o que acontece na Fontica), o que o exclui do
campo de responsabilidades das teorias da literatura: o fonema torna-se um
instrumento importante, mas sempre "emprestado", pela teoria da literatura,
assim como pode ser feito com a sintaxe, a morfologia, a etimologia, etc. Da
ressurge a interrogao mais freqente na investigao literria: qual a unidade
para lidar com a arte literria? A partir de que categoria, ou categorias, poder-
se-iam determinar elementos nucleares to recorrentes que pudessem ser
denominados universais?
Quando os formalistas definiram a noo de "srie" e a aplicaram aosestudos literrios, pensaram, de alguma maneira, no fato de que o
estabelecimento de uma srie, ou relao de continuidade, implica a formao
de algum tipo de isotopia hiperonmica (ou seja: a possibilidade de reunio de
uma srie de elementos que possuem um trao comum, sob uma denominao
genrica). Dessa maneira, podem-se organizar sries a partir de rubricas
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hipernimas, como "literatura", "poesia", "humor", "metalinguagem",
"subjetividade", estilo de poca, etc.
No existe uma delimitao precisa sobre o tipo de srie a receber achancela de srie literria (vide a noo de literariedade59, cujo carter de
indeterminao permite flutuaes aparentemente infinitas). possvel
organizar sries de toda ordem (sries filolgicas, sries estilsticas, sries
psicolgicas, sries sociolgicas, sries formalistas) a partir de formataes do
texto literrio, o que nos leva, uma vez mais, ao lugar comum de que a
utilizao do texto literrio no implica, necessariamente, a constituio de
uma srie literria para estudos literrios.
Antes de qualquer outra coisa, a formao de uma srie literria traz a
pressuposio de uma compreenso qualquer do que seja o literrio. Pela via
do hipernimo pode-se associ-la ao campo mais genrico que o artstico, e
da verificar qual discurso se encarrega de decompor seus objetos, e segundo
quais categorias, chegando-se Esttica ou, ainda, Filosofia da Arte. A
categoria central da Esttica a "unidade": quanto mais relacionados estiverem
os elementos de um objeto, mais unidade eles tero, e menos sentido
produziro se considerados isoladamente.
Observada desse ngulo, a idia de "literatura" (estendida da noo de
"arte") torna visvel a sua unidade: o texto, entendido como organizao de
elementos verbais que se encontram "confundidos" de maneira particular. Esse
modelo, por si s, no bastaria ainda para determinar o que chamamos "arte
literria", pois lhe faltam uma amplitude simblica, alcanada apenas naambientao contextual, e na relao entre esse aspecto simblico e a condio
humana (conjunto que somente dado no momento de ativao do texto, a
leitura).
59 AGUIAR E SILVA, Vtor Manuel de. "Os conceitos de literatura e literariedade". In:Teoria da literatura. 8 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1988. p. 1-42.
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(Sem esse conjunto, ou alterando seus elementos, os objetos possveis
escapariam definio de "arte", no sentido humanista do termo, ao menos por
enquanto arraigado nos veios dominantes de nossa subjetividade. por esse
processo que podemos encontrar tcnicas revolucionrias e articulaes
textuais brilhantes em peas publicitrias, por exemplo, mas nos recusar a
enquadr-las no universo da arte, principalmente a literria.)
Retornando questo da definio de categorias para os estudos
literrios, preciso recorrer prpria noo de categoria, para que se possa
proceder a algum tipo de definio. Os gregos a entendiam como "atributo".
Aristteles, particularmente, considerava a categoria como o "predicado deuma proposio". Kant (e, atravs dele, Peirce) a entende como o conceito
fundamental do entendimento. Em todo caso, a categoria acaba servindo para
identificar, classificar e agrupar informaes, possibilitando compreend-las
em algum sentido.
A formulao de categorias realizada por Peirce60, levando em
considerao uma reviso das definies aristotlicas, kantianas e hegelianas,
tem-se mostrado bastante funcional no mbito dos estudos da linguagem: de
acordo com ela, todofenmeno perceptvel pela conscincia se manifesta pela
"gradao de trs propriedades que correspondem aos trs elementos formais
de toda e qualquer experincia"61, ou seja, presena de qualidades,
relaes/reaes e representaes/mediaes ressaltadas62 em cada fenmeno.
(Peirce faz questo de frisar que os fenmenos, ou signos, apresentam as
categorias simultaneamente o que ele denomina "signo degenerado" ,
60 Cf. PEIRCE, Charles S. Semitica. 2.ed. So Paulo: Perspectiva, 1995. Cf. NETTO, J.Teixeira Coelho. Semitica, informao e comunicao. So Paulo: Perspectiva, 1980.
61 SANTAELLA, Lucia. O que semitica. So Paulo: Brasiliense, 1993. p. 34-5.62 Essas categorias so comumente apresentadas como sendo "primeiridade", "secundidade" e
"terceiridade". Cf. NETTO, J. Teixeira Coelho. Op. Cit.
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havendo apenas a possibilidade de uma categoria aparecer de maneira mais
perceptvel que as outras.)
A esttica diz respeito forma, e maneira como o Sujeito se relacionacom ela. bvio que o fenmeno esttico existia antes de ser discutido por
Baumgarten, mas, como alerta Terry Eagleton63, o problema era o imperativo
de ignorar sua existncia como algo digno de meno.
Ao relacionar forma e sujeito por meio de um discurso, a esttica passa
a importar-se com a maneira pela qual o sujeito recebe uma forma (como a
qualifica, que tipos de valor atribui a ela) que, se tiver sido produzida por outro
sujeito, receber o nome de obra64.
Assim, Plato afirmar, de dentro do Idealismo, "a existncia do Belo
em si, princpio abstrato, ao mesmo tempo ideal e de um intenso poder de
realidade, do qual procederia toda beleza concreta e sensvel"65. Quanto mais
algum puder vislumbrar a forma ideal, mais poder aproximar-se dela,
produzindo obras menos imperfeitas. Trata-se de uma esttica aberta regra,
norma imposta por uma perfeio j existente. S para se ter um outro tipo deexemplo, tambm clssico, Aristteles, to prximo ainda de Plato, assume
uma perspectiva razoavelmente diversa, quando cria um sistema descritivo em
sua Potica.
O termo esttica relaciona-se com a noo de forma, e tambm com a
relao de percepo pelo sujeito. Torna-se, portanto, fundamental aproximar
as duas noes, pois o sujeito estar, sempre, aproximando-se (porque elas so
63 EAGLETON, Terry. Particulares livres. In: A ideologia da esttica. Rio de Janeiro: Zahar,1993. p. 17-28.
64 Como no interesse central deste trabalho discutir a adequao de termos como sujeito /produo e autor / obra, os termos esto sendo utilizados de maneira mais ou menosequivalente, subentendendo-se que a compreenso de uma noo interfere nacompreenso da outra.
65 SOURIAU, Etienne. Chaves da Esttica. Trad. de Cesarina Abdalla Belm. Rio de Janeiro:Civilizao Brasileira, 1973. p. 3.
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interessantes, ou agradveis) ou se afastando (porque elas no chamam a
ateno ou porque so desagradveis66) das formas sgnicas que o cercam.
De maneira genrica, a esttica pretende abarcar os aspectos sensveisdas formas. "Sentido", "sensao", "sensual", "senso"67, so todos termos
relacionados percepo que o Sujeito tem da Forma.
Existem vrios padres de aspectos sensveis. Eles podem dizer respeito
s qualidades manifestadas pela obra/signo que se nos apresenta (tem peso,
volume, cor), constituio sinttica da obra/signo (que tipo de cdigo usa, ou
de que maneira conjuga a seqncia de signos que a constitui) ou dimenso
simblica articulada pela obra/signo (o que significa dentro de um dado
contexto de referncias inter-relacionadas).
Assi