MURK
AGOSTINHO TORRES
CRÉDITOS
Autor: Agostinho Torres
Foto da Capa: Ali Yahya
Edição da Capa: Agostinho Torres
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Murk – 1ª Edição
Copyright 2019 – Agostinho Torres
Todos os direitos reservados
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RECADO DO AUTOR
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diversas revisões, a construção da capa e até mesmo a feitura do ebook nos mais variados
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Abraços
Murk
- Como você me encontrou? – perguntou irritadamente o homem enquanto dava goles
no líquido transparente do copo.
Parada diante daquela figura misteriosa, a garota se esforçou para permanecer calma.
Com o copo de volta na mesa, o homem o preencheu mais uma vez com a água da jarra que
estava ao lado de sua calejada mão esquerda.
- Não foi difícil, você deixa muitos rastros – ela respondeu pausadamente. – E as
pessoas não parecem te levar muito a sério, elas acham que você é louco.
- E quem disse que não sou louco? – o homem se contrapôs abruptamente. Ele olhava
para frente, no intuito de evitar o contato visual com a garota. – Tive algumas passagens pelo
Meduna1 nos anos 80, não posso dizer que estão enganados ao me chamarem de louco -
decorrido algum tempo ele levou o copo novamente a boca e, enquanto dava alguns goles, de
soslaio tentou analisar a reação da interlocutora.
A moça esboçou um sorriso amarelo e pavoroso. Seus lábios finos estavam cobertos
por uma leve camada de batom rosa que a fazia parecer bem mais nova do que era. Pensativa,
com o corpo pendendo para um dos lados por se apoiar demais em apenas uma das pernas, ela
se deu conta de que talvez estivesse sendo testada.
- Eu não acredito que você seja louco. Não depois das coisas que vi – a moça
finalmente tomou coragem, puxou uma das cadeiras e sentou-se do outro lado da mesa.
Não havendo reação do sujeito, ela posicionou sua bolsa de colo de cor marrom em
cima da mesa e retirou dela um bloco de notas, no qual imediatamente começou a escrever.
1 Hospital Psiquiátrico existente na cidade de Teresina.
Os dois permaneceram calados por algum tempo. O homem estudava a fisionomia da
mulher, fazendo registros mentais de suas características e buscando alguma compatibilidade
com inimigos do passado. Ela, por outro lado, também fazia suas próprias anotações e chegou
a conclusão de que ele possuía por volta de 50 e poucos anos, embora o rosto emanasse bem
mais jovialidade.
- Eu tenho 52 anos. Pode anotar aí – disse o homem se recostando na cadeira e abrindo
mais espaço entre os dois.
- Como você... – ela começou a falar quando foi interrompida.
- Olha cara – ele chamava todo mundo de cara, não importava de qual sexo a pessoa
fosse – você não vai ouvir de mim um “O que foi que você viu?” e depois conversas
agradáveis. Eu trabalho sozinho. Não quero saber do que você está atrás, cada um com seus
problemas.
- Richard Ruan Quinanque.
Ao ouvir essas palavras o homem deu um gole abrupto na água e se calou, sua
expressão se fechou ainda mais, transparecendo algo de rancor. Agora seus olhos estavam
penetrantes e fixos.
- Alguma prova? – ele perguntou, retomando o diálogo sucintamente.
- É por isso que estou aqui. Vi muita coisa, mas não consegui nenhuma evidência.
- Isso não é apenas uma matéria de jornal, garota. Você não vai poder apenas postar no
seu blog, portal ou o que quer que seja, e depois seguir em frente como se nada tivesse
acontecido. Você realmente sabe onde está se metendo? Tem noção de em que tipo de
vespeiro está enfiando a mão? Eu aguento as bordoadas, tenho aguentado por décadas, será
que você também aguenta?
- Posso parecer, porém não sou boba – ela afirmou convicta. - Se eu fosse uma idiota
não teria chegado até você.
- Às vezes os idiotas chegam mais longe do que deveriam – augurou o homem.
- Se for para duvidar de minha capacidade investigativa é melhor não trabalharmos
juntos mesmo – retrucou a moça, olhando para os lados num ensaio de movimento para sair
da mesa.
- Fique – interveio o homem, colocando a palma sobre a mão da garota, que já
apanhava a bolsa. – Não é todo dia que encontro alguém que sabe desse nome. Se você tiver
realmente certeza de que sabe onde está se metendo, me diga tudo do início. O que foi que
você viu?
- Eu sei onde estou me metendo – ela largou o bloco de notas, respirou fundo e
começou seu relato.
***
Tudo começou quando pediram que eu fizesse uma matéria sobre os quatro anos do
suicídio da Carla Claro. Você deve se lembrar do caso, até hoje muita gente duvida dos laudos
da Polícia Federal e da estranha cobertura midiática realizada na época. Por isso, desde que o
chefe da redação me mandou fazer essa matéria, eu sabia que seria um trabalho complicado,
só não imaginava que chegaria a situações tão absurdas assim.
Segundo a polícia, Carla Claro dirigiu bêbada até a obra do novo prédio da Justiça
Federal, subiu até o vigésimo quinto andar, escalou o parapeito e se jogou de lá. A motivação
do “suicídio”? Nunca foi esclarecido.
Na época uma pessoa, que por causa de boatos se tornou suspeito, chegou a ir à TV
para se defender das acusações e contratou para sua defesa o advogado Roberto Marov,
conhecido como “livra bacana”, um sujeito que só atende a alta elite da política nacional. Por
qual motivo alguém inocente, que não havia sido oficialmente indiciado pela polícia, ficaria
tão incomodado com boatos a ponto de ir para a TV se defender e contratar um dos
criminalistas mais eficientes e de caráter mais duvidoso do Brasil?
Comecei a me fazer esse tipo de pergunta. E embora o laudo da Polícia Federal se
esforçasse para parecer coerente, podemos dizer que é tão científico quanto uma HQ da
Marvel. Como seria possível para uma garota bêbada chegar sozinha no vigésimo quinto
andar daquele prédio ainda em construção, se a própria agente da Polícia Federal, que tem um
melhor preparo físico e experiência em campo, teve dificuldades de repetir o mesmo percurso
no exame que deu origem ao laudo?
Na minha investigação, descobri que havia um vigia noturno que afirmou ter visto
alguém acompanhando a garota até a obra. O vigia misteriosamente se calou pouco tempo
depois de cessarem os boatos que colocavam o filho de um influente político da cidade como
suspeito do crime. Ele desmentiu sua própria fala e passou a ser difícil de encontrar, até que
por fim sumiu de vez.
A família da vítima sabia que ela tinha laços com o filho desse político, a mãe dela
chegou a afirmar que a sociedade teresinense ficaria chocada quando a polícia, ainda na noite
do funeral, fosse divulgar numa coletiva de imprensa os principais suspeitos. O anúncio da
policia nunca ocorreu e inexplicavelmente a família da pretensa suicida também se calou.
Quem seria poderoso o suficiente para calar um vigia, uma família de classe média, a polícia e
a mídia?
Havia um clima muito estranho nos jornais daqueles dias, na pesquisa documental que
realizei no Arquivo Público, foi possível constatar o silêncio imposto nas manchetes dos
impressos e nas gravações que restaram dos programas de TV. No entanto há um programa da
TV Centro Norte, anterior a essa onda de silêncio, em que o apresentador afirma que Carla
Claro foi morta porque havia gravado um vídeo sigiloso do filho de um político poderoso. No
tal vídeo teriam sido registradas cenas de sexo homossexual do suspeito com um de seus
primos. Quando o rapaz ficou sabendo do ocorrido a perseguiu e matou, sendo essa a
motivação de toda a ação. O apresentador afirmou até que a polícia tinha apreendido um HD
com tal conteúdo.
Em nenhum momento o nome do rapaz chegou a ser mencionado diretamente, apesar
dele mesmo ter feito aparições públicas desmentindo os “boatos”. O silêncio que se abateu
posteriormente na mídia não era por precaução, alguém muito influente estava emudecendo
todos os escalões de poder.
A polícia de alguma forma também estava envolvida, havia uma conspiração e
provavelmente muita grana para movimentá-la. Chequei com a minha fonte dentro da
corporação civil, um policial chamado Maxwell. Ele não disse muito, entretanto confirmou
minhas suspeitas de que a polícia estava dando cobertura para alguém. Ele também me alertou
que era melhor eu ficar longe, que eu estaria fodida se não deixasse aquela história enterrada
no passado distante.
Foi difícil e demorou um pouco, contudo encontrei Marcos Neto Costa, o tal vigia
daquela fatídica noite. Quando citei Carla Claro pela primeira vez, ele me olhou atônito e
ficou paralisado. Lhe contei todas as minhas dúvidas e hipóteses, e por algum milagre ele
resolveu me dizer o que viu. Talvez sua consciência estivesse pesando, ele parecia ser uma
ótima pessoa envolvida numa situação que fugia ao seu controle.
Segundo o vigia, Carla Claro não chegou sozinha e nem com apenas uma pessoa ao
prédio em construção, como a mídia chegou a noticiar que ele havia dito em depoimento. Ela
estava acompanhada de um grupo estranho e aterrorizante de pessoas. Todos vestiam batinas
negras e seguravam uma vela entre as mãos, enquanto diziam repetidamente a frase “Richard
Ruan Quinanque”. Ele afirma que Carla Claro estava radiante e rodopiava como se estivesse
dançando com o ar, a imagem dela feliz no meio daqueles homens exóticos nunca saiu da sua
cabeça. Ele chegou a falar disso com os primeiros policiais que o interrogaram, porém eles o
aconselharam a mudar a história e dizer que não havia visto nada anormal naquela noite.
Marcos entendeu a ameaça e fechou o bico, pois, como diz o ditado popular, peixe pequeno
não morde rabo de tubarão.
E, além do mais, não era para ele estar lá naquela noite, foi trabalhar como substituto
porque naquela manhã o outro vigia acabou sofrendo um acidente e foi hospitalizado. O nome
do outro vigia, o homem que deveria de fato estar vigiando o prédio naquela noite, era Onofre
Medeiros Silva. Fazendo uma busca pelo paradeiro dele acabei me deparando com o seu
obituário. No obituário dizia que ele era uma pessoa honesta que teve a vida encurtada por um
acidente de trânsito. Comparei as datas e ele morreu duas semanas após o suicídio de Carla
Claro. Procurei a família e ninguém se dispôs a me atender, não sei dizer se ele morreu em
decorrência do acidente anterior ou de novo acontecimento.
Para tornar a história mais tensa ainda, dois dias depois do nosso encontro Marcos, o
vigia que estava trabalhando no dia da morte da garota, morreu de causas naturais. Parecia
coincidência demais e todas as pontas soltas tiravam o meu sono.
Eu queria completar o quebra-cabeça, saber o que aconteceu. Pesquisei na internet
quem ou o quê seria Richard Ruan Quinanque. Está claro para mim que é uma pessoa ou frase
que pode me levar ao esclarecimento da morte de Carla Claro, mas não me deparei com nada
relevante.
Certo dia eu recebi um telefonema de número desconhecido, a voz estava modificada
por algum tipo de aparelho. A voz alterada era horrível, um grave que retumbava no ouvido e
causava calafrios. A pessoa disse que era o último aviso, que eu deveria deixar a matéria de
lado e seguir em frente na minha vida ou sofreria as consequências terríveis da minha
curiosidade.
Depois dessa ligação notei alguns chiados no meu celular e no meu telefone
residencial. Foi então que parei de usá-los e só acessava o computador para falar besteira ou
ler notícias distantes. Não falava desse caso em nenhum meio que pudesse ser interceptado,
dava até pistas falsas em conversas com amigos, dizendo que tinha perdido o trabalho de
semanas porque minhas pistas não haviam me levado a lugar algum. Meu objetivo era
despistar quem quer que fosse que estivesse me vigiando e continuar a escrever a matéria na
ponta da caneta.
Fui novamente atrás do meu informante na polícia. Maxwell é um rapaz confiável, ele
só passou a me dar informações sigilosas quando acreditou que eu tinha alguma pretensão de
justiça social com o meu jornalismo. Foi ele que me disse sobre você, falou que conhecia um
cara que vivia investigando de maneira independente os casos bizarros que aconteciam pela
cidade. Ninguém na polícia gosta de ti, mas ele particularmente acredita que você faz algo
para conter seja lá o que for que acontece por aí. Maxwell acredita realmente que você
enfrenta forças ocultas, por assim dizer, e mantém a cidade protegida do que a polícia não é
capaz.
E aqui estou eu, seguindo a última e desesperada pista que restou do caso Carla Claro.
Me sinto um pouco idiota apelando para alguém que é conhecido por ser um ocultista maluco,
mas não tenho muitas opções no momento e estou disposta a tudo pra chegar até o fim disso.
***