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Museus Desejados e outras Narrativas do Grupo
Indígena Xucuru-Kariri sobre Museus1
Julio Cézar Chaves – ICS/MTB/UFAL, Alagoas
Resumo
O presente estudo tem por objetivo compreender as narrativas dos Xukuru-Kariri
sobre museus no município de Palmeira dos Índios, Alagoas. Atualmente, esse grupo
indígena está em processo de “retomada”, em paralelo, diversas lideranças postulam
criar museus em suas aldeias, apesar da existência na cidade de Palmeira dos Índios do
Museu Xucurus de História, Arte e Costumes. Pretendo refletir sobre esses museus
desejados e o “outro”, o museu contestado. O que proponho é apresentar um panorama
parcial da pesquisa etnográfica realizada entre os anos de 2013 e 2014 com visitas
alternadas entre o Museu Xucurus e comunidades indígenas do município de Palmeira
dos Índios. Ao identificar as principais tensões entre as lideranças Xukuru-Kariri e o
Museu do município considero as ressonâncias entre o ‘instituído’ e o ‘desejado’ como
um processo que, apesar das contradições locais, ressalta várias faces de uma mesma
‘realidade’. Enfatizo as sugestões teóricas de Fredrik Barth relativas à necessidade de se
afastar da ideia de cultura como algo compartilhado e fixo e procuro abordar a
elaboração dos “fluxos culturais” por atores sociais concretos e em suas formas de
organização social, busco compreender as reivindicações dos Xukuru-Kariri como uma
tessitura em constante (re)-construção de limites em áreas nas quais ocorrem diferentes
tensões identitárias. Para tal propósito, o conceito de “processo de territorialização” de
João Pacheco de Oliveira Filho abre a possibilidade de investimento em novas questões,
para o avanço da pesquisa que venho desenvolvendo.
Palavras-chave: museu; Xukuru-Kariri; territorialização.
Introdução
Este artigo busca apresentar algumas reflexões sobre os resultados da pesquisa
acerca de narrativas do grupo indígena Xukuru-Kariri2 sobre museus, realizada no
1 “Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.” 2 Os Xukuru-Kariri são um dos doze povos indígenas do Estado de Alagoas. A maior parte dessa etnia
vive no município de Palmeira dos Índios. O grupo Xukuru-Kariri que vive nesse município está dividido
nas seguintes áreas indígenas: Fazenda Canto, Serra do Capela, Mata da Cafurna, Cafurna de Baixo, Serra
do Amaro, Boqueirão, Riacho Fundo de Baixo, Coité e Monte Alegre ou Vista Alegre, essa última não
reconhecida pelos seus pares. Existem famílias residindo também na cidade de Palmeira dos Índios.
2
período 2013/2014 no município de Palmeira dos Índios, Alagoas. Para a realização da
pesquisa, foram feitas incursões de campo no Museu Xucurus de História, Artes e
Costumes3 mantido pelo município e nas comunidades indígenas locais.
O interesse desse trabalho não é escrever a história do Museu municipal e
muito menos a trajetória do grupo indígena Xukuru-Kariri na cidade de Palmeira dos
Índios, no Estado de Alagoas. O que pretendo é tecer considerações sobre o museu e o
grupo indígena no âmbito das relações sociais que perpassam as questões relativas à
etnicidade (BARTH, 2005) e à territorialidade (OLIVEIRA FILHO, 2004). Esses
conceitos servem de diretrizes para problematizar as mudanças na configuração política
nas últimas décadas, bem como do acirramento dos conflitos decorrentes da demarcação
das terras indígenas na região nos últimos anos.
Atualmente, os Xukuru-Kariri manifestam críticas ao Museu Xucurus, à
representação que ali é divulgada, e reivindicam, em alguns casos, seus objetos contidos
nesse espaço. Esses objetos carregam significados sociais que extrapolam os atributos
utilitários e, também, o próprio estatuto de objetos museológicos reservados a eles. Por
outro lado, para algumas lideranças desse grupo indígena, importa construir espaços de
memória dentro de suas aldeias e preferencialmente para seus pares.
Procurei desenvolver o diálogo interdisciplinar entre a Antropologia e a
Museologia para compreender o contexto social, histórico, político e cultural da criação
do Museu Xucurus de História, Arte e Costumes. Além disso, através de sua exposição
de longa duração, busquei compreender as relações sociais entre indígenas e não
indígenas no município de Palmeira dos Índios, e, por fim, analisar as narrativas dos
Xukuru-Kariri sobre o Museu e sobre as ideias de museus nas suas aldeias.
Em março de 2012, recém-chegado ao Estado de Alagoas para trabalhar como
museólogo do Museu Théo Brandão de Antropologia e Folclore da Universidade
Federal de Alagoas – MTB/UFAL, em Maceió, mantive contato, pela primeira vez, com
esse grupo indígena. A partir desse primeiro encontro, surgiram as inquietações que me
mobilizaram em torno das questões que resultam neste artigo. O convite para a reunião
Fontes: informações coletadas pela Profa. Claudia Mura e por mim na aldeia Mata da Cafurna, no dia 13
de abril de 2014 com os interlocutores foram Rogério Rodrigues dos Santos e Raquel Celestino;
informações coletadas com o Antropólogo e Professor da Universidade do Estado de Alagoas – Uneal,
José Adelson Lopes Peixoto, no dia 28 de junho de 2013; Martins (2004, p. 202); Site da Fundação
Nacional do Índio – Funai, disponível via Disponível via: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-
brasil/terras-indigenas. Acessado em 27 de março de 2014. 3 Fundado em 12 de dezembro de 1971 por d. Otávio Aguiar, Luiz B. Torres e Alberto O. Melo.
3
com lideranças Xukuru-Kariri da Fazenda Canto, em Palmeira dos Índios, partiu do
coordenador geral do MTB, o antropólogo Wagner Chaves.
Nessa viagem, tomei conhecimento da existência do Museu Xucurus de
História, Arte e Costumes, localizado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, na cidade
de Palmeira dos Índios. Àquele momento, soube que os indígenas não se sentem
representados na instituição, e, ainda, que o pajé Xukuru-Kariri Celso Celestino
desejava criar um museu no local da “retomada” (Fazenda Salgado) 4.
No Abril Indígena 2012, evento realizado no MTB, observei alguns elementos
ao longo do dia que acho necessário destacar. De certa forma, esses elementos estão
interligados tanto com o meu primeiro encontro com os Xukuru-Kariri, quanto com a
construção do objeto de pesquisa. Ouvi novamente o pajé Celso Celestino comentar
com o representante do Ministério Público Federal - MPF, o antropólogo Ivan Soares
Barros, que queria construir um museu na área da “retomada”. Em outro momento,
reencontrei o Sr. Antônio Selestino e, novamente, ouvi sua ideia sobre o papel dos
museus na luta dos grupos indígenas.
A partir desses dois encontros, surgiram as inquietações que me mobilizaram
na escolha do objeto de pesquisa. Parti de perguntas de caráter geral, como: museu para
quê? E para quem? Quais as dimensões contrastivas entre os museus desejados e o
museu existente em Palmeira dos Índios? Tais questões levaram-me a reconhecer os
conflitos que perpassam o Museu e as comunidades indígenas locais como processos
geradores de narrativas que, em alguma medida, podem indicar aspectos relevantes
sobre as dimensões geopolíticas das relações sociais presentes no município.
O objetivo geral da pesquisa era “compreender as narrativas dos Xukuru-Kariri
sobre museus no município de Palmeira dos Índios”. Os objetivos específicos eram:
compreender a importância do Museu Xucurus de História, Arte e Costumes de
Palmeira dos Índios para o grupo indígena Xukuru-Kariri; compreender os significados
da autorreivindicação de museus nas aldeias dos Xukuru-Kariri5; analisar as narrativas
dos Xukuru-Kariri sobre os objetos expostos no Museu Xucurus de História, Arte e
Costumes.
4 Daniela Oliveira militante do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, à época bolsista do MTB,
explicou-me o processo da atual “retomada”. A expressão refere-se à alternativa de natureza política pela
aceleração da demarcação das terras indígenas, incluindo a sua ocupação. 5 No decorrer da construção do objeto, soube que outras aldeias também queriam criar seus museus.
4
Atravessando as tensões do campo a partir de uma atitude etnográfica
Parti de uma experiência etnográfica - a viagem de março de 2012 - para uma
posterior prática etnográfica iniciada no dia 28 de junho de 2013, data da minha
primeira viagem a campo no âmbito da Especialização em Antropologia Social do
ICS/MTB/Ufal6. Foram sete viagens à cidade de Palmeira dos Índios: quatro em 2013 e
três em 2014. Magnani (2009, p. 136) diferencia a “prática etnográfica” da “experiência
etnográfica” explicitando que “(...) enquanto a prática é programada, contínua, a
experiência é descontínua, imprevista. No entanto, esta induz àquela, e uma depende da
outra (...)”.
Desde a primeira viagem a campo, procurei utilizar recursos da pesquisa
etnográfica, tais como observações (participante e direta), entrevistas (aberta e semi-
estruturada) com algumas lideranças Xukuru-Kariri, seus aliados e pesquisadores desse
grupo indígena (esses últimos, de pesquisadores passaram a pesquisados), além dos
funcionários, ex-funcionários, responsáveis e pessoas ligadas ao Museu Xucurus de
História, Arte e Costumes, esses nem sempre aliados dos Xukuru-Kariri.
Concomitantemente, levantei informações em arquivos e consultas à literatura
específica sobre os museus indígenas no Brasil, bem como sobre o grupo indígena em
questão.
Guiei-me por uma atitude etnográfica, que
(...) poderia ser interiorizada quer como método de trabalho dos profissionais
e um elemento constituitivo do processo de conhecimento, quer como
etnografia interaccionista, elaborando com os próprios actores as definições
contraditórias das situações, procurando as vias de emancipação pessoal,
institucional e sociopolítica, etc. (GUERRA, 2011, p. 10).
Isso não significa, contudo, uma relação longa e intensa com o campo. Em
primeiro lugar, devido à limitação do tempo para a realização da pesquisa; em segundo
lugar, pela pouca disponibilidade de tempo das lideranças, devido aos compromissos
com o dia a dia nas aldeias, além da luta travada atualmente pela demarcação de suas
terras; em terceiro lugar, essas lideranças revelam estar cansadas de pesquisadores nas
6 Projeto desenvolvido sob a orientação dos Professores Doutores Silóe Amorim e Claudia Mura na
Especialização Lato Sensu em Antropologia do Instituto de Ciências Sociais-ICS/Museu Théo Brandão
de Antropologia e Folclore/MTB da UFAL.
5
aldeias e o pouco retorno obtido com algumas pesquisas. Segundo eles, poucos são os
pesquisadores que retornam às aldeias para apresentarem os resultados dos trabalhos.
As tensões sociais entre parte da sociedade palmeirense e os Xukuru-Kariri,
devido à luta desses últimos pela demarcação de sua terra, incluindo aí as “retomadas”,
estiveram presentes ao longo da pesquisa. Nesse aspecto, a “etnografia institucional” –
aquela realizada dentro do Museu - apresentou-se mais complexa e sutil, pois percebi que,
toda vez que eu citava os Xukuru-Kariri, causava certo mal-estar em alguns funcionários
e responsáveis dessa instituição museológica, administrada pela Prefeitura Municipal. As
relações foram ambíguas, permeadas por sentimentos de simpatia e desconfiança por
parte dos funcionários e responsáveis dessa instituição. Se por um lado, ficaram
interessados com a presença de um museólogo e estudante de Antropologia pesquisando o
local de suas atuações profissionais, por outro, mostraram-se receosos de falar sobre a
falta de documentos do museu, das deficiências da instituição (abandono), além do fato de
não terem formação técnica na área de museus7.
Essa situação me levou a assumir posições no campo sob a perspectiva de um
outsider, uma pessoa de fora, um forasteiro interessado no Museu Xucurus de História,
Arte e Costumes. Em razão da ambiguidade referida, não houve abertura e nem tempo
para me receberem de modo tão integrado a ponto de me transformar num insider. Parti
do pressuposto de que era importante conquistar um espaço de interlocuções que
garantisse a viabilidade do acesso a informações relevantes para a compreensão dos
lugares que as pessoas ocupam no interior do Museu, bem como as implicações destes
posicionamentos na relação com as comunidades indígenas. Nessa perspectiva, adotei as
orientações de Uwe Flick (2004, p. 70), quando indica a importância da negociação dos
posicionamentos do pesquisador em campo, ainda que isso implique em ter que encarar
a passagem por ‘estágios’ diferenciados nos processos de participação na pesquisa.
A base teórica na construção do objeto de pesquisa e na operacionalização dos
dados coletados apoia-se na concepção de “fluxos culturais” de Fredrik Barth (2005, p.
17) em contraposição à ideia de cultura como algo compartilhado e fixo conduzida por
atores sociais concretos e em contextos específicos. A noção de “fluxo” possibilita lidar
com as apropriações (reivindicatórias e desejadas) dos espaços museológicos pelos
Xukuru-Kariri, como uma tessitura em constante (re)-construção de limites em áreas nas
7 Ao longo da pesquisa tomei conhecimento de que os funcionários que ali trabalham foram transferidos
para o local por perseguições políticas ou por falta de opções decorrentes das mudanças de governo.
6
quais ocorrem diferentes tensões identitárias. No entanto, a ênfase teórica que tento
lançar ao longo das minhas análises recai sobre a constituição das narrativas que
expõem os limites que diferenciam o Museu existente dos museus desejados pelas
aldeias locais.
Por outro lado, penso que a noção de “processo de territorialização” de autoria
de João Pacheco de Oliveira Filho (2004) abre a possibilidade de investimento das
análises sobre os conflitos que estão presentes nos modelos de organização social que
distinguem a concepção do Museu municipal dos museus desejados por alguns líderes
indígenas. Considero que a reivindicação do museu como um espaço de formação para
os jovens da aldeia, como sugerem algumas lideranças, pode significar também o
investimento do grupo na consolidação de suas relações com o território que habitam.
Os conflitos que constituem a história do grupo indígena Xukuru-Kariri, assim
como do Museu Xucurus de História, Arte e Costumes, apontam para a importância das
reflexões acerca do patrimônio cultural de um ponto de vista antropológico: que
considerem, sobretudo, as ressonâncias entre o ‘instituído’ e o ‘desejado’ como processo
que, apesar das contradições locais, ressalta várias faces de uma mesma ‘realidade’.
Devido às características peculiares do tema da pesquisa, não tive como não
me envolver e criar teias de afeto com o referido grupo indígena, assim como com o
Museu Xucurus de História, Arte e Costumes, da cidade de Palmeira dos Índios. Alguns
laços tênues foram criados ao longo das idas a campo, delineando possíveis
desdobramentos futuros.
“Devora-me ou decifro-te”8
O Museu Xucurus provocou-me vertigem na primeira visita. Aquele
bricabraque surpreendeu-me, seduziu-me e ao mesmo tempo causou-me perplexidade.
A distribuição dos objetos naquele espaço lançou-me um desafio, exigiu-me decifrá-lo;
caso contrário, ele me devoraria. Após várias visitas, estou longe de considerar o
desafio concluído. Segundo Mário Chagas,
(...) diante de um ente devorador como o museu, tantas vezes chamado
dinossauro ou esfinge, não se pode ter ingenuidade. É prudente manter por
perto a lâmina da crítica e da desconfiança. Ele é ferramenta e artefato, pode
8 Frase do poeta baiano Wally Salomão.
7
servir para a generosidade e para a liberdade, mas também pode servir para
tiranizar a vida, a história, a cultura. Para entrar no reino narrativo dos
museus é preciso confiar desconfiando. (CHAGAS, 2005, p. 18).
O Museu Xucurus foi/é o outro, compreendê-lo foi/é o maior desafio da minha
pesquisa9. Para mim, os anseios e as lutas do grupo indígena Xukuru-Kariri
acrescentava complexidade ao propósito de decifrar a instituição. O que se colocava em
perspectiva era o exercício de alteridades dentro e fora do espaço museal para a
composição de narrativas que produzam a visibilidade dos limites existentes entre o
Museu pesquisado e os museus desejados pelos grupos indígenas locais.
(...) olhar sobre o outro, o compreender o outro nos seus próprios termos, o
lançar-se para territórios exóticos e longínquos, distantes de tudo o que é
familiar ao sujeito do processo de conhecimento, o interessar-se pelos outros
povos, por outras culturas, outras formas de existência, tudo isso parece
constituir a singularidade desta que, para além dos contornos da própria
disciplina, se configura como uma maneira sui generis de ver o mundo e de
se ver no mundo. Mas a especificidade do trabalho do antropólogo abarca
também o âmbito da subjetividade e poderíamos mesmo dizer que, ao tecer
interpretações sobre o outro, o antropólogo não pode deixar de inventar uma
maneira peculiar de espreitar a si mesmo, exercitando um incessante trabalho
comparativo de conhecimento e autoconhecimento. Como já sinalizaram
muitos antropólogos, procurar conhecimento sobre o outro é também indagar
sobre si, debruçando-se sobre diferentes formas de construção do humano
(...). (ABREU, 2005, pp. 101-102).
Estar no museu exigiu articular algumas interfaces entre as orientações teóricas
da Antropologia e da Museologia. Além de afiar as lâminas da crítica para transitar por
aquele espaço, conforme sugere Mário Chagas, foi importante compreender a produção
da alteridade com os funcionários do Museu e com as lideranças indígenas como parte das
minhas inscrições em campo. O Museu Xucurus é o principal espaço de memória da
cidade e responsável pela preservação de diversas coleções e objetos representativos do
patrimônio cultural do município de Palmeira dos Índios, incluindo evidentemente o
grupo indígena Xukuru-Kariri. As críticas ao Museu Xucurus por parte de alguns
habitantes da cidade, assim como de diversas lideranças indígenas, não deixam de ser
uma forma de reconhecimento do espaço como um lugar emblemático da cidade.
9 Ao adentrar o recinto pela primeira vez, senti-me incomodado com o espaço e as formas como alguns
objetos estão distribuídos e as representações dos negros e do grupo étnico Xukuru-Kariri.
8
Os objetos expostos não são apenas peças de uma “Loja de Bugigangas”,
conforme afirmou um morador local ao se referir àquela instituição. São objetos
museológicos, alguns também etnográficos, escolhidos como dignos de habitarem a
instituição e representativos da história, da arte e dos costumes do lugar. Objetos
ressignificados que cabe à instituição através da exposição e do serviço educativo exibir
e contextualizar de forma crítica e, no caso dos objetos etnográficos, dialógica com o
grupo indígena de origem (os Xukuru-Kariri, tão perto e tão longe).
Objetos espalhados pelo chão, paredes com fotografias até o teto, vitrines que
remetem ao século XIX ou às primeiras décadas do século XX, esculturas, porcelanas,
crucifixos, tapetes, armas, instrumentos de tortura da época da escravidão, mobiliário,
manequins com paramentos eclesiásticos, objetos indígenas, aparelhos de telefone,
troféus, animais empalhados, baús, material arqueológico e paleontológico, entre outros
formam uma miscelânea intrigante e desafiadora. Alguns interlocutores asseguraram
que a exposição anterior “era ainda pior”.
Figuras 1 e 2 - Anexo: manequins representando escravos e objetos diversos, Museu Xucurus, Palmeira dos Índios,
fevereiro de 2014. Acervo do autor.
A forma como os objetos estão distribuídos na antiga igreja não é uma
distribuição aleatória ou apenas um amontoado de objetos. Percebe-se ali uma
“imaginação museal” (figuras 1 e 2), conceito criado pelo poeta e museólogo Mário
Chagas. Segundo ele (2005, p. 57),
A minha sugestão é que a imaginação museal seja compreendida como a
capacidade humana de trabalhar com a linguagem dos objetos, das imagens,
das formas e das coisas. A imaginação museal é aquilo que propicia a
experiência de organização no espaço – seja ele um território ou um
desterritório – de uma narrativa que lança mão de imagens, formas e objetos,
transformando-os em suportes de discursos, de memórias, de valores, de
9
esquecimentos, de poderes, etc, transformando-os em dispositivos
mediadores de tempo e pessoas diferentes.
A historiadora Kátia Cadengue foi uma das responsáveis pela atual exposição
de longa duração. Segundo suas próprias palavras: “eu, como historiadora, sentia-me
incomodada com a [antiga] exposição, quando chegava já tinha o impacto da escravidão
na entrada e isso causava incômodo em algumas pessoas”. O incômodo era causado
pelos manequins com instrumentos de tortura representando os escravos, logo na
entrada da instituição. No final de 2011 e início de 2012, ela procurou os responsáveis
pela instituição para propor algumas mudanças na exposição, e, após receber a
autorização, reuniu uma equipe para executá-las.
Ainda segundo Kátia Cadengue, a ideia era:
(...) na nave central era para ficar só a parte sacra. Porcelanas nas laterais
[naves laterais]. A parte dos arreios e luminárias não foi para o anexo por
falta de espaço. Tentamos levar o máximo para o anexo. (...). A questão do
Coronelismo com as camas, a cozinha e os escravos, porque faziam parte da
realidade de Palmeira dos Índios, na primeira parte do anexo. As tradições e
parte indígena, as igaçabas, os trajes típicos [na segunda parte do anexo].
Tentamos dar um entendimento para quem chegasse aqui no museu.”
Apesar do empenho da equipe responsável, não foi possível separar os objetos
segundo as tipologias do acervo, arte, história e costumes. Os motivos que
impossibilitaram as mudanças desejadas foram a grande quantidade de objetos do
acervo e a falta de espaço para distribuí-los. Como a instituição não possui uma reserva
técnica, todos os objetos do acervo estão expostos; e há dificuldade para transferir as
vitrines, pois algumas estão afixadas nas paredes. A coleção indígena, propriamente
dita, está disposta em um espaço anexo sem qualquer identificação afixada nas
estruturas físicas do Museu. No entanto, no folder institucional consta uma
autodenominação específica para a indicação de uma coleção etnográfica existente no
acervo do museu.
A Coleção Luiz B. Torres, que aparece no folder institucional, é formada pelos
objetos etnográficos dos Xukuru-Kariri. Eles estão expostos no anexo do Museu
Xucurus, divididos em uma vitrine na primeira sala (objetos de pequeno porte) e os
demais (de grande porte), na segunda sala. As informações sobre a Coleção são
escassas; apenas encontrei uma referência que sinaliza sua existência, um pequeno texto
10
encontrado na última página de um folder institucional do Museu Xucurus. O texto,
assim como o folder, não possui autoria e nem a data em que foi impresso. Os
interlocutores não souberam determinar a data ou o autor, contudo afirmaram que
provavelmente foi impresso há quinze ou vinte anos.
O conteúdo do texto destaca o seguinte:
ANTROPOLOGIA CULTURAL
A “COLEÇÃO LUIZ B. TORRES” enfeixa um mundo precioso da etnologia
xukuru-kariri. Essas duas tribos fixaram-se no solo palmeirense desde os
primórdios do Século XVIII.
A Coleção, toda ela fruto de pesquisas do historiador que lhe emprestou o
nome, compreende várias igaçabas (vasos funerários) usados pela indiada há
duzentos ou mais anos, algumas delas exibindo restos ósseos, e inclusive
com utensílios cerimoniais.
Machados de pedras, cachimbos e objetos outros que dão uma ideia do
estágio cultural em que se encontravam os primitivos habitantes de Palmeira
dos Índios.
Além das importantes peças arqueológicas, estão em exibição as vestes
litúrgicas ainda usadas pelos índios descendentes, hoje aldeados da Fazenda
Canto, onde há um posto da Funai.
Encontram-se, igualmente, nesta secção, várias peças de artesanato indígena,
ainda praticado pela tribo.
O primeiro marco usado pelo sargento-mor José Gomes da Rocha, juiz de
sesmarias, para demarcar terras para os índios, em 16 de novembro de 1822,
ou seja, toda a área que compreende o terreno foreiro atual do município.
O autor do texto inseriu a Coleção Luiz B. Torres no âmbito da Antropologia
Cultural, além de associá-la à etnologia Xukuru-Kariri, o que evidencia um
conhecimento mínimo sobre a disciplina Antropológica. No restante do texto, aparecem
algumas noções caras a essa disciplina, como tribo, primórdios, indiada, estágio
cultural, primitivos habitantes, índios descendentes, entre outros. Ao utilizar essas
noções, o autor associou o grupo indígena Xukuru-Kariri ao pretérito, assim como seus
objetos. O que se pode inferir desse material é que, no âmbito da instituição pesquisada,
trata-se do único documento público em que circula uma ‘certa’ concepção de
antropologia, articulada a um ‘determinado’ discurso sobre o grupo Xucuru-Kariri.
Entre o folder e a atual configuração expográfica, podem ser constatados
silenciamentos, apagamentos, paradoxos.
No interior do anexo em que se encontra a mencionada Coleção, a vitrine
contendo os objetos etnográficos é antecedida por um móvel de maior dimensão
contendo diversas armas (figuras 3 e 4). Coincidência? Não. Segundo João Américo da
11
Motta Pessanha (1996, p. 32), “(...) o simples fato de fazermos uma seleção, colocando
dentro de certa sintaxe expositiva de qualquer natureza, faz com que qualquer arranjo,
qualquer sistema expositivo museográfico, na verdade, seja um discurso, uma narrativa
(...)”. As armas apontadas para os objetos indígenas – e nesse caso, não são objetos de
um povo indígena qualquer, mas sim dos Xukuru-Kariri, habitantes do município e que
ainda estão em luta pela finalização do processo de demarcação de suas terras – é uma
narrativa que deve ser levada em conta ao analisar a exposição de longa duração da
instituição.
A vitrine com objetos indígenas abriga peças como estatuetas de cerâmica
representando figuras humanas, algumas com pigmentos; vasilhames de cerâmicas;
poás (cachimbos), um coité (cuia) com grafismos, apitos da dança do toré10
; esculturas
de madeira; colares; um rabo de tatu; uma pequena escultura em madeira identificada
como Nossa Senhora do Amparo; um cocar, entre outros.
Figuras 3 e 4 – A primeira Sala do Anexo e duas vitrines, a primeira e maior contendo armas diversas e a segunda e
menor com os objetos Xukuru-Kariri. Museu Xucurus, Palmeira dos Índios, outubro de 2013. Acervo do autor.
Apesar de não encontrar a documentação sobre esses objetos, há indícios de
sua existência, pois alguns deles possuem etiquetas com numeração. Contudo, não tive
acesso ao interior da vitrine11
, fato esse que dificultou identificar a numeração,
quantificar os objetos ou mesmo a leitura de algumas etiquetas.
Das informações existentes no interior da vitrine, só foi possível a leitura das
seguintes etiquetas: “Panela de Oferenda, encontrada junto de uma igaçaba descoberta
por Luiz Barros Torres”; “Nossa Senhora achada em 1973 pelos índios Xucurus”;
10
Esses três últimos objetos foram identificados pelo cacique Manoel Selestino, no dia 03 de agosto de
2013. 11
Nas minhas últimas viagens, solicitei à diretora do Museu Xucurus, Surica, fotografar os objetos da
vitrine. Ela falou que as chaves não estavam em seu poder. Conversando posteriormente com ela, me
dispus a colaborar voluntariamente com a instituição como consultor, e como contrapartida pedi o acesso
aos objetos indígenas da vitrine, pois quero medi-los e fotografá-los. Ela concordou, abrindo assim uma
possibilidade futura de acesso a esses objetos.
12
“Panela de barro com mais de 30 anos, oferta de Maria Matilde de Jesus, Fazenda
Feliz”; “Coités para tomar água”; “Faca de pedra usada pelos índios”; “Apito, oferta de
Severino Tomás de Aquino (Paulo Jacinto)”. Também existe um pequeno texto no
interior da vitrine de autoria de Luiz B. Torres:
Vasilha de Oferenda.
Esta vasilha foi encontrada no dia 07/03/1978 dentro de uma igaçaba. Os
trabalhadores da prefeitura estavam preparando o terreno de uma rua quando
deram com a tampa de uma igaçaba. Foi constatada particularidade: havia
três igaçabas uma dentro da outra, havia duas vasilhas de oferendas, sendo
que a outra quebrou.
Antigamente neste e em outros locais quando por ocasião da construção da
estrada de ferro foram desenterrados vários potes fúnebres, há muitos
cemitérios na cidade, depende da sorte para encontrá-los. Luiz B. Torres,
07/02/1978.
Contudo, o texto não está ao lado de uma vasilha de oferendas; possivelmente
desprendeu-se do objeto citado. Os erros e as ausências nada mais são do que o velho
discurso sobre os “processos de controle, silenciamento e apagamento das experiências”
(BARTH, 2005, p. 22), calcado numa atemporalidade que mascara a
contemporaneidade do grupo étnico Xukuru-Kariri.
Para José Reginaldo Santos Gonçalves (2007, pp.142-143):
Vale a pena assinalar no entanto que quando falo em discursos, orais ou
escritos, não estou me referindo à linguagem no sentido mais estrito, no
sentido formal (enquanto gramática, sintaxe, léxico), mas às visões de
mundo que são parte integrante dessas linguagens e que se opõem
dialogicamente a outras. Não há visões de mundo, formas de pensamento
separadas dos discursos que as veiculam. Cada modalidade de discurso traz
consigo uma visão de mundo, um ponto de vista sobre a sociedade.
Esses discursos não estão presentes apenas no que tange aos objetos da vitrine
ou aos demais analisados a seguir; aparecem também nas falas de alguns interlocutores,
assim como nos documentos consultados. Os Xukuru-Kariri que habitam o município
são vistos como os descendentes dos antigos habitantes do lugar, são índios misturados,
são os caboclos.
Na primeira visita ao museu, ouvi uma frase nas dependências: “(...) o museu é
bastante visitado pelos índios, contudo não são índios puros (...)”. Essa frase
exemplifica uma das imagens dos índios para parte da população palmeirense.
13
Categorizar os índios em puros e impuros significa pensar a etnicidade ou a cultura ou
ambos como algo com polarizações fixas, a partir de referências estáticas e ou
homogêneas, o que inviabiliza o reconhecimento das diferentes dinâmicas identitárias
dos grupos étnicos e seus direitos.
Os demais objetos da Coleção Luiz B. Torres estão localizados na segunda sala
do anexo. Esses dividem o espaço com objetos diversos (expostos em vitrines ou
individualmente, como alguns fósseis, material lítico e vitrines com chaveiros,
isqueiros, bonecas em miniatura, tesouras, pedras semipreciosas, um fragmento do muro
de Berlim, entre outros).
Os objetos indígenas são fáceis de identificar, devido ao tamanho, como as
igaçabas e os manequins com vestuário cerimonial (figuras 5 e 6); contudo, é difícil
determinar quando termina a mostra desses. Existem objetos que não pertencem a esse
grupo, mas dividem o mesmo espaço.
Figuras 5 e 6 - Painel, manequins com vestes cerimoniais indígenas e igaçaba com restos humanos, Museu
Xucurus, Palmeira dos Índios, outubro de 2013. Acervo do autor.
A composição da segunda sala do anexo, em linhas gerais, resulta na
distribuição de objetos que expõem os paradoxos do Museu na produção de visibilidade
para a presença indígena como marca de autodenominação da própria instituição. Entre
os arranjos que constituem as formas de distribuição das peças indígenas ao lado de
outros objetos, é possível contemplar, também, lacunas ou mesmo discursos que
traduzem uma visão do indígena associado às origens pré-históricas do lugar. Aos olhos
do visitante que desconhece a presença dos Xukuru-Kariri no contexto histórico atual do
município de Palmeira dos Índios, tais paradoxos e apagamentos podem passar
despercebidos. Aos olhos dos próprios Xukuru-Kariri, tais contradições alimentam
14
outras narrativas sobre o Museu existente e os museus que desejam para instituírem em
suas comunidades espaços de memórias que contribuam para a formação dos jovens.
Narrativas dos Xukuru-Kariri sobre museus: “hoje sabemos o lugar que queremos
ocupar na história do país”12
Entendo a narrativa como uma produção polissêmica emergente de diferentes
experiências de vida. Nas narrativas dos Xukuru-Kariri sobre museus, essas
experiências de vida estão intrinsecamente ligadas à questão da luta pela terra, assim
como dentro de um complexo de emergência étnica. Ou seja, a “musealização como
atividade de grupos sociais torna-se o renascimento de uma vida social que quer se
atualizar” (JEUDY, 1990, p. 30). As críticas ao Museu Xucurus, a participação do
museu nas lutas indígenas e as ideias de museus nas aldeias, essas ainda em gestação,
também fazem parte desse processo. De certa forma, são decorrentes também da
inexistência de diálogo do Museu municipal com o grupo indígena.
Os objetos indígenas expostos no Museu Xucurus fazem parte do patrimônio
cultural do grupo indígena Xukuru-Kariri, e algumas lideranças utilizam esses objetos
em seus discursos identitários. Esse fato ficou claro na fala do cacique Manoel
Selestino, da Aldeia Serra do Capela, durante a visita guiada ao referido museu, no dia
03 de agosto de 2013 (estávamos em frente da vitrine com os objetos indígenas),
quando a Professora Fernanda Rechenberg perguntou ao cacique se existiam objetos
como aqueles em posse das famílias nas aldeias, o cacique respondeu o seguinte:
(...) Não! Foram depositadas aqui, né!? Lá nós fazemos para o ritual da
gente, mas os mais antigos foram depositados aqui, tá tudo aqui. Agora, o
que é que nós estamos pensando é criar um museu Wakonã-Kariri na nossa
aldeia, resgatar algumas peças daqui para o museu Wakonã-Kariri, é a nossa
ideia, nosso pensamento, um dia criar o nosso museu também (...).
Na fala do cacique, fica evidente a vontade de criar um museu do povo
Wakonã-Kariri13
e parte dos objetos desse novo espaço seria “resgatado” do Museu
Xucurus de História, Arte e Costumes. A localização do futuro museu Wakonã-Kariri
12
Frase da liderança indígena Maninha Xukuru-Kariri. 13
Segundo o depoimento do cacique Manoel Selestino durante a visita, o grupo indígena identificado
como os Xukuru-Kariri, são na verdade, Wakonã-Kariri, o grupo indígena Xukuru chegou posteriormente
de Pernambuco.
15
seria na aldeia Serra do Capela, local do cacicado de Manoel Selestino. Destaco aqui
que nas narrativas afloram diversos museus, notadamente porque existem trajetórias
familiares diferentes. Não existe uma história ou uma memória compartilhada por todos,
mas uma multiplicidade de histórias e memórias. A existência de um museu Xukuru-
Kariri ou Wakonã-Kariri representando todas as aldeias é algo restrito ao discurso desta
liderança ouvida na pesquisa.
Algumas das críticas dos Xukuru-Kariri ao Museu Xucurus enfatizam a junção
do chifre de cervo ao lado dos objetos indígenas e também das igaçabas com restos
humanos. Os chifres não são reconhecidos como elementos presentes nos seus
contextos de vida.
Com relação às igaçabas, o Código de Ética do ICOM14
para Museus: versão
lusófona 2009 aborda a questão dos restos mortais nos acervos de museus. Nesse
documento, são sinalizados princípios sobre os “acervos de remanescentes humanos e
de caráter sagrado”. Tais acervos devem ser tratados com respeito, resguardando os
interesses e crenças dos grupos religiosos e étnicos, além de destacar o respeito à
dignidade humana de todos os povos. Importante ressaltar que os Xucuru-Kariri
também criticam a exposição de restos humanos à visitação pública, tal como hoje
acontece no Museu da cidade.
Os objetos do Museu possuem significados sociais que extrapolam os atributos
utilitários reservados a eles. O grupo indígena Xukuru-Kariri visita e fiscaliza
regularmente “seus” objetos. Tais visitas geram narrativas sobre a ótica dos indígenas
acerca daquilo que veem, a exemplo da declaração de Korã Xukuru, técnica em
enfermagem e terapeuta holística da aldeia Mata da Cafurna:
(...) o que eu fui lá e vi são várias peças empoeiradas, quebradas, que já não
representam nem mais a cultura indígena porque, se você olhar ali, você nem
sabe que objetos são aqueles (...). O Museu Xucurus precisa ter uma reforma
muito grande na parte indígena, eu já me ofereci para ajudar identificar os
objetos ali expostos, mas não houve interesse (...). Esses pedaços de objetos
que existem no museu da cidade, eles remetem para a sociedade que os
índios existiram e que eles não existem mais, então isso, é o que a sociedade
quer passar do nosso povo (...).
14
Código de ética do ICOM – International Council of Museums. Disponível em:
<http://www.icom.org.br>. Acesso 01/06/2014.
16
O que se destaca no testemunho de Korã é a ênfase na não identificação dos
objetos expostos com a vida atual do grupo étnico a que pertencem. Para Tânia Xukuru-
Kariri, professora e diretora da Escola Indígena da aldeia Mata da Cafurna:
(...) pelo que eu vejo no Museu Xucurus de Palmeira dos Índios é uma forma
de cada vez mais matar diante da sociedade a cultura do meu povo, do povo
Xukuru-Kariri (...) então, estão lá os objetos quebrados, lá encostados num
canto, então isso para nós significa o que: não dão valor, credibilidade,
respeito (...).
O ponto de intersecção entre o discurso de Korã e o discurso de Tânia é a
constatação do estado de abandono dos objetos expostos, o que conota a desvalorização
da existência no presente de um grupo étnico no município ao qual os objetos também
estão correlacionados.
Em virtude das mudanças na configuração política, bem como do acirramento
dos conflitos fundiários, hoje os índios reivindicam seus objetos contidos nesse espaço,
manifestando críticas à representação que ali é divulgada. Para os Xukuru-Kariri
importa construir seus espaços de memória dentro de suas aldeias e preferencialmente
para seus pares.
Em outro momento do trabalho de campo, fui informado que o Pajé Celso,
juntamente com outras lideranças da Fazenda Canto, reivindica o acervo do seu povo
junto ao Museu Xucurus de História, Arte e Costumes. Penso que a ideia do
repatriamento de parte do acervo desse museu não está dissociada do processo de
“retomada”, pois esses objetos fazem parte do patrimônio cultural dos Xukuru-Kariri. A
pesquisa revelou que a questão do repatriamento para algumas lideranças Xukuru-Kariri
é sobretudo política, assim como a inscrição de espaços de memórias nas aldeias.
Utilizo a noção de patrimônio proposta por ABREU (2007, p. 267) “(...) enquanto um
bem coletivo, um legado ou uma herança artística e cultural por meio dos quais um
grupo social pode se reconhecer enquanto tal (...)”.
Penso que o desejo de criação de um museu indígena na Fazenda Canto, de
certa forma, é uma consequência do processo de “retomada”, como também uma
resposta indireta ao Museu Xucurus de História, Arte e Costumes. Ou uma sinalização
do modelo de museu desejado. No entanto, é importante reconhecer que entre os
discursos do cacique Manoel Selestino e os discursos de Korã e Tânia, anunciam-se ao
menos duas perspectivas diferentes no que diz respeito à relação entre o Museu
17
existente e a postulação da existência de museus nas aldeias. Para o cacique Manoel
Selestino, o destaque recai na repatriação dos objetos expostos no Museu Xucurus. Para
Korã e Tânia, os objetos do Museu existente já não remetem mais às relações de
pertencimento com os Xukuru-kariri. O museu desejado para a sua aldeia deve expor as
vivências do presente em diálogo com o passado. Isto fica mais evidente quando a
professora indígena Tânia Xukuru-Kariri destaca o seguinte:
(...) Eu trato assim de museu vivo porque a nossa cultura é a nossa vida, é a
nossa vivência do dia a dia. Então, no meu ponto de vista, talvez esteja
equivocada diante das circunstâncias em que vivemos, como vivíamos antes,
que a gente volte a fazer essas práticas com a comunidade, faça esse tipo de
vivência, que a gente passe a viver o que os nossos antepassados viveram,
não só no nosso ritual, mas no nosso dia a dia, que passe a viver mais a
natureza, que passe a valorizar mais a natureza, que passe a utilizar mais as
nossas ervas e tudo isso para mim é um museu vivo, porque na realidade, os
nossos mais velhos são as nossas enciclopédias. Eu não quero que isso morra
essas coisas morra empoeirado ou cheio de cacos como o museu lá da
cidade.
Na perspectiva de Korã Xukuru o que se ressalta é o seguinte:
(...) Muitas das coisas, artefatos e objetos que hoje em dia são
comercializados na comunidade não são dos Xukuru-Kariri, já são de outras
etnias e coisas dos próprios Xukuru-Kariri já não existem mais, porque a
arma dos Xukuru-Kariri era o badoque, ninguém faz o badoque mais, faz o
arco e flecha. O arco e flecha ele generaliza o índio. Porque muitos dos
índios já estão perdidos sem saber sua própria história e nós temos essa
dificuldade aqui como eu acredito que as outras malocas. E esse museu iria
ajudar muito isso, eu não sei se seria oficinas, esse período que a gente
poderia sentar e estar construindo essa história junto com essas crianças (...),
seria uma forma de a gente tá fortalecendo as nossas raízes, os nossos
conhecimentos, e sim fazendo com que ele ficasse fixo na ideia de cada um,
que eles tivessem outra forma de visão, mas que eles conhecessem a nossa, e
ai eles estariam se ajudando e se fortalecendo cada vez mais.
A partir dessas narrativas, destacam-se outros sentidos para as concepções de
museus como espaços de memórias para a consolidação dos processos formativos
intrassociais do grupo Xukuru-Kariri. Ao lado da concepção do cacique Manoel
Selestino, que sugere o resgate dos objetos do Museu municipal como estratégia política
para a construção de um museu na aldeia, as proposições lançadas pelas irmãs Tânia e
Korã indicam a ênfase nas vivências do grupo com a sua história no presente como
pressuposto de construção de um museu vivo. Ressalto que essa polissemia parece
indicar um horizonte fecundo de novas perspectivas de reconhecimento dos museus
18
indígenas como lugares de afirmação das relações de pertencimento étnico. No entanto,
é importante ressaltar também que a existência do Museu Xucurus possibilita a
emergência de formas de contestação que contribuem também para a formulação dos
discursos indígenas expostos até aqui.
Inconclusivas considerações
Os conflitos que permeiam a história do Museu Xucurus de História, Arte e
Costumes apontam para a importância das reflexões acerca do patrimônio cultural de
um ponto de vista antropológico. Considero as ressonâncias entre o ‘instituído’ e o
‘desejado’ como um processo que, apesar das contradições locais, ressalta múltiplas
faces de uma mesma ‘realidade’.
Seguindo as sugestões teóricas de Fredrik Barth (2005, p. 17) relativas à
necessidade de se afastar da ideia de cultura como algo compartilhado e fixo e a
proposta de se abordar a elaboração dos “fluxos culturais” por atores sociais concretos e
em contextos específicos, busquei articular as apropriações (reivindicatórias e
desejadas) dos espaços museológicos pelos Xukuru-Kariri como uma tessitura em
constante (re)-construção de limites em áreas nas quais ocorrem diferentes tensões
identitárias. Procurei destacar que a composição dos arranjos expográficos do Museu
pesquisado apontam para uma determinada visão do grupo étnico que autodenomina o
próprio museu. Destaquei ainda que a contestação dessa visão instituída pelo Museu
existente, por parte de algumas lideranças indígenas, provoca a emergência de
narrativas sobre os museus desejados por essas lideranças. Contudo, as narrativas sobre
museus desejados não indicam uma padronização discursiva por parte dos indígenas; ao
contrário, apresentam variações de sentido, o que sugere reconhecer que “(...) as ideias
que compõem a cultura transbordam seus limites e se difundem de forma diferenciada,
criando uma variedade de agregados e gradientes” (BARTH, 2005, p.17). O que eu
tentei fazer foi compreender os limites produzidos entre os discursos do Museu e os
discursos dos Xukuru-Kariri sobre os museus como aspectos relevantes para a
compreensão de um processo mais amplo que envolve por um lado a territorialização do
grupo étnico, e, por outro lado a patrimonialização dos aspectos culturais referentes a
esse grupo étnico.
19
Para tal propósito, o conceito de “processo de territorialização” de João Pacheco
de Oliveira Filho (2004) abre a possibilidade de investimento em novas questões, para o
avanço da pesquisa que venho desenvolvendo. Considero que a reivindicação do museu
como espaço de formação para os jovens da aldeia pode significar também o
investimento do grupo na consolidação de suas relações com o território que habitam.
Considero ainda que aproximações conceituais entre os processos de patrimonialização
da cultura no âmbito das reflexões sobre territorialização podem aprofundar de maneira
construtiva os diálogos interdisciplinares entre a museologia e a antropologia na
contemporaneidade.
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